22 de maio de 2008

Sem-teto

Terry Eagleton

London Review of Books


Anonymity: A Secret History of English Literature
by John Mullan.
Faber, 374 pp., £17.99, January 2008, 978 0 571 19514 5

Tradução / Todas as obras literárias são anônimas, mas algumas são mais anônimas que outras. Faz parte da natureza de um texto escrito o fato de conseguir se manter sozinho, livre de seu progenitor, podendo dispensar a presença física deste (ou desta). Nesse sentido, o texto escrito se assemelha mais a um adolescente que a um bebê. Diferentemente da fala, a escrita é significado que se libertou de sua fonte. Alguns tipos de escrita -por exemplo, ingressos para o teatro ou bilhetes deixados para o leiteiro- estão mais intimamente vinculados a seus contextos originais do que "O Paraíso Perdido" [de John Milton] ou "Guerra e Paz" [de Leon Tolstói]. Pelo fato de ser imaginária, a ficção não possui nenhum contexto original na vida real e, hermeneuticamente falando, pode, portanto, circular muito mais livremente que uma lista de compras ou uma passagem de ônibus. Não podemos simplesmente tirar Auschwitz de nossas cabeças quando assistimos a "O Mercador de Veneza" [de Shakespeare]. O significado pretendido pelo autor nem sempre passa por cima do significado atribuído pelo leitor.

Walter Benjamin acreditava que as obras literárias secretam certos significados que podem ser liberados apenas em sua pós-vida, quando elas passam a ser lidas em situações até então imprevisíveis. Ele pensava algo semelhante em relação à história em geral. As possibilidades futuras de "Hamlet" são parte do significado da peça, embora seja possível que nunca cheguem a se realizar. Um dos maiores romances ingleses, a obra-prima do século 18 "Clarissa", de Samuel Richardson, voltou a ser legível à luz do movimento feminista do século 20.

Works of literature, then, are to some extent cut free from those who engender them, wandering through the world to accumulate different meanings in different situations. Expulsa de sua "casa" de origem, sem-teto e órfã, a escrita literária é obrigada a sobreviver de um dia para outro e, desse modo, possui uma semelhança curiosa com o pícaro ou o vagabundo errante que protagonizam tantos romances. Those who are allergic to such Parisian formulas as the Death of the Author might prefer D.H. Lawrence’s more traditional dictum: never trust the teller, trust the tale. Literary works have intentions of their own, of which their producers may know little or nothing. It would be impossible to deduce from Sean O’Casey’s anti-political The Plough and the Stars that its author was a Communist Republican. The logic of the play runs athwart the ideology of the dramatist. Um texto pode carregar a assinatura de um escritor específico sem realmente fazer parte da obra dele.

Por exemplo, nem todo texto que ostenta a assinatura de Karl Marx é necessariamente "marxista". There is a difference between what Middlemarch is seeking to do at any particular point, and what George Eliot had in mind at the time, if she had anything particular in mind at all. As intenções literárias que importam são embutidas na própria obra, um pouco como a estrutura de uma cadeira "pretende" que nos sentemos nela. If I say, ‘I promise to loan you five pounds,’ but as the words cross my lips have no intention of doing so, I have still promised. The promising is built into the situation. It is not a ghostly impulse in my skull.

Authors can say the silliest things about their own stuff, which is one way in which they resemble critics. The Waste Land is not just a piece of rhythmical grousing, even though T.S. Eliot said it was. There is a sense in which writers are the first readers of their own works. Pushkin expressed astonishment that a character in Eugene Onegin was getting married. In the case of other artistic media, the issue of authorship can be even more problematic: who is the author of Westminster Abbey or There Will Be Blood? Even so, the author is not quite dead. It is true, as Paul Valéry pointed out, that many things are involved in the creation of a work of art besides an author; but this is to demote authors rather than to annihilate them. ‘What does it matter who is speaking?’ Michel Foucault famously scoffed. In real life, it can matter quite a lot. In literary affairs, too, knowing who wrote a piece can be important. It helps to know that the Foucault who published The Archaeology of Knowledge was also the author of The History of Sexuality, since it allows one to see how the cult of the body in the latter book stands in for the drastic elision of the human subject in the former. The fact that Jane Austen could create Emma Woodhouse as well as Fanny Price tells us something about Mansfield Park’s view of its own heroine. If we did not know that industrial imagery in William Blake’s work generally carries a negative charge, it would be harder to argue that the speaker of the ‘Tyger’ poem is not Blake himself, a point highly relevant to the work’s meaning. On the other hand, if we discovered that William Blake was actually a pseudonym for the Duke of Wellington, we would not necessarily stop reading him as radical. We would simply, as philosophers are fond of saying, not know what to say.

Foucault is right to suspect that the category of the author has traditionally operated as a kind of intellectual policing, though his point would be more persuasive if he did not find such policing everywhere he looked. Asking who wrote a work is among other things an implicit injunction to place it beside other texts by the same writer, which is not necessarily the most illuminating move. Mrs Gaskell’s North and South might be better read in the context of Victorian sanitation reports than in the context of Cranford. Yet the fact that Gaskell wrote Cranford as well throws light on why the industrial conflicts of North and South are not resolved by socialist revolution.

Literary anonymity takes different forms. A work may come unsigned because who wrote it is not thought to be all that important. Some medieval art is a case in point. What does it matter who is praising God, as long as he gets praised? The oldest form of literary anonymity is divine inspiration. There is only one author, and which mundane mouthpiece he selects to reveal his glory is neither here nor there. John Mullan is accordingly wrong to suggest that every anonymous work sends us off in search of an author. Finding out who wrote Sir Gawain and the Green Knight might deepen our understanding of the poem, but it might prove no more enlightening than finding out who bolted down the final rivet on the Forth Bridge. There are literary works in which what speaks is less a personal voice than a set of conventions, and which are none the worse for that.

Romantic literature, with its cult of the poetic personality, might seem just the opposite of this. Yet the Romantic poet’s richly particularised voice is largely a way of giving tongue to the transcendent. From Wordsworth to D.H. Lawrence, one speaks most persuasively when one articulates what is not oneself, whether one calls this Nature or the creative imagination, the primary processes or the dark gods. O eu remete a raízes insondavelmente anônimas. Homens e mulheres emergem como seres únicos por meio de um meio (quer o chamemos "geist", história, linguagem, cultura ou o inconsciente) que é implacavelmente impessoal. What makes us what we are has no regard for us at all. No próprio núcleo da personalidade, nos diz a era moderna, estão em ação processos anônimos. Apenas por meio de uma salutar repressão ou do ignorar dessas forças é que podemos conquistar a ilusão da autonomia. O anonimato é a condição da identidade.

É essa doutrina intransigente que o modernismo vai herdar, à medida que a impessoalidade assume o lugar do ego romântico, que já vai tarde. For Romanticism, the self and the infinite merge in the act of imaginative creation. To surrender oneself to dark, unknowable powers is to become all the more uniquely oneself. One must lose one’s life in order to find it. Para uma vertente do modernismo, o eu é deslocado pelas próprias forças que o constituem -ele é desalojado, retirado de sua casca, descentrado e despossuído. Não somos nada mais que os portadores anônimos do mito, da tradição, da linguagem ou da história literária. O único modo por meio do qual o eu pode deixar sua impressão digital distintiva, desde Flaubert até Joyce, é no estilo meticulosamente distanciador no qual ele se mascaraA linguagem, propriamente dita, pode ser destituída de autor, mas o estilo, como afirma Roland Barthes em "O Grau Zero da Escrita", mergulha diretamente nas profundezas viscerais do eu.

Outra vertente do modernismo retorna à própria subjetividade, como se a título de refúgio. O eu pode ser inconstante e fragmentário, mas existe algo em que podemos confiar: no imediatismo de suas sensações. E, embora a essência do eu como condição hoje seja impalpável, existem certos momentos raros em que ela pode ser momentaneamente recapturada. Já o pós-modernismo, em contraste, ensaia o conto modernista do eu desalojado e descentrado, mas sem as consolações de um eu essencial. There never was such a thing, for Barthes any more than for David Hume, and we are doubtless all the better for it. What looks like a loss is actually a liberation. Unity is an illusion, and consistency is more a vice than a virtue. Postmodernism is full of personality cults, but they know themselves to be groundless. Like commodities, individual selves are basically interchangeable. Once you’ve seen one, you’ve seen them all.

Anonimato: A Secret History of English Literature, de John Mullan, está longe de tecer tais reflexões grandiosas. Trata-se de uma história do anonimato literário do século 16 até o presente e, sabiamente, se recusa a fazer uma grande narrativa de seu tema, com o argumento de que os motivos de tal anonimato são demasiado diversos. Alguns autores são tímidos demais para enfrentar a publicidade, alguns são demasiado chulos, alguns exploram seu status de anonimato pela simples brincadeira, enquanto outros usam o anonimato como maneira perversa de provocar curiosidade. Anthony Trollope recorria ao anonimato porque escrevia demasiado rápido e era sensível a acusações de produção excessiva. Anthony Burgess publicou anonimamente pela mesma razão, ou quase. Ele também foi o resenhista não declarado de um de seus próprios romances, no "Yorkshire Post". "Elegy" [Elegia], de Thomas Gray, o poema mais freqüentemente reimpresso da Inglaterra do século 18, foi publicado anonimamente. Com modéstia decorosa, "Razão e Sensibilidade" foi assinado "por uma dama", uma descrição bastante comum na época. Durante a vida da autora, nenhum dos outros romances de Austen foi publicado com seu nome. Walter Scott publicou seus romances "Waverley" (os mais populares já vistos na Grã-Bretanha) sem, durante muitos anos, admitir sua autoria, and lied through his teeth when challenged on the question by the Prince Regent himself. Yet in a cat-and-mouse game with his colleagues and readers, Scott never really attempted to remain unknown. Os editores dos séculos 17 e 18 amiúde publicavam livros cuja autoria real era desconhecida até mesmo deles. Manuscritos freqüentemente eram deixados nas editoras no meio da noite, por intermediários disfarçados. In Memoriam, bedside reading for Queen Victoria, made Tennyson’s name but was published anonymously, and remained officially unattributed throughout his life.

Havia também o "cross-dressing" autoral, mais normalmente de mulheres para homens que vice-versa. "Exemplos de mulheres que escolheram pseudônimos masculinos são múltiplos", observa Mullan, "mas é muito mais raro encontrar homens se assinando com nomes de mulheres". Duas exceções notáveis foram Daniel Defoe e Samuel Richardson, que se refugiaram por trás de suas protagonistas mulheres. As irmãs Brontë são um exemplo evidente de escritoras fazendo-se passar por escritores ou, pelo menos, ocultando-se atrás dos pseudônimos cuidadosamente andróginos de Currer, Ellis e Acton Bell; though in a lengthy account of the sisters’ attempts to beard the male-dominated publishing establishment, Mullan misses the opportunity to relate this to the intricate cross-gendering in the novels themselves. Gender-spotting was a common pursuit among reviewers of anonymous or pseudonymous works. R.D. Blackmore’s anonymous novel Clara Vaughan was outed as from a female pen on the grounds that it displayed an ignorance of the laws of physics and the laws of the land. The late 19th-century Scottish writer William Sharp proved a great hit as ‘Fiona MacLeod’, writing novels full of Celtic twilights that attracted the admiration of the equally Celticising W.B. Yeats. Sharp even received an offer of marriage from an enthusiastic male reader.

There were also legal and political reasons for the ubiquity of Anon. Houve épocas em que o Estado precisava saber quem era o autor ou o impressor de uma obra para saber a quem processar por heresia ou sedição. Em 1579, John Stubbs teve a mão direita decepada por escrever um texto opondo-se ao casamento de Elizabeth I com um aristocrata francês. A própria Elizabeth recomendou que os impressores dos libelos anti-anglicanos "Marprelate" fossem submetidos à tortura. Em 1663, um gráfico de Londres que publicou um folheto argumentando que o monarca deveria ter que responder a seus súditos e justificando o direito da população à rebelião foi sentenciado à forca e ao esquartejamento. Mesmo assim, recusou-se a revelar o nome do autor do panfleto, embora a revelação pudesse ter salvo sua vida. Entre os séculos 16 e 18, gráficos foram multados, encarcerados e colocados no pelourinho por publicar obras supostamente traiçoeiras cujos autores permaneciam ocultos. Ser o impressor de Jonathan Swift não era trabalho para covardes. Destemido, John Locke inscreveu seu nome na página-título de seu "Ensaio Sobre o Entendimento Humano", mas se esforçou ao máximo para preservar o anonimato de suas obras mais políticas.

Outros atos de violência eram menos oficiais. John Dryden foi espancado após deixar uma taberna devido a um poema anônimo atribuído a sua pena. William Blackwood, proprietário da "Blackwood's Magazine", foi açoitado em pelo menos duas ocasiões pelas vítimas de resenhas belicosas, e não assinadas, de seus colaboradores. For much the same reason, one irate author beat the proprietor of Fraser’s Magazine with a riding crop before proceeding to fight a duel with the journal’s dipsomaniac editor, William Maginn. It was a vitriolic anonymous review of Keats by J.W. Croker which Shelley considered to have caused the ruptured blood vessel that eventually killed the poet. O anonimato proporcionava não só perigo, mas também benefícios. Tobias Smollett foi quase certamente o autor de uma resenha elogiosa, não assinada, de seu próprio "Complete History of England" [História Completa da Inglaterra]. An unattributed notice in the London Chronicle which praised a work by James Boswell as ‘a book of true genius’ was written by Boswell himself. John Wilson escreveu uma carta anônima ao "Blackwood's Magazine" defendendo Wordsworth de críticas não assinadas publicadas numa edição anterior do periódico e escritas por ele próprio. The Elizabethan scholar M.C. Bradbrook complained in a letter to the TLS that an anonymous review of Blake had slighted the critic Kathleen Raine, who was the doubtless amused author of the piece. An ecstatic unattributed review in Blackwood’s of a novel by William Godwin was written by his daughter, Mary Shelley. Mesmo George Eliot, conhecida por pautar-se por seus altos princípios, escreveu resenhas anônimas da biografia de Goethe escrita por seu companheiro G.H. Lewes -a quem ela ajudara a escrever a obra. Not everyone disapproved of such practices. Nem todos desaprovavam tais práticas. Stanley Morrison, que editou o "Times Litterary Supplement" nos anos 1940, declarava que a auto-resenha era o exemplo ideal do gênero. Vindo de quem comandava um periódico inteiramente dedicado a colaborações anônimas, o comentário era perigoso.

Mullan encontrou um tema fascinante que ele trata com erudição e lucidez. Mas falta ao livro o brilho instigante de suas melhores resenhas, e topamos com ocasionais trechos repetitivos ou cansativos. We are told that ‘anger is frequently the response to a hoax’; that the 19th-century dramatist James Sheridan Knowles was Scottish (he was from Cork); and that ‘a book about anonymity is a book about the importance of authors, and about how and why readers need them.’ Há um epílogo absurdamente breve sobre os autores anônimos na era moderna, quando eles ou elas foram demasiado eclipsados pelos departamentos de publicidade de suas editoras. Mesmo assim, há muito a ser apreciado. O livro parece ser voltado a um público amplo e com certeza representa uma tentativa louvável de fazer uma ponte entre a erudição literária e o leitor comum; but since its subject matter demands much detailed unpacking of obscure literary matters, one wonders whether the punters will feel that their £17.99 has been entirely well spent.

Sobre o autor

Terry Eagleton is distinguished visiting professor of English literature at Lancaster. His latest book, Humour, was published in April.

1 de maio de 2008

O que aprendemos, se é que aprendemos alguma coisa?

Tony Judt

The New York Review of Books

May 1, 2008 issue

Tradução / O século XX mal acabou e suas disputas e realizações, ideais e medos já se perderam nas sombras do esquecimento. No Ocidente, sempre que possível tivemos grande pressa em desconsiderar a bagagem econômica, intelectual e institucional do século passado, e encorajamos os outros a fazer o mesmo. A partir de 1989, com uma confiança ilimitada e uma reflexão insuficiente, deixamos o século XX para trás. Enveredamos sem medo no seu sucessor, imersos em meias verdades a serviço do que desejamos crer: o triunfo do Ocidente, o fim da História, o momento unipolar americano, a marcha inelutável da globalização e da liberdade de mercado.

A crença de que aquele tempo ficou para trás e agora tudo é diferente nos afeta bem mais do que os finados dogmas e instituições comunistas dos tempos da Guerra Fria. Durante os anos 1990, e novamente em seguida ao 11 de setembro de 2001, mais de uma vez me choquei com a perversa insistência contemporânea em não compreender o contexto dos dilemas de hoje; em não dar ouvidos a algumas das cabeças mais sensatas das últimas décadas. Com a insistência em procurar ativamente esquecer, em vez de lembrar; em negar a continuidade e proclamar o ineditismo em todas as ocasiões possíveis. Adquirimos uma estridente insistência em reafirmar que o passado pouco tem de interessante a ensinar. O nosso mundo, asseguramos, é novo; seus riscos e oportunidades não têm precedentes.

Depois de 1918, enquanto todos concordavam que as coisas nunca voltariam a ser como antes, a forma que o mundo do pós-guerra deveria assumir foi idealizada e contestada em toda parte, sob a longa sombra da experiência e do pensamento do século XIX. A economia neoclássica, o liberalismo, o marxismo (e seu enteado, o comunismo), a "revolução", a burguesia e o proletariado, o imperialismo e o "industrialismo" - os blocos usados na constituição do mundo político do século XX - eram todos artefatos do século XIX. Mesmo aqueles que, a exemplo de Virginia Woolf, acreditavam que "por volta de dezembro de 1910 o caráter humano mudou" - que as profundas mudanças culturais do fin de siècle europeu tinham transformado completamente os termos da troca intelectual - ainda assim dedicavam uma quantidade surpreendente de energia travando uma luta inglória com a sombra dos seus predecessores. O peso do passado se fazia sentir no presente.

Hoje, em contraste, tratamos o século passado com grande ligeireza. Claro que lhe erguemos memoriais em toda parte: santuários, placas, locais de visitação. Até mesmo parques temáticos de fundo histórico são monumentos públicos ao "passado". Mas o século XX que celebramos é apresentado curiosamente fora de foco. A esmagadora maioria dos sítios oficialmente dedicados à conservação da memória do século XX é ou confessadamente nostálgico-triunfalista (louvando homens famosos e celebrando grandes vitórias) ou então, e cada vez mais, oportunidade para a rememoração de um sofrimento seletivo.

O século XX, assim, está a caminho de ser transformado num palácio de memória moral: uma câmara de horrores históricos, com usos pedagógicos, cujas várias estações atendem pelos rótulos de "Munique", "Pearl Harbor", "Auschwitz", "Gulag", "Armênia", "Bósnia" ou "Ruanda". Com o 11 de Setembro figurando como uma espécie de coda suplementar, um sangrento pós-escrito é dirigido àqueles que quiseram esquecer as lições do século, ou deixaram de aprendê-las. O problema dessa representação lapidar do século passado como uma era singularmente horrenda, da qual hoje, felizmente, já emergimos, é que não é uma boa descrição. De muitas maneiras, foi de fato uma época terrível, um tempo de brutalidade e sofrimento em massa talvez sem igual em toda a história conhecida. O problema é a mensagem: que deixamos tudo isso para trás, que o significado do passado é claro e que agora podemos avançar - desembaraçados dos erros anteriores - rumo a tempos melhores e diferentes.

Essa rememoração oficial não contribui para a nossa avaliação ou consciência do passado. Funciona como um substituto, um sucedâneo. Em vez de ensinarmos história, levamos as crianças a percorrer museus e memoriais e, o que é pior, as estimulamos a ver o passado - e as suas lições - através do vetor do sofrimento dos seus antecessores. Hoje, a interpretação "comum" do passado recente compõe-se, assim, de fragmentos múltiplos de vários passados, cada um deles (judeu, polonês, sérvio, armênio, alemão, asiático-americano, palestino, irlandês, homossexual) marcado pela condição ostensiva de vitimado.

O mosaico resultante, em vez de nos ligar a um passado comum, separa-nos dele. Por maiores que fossem os defeitos das narrativas nacionais que nos eram ensinadas, por mais que o seu foco fosse seletivo e a sua mensagem instrumental, pelo menos elas tinham a vantagem de fornecer à nação referências passadas para a experiência do presente. A história tradicional, da maneira como foi ensinada a gerações de escolares e universitários, dava um sentido ao presente por meio da referência ao passado: nomes, lugares, inscrições, idéias e alusões podiam ser organizados numa narrativa memorizada do dia de ontem. Atualmente, esse processo se inverteu. O passado só adquire sentido através da referência às nossas múltiplas, e muitas vezes contrastantes, atribulações atuais.

Esse caráter estrangeiro e desconcertante do passado deve-se, em parte, à mera velocidade das mudanças contemporâneas. A "globalização" realmente revirou a vida das pessoas de tal forma que seus pais ou avós teriam grande dificuldade em imaginar. Muito do que, por décadas e mesmo por séculos, nos parecia familiar e permanente vem caindo cada vez mais rápido no esquecimento. O passado, ao que tudo indica, é realmente um outro país: nele, as coisas eram feitas de outra maneira.

A expansão das comunicações é um caso exemplar. Até as últimas décadas do século XX, a maioria das pessoas tinha um acesso limitado à informação. Graças à educação nacional, à rádio e televisão controladas pelo Estado e a uma cultura impressa comum, todos passaram a ter a mesma probabilidade de saber praticamente as mesmas coisas dentro de um Estado, nação ou comunidade. Hoje, ocorre o contrário. A maioria das pessoas fora da África subsaariana tem acesso a uma quantidade quase infinita de dados. Na falta, porém, de uma cultura comum, as informações e idéias fragmentadas que as pessoas escolhem ou encontram são determinadas por uma multiplicidade de preferências, afinidades e interesses. Com o passar dos anos, cada um de nós tem menos pontos em comum com os mundos em rápida multiplicação dos nossos próprios contemporâneos, sem falar do mundo dos que vieram antes de nós.

Qual é a conseqüência mais funesta da nossa pressa em deixar para trás o século XX? Nos Estados Unidos, pelo menos, é termos esquecido do que a guerra significa. E por um motivo particular. Em boa parte do continente europeu, da Ásia e da África, o século XX foi vivido como uma sucessão de guerras. A guerra representou invasão, ocupação, deslocamento, privação, destruição e assassinatos em massa. Os países que perdiam as guerras muitas vezes também perderam habitantes, território, recursos naturais, segurança e independência. Mesmo os países que emergiam formalmente vitoriosos tinham experiências comparáveis, e rememoravam a guerra com uma feição semelhante à dos derrotados.

A Itália depois da I Guerra Mundial, a China depois da II Guerra e a França depois de ambas podem ser mencionadas nesse caso: todas saíram "vencedoras", mas devastadas. E houve ainda as nações que venceram uma guerra, mas "perderam a paz", desperdiçando as oportunidades proporcionadas pela vitória. Os aliados ocidentais em Versalhes, assim como Israel, nas décadas que se seguiram à sua vitória de junho de 1967, são os exemplos mais flagrantes.

Além disso, no século XX, guerra quase sempre significou guerra civil: muitas vezes encoberta pelo rótulo de ocupação ou "libertação". A guerra civil desempenhou um papel significativo na "limpeza étnica", e provocou alguns dos grandes deslocamentos forçados de populações no século XX, tanto na Índia e na Turquia como na Espanha e na Iugoslávia. Da mesma forma que a ocupação estrangeira, a guerra civil é uma das terríveis memórias "comuns" dos últimos 100 anos. Em vários países, a "superação do passado" - isto é, um acordo para ultrapassar ou esquecer (ou negar) a memória recente de conflitos entre comunidades - transformou-se em objetivo primário de governos do pós-guerra, às vezes alcançado, às vezes causador de excessos.

A guerra não era apenas uma calamidade em si mesma. Ela trazia outros horrores em seu rastro. A I Guerra Mundial levou à militarização sem precedentes da sociedade, à adoração da violência e a um culto de morte que durou muito mais que a guerra propriamente dita e preparou o terreno para as catástrofes políticas que se seguiram. Os Estados e as sociedades tomados durante e depois da II Guerra Mundial, por Hitler ou Stálin (ou pelos dois, em seqüência), viveram não só a ocupação e a exploração, como também a degradação e a corrosão das leis e das normas da sociedade civil. As próprias estruturas da vida civilizada - as regras, as leis, os professores, os policiais, os juízes - desapareceram ou assumiram um significado sinistro: longe de garantir a segurança, o próprio Estado transformou-se na maior fonte de insegurança.

A reciprocidade e a confiança, seja entre vizinhos, colegas, dirigentes ou comunidade, entraram em colapso. Comportamentos que seriam aberrantes em circunstâncias habituais - roubo, desonestidade, dissimulação, indiferença para com o infortúnio alheio e exploração oportunista do seu sofrimento - tornaram-se não apenas normais como, às vezes, os únicos meios de alguém salvar a família e se salvar. A divergência ou a oposição eram sufocadas pelo medo universal.

A guerra, em suma, desencadeava um comportamento que seria inconcebível, além de aberrante, em tempos de paz. É a guerra, e não o racismo, o antagonismo étnico ou o fervor religioso, que leva à atrocidade. A guerra - a guerra total - sempre foi a condição prévia crucial para a criminalidade em massa na era moderna. Os primeiros campos de concentração foram criados pelos britânicos durante a Guerra dos Bôeres, entre 1899 e 1902. Sem a I Guerra Mundial, não haveria o genocídio dos armênios e seria altamente improvável que tanto o comunismo quanto o fascismo se apoderassem de Estados modernos. Sem a II Guerra Mundial não haveria o Holocausto. Não houvesse o envolvimento forçado do Camboja na Guerra do Vietnã, jamais teríamos ouvido falar de Pol Pot. Quanto ao efeito brutalizante da guerra sobre os próprios soldados comuns, ele foi copiosamente documentado.

Os Estados Unidos conseguiram passar ao largo de quase tudo isso. Os americanos talvez sejam o único povo que viveu o século XX sob uma luz muito mais benfazeja. Os Estados Unidos nunca foram invadidos. Não perderam vastas quantidades de cidadãos, nem grandes parcelas de território. Embora humilhados em distantes guerras neocoloniais (no Vietnã e, agora, no Iraque), jamais sofreram as plenas conseqüências de uma derrota. A despeito da sua ambivalência em relação às iniciativas mais recentes, a maioria dos americanos ainda acha que as guerras travadas pelo seu país foram, em sua maioria, "guerras boas".

Os Estados Unidos aumentaram bastante seu papel entre as nações após as duas guerras mundiais - uma situação bem diferente do que aconteceu com a Grã-Bretanha, também indiscutivelmente vitoriosa nesses conflitos, mas ao preço da quase-bancarrota e da perda de um império. Além disso, em comparação com os outros principais poderes litigantes do século XX, os Estados Unidos perderam relativamente poucos soldados nos campos de batalha, e praticamente não tiveram baixas civis.

Esse contraste merece uma ênfase estatística. Na I Guerra Mundial, os Estados Unidos sofreram pouco menos de 120 mil mortes em combate. Para o Reino Unido, a França e a Alemanha, as cifras são, respectivamente, de 885 mil, 1,4 milhão e mais de 2 milhões. Na II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos perderam cerca de 420 mil homens em combate, as perdas do Japão foram de 2,1 milhões, as da China de 3,8 milhões, as da Alemanha de 5,5 milhões e as da União Soviética estimadas em 10,7 milhões. O Memorial dos Veteranos do Vietnã, em Washington, registra a morte de 58 195 americanos ao longo de uma guerra que se estendeu por quinze anos. Já o exército francês perdeu o dobro disso em apenas seis semanas de combates, entre maio e junho de 1940.

Na batalha mais custosa travada pelo exército americano em todo o século - a Ofensiva das Ardenas, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945 -, morreram 19 300 soldados. Nas 24 horas iniciais da Batalha do Somme (1º de julho de 1916), o exército britânico teve mais de 20 mil baixas fatais. Na Batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho perdeu 750 mil homens e a Wehrmacht um número quase igual de combatentes.

Com isso, à exceção da geração que lutou na II Guerra Mundial, os Estados Unidos não têm memória de combate ou perda nem de longe comparável à das forças armadas de outros países. Mas são as baixas civis que deixam a marca mais duradoura na memória nacional, e aqui o contraste é ainda mais chocante. Apenas na II Guerra Mundial, os britânicos sofreram 67 mil mortes de civis. Na Europa continental, a França perdeu 270 mil civis. A Iugoslávia registrou a morte de mais de meio milhão de civis. A Alemanha, de 1,8 milhão. A Polônia, de 5,5 milhões. E se estima que a União Soviética tenha tido 11,4 milhões de mortes de civis. Essas cifras agregadas incluem cerca de 5,8 milhões de judeus mortos. Mais longe, na China, a contagem de mortos excedeu os 16 milhões. As perdas de civis americanos (excluindo a Marinha Mercante), nas duas guerras mundiais, somam menos de 2 mil mortos.

Conseqüentemente, os Estados Unidos são hoje a única democracia avançada em que figuras públicas glorificam e exaltam os militares, um sentimento comum na Europa antes de 1945, mas praticamente desconhecido nos dias de hoje. Os políticos americanos cercam-se dos símbolos e adornos da competência armada. Ainda em 2008, analistas americanos fustigam os aliados que hesitam em se envolver em conflitos armados. Acredito que seja essa disparidade nas lembranças da guerra e do seu impacto, mais que qualquer diferença estrutural entre os Estados Unidos e os países que lhe são comparáveis em outros aspectos, a responsável pelas suas distintas reações às crises internacionais de hoje.

A afirmação complacente dos neoconservadores, de que a guerra e o conflito são coisas que os americanos compreendem - em contraste com os europeus ingênuos, às voltas com suas fantasias pacifistas -, me parece totalmente equivocada: são os europeus (juntamente com os asiáticos e os africanos) que melhor entendem o que é a guerra. A maioria dos americanos tem a sorte de viver numa bem-aventurada ignorância do que ela realmente significa.

Esse mesmo contraste pode explicar a qualidade que caracteriza boa parte do que se escreve nos Estados Unidos sobre a Guerra Fria e as suas conseqüências. Nos relatos europeus sobre o fim do comunismo, dos dois lados da dita Cortina de Ferro, o sentimento predominante é de alívio diante do final de um capítulo longo e infeliz. Nos Estados Unidos, porém, essa história é normalmente registrada de forma triunfalista. E - por que não? - para muitos comentaristas e analistas políticos americanos, a mensagem do século XX é de que a guerra funciona. Daí o entusiasmo amplamente difundido pela guerra contra o Iraque. Para Washington, a guerra continua a ser uma opção - e, naquela ocasião, foi a primeira delas. Para o resto do mundo desenvolvido, ela é pensada como o último recurso.

A ignorância da história do século XX não contribui apenas para um deplorável entusiasmo pelo conflito armado. Também leva à identificação errônea do inimigo. Temos bons motivos para nos preocuparmos com o terrorismo e o desafio que ele representa. Mas antes de nos lançarmos a uma guerra de 100 anos para erradicar os terroristas da face da terra, é preciso considerar o seguinte: os terroristas nada têm de novo. Mesmo que sejam excluídos os assassinatos ou as tentativas de assassinato de presidentes e monarcas, e nos limitemos aos homens e mulheres que matam civis desarmados em busca de um objetivo político, os terroristas estão em atividade há bem mais de um século.

Já vimos terroristas inspirados pelo anarquismo, terroristas russos, terroristas indianos, terroristas árabes, terroristas bascos, terroristas malaios, terroristas tâmiles e dúzias de outros. Existiram, e ainda existem, terroristas cristãos, terroristas judeus e terroristas muçulmanos. Houve terroristas iugoslavos (os partisans) acertando contas na II Guerra Mundial; terroristas sionistas explodindo mercados árabes na Palestina antes de 1948; terroristas irlandeses financiados por americanos na Londres de Margaret Thatcher; terroristas mujahedin armados pelos Estados Unidos no Afeganistão dos anos 80; e assim por diante.

Ninguém que tenha vivido na Espanha, Itália, Alemanha, Turquia, Japão, Reino Unido ou França, para não falar de países usualmente mais violentos, pode ter deixado de perceber a onipresença de terroristas ao longo do século XX - usando armas de fogo, bombas, armas químicas, carros, trens, aviões e muitas outras coisas. O único fato que mudou nos últimos anos foi a manifestação, em setembro de 2001, do terrorismo homicida dentro dos Estados Unidos. E mesmo isso não era totalmente sem precedentes: os meios foram novos e a carnificina incomparável, mas o terrorismo em solo americano se manifestou ao longo do século XX.

O que dizer do argumento de que o terrorismo de hoje é diferente, um "choque de culturas" inspirado por uma tóxica mistura de religião e autoritarismo, o "islamofascismo"? Também essa interpretação tem amplo apoio numa leitura errônea da história do século XX. E existe aqui uma tripla confusão. A primeira consiste em identificar grosseiramente os diversos fascismos nacionais da Europa entre-guerras com os ressentimentos, as demandas e as estratégias muito diferentes dos (igualmente heterogêneos) movimentos e insurreições muçulmanos do nosso tempo - e querer atribuir a credibilidade das lutas antifascistas do passado às aventuras militares de motivação bem mais dúbia.

Uma segunda confusão advém de igualar um punhado de assassinos apátridas, impelidos por motivação religiosa, à ameaça representada no século XX pelos Estados prósperos e modernos que eram controlados por partidos políticos totalitários, comprometidos com a agressão externa e o extermínio em massa. O nazismo era uma ameaça à nossa própria existência, e a União Soviética chegou a ocupar metade da Europa. Mas e a Al-Qaeda? A comparação é um insulto à nossa inteligência - para não falar da memória daqueles que lutaram contra os ditadores. Mesmo os que defendem essas semelhanças não parecem acreditar nelas. Afinal, se Osama bin Laden fosse realmente comparável a Hitler ou Stálin, teríamos realmente respondido ao 11 de Setembro com a invasão de... Bagdá?

Mas o erro mais grave consiste em confundir forma e conteúdo: a definição dos vários terroristas e terrorismos do nosso tempo apenas pelos seus atos, mesmo tendo objetivos contrastantes e por vezes conflitantes. Seria como pôr no mesmo saco as Brigadas Vermelhas italianas, o grupo alemão Baader-Meinhof, o IRA Provisório irlandês, o ETA basco, os separatistas do Jura suíço e a Frente Nacional de Libertação da Córsega. E, então, afirmar que as diferenças entre eles são insignificantes, rotular o amálgama resultante da combinação de militantes ideológicos que desferem tiros no joelho dos adversários, atiradores de bombas e assassinos políticos de "extremismo europeu" (ou "cristofascismo", talvez?), e em seguida declarar contra esse modelo uma guerra armada, sem quartel e sem meta definida.

A simplificação de inimigos e ameaças, essa facilidade em acreditar que estamos em guerra contra os "islamofascistas", "extremistas" de uma cultura estranha, de algum "Islamistão" distante, que nos odeiam por sermos quem somos, e se dedicam à destruição do nosso "modo de vida", essa simplificação é um sinal seguro de que esquecemos a grande lição do século XX: a facilidade com que a guerra, o medo e o dogma podem nos levar a demonizar os outros, negando-lhes uma humanidade como a nossa ou a proteção das nossas leis, para submetê-los a coisas indizíveis.

De que outra maneira podemos explicar nossa indulgência atual para com a tortura? Porque não há dúvida de que a toleramos. O século XX começou com a Convenção de Haia sobre as leis da guerra. Ainda em 2008, o século XXI tem em seu passivo o campo de prisioneiros de Guantánamo. Ali, e em outras prisões secretas, os Estados Unidos submetem terroristas ou suspeitos de terrorismo a torturas rotineiras. Existem muitos precedentes para isso no século XX, claro, e não apenas em ditaduras. Os britânicos torturavam os terroristas em suas colônias da África oriental até a década de 50. Os franceses torturavam terroristas argelinos que capturavam na "guerra suja" para manter seu domínio sobre o país.

No auge da Guerra da Argélia, Raymond Aron publicou dois ensaios vigorosos, instando a França a sair da colônia e a conceder-lhe a independência. Aquela guerra, insistia ele, não tinha sentido, e a França não tinha como vencê-la. Anos mais tarde, perguntaram a Aron por que também não se juntou aos que combatiam o uso da tortura, ao mesmo tempo que se opunha ao domínio da França sobre a Argélia. "Mas o que eu teria obtido, proclamando a minha oposição à tortura?", respondeu ele. "Nunca encontrei ninguém que fosse a seu favor."

Pois os tempos mudaram. Nos Estados de hoje, existem muitas pessoas racionais e respeitáveis que defendem a tortura - nas circunstâncias corretas e quando aplicadas por quem tem méritos. O professor Alan Dershowitz, da Faculdade de Direito de Harvard, escreve que "a mera análise da relação custo-benefício do emprego dessas torturas não-letais [para extrair a tempo informações perecíveis de um prisioneiro] parece mais que convincente". A professora Jean Bethke Elshtain, da Faculdade de Teologia da Universidade de Chicago, admite que a tortura continua a ser um horror e é "em geral [sic]... interdita". Entretanto, no caso do interrogatório de "prisioneiros no contexto de uma guerra letal e perigosa contra inimigos que não conhecem limites, há momentos em que essa regra pode ser desobedecida".

Essas afirmações terríveis são ecoadas pelo senador Charles Schumer (democrata de Nova York), que, numa audiência de 2004 no Senado, afirmou que "deve haver poucas pessoas nesta sala ou nos Estados Unidos que digam que a tortura nunca deva ser usada". Certamente não o juiz da Suprema Corte Antonin Scalia, que declarou, em fevereiro de 2008, que seria um absurdo dizer que a tortura não pode ser usada. Nas palavras dele: "Depois que isto é reconhecido, o jogo muda de figura. E o quanto a ameaça precisa ser iminente? E o quanto pode ser intensa a dor infligida? Acho que essas questões não são nem um pouco fáceis. Mas sei que ninguém pode se apresentar em toda confiança, satisfeito consigo mesmo, e dizer: 'Ah, é tortura, e portanto é uma coisa ruim.'"

Foi precisamente por essa decisão, de que "é tortura e, portanto, uma coisa ruim", que até pouco tempo atrás se distinguia a democracia das ditaduras. Nós nos orgulhamos de ter derrotado o "Império do Mal" dos soviéticos. De fato. Mas talvez devamos ler de novo as memórias dos que sofreram nas mãos desse império - as memórias de Eugen Loebl, Artur London, Jo Langer, Lena Constante e incontáveis outros - e então comparar os tormentos degradantes que sofreram com os tratamentos aprovados e autorizados pelo presidente Bush e o Congresso. Serão tão diferentes assim?

Escorregamos ladeira abaixo. As distinções mais sofisticadas que fazemos hoje na guerra contra o terror - entre o império da lei e circunstâncias "excepcionais", entre cidadãos e não-cidadãos, aos quais tudo pode ser feito; entre as pessoas normais e os "terroristas"; entre "nós" e "eles" - não são novas. Todas foram invocadas ao longo do século XX. São as mesmíssimas distinções que autorizaram os piores horrores do passado recente: campos de internação, deportação, tortura e assassínio - os crimes em resposta aos quais sempre murmuramos "nunca mais". Então, o que julgamos ter aprendido com o passado? De que serve o nosso culto moralista da memória e dos memoriais?

Tony Judt (1948-2010) foi o fundador e diretor do Remarque Institute da NYU e autor de Postwar: A History of Europe Since 1945, Ill Fares the Land, e The Burden of Responsibility: Blum, Camus, Aron, and the French Twentieth Century, entre outros livros.

Crise alimentar mundial: causas e soluções

Fred Magdoff

Monthly Review

Tradução / O ano de 2008 foi atingido por uma grave crise de alimentos. É o culminar de uma antiga crise agrícola e alimentar que já provocou a fome e a subnutrição em bilhões de pessoas. Para perceber totalmente todas as terríveis implicações do que se está agora a passar, é necessário analisar a interação entre estas crises a curto e a longo prazo. Ambas as crises resultam principalmente da produção com fins lucrativos de alimentos, de fibras e agora de biocombustíveis e do conflito entre os alimentos e as pessoas que ela gera inevitavelmente.

Fome "crônica" antes da atual crise

As Nações Unidas calculam que, dos mais de 6 mil milhões de pessoas que vivem no mundo actualmente, cerca de mil milhões sofrem de fome crónica. Mas este número, que é apenas uma estimativa grosseira, deixa de fora os que sofrem de deficiências vitamínicas e nutrientes e de outros tipos de subnutrição. O número total de pessoas sem uma alimentação estável, que se alimentam mal ou têm deficiência de nutrientes fundamentais, está provavelmente mais perto dos 3 mil milhões – quase metade da humanidade. A gravidade desta situação avalia-se facilmente pela estimativa das Nações Unidas, feita há mais de um ano, de que morrem diariamente cerca de 18 000 crianças em consequência, directa ou indirecta, de subnutrição (Associated Press, 18.Fevereiro, 2007).

A razão por que as pessoas têm fome raras vezes é a escassez de produção. Isto é fácil de constatar nos Estados Unidos onde, apesar de a produção de alimentos ser maior do que as necessidades da população, a fome constitui um problema significativo. Segundo o Departamento da Agricultura americano, em 2006 havia mais de 35 milhões de pessoas a viver em lares com problemas de alimentação, incluindo 13 milhões de crianças. Devido à falta de alimentos, os adultos que viviam em mais de 12 milhões de lares não conseguiam comer refeições equilibradas e em mais de 7 milhões de lares havia sempre alguém que tinha rações mais pequenas ou deixava de fazer refeições. Em cerca de 5 milhões de lares, as crianças não tinham o suficiente para comer de vez em quando altura durante o ano.

Também nos países pobres não é invulgar existirem grandes quantidades de alimentos desperdiçados e mal distribuídos no meio de uma fome generalizada e persistente. Há alguns anos um artigo do New York Times dava uma notícia com o seguinte título "Na Índia os pobres morrem de fome enquanto os excedentes de trigo apodrecem" (2/Dezembro/2002). E um cabeçalho do Wall Street Journal dizia em 2004 "Fome no meio da abundância, um paradoxo na Índia: Boas colheitas e aumento da fome" (25/Junho/2004).

Sem "direito à alimentação"

A fome e a subnutrição são geralmente sintomas de um problema subjacente maior – a pobreza num sistema económico que só reconhece, conforme a análise de Rachel Carson, os deuses do lucro e da produção. Os alimentos são tratados em quase todos os países do mundo como se fossem uma outra mercadoria qualquer, vestuário, automóveis, lápis, livros, diamantes, e por aí afora. Não se considera que as pessoas tenham direito a adquirir qualquer mercadoria em especial, e não se faz qualquer distinção entre bens necessários e bens supérfluos. Os que são ricos podem permitir-se comprar tudo o que quiserem enquanto que os pobres muitas vezes nem sequer conseguem satisfazer as suas necessidades básicas. No seio das relações capitalistas as pessoas não têm direito a uma dieta adequada, à habitação e aos cuidados médicos. Tal como com outras mercadorias, as pessoas que não têm aquilo que os economistas designam por "procura efectiva" não podem comprar alimentos nutritivos suficientes. Claro que a ausência de "procura efectiva" neste caso significa que os pobres não têm dinheiro suficiente para comprar a comida de que precisam.

Os seres humanos têm uma "necessidade biológica" de comida – todos nós precisamos de comida, tal como precisamos de água e de ar, para poder viver. É um facto sistemático da sociedade capitalista que há muita gente impedida de satisfazer esta necessidade biológica. É verdade que alguns países ricos, em especial os da Europa, ajudam a alimentar os pobres, mas ao mesmo tempo a própria forma como o capitalismo funciona cria obrigatoriamente uma camada mais baixa da sociedade em que normalmente faltam as coisas básicas para a existência humana. Nos Estados Unidos há diversas iniciativas governamentais – como senhas de alimentos e programas de refeições escolares – destinadas a alimentar os pobres. Mas o financiamento para esses programas não chega para satisfazer as necessidades dos pobres, e há várias obras de caridade que travam uma batalha inglória para tentar colmatar a diferença.

Actualmente, há relativamente poucas pessoas a morrer mesmo de fome, tirando a fome terrível provocada por guerras e deslocações. Mas a maioria delas mantém-se cronicamente subnutrida e depois é afectada por uma série de doenças que encurtam a sua vida ou as torna ainda mais miseráveis. O flagelo da subnutrição impede o desenvolvimento mental e físico das crianças, prejudicando-as para o resto da vida.

A crise grave e crescente: A Grande Fome de 2008

Neste momento da história, a juntar à fome "crónica" acima referida, há duas crises alimentares globais separadas que ocorrem em simultâneo. A grave e séria crise, que já dura há dois anos, agrava-se de dia para dia e é a que iremos abordar primeiro. A gravidade da actual crise não pode ser subestimada. Fez aumentar rapidamente o número de pessoas que estão subnutridas em todo o globo. Embora ainda não estejam disponíveis estatísticas quanto ao aumento da fome no ano passado, é já evidente que muita gente vai morrer prematuramente ou sofrer os seus efeitos por qualquer outro modo. Como de costume, serão os jovens, os velhos e os doentes que sofrerão os piores efeitos da Grande Fome de 2008. A rápida e simultânea subida dos preços de todos os alimentos básicos – milho, trigo, soja, arroz e óleos alimentares – juntamente com muitos outros, tem tido um efeito devastador numa parte da humanidade cada vez maior.

As subidas dos preços no mercado mundial nos últimos anos não são de admirar. Os preços dos sessenta produtos agrícolas comercializados no mercado mundial aumentaram 37 por cento no ano passado e 14 por cento em 2006 ( New York Times, 19/Janeiro/2008). Os preços do milho começaram a subir no princípio do Outono de 2006 e em poucos meses aumentaram 70 por cento. Os preços do trigo e da soja também entraram em espiral na mesma altura e encontram-se agora a níveis recordes. Os preços dos óleos alimentares (fabricados principalmente a partir da soja e do óleo de palma) – um produto essencial em muitos países pobres – também dispararam. Os preços do arroz também aumentaram mais de 100 por cento no ano passado ("Os altos preços do arroz anunciam perturbações na Ásia," New York Times, 29/Março/2008).

As razões para esta brutal subida de preços são bastante claras. Em primeiro lugar, há uma série de questões relacionadas directa ou indirectamente com a subida do preço do petróleo. Nos Estados Unidos, na Europa e em muitos outros países, isso veio dar um novo realce ao cultivo de produtos que podem ser utilizados para combustível – os chamados biocombustíveis (ou agrocombustíveis). Assim, a produção de milho para fabricar etanol ou de milho e de óleo de palma para fabricar diesel entra em competição directa com a utilização destes produtos para a alimentação. No ano passado mais de 20 por cento do total da colheita de milho nos Estados Unidos foi utilizado para fabricar etanol – um processo que não rende muito mais energia adicional em relação à energia que é necessária para o produzir. (Calcula-se que na próxima década cerca de um terço das colheitas americanas de milho irão para a produção de etanol [Bloomberg, 21/Fevereiro/2008].) Além disso, muitos dos produtos necessários à produção agrícola comercial a grande escala são baseados no petróleo e no gás natural – desde o fabrico e o funcionamento de tractores e de equipamentos agrícolas até aos fertilizantes e pesticidas e secantes de cereais para armazenamento. O preço dos nitrogenados, o fertilizante mais vulgarmente utilizado a nível mundial, está directamente ligado ao preço da energia porque a sua produção consome muita.

Uma segunda causa para a subida dos preços do milho e da soja e dos óleos alimentares de soja é o aumento da procura de carne pela classe média na América Latina e na Ásia, em particular na China. A utilização do milho e da soja para alimentar o gado vacum, os porcos e as aves aumentou vertiginosamente para satisfazer esta procura. A oferta total mundial de carne era de 71 milhões de toneladas em 1961. Em 2007, foi calculada em 284 milhões de toneladas. O consumo per capita mais que triplicou durante esse período. No mundo desenvolvido aumentou duas vezes mais depressa, duplicando nos últimos vinte anos. ( New York Times, 27/Janeiro/2008). A alimentação com cereais de um número cada vez maior de animais está a provocar uma grande pressão sobre o armazenamento dos mesmos. Os cereais utilizados para produção de carne são uma forma muito pouco eficaz de fornecer calorias ou proteínas às pessoas. É um desperdício, principalmente em animais como as vacas – com sistemas digestivos que apenas aproveitam energia a partir da celulose – já que podem obter todo o seu alimento a partir de pastos e desenvolvem-se bem sem cereais, embora mais lentamente. As vacas não convertem o milho ou a soja em carne com grande eficácia – para render um quilo de carne, as vacas precisam de sete quilos de milho; os porcos, cinco; e os frangos, três. (Baron's, 4/Março/2008).

Uma terceira razão para o grande salto nos preços alimentares mundiais é que alguns países que eram auto-suficientes – ou seja, não importavam alimentos, embora muita gente sofresse com fome – estão actualmente a importar grandes quantidades de alimentos. Como afirma um analista de Nova Delhi, "Quando países como a Índia começam a importar alimentos, então os preços mundiais aumentam… Se a Índia e a China começarem a ser grandes importadores, deixando de ser auto-suficientes em alimentos como estamos a ver acontecer ultimamente na Índia, os preços globais vão obrigatoriamente subir ainda mais, o que significa que a era dos alimentos baratos acabou definitivamente" (VOA News, 21/Fevereiro/2008). Em parte, a razão para a pressão sobre o preço do arroz é a perda de áreas de cultivo para outros fins, tais como os diversos projectos de desenvolvimento – cerca de 3 milhões de hectares na China e 300 000 hectares no Vietname. Além disso, o rendimento das colheitas do arroz por hectare na Ásia atingiu o pico. Há dez anos que não há aumento por hectare e não se esperam melhorias de colheitas num futuro próximo ( Rice Today, Janeiro-Março/2008).

Algumas das razões para as recentes subidas dos preços do trigo e do arroz estão relacionadas com o clima. A seca na Austrália, um importante país exportador de trigo e as baixas colheitas nalguns outros países exportadores têm afectado fortemente os preços do trigo. O ciclone de 2007 em Bangladesh destruiu cerca de 600 milhões de dólares de arroz, levando ao aumento do preço do mesmo em cerca de 70 por cento ( The Daily Star [Bangladesh], 11/Fevereiro/2008). A seca do ano passado no centro norte da China, aliada a um frio e neve invulgares durante o Inverno, obrigará provavelmente o governo a aumentar a aquisição de alimentos nos mercados internacionais, mantendo a pressão sobre os preços.

A especulação no mercado de futuros e o açambarcamento a nível local estão obviamente a desempenhar o seu papel nesta crise para tornar os alimentos mais caros. À medida que a crise financeira americana se aprofundou e se alargou no Inverno de 2008, os especuladores começaram a investir mais dinheiro nos alimentos e nos metais para tirar partido do que se chama agora o "super ciclo de mercadorias". (A queda do dólar relativamente a outras divisas estimula o "investimento" em mercadorias tangíveis). Embora seja um erro considerar estes aspectos, por mais desprezíveis e desumanos que sejam, como a causa da crise, a verdade é que aprofundam a miséria ao tirar partido de mercados pressionados. Claro que é possível que a bolha de mercadorias venha a arrebentar, fazendo descer um pouco os preços dos alimentos. Mas a especulação e o açambarcamento local vão continuar a pressionar a subida dos preços dos alimentos. As empresas transnacionais que processam produtos agrícolas, manufacturam vários alimentos e vendem produtos alimentares ao público, estão obviamente a singrar excepcionalmente bem. Os lucros empresariais normalmente portam-se bem em tempo de escassez e de subida de preços.

Embora não sejam uma causa para o aumento dos preços dos outros alimentos, os preços mais altos do peixe representam uma carga adicional para os pobres e remediados. O abuso da pesca de muitas espécies marítimas está a afastar esta importante fonte de proteínas da dieta de uma grande percentagem da população mundial.

A resposta à crise apareceu sob a forma de manifestações e motins assim como de alterações nas políticas governamentais. Nos últimos meses tem havido protestos e motins por causa do aumento do custo dos alimentos em muitos países, incluindo o Paquistão, a Guiné, a Mauritânia, Marrocos, México, Senegal, Uzbequistão e Iémen. A China instituiu o controlo dos preços nos alimentos básicos e a Rússia congelou o preço do leite, do pão, dos ovos, e do óleo alimentar durante seis meses. O Egipto, a Índia e o Vietname proibiram ou passaram a exercer um controlo rigoroso sobre a exportação de arroz para que o seu povo tenha comida suficiente. O Egipto, o maior importador de trigo do mundo, aumentou para 10 milhões o número de pessoas com direito a receber ajuda alimentar. Muitos países baixaram as tarifas proteccionistas na tentativa de reduzirem o impacto dos preços dramaticamente altos dos alimentos importados. Países fortemente dependentes da importação de alimentos, como as Filipinas, o maior importador de arroz do mundo, estão a tentar fazer contratos para garantirem as importações necessárias. Mas estes diversos esforços para tapar buracos estão a ter apenas efeitos marginais em relação ao problema de fundo. Quase toda a gente se vê forçada a um nível de vida mais baixo à medida que as pessoas da classe média se preocupam cada vez mais com os alimentos que compram, os remediados caem na pobreza, e os pobres passam a ficar realmente sem nada e são os que sofrem mais. Têm-se sentido os efeitos em todo o mundo em todas as classes sociais com excepção dos realmente ricos. Conforme Josette Sheeran, chefe do Programa Alimentar Mundial da ONU, disse em Fevereiro, "Este é o novo rosto da fome… Há comida nas prateleiras mas as pessoas não têm com que pagar o preço do mercado. Existe uma vulnerabilidade nas áreas urbanas que nunca tínhamos visto antes. Há motins por causa dos alimentos em países onde nunca tinha acontecido tal coisa anteriormente" ( The Guardian, 26/Fevereiro/2008).

Embora o Haiti seja há muito um país muito pobre – 80 por cento das pessoas tenta subsistir com menos do que o valor de compra de dois dólares por dia nos Estados Unidos – a actual situação acarretou novas situações de desespero. Duas chávenas de arroz, que custavam trinta cêntimos o ano passado, custam agora sessenta cêntimos. A descrição dum artigo da Associated Press no princípio deste ano (29/Janeiro/2008) é pungente nos seus pormenores:

Era a hora do almoço num dos piores bairros de barracas do Haiti, e Charlene Dumas estava a comer lodo. Com os preços dos alimentos a subir, os haitianos mais pobres não têm com que pagar um prato de arroz diário, e alguns deles adoptam medidas desesperadas para encherem a barriga. Charlene, de 16 anos, com um filho de um mês, acabou por se entregar a um tradicional remédio haitiano contra as dores da fome: biscoitos feitos com o lodo seco amarelo do planalto central do país.

Os "biscoitos" também contêm gordura vegetal e sal. No final do artigo, lê-se o seguinte:

Marie Noel, de 40 anos, vende os biscoitos no mercado para arranjar comida para os seus sete filhos. A família dela também os consome. 
"Tenho esperança de um dia vir a ter comida suficiente para comer, e deixar de comer isto", disse. "Sei que não me fazem bem".

Muitos países em Africa e na Ásia têm sofrido fortemente o impacto da crise, com a fome alastrando amplamente – mas todas as nações têm sido afectadas mais ou menos gravemente. Nos Estados Unidos – onde no ano passado o preço dos ovos aumentou 38 por cento, o leite 30 por cento, a alface 16 por cento e o pão de trigo 12 por cento – muita gente passou a comprar produtos menos caros. "Os preços mais altos dos alimentos começam a retrair os compradores", foi a forma como o Wall Street Journal intitulou uma sua notícia (3/Janeiro/2008).

De assinalar que, embora os preços do trigo estejam a preços recorde e os preços dos produtos à base de trigo nos Estados Unidos vão certamente subir, o custo do trigo existente num pão é apenas uma pequena parte do seu preço de venda. Quando o preço do trigo duplica, como aconteceu, o preço dum pão pode aumentar 10 por cento, de 3 dólares para 3,3 dólares, por exemplo. No entanto, o efeito da duplicação dos preços do milho, do trigo, da soja e do arroz é devastador para a gente pobre do terceiro mundo que compra fundamentalmente estes produtos a granel.

Com as despensas alimentares e as sopas dos pobres a atingir o ponto de rotura, os pobres dos EUA estão a ter um sofrimento mais profundo. Em geral, os pobres nos Estados Unidos tendem a pagar em primeiro lugar a renda, e as contas do aquecimento e da gasolina (para o carro em que vão para o trabalho). A comida passa assim a ser um dos poucos itens "flexíveis" do seu orçamento. Na zona central do meu estado natal de Vermont, no ano passado o recurso às despensas alimentares (i.e. o auxílio de programas de ajuda alimentar caritativa local, que dão artigos de mercearia directamente aos necessitados) aumentou 133 por cento em relação a todos os utilizadores e 180 por cento em relação aos trabalhadores pobres! (Hal Cohen, no Conselho de Acção da Comunidade Central de Vermont, comunicação pessoal, 20/Fevereiro/2008).

A recessão económica está a começar a fazer-se sentir em muitas regiões dos Estados Unidos, contribuindo para o aumento de pedidos de ajuda a diversos programas governamentais de auxílio alimentar ("À medida que os empregos desaparecem e os preços aumentam, a utilização de senhas alimentares atinge novo récorde", New York Times, 31/Março/2008). Mas, muitas vezes, as pessoas que utilizam os programas governamentais insuficientemente financiados, ficam sem alimentos nos últimos dias do mês, o que aumenta dramaticamente a procura nas despensas alimentares e nas sopas dos pobres por essa altura. E a verdade é que, enquanto aumenta a necessidade de comida, diminuem os donativos alimentares – a começar pela grande descida dos donativos federais (com os preços altos há muito menos produtos "excedentários" nos programas agrícolas, e assim no ano passado foram dados às despensas alimentares 58 milhões de dólares em alimentos, contra 242 milhões dados cinco anos antes).

Os supermercados arranjaram formas de ganhar dinheiro com produtos danificados ou fora de prazo que anteriormente ofereciam a organismos caritativos. Em Connecticut, tem havido uma explosão na procura de alimentos, que a oferta não tem conseguido acompanhar. Uma despensa alimentar de Stamford está a fornecer alimentos a quatrocentas famílias, o dobro do número do ano passado. Segundo o director dessa despensa familiar, "Tive que recusar pessoas… Houve alturas em que fui para casa e só me apetecia chorar" ( New York Times, 23/Dezembro/2007). Um professor da Universidade de Cornell, que estuda programas de ajuda alimentar nos Estados Unidos, resumiu assim a situação: "Está a formar-se uma crise nascente… Os pedidos de ajuda ao banco alimentar estão a subir rapidamente enquanto os recursos estão a diminuir em termos dramáticos porque os dólares já não chegam" ( Wall Street Journal, 20/Março/2008).

A crise alimentar a longo prazo

Por muito crítica que seja a crise alimentar a curto prazo – exigindo a atenção imediata mundial assim como a atenção de cada país – a crise estrutural, a longo prazo, é mais importante ainda. Esta última existe há décadas e contribui para, e é reforçada pela grave crise alimentar actual. Com efeito, é esta crise estrutural subjacente da agricultura e alimentar nas sociedades do terceiro mundo que constitui a verdadeira razão por que a actual crise alimentar é tão grave e tão difícil de ultrapassar no interior do sistema.

Tem havido uma gigantesca migração de pessoas do campo para as cidades, no terceiro mundo. Essas pessoas abandonam o campo porque não têm acesso à terra. Frequentemente as suas terras são-lhes roubadas em consequência das incursões das empresas agroindustriais, visto que são forçadas a abandonar as terras em virtude dos preços baixos que sempre receberam pelos seus produtos e das ameaças contra a vida campesina. Mudam-se para as cidades à procura de uma vida melhor, mas o que encontram é uma existência muito difícil – a vida em bairros de barracas no meio de uma alta taxa de desemprego e de sub-emprego. Muitos deles tentam esgaravatar numa economia "informal" comprando e vendendo coisas em pequenas quantidades. Da metade da humanidade que vive em cidades (3 mil milhões), cerca de mil milhões, ou seja um terço dos moradores em cidades, vive em bairros de barracas. O presidente de um distrito em Lagos, na Nigéria, descreve a situação da seguinte forma: "Temos um aumento enorme da população com uma economia estagnada ou em retracção. Imaginem esta cidade daqui a dez ou vinte anos. Já não há pobres urbanos – agora são os novos despojados urbanos". Um extenso artigo do New Yorker sobre Lagos terminava com uma nota de extremo pessimismo: "A coisa que mais impressiona quanto aos apanhadores de lixo e vendedores de Lagos é que, na sua essência, as vidas deles não têm nada a ver com as nossas. Vivem da sucata à margem da macroeconomia. Nos termos cruéis da globalização, são supérfluos". (13/Novembro/2006).

Um dos principais factores que contribui para esta migração em massa e permanente para as cidades – para além de serem sem-terra ou espoliados das suas terras – é a dificuldade de viver como pequeno agricultor. Isto tornou-se cada vez mais difícil, à medida que os países implementaram as políticas "neoliberais" recomendadas ou impostas pelo FMI, pelo Banco Mundial, e até mesmo por algumas ONGs ocidentais que trabalham nos países pobres do terceiro mundo. A ideologia neoliberal defende que se deve permitir que o chamado mercado livre concretize a sua magia. Afirma que, através das sanções benéficas duma "mão invisível", a economia funcionará mais eficazmente e será muito mais produtiva. Mas para que o mercado possa ser "livre" os governos não podem interferir.

No que diz respeito à agricultura, os governos têm que deixar de dar subsídios aos agricultores para comprarem fertilizantes, têm que deixar de se imiscuir no armazenamento e transporte dos alimentos, e deixar os agricultores e os alimentos entregues a si mesmos. Esta perspectiva também defende que os governos têm de deixar de subsidiar os alimentos para as pessoas pobres porque, depois, esse novo mercado sem freio resolverá todos esses problemas. Esta mentalidade tornou-se evidente quando a crise alimentar haitiana começou a desenvolver-se nos finais de 2007. Segundo o ministro do Comércio e Indústria do Haiti, "Não podemos intervir e fixar os preços porque temos que respeitar os regulamentos do mercado livre" (Reuters, 9/Dezembro/2007). Foi a mesma resposta que a Grã-Bretanha colonial adoptou em resposta à fome de batatas na Irlanda, assim como às fomes na Índia nos finais do século XIX. Mas esta forma de pensar está, até certo ponto, internacionalizada nas ideias de muitos dirigentes nos países "independentes" da periferia.

Esta ideologia, obviamente, não assenta na realidade – o chamado mercado livre não é nada eficaz. É totalmente incapaz de agir como um mecanismo que acabe com a pobreza e a fome. Temos que ter sempre presente que esta ideologia representa exactamente o oposto do que os principais países capitalistas têm feito durante toda a história e continuam a fazer hoje em dia. Por exemplo, o governo nacional americano auxiliou os agricultores de muitas maneiras durante mais de um século. Fê-lo através de programas governamentais para investigação e expansão, apropriando-se das terras dos índios e entregando-as a agricultores de origem europeia, subsidiando os agricultores directamente por meio duma enorme variedade de programas, incluindo empréstimos a juros baixos e estimulando a exportação de colheitas. É também de assinalar que os Estados Unidos, a Europa e o Japão desenvolveram, todos eles, as suas economias industriais ao abrigo de políticas proteccionistas, com a ajuda de diversos programas de apoio directo à indústria.

A falta de apoio governamental aos pequenos agricultores e consumidores do terceiro mundo resultou em que a vida dos pobres nesses países passasse a ser mais difícil. Como se refere num relatório independente encomendado pelo Banco Mundial: "Na maior parte dos países em transformação, o sector privado não avançou para preencher o vazio quando o sector público recuou" ( New York Times, 15/Outubro/2007). Por exemplo, muitos governos africanos, sob a pressão das políticas económicas neoliberais promovidas pelo Banco Mundial, pelo FMI e pelos países ricos do centro do sistema, deixaram de subsidiar a utilização de fertilizantes para as culturas. Se, por um lado, os fertilizantes importados são muito caros, a verdade é que os solos africanos são genericamente de fertilidade muito baixa e as colheitas são baixas quando não se utilizam fertilizadores sintéticos ou orgânicos. Como as colheitas baixaram depois de os governos deixarem de comparticipar na compra de fertilizantes e de ajudar por outras formas, houve mais agricultores a chegar à conclusão de que não conseguiam sobreviver e a emigrar para os bairros de barracas urbanos. Jeffrey Sachs – um médico parcialmente refeito do choque do mercado livre – reflectiu melhor. Segundo Sachs, "Tudo se baseava na ideia de que, se o governo se distanciar dos mais pobres dos pobres, estes mercados iriam resolver os problemas duma forma ou doutra… Mas os mercados não podem e não vão aparecer se as pessoas não tiverem nada. E se lhes tirarmos a ajuda, estamos a condená-los à morte". ( New York Times, 15/Outubro/2007).

No ano passado, o Malawi, um país africano, decidiu inverter o seu curso e agir contra todas as recomendações que tinha recebido. O governo reintroduziu os subsídios para fertilizantes e sementes. Os agricultores usaram mais fertilizantes, as colheitas aumentaram e a situação alimentar do país melhorou muito ( New York Times, 2/Dezembro/2007). Com efeito, acabaram por poder exportar alguns alimentos para o Zimbabué – embora houvesse em Malawi quem achasse que isso baixou demasiado o seu próprio abastecimento.

Acontece também um outro problema quando os agricultores capitalistas dos países pobres da periferia entram nos mercados mundiais. Enquanto os agricultores de subsistência vendem normalmente apenas uma pequena parte das suas colheitas, e utilizam a maior parte para consumo familiar, os agricultores capitalistas comercializam toda ou uma grande parte daquilo que produzem. Com frequência, alargam a sua produção e apropriam-se das terras dos pequenos agricultores, com ou sem qualquer compensação, e utilizam menos pessoas do que as que trabalhavam anteriormente numa determinada terra por causa das técnicas mecanizadas de produção. No Brasil, o "Rei da Soja" controla muito mais de 100 mil hectares e utiliza tractores gigantescos e equipamento de colheita para trabalhar a terra. Nas aldeias e cidades da China há frequentemente funcionários corruptos que vendem "terras comunitárias" a novos investidores sem uma compensação adequada aos agricultores – por vezes não há compensação nenhuma.

Assim, as condições difíceis para os agricultores provocadas por uma série de factores, agravadas pela implementação da ideologia do mercado livre, criaram uma corrente contínua de gente a abandonar o campo e a ir viver para as cidades que não tem trabalho para lhe oferecer. E os que vivem em bairros de barracas e não têm acesso a terras para cultivar os seus próprios alimentos ficam à mercê do preço mundial dos produtos alimentares.

Uma das razões para a crescente concentração das terras e espoliação dos agricultores de subsistência é a penetração das grandes empresas agrícolas multinacionais nos países da periferia. Desde a venda de sementes, fertilizantes e pesticidas para o processamento dos produtos agrícolas, até à sua exportação ou venda através dos grandes supermercados modernos, as multinacionais agroindustriais estão a ter um efeito devastador sobre os pequenos agricultores. Com o colapso dos sistemas de extensão de auxílio aos agricultores para guardar sementes e com o desmantelamento das empresas governamentais de sementes, abriu-se o caminho para as empresas de sementes multinacionais fazerem incursões ainda maiores.

As gigantescas empresas transnacionais, como a Cargill e a Monsanto, já se instalaram na maior parte do terceiro mundo – a vender sementes, fertilizantes, pesticidas e rações, ao mesmo tempo que compram e processam produtos agrícolas. Neste processo ajudam as maiores explorações agrícolas a tornarem-se "mais eficazes" – a cultivar áreas cada vez maiores. A vantagem principal das sementes geneticamente modificadas (GMO) é que ajudam a simplificar o processo do cultivo e permitem que grandes extensões sejam geridas por uma única entidade – um grande agricultor ou uma empresa – encurralando os pequenos agricultores.

Também se fazem sentir os efeitos negativos da penetração das grandes cadeias de supermercados. Como dizia um cabeçalho no New Yor Times,"Supermercados gigantes esmagam agricultores da América Central" (28/Dezembro/2004). Os grandes supermercados preferem negociar em grande escala com poucos agricultores do que com muitos pequenos agricultores. E a abertura de grandes supermercados acaba com os mercados tradicionais utilizados pelos pequenos agricultores.

A crise prolongada está a intensificar-se

Parece lógico que, com preços alimentares mais altos, os agricultores deviam ficar em melhor situação e produzir mais para satisfazer a "procura" indicada pelo mercado. Isso é verdade até certo ponto – principalmente para os agricultores que conseguem tirar partido de todas as vantagens físicas e monetárias da produção em grande escala. Mas os custos na origem para quase tudo o que é necessário para a produção agrícola também aumentaram, e portanto os lucros para os agricultores não são tão grandes como seria de esperar. Isto é um problema particularmente difícil para os agricultores que criam animais com base numa alimentação de cereais cada vez mais caros.

A acrescer, as coisas não estão a andar nada bem para os pequenos agricultores e para os agricultores de subsistência. Muitos deles estão tão enterrados em dívidas que lhes é difícil voltarem a pôr-se de pé. Calcula-se que no ano passado se tenham suicidado 25 mil agricultores indianos, porque não conseguiam sair da sua situação difícil. (O governo indiano propôs um orçamento que inclui empréstimos a pequenos agricultores endividados a bancos. Mas, mesmo que isso venha a ser posto em prática, os milhões que contraíram empréstimos a usurários locais não beneficiarão em nada). A concentração da propriedade e a expulsão dos pequenos agricultores e trabalhadores sem terra dessas áreas foi exacerbada pelas excepcionais subidas dos preços dos cereais nos últimos anos.

A subida dos preços dos cereais leva à subida do preço dos terrenos agrícolas – em especial dos grandes terrenos que podem ser trabalhados com maquinaria de grande escala. Isto está a acontecer nos Estados Unidos e em certos países da periferia. Por exemplo, a Global Ag Investments, uma companhia com sede no Texas, possui e explora 14 mil hectares de terrenos agrícolas brasileiros. Numa destas explorações, um único campo de soja cobre 650 hectares! Uma empresa da Nova Zelândia adquiriu cerca de 40 mil hectares no Uruguai e contratou gestores para explorarem vacarias instaladas nos seus terrenos.

Empresas privadas de investimento andam a comprar terrenos agrícolas nos Estados Unidos (Associated Press, 7/Mai/2007), e também no estrangeiro. Uma companhia americana está a cooperar com parceiros brasileiros e japoneses para adquirir 100 mil hectares no Brasil! O mesmo também está a acontecer com capital sul-americano à cabeça – um fundo de investimentos brasileiro, Investimento em Participações, está a comprar uma entrada minoritária num produtor de soja argentino que possui cerca de 160 mil hectares no Uruguai e na Argentina.

A subida dos preços dos cereais também levou à aceleração da desflorestação na bacia amazónica – 320 mil hectares (quase o tamanho da Ilha de Rhode) nos últimos cinco meses de 2007 – quando os agricultores capitalistas necessitavam desesperadamente de mais terras (BBC, 24/Janeiro/2008). Além disso, foram expropriadas gigantescas áreas de terrenos agrícolas para desenvolvimento – algumas delas de uso duvidoso, como para construção de habitações de estilo suburbano e campos de golfe para os ricos.

Na China, de 2000 a 2005, houve uma perda média de dez milhões de hectares por ano, por os terrenos agrícolas passarem a ser utilizados para desenvolvimento. Este país está a aproximar-se rapidamente do mínimo de terra agrícola arável que estabeleceu como necessário – cerca de 120 milhões de hectares – e a quantidade de terras agrícolas continuará muito provavelmente a diminuir. Numa das suas tentativas para conseguir o acesso para produções agrícolas estrangeiras, uma companhia chinesa fez um acordo para alugar cerca de um milhão de hectares de terras nas Filipinas para cultivo de arroz, milho e açúcar – ultrapassando um enorme protesto nas Filipinas que retardou temporariamente esse projecto (Bloomberg, 21/Fevereiro/2008). Como afirmou um agricultor, "O governo [filipino] e os chineses chamam-lhe uma parceria, mas a verdade é que os chineses vão ser os nossos senhorios e nós vamos ser os escravos deles".

Acabar com a fome mundial

Teoricamente, é muito simples acabar com a fome mundial. Mas pôr isso em prática está longe de ser simples. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer o direito a uma dieta saudável e variada como um direito humano básico que sem dúvida é. Os governos têm que se empenhar em acabar com a fome do seu povo e têm que implementar acções eficazes para pôr em prática esse empenhamento. Em muitos países, mesmo neste momento, há suficiente comida armazenada para alimentar toda a população com um alto nível de nutrição. Isto, claro, é sobretudo evidente nos Estados Unidos, onde se produzem tantos alimentos. É um verdadeiro crime que haja tantos pobres nos Estados Unidos com fome, subnutridos, ou que não saibam de onde virá a sua próxima refeição (o que só por si tem um preço psicológico) quando há tanta abundância de alimentos.

A curto prazo, é necessário que a situação de emergência de fome e subnutrição cada vez mais grave seja contrariada com todos os recursos à disposição de cada país. Embora a distribuição maciça a granel de cereais ou de leite em pó possa desempenhar um papel importante, os países deviam reflectir sobre a inovação venezuelana de instalar casas alimentares em todos os bairros pobres. Quando as pessoas acreditarem que o governo está realmente a tentar ajudá-los, e lhes confere poderes para encontrarem ou ajudarem numa solução para os seus próprios problemas, verificar-se-á uma explosão de entusiasmo e de voluntariado. Por exemplo, embora os alimentos no programa de alimentação da Venezuela sejam fornecidos pelo governo, as refeições para as crianças pobres, para os mais velhos e para os doentes são preparadas e distribuídas a partir das casas do povo com base em grande quantidade de trabalho voluntário. Além disso, a Venezuela instituiu uma rede de lojas que vendem alimentos básicos com descontos significativos em relação aos preços marcados nos supermercados privados.

O Brasil iniciou um programa em 2003 que se destina a aliviar as condições das pessoas mais pobres. Cerca de um quarto da população do Brasil recebe pagamentos directos do governo nacional, ao abrigo da Bolsa de Família, um programa anti-pobreza. Ao abrigo deste programa, uma família com uma receita per capita abaixo de 2 dólares diários por pessoa, recebe um subsídio que pode ir até aos 53 dólares por mês por pessoa ( The Economist, 7/Fevereiro/2008). Esta infusão de dinheiro está dependente de as crianças da família frequentarem a escola e participarem no programa nacional de vacinação. Este programa evidentemente está a ter um efeito positivo na vida e na alimentação das pessoas. Mas é um sistema que não tem o mesmo efeito dos programas da Venezuela, que mobiliza as pessoas para trabalharem em conjunto para seu próprio benefício e em benefício da comunidade.

Os jardins urbanos têm sido utilizados com grande êxito em Cuba e noutros países para fornecer os moradores da cidade com alimentos e também como fonte de receitas. Isto devia ser amplamente fomentado – com a utilização criativa do espaço disponível em aglomerados urbanos.

A agricultura tem que tornar-se a primeira prioridade do terceiro mundo. Até o próprio Banco Mundial está a começar a realçar a importância de os governos ajudarem a agricultura nos seus países. Como afirmou a Dra. Ngozi Okonjo-Iweala, directora-geral do Banco Mundial,

Actualmente, a atenção dos políticos mundiais está virada para o desastre do subprime e para as crises financeiras. Mas a verdadeira crise é a da fome e da subnutrição... este é o verdadeiro problema que devia atrair a atenção mundial. Sabemos que 75 por cento das pessoas pobres em todo o mundo são rurais e a maioria delas depende da agricultura para viver. A agricultura é hoje, mais do que nunca, um instrumento fundamental para combater a fome, a subnutrição e como apoio ao desenvolvimento sustentado e à redução da pobreza (All-Africa Global Media, 19/Fevereiro/2008)

Quase todos os países do mundo têm solo, água e recursos climatéricos para produzir alimentos suficientes para que todo o seu povo possa alimentar-se com uma dieta saudável. Além disso, já existe na maior parte dos países o conhecimento e as variedades de cultivo de modo que, se for prestada aos agricultores uma assistência adequada, estes poderão conseguir colheitas razoavelmente altas.

Embora seja essencial uma produção agrícola melhorada, no passado tem sido dado principal realce à produção de culturas para exportação. Mas se bem que isso possa equilibrar a balança de pagamentos de um país, a agricultura orientada para a exportação não garante alimentos suficientes para toda a gente nem promove um ambiente rural saudável. Para além dos produtos básicos, como seja a soja, a agricultura orientada para a exportação também leva naturalmente à produção de cultivos de luxo de alto preço procurados pelos mercados de exportação (luxos na perspectiva das necessidades alimentares básicas de um país pobre do terceiro mundo), em vez dos cultivos de subsistência de baixo preço necessários para satisfazer as necessidades da população doméstica. A produção de quantidades suficientes dos tipos de alimentos correctos dentro das fronteiras de cada país – por pequenos agricultores trabalhando em cooperativas ou por sua própria conta e usando técnicas sustentáveis – é a melhor maneira de atingir a meta da "segurança alimentar". Só assim pode ser protegida a população, pelo menos parcialmente, das flutuações de preços no mercado mundial. Isto, evidentemente, implica também não retirar terras à produção alimentar para produzir cereais para os mercados dos biocombustíveis.

Uma das formas de fazer isto e, em simultâneo, de acabar com o problema de tanta gente amontoada nos bairros de barracas urbanos – as pessoas mais susceptíveis às subidas dos preços alimentares – é proporcionar terras através de reformas agrárias significativas. Mas a terra só por si não basta. O início do regresso de agricultores precisa de apoio técnico e financeiro para a produção de alimentos. Adicionalmente, é preciso desenvolver sistemas de apoio social, como cooperativas e conselhos comunitários, para ajudar a promover a camaradagem e a solidariedade nas novas comunidades que se forem desenvolvendo. Provavelmente cada comunidade precisará de ser "semeada" com alguns activistas dedicados. Também será necessário disponibilizar habitação, electricidade, água e esgotos para atrair as pessoas que vivem na cidade a mudarem-se para o campo. Uma outra forma de encorajar as pessoas a mudarem-se para o campo e passarem a ser agricultores é apelar ao patriotismo e difundir a ideia de que eles são verdadeiros pioneiros, instituindo um novo sistema alimentar para ajudar os seus países a conquistar uma auto-suficiência alimentar, i.e., a independência das empresas transnacionais agroindustriais e o abastecimento de alimentos saudáveis para toda a população do país. Estes agricultores pioneiros precisam de ser encarados por si mesmos, pelo resto da sociedade e pelo seu governo como imprescindíveis para o futuro dos seus países e para o bem-estar da população. Têm que ser tratados com o maior respeito que merecem.

Conclusão

A alimentação é um direito humano e os governos têm a responsabilidade de providenciar para que o seu povo seja bem alimentado. Além disso, há formas conhecidas para acabar com a fome – incluindo medidas de emergência para combater a atual situação crítica, jardins urbanos, reformas agrárias que incluam todo um sistema de apoio aos agricultores, e técnicas agrícolas sustentáveis que promovam a qualidade do ambiente. A atual disponibilidade de alimentos para as pessoas reflete relações de poder econômicas e políticas muito desiguais dentro e entre os países. Um sistema alimentar sustentável e seguro exige uma relação diferente e muito mais equitativa entre os povos. Quanto mais os pobres e os próprios agricultores forem incluídos em todos os aspectos dos esforços para conquistar a segurança alimentar, e quanto mais forem motivados para esse processo, tanto maior será a probabilidade de atingir uma segurança alimentar duradoura. Como afirmou o Presidente Hugo Chavez da Venezuela, um país que tanto tem feito para combater a pobreza e a fome:

Sim, é importante acabar com a pobreza, pôr fim à miséria, mas a coisa mais importante é dar o poder ao povo para que ele possa combater por si mesmo.

Sobre o autor

Fred Magdoff is professor emeritus of plant and soil science at the University of Vermont in Burlington and a director of the Monthly Review Foundation.

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