Monthly Review
Tradução / O ano de 2008 foi atingido por uma grave crise de alimentos. É o culminar de uma antiga crise agrícola e alimentar que já provocou a fome e a subnutrição em bilhões de pessoas. Para perceber totalmente todas as terríveis implicações do que se está agora a passar, é necessário analisar a interação entre estas crises a curto e a longo prazo. Ambas as crises resultam principalmente da produção com fins lucrativos de alimentos, de fibras e agora de biocombustíveis e do conflito entre os alimentos e as pessoas que ela gera inevitavelmente.
Fome "crônica" antes da atual crise
As Nações Unidas calculam que, dos mais de 6 mil milhões de pessoas que vivem no mundo actualmente, cerca de mil milhões sofrem de fome crónica. Mas este número, que é apenas uma estimativa grosseira, deixa de fora os que sofrem de deficiências vitamínicas e nutrientes e de outros tipos de subnutrição. O número total de pessoas sem uma alimentação estável, que se alimentam mal ou têm deficiência de nutrientes fundamentais, está provavelmente mais perto dos 3 mil milhões – quase metade da humanidade. A gravidade desta situação avalia-se facilmente pela estimativa das Nações Unidas, feita há mais de um ano, de que morrem diariamente cerca de 18 000 crianças em consequência, directa ou indirecta, de subnutrição (Associated Press, 18.Fevereiro, 2007).
A razão por que as pessoas têm fome raras vezes é a escassez de produção. Isto é fácil de constatar nos Estados Unidos onde, apesar de a produção de alimentos ser maior do que as necessidades da população, a fome constitui um problema significativo. Segundo o Departamento da Agricultura americano, em 2006 havia mais de 35 milhões de pessoas a viver em lares com problemas de alimentação, incluindo 13 milhões de crianças. Devido à falta de alimentos, os adultos que viviam em mais de 12 milhões de lares não conseguiam comer refeições equilibradas e em mais de 7 milhões de lares havia sempre alguém que tinha rações mais pequenas ou deixava de fazer refeições. Em cerca de 5 milhões de lares, as crianças não tinham o suficiente para comer de vez em quando altura durante o ano.
Também nos países pobres não é invulgar existirem grandes quantidades de alimentos desperdiçados e mal distribuídos no meio de uma fome generalizada e persistente. Há alguns anos um artigo do New York Times dava uma notícia com o seguinte título "Na Índia os pobres morrem de fome enquanto os excedentes de trigo apodrecem" (2/Dezembro/2002). E um cabeçalho do Wall Street Journal dizia em 2004 "Fome no meio da abundância, um paradoxo na Índia: Boas colheitas e aumento da fome" (25/Junho/2004).
Sem "direito à alimentação"
A fome e a subnutrição são geralmente sintomas de um problema subjacente maior – a pobreza num sistema económico que só reconhece, conforme a análise de Rachel Carson, os deuses do lucro e da produção. Os alimentos são tratados em quase todos os países do mundo como se fossem uma outra mercadoria qualquer, vestuário, automóveis, lápis, livros, diamantes, e por aí afora. Não se considera que as pessoas tenham direito a adquirir qualquer mercadoria em especial, e não se faz qualquer distinção entre bens necessários e bens supérfluos. Os que são ricos podem permitir-se comprar tudo o que quiserem enquanto que os pobres muitas vezes nem sequer conseguem satisfazer as suas necessidades básicas. No seio das relações capitalistas as pessoas não têm direito a uma dieta adequada, à habitação e aos cuidados médicos. Tal como com outras mercadorias, as pessoas que não têm aquilo que os economistas designam por "procura efectiva" não podem comprar alimentos nutritivos suficientes. Claro que a ausência de "procura efectiva" neste caso significa que os pobres não têm dinheiro suficiente para comprar a comida de que precisam.
Os seres humanos têm uma "necessidade biológica" de comida – todos nós precisamos de comida, tal como precisamos de água e de ar, para poder viver. É um facto sistemático da sociedade capitalista que há muita gente impedida de satisfazer esta necessidade biológica. É verdade que alguns países ricos, em especial os da Europa, ajudam a alimentar os pobres, mas ao mesmo tempo a própria forma como o capitalismo funciona cria obrigatoriamente uma camada mais baixa da sociedade em que normalmente faltam as coisas básicas para a existência humana. Nos Estados Unidos há diversas iniciativas governamentais – como senhas de alimentos e programas de refeições escolares – destinadas a alimentar os pobres. Mas o financiamento para esses programas não chega para satisfazer as necessidades dos pobres, e há várias obras de caridade que travam uma batalha inglória para tentar colmatar a diferença.
Actualmente, há relativamente poucas pessoas a morrer mesmo de fome, tirando a fome terrível provocada por guerras e deslocações. Mas a maioria delas mantém-se cronicamente subnutrida e depois é afectada por uma série de doenças que encurtam a sua vida ou as torna ainda mais miseráveis. O flagelo da subnutrição impede o desenvolvimento mental e físico das crianças, prejudicando-as para o resto da vida.
A crise grave e crescente: A Grande Fome de 2008
Neste momento da história, a juntar à fome "crónica" acima referida, há duas crises alimentares globais separadas que ocorrem em simultâneo. A grave e séria crise, que já dura há dois anos, agrava-se de dia para dia e é a que iremos abordar primeiro. A gravidade da actual crise não pode ser subestimada. Fez aumentar rapidamente o número de pessoas que estão subnutridas em todo o globo. Embora ainda não estejam disponíveis estatísticas quanto ao aumento da fome no ano passado, é já evidente que muita gente vai morrer prematuramente ou sofrer os seus efeitos por qualquer outro modo. Como de costume, serão os jovens, os velhos e os doentes que sofrerão os piores efeitos da Grande Fome de 2008. A rápida e simultânea subida dos preços de todos os alimentos básicos – milho, trigo, soja, arroz e óleos alimentares – juntamente com muitos outros, tem tido um efeito devastador numa parte da humanidade cada vez maior.
As subidas dos preços no mercado mundial nos últimos anos não são de admirar. Os preços dos sessenta produtos agrícolas comercializados no mercado mundial aumentaram 37 por cento no ano passado e 14 por cento em 2006 ( New York Times, 19/Janeiro/2008). Os preços do milho começaram a subir no princípio do Outono de 2006 e em poucos meses aumentaram 70 por cento. Os preços do trigo e da soja também entraram em espiral na mesma altura e encontram-se agora a níveis recordes. Os preços dos óleos alimentares (fabricados principalmente a partir da soja e do óleo de palma) – um produto essencial em muitos países pobres – também dispararam. Os preços do arroz também aumentaram mais de 100 por cento no ano passado ("Os altos preços do arroz anunciam perturbações na Ásia," New York Times, 29/Março/2008).
As razões para esta brutal subida de preços são bastante claras. Em primeiro lugar, há uma série de questões relacionadas directa ou indirectamente com a subida do preço do petróleo. Nos Estados Unidos, na Europa e em muitos outros países, isso veio dar um novo realce ao cultivo de produtos que podem ser utilizados para combustível – os chamados biocombustíveis (ou agrocombustíveis). Assim, a produção de milho para fabricar etanol ou de milho e de óleo de palma para fabricar diesel entra em competição directa com a utilização destes produtos para a alimentação. No ano passado mais de 20 por cento do total da colheita de milho nos Estados Unidos foi utilizado para fabricar etanol – um processo que não rende muito mais energia adicional em relação à energia que é necessária para o produzir. (Calcula-se que na próxima década cerca de um terço das colheitas americanas de milho irão para a produção de etanol [Bloomberg, 21/Fevereiro/2008].) Além disso, muitos dos produtos necessários à produção agrícola comercial a grande escala são baseados no petróleo e no gás natural – desde o fabrico e o funcionamento de tractores e de equipamentos agrícolas até aos fertilizantes e pesticidas e secantes de cereais para armazenamento. O preço dos nitrogenados, o fertilizante mais vulgarmente utilizado a nível mundial, está directamente ligado ao preço da energia porque a sua produção consome muita.
Uma segunda causa para a subida dos preços do milho e da soja e dos óleos alimentares de soja é o aumento da procura de carne pela classe média na América Latina e na Ásia, em particular na China. A utilização do milho e da soja para alimentar o gado vacum, os porcos e as aves aumentou vertiginosamente para satisfazer esta procura. A oferta total mundial de carne era de 71 milhões de toneladas em 1961. Em 2007, foi calculada em 284 milhões de toneladas. O consumo per capita mais que triplicou durante esse período. No mundo desenvolvido aumentou duas vezes mais depressa, duplicando nos últimos vinte anos. ( New York Times, 27/Janeiro/2008). A alimentação com cereais de um número cada vez maior de animais está a provocar uma grande pressão sobre o armazenamento dos mesmos. Os cereais utilizados para produção de carne são uma forma muito pouco eficaz de fornecer calorias ou proteínas às pessoas. É um desperdício, principalmente em animais como as vacas – com sistemas digestivos que apenas aproveitam energia a partir da celulose – já que podem obter todo o seu alimento a partir de pastos e desenvolvem-se bem sem cereais, embora mais lentamente. As vacas não convertem o milho ou a soja em carne com grande eficácia – para render um quilo de carne, as vacas precisam de sete quilos de milho; os porcos, cinco; e os frangos, três. (Baron's, 4/Março/2008).
Uma terceira razão para o grande salto nos preços alimentares mundiais é que alguns países que eram auto-suficientes – ou seja, não importavam alimentos, embora muita gente sofresse com fome – estão actualmente a importar grandes quantidades de alimentos. Como afirma um analista de Nova Delhi, "Quando países como a Índia começam a importar alimentos, então os preços mundiais aumentam… Se a Índia e a China começarem a ser grandes importadores, deixando de ser auto-suficientes em alimentos como estamos a ver acontecer ultimamente na Índia, os preços globais vão obrigatoriamente subir ainda mais, o que significa que a era dos alimentos baratos acabou definitivamente" (VOA News, 21/Fevereiro/2008). Em parte, a razão para a pressão sobre o preço do arroz é a perda de áreas de cultivo para outros fins, tais como os diversos projectos de desenvolvimento – cerca de 3 milhões de hectares na China e 300 000 hectares no Vietname. Além disso, o rendimento das colheitas do arroz por hectare na Ásia atingiu o pico. Há dez anos que não há aumento por hectare e não se esperam melhorias de colheitas num futuro próximo ( Rice Today, Janeiro-Março/2008).
Algumas das razões para as recentes subidas dos preços do trigo e do arroz estão relacionadas com o clima. A seca na Austrália, um importante país exportador de trigo e as baixas colheitas nalguns outros países exportadores têm afectado fortemente os preços do trigo. O ciclone de 2007 em Bangladesh destruiu cerca de 600 milhões de dólares de arroz, levando ao aumento do preço do mesmo em cerca de 70 por cento ( The Daily Star [Bangladesh], 11/Fevereiro/2008). A seca do ano passado no centro norte da China, aliada a um frio e neve invulgares durante o Inverno, obrigará provavelmente o governo a aumentar a aquisição de alimentos nos mercados internacionais, mantendo a pressão sobre os preços.
A especulação no mercado de futuros e o açambarcamento a nível local estão obviamente a desempenhar o seu papel nesta crise para tornar os alimentos mais caros. À medida que a crise financeira americana se aprofundou e se alargou no Inverno de 2008, os especuladores começaram a investir mais dinheiro nos alimentos e nos metais para tirar partido do que se chama agora o "super ciclo de mercadorias". (A queda do dólar relativamente a outras divisas estimula o "investimento" em mercadorias tangíveis). Embora seja um erro considerar estes aspectos, por mais desprezíveis e desumanos que sejam, como a causa da crise, a verdade é que aprofundam a miséria ao tirar partido de mercados pressionados. Claro que é possível que a bolha de mercadorias venha a arrebentar, fazendo descer um pouco os preços dos alimentos. Mas a especulação e o açambarcamento local vão continuar a pressionar a subida dos preços dos alimentos. As empresas transnacionais que processam produtos agrícolas, manufacturam vários alimentos e vendem produtos alimentares ao público, estão obviamente a singrar excepcionalmente bem. Os lucros empresariais normalmente portam-se bem em tempo de escassez e de subida de preços.
Embora não sejam uma causa para o aumento dos preços dos outros alimentos, os preços mais altos do peixe representam uma carga adicional para os pobres e remediados. O abuso da pesca de muitas espécies marítimas está a afastar esta importante fonte de proteínas da dieta de uma grande percentagem da população mundial.
A resposta à crise apareceu sob a forma de manifestações e motins assim como de alterações nas políticas governamentais. Nos últimos meses tem havido protestos e motins por causa do aumento do custo dos alimentos em muitos países, incluindo o Paquistão, a Guiné, a Mauritânia, Marrocos, México, Senegal, Uzbequistão e Iémen. A China instituiu o controlo dos preços nos alimentos básicos e a Rússia congelou o preço do leite, do pão, dos ovos, e do óleo alimentar durante seis meses. O Egipto, a Índia e o Vietname proibiram ou passaram a exercer um controlo rigoroso sobre a exportação de arroz para que o seu povo tenha comida suficiente. O Egipto, o maior importador de trigo do mundo, aumentou para 10 milhões o número de pessoas com direito a receber ajuda alimentar. Muitos países baixaram as tarifas proteccionistas na tentativa de reduzirem o impacto dos preços dramaticamente altos dos alimentos importados. Países fortemente dependentes da importação de alimentos, como as Filipinas, o maior importador de arroz do mundo, estão a tentar fazer contratos para garantirem as importações necessárias. Mas estes diversos esforços para tapar buracos estão a ter apenas efeitos marginais em relação ao problema de fundo. Quase toda a gente se vê forçada a um nível de vida mais baixo à medida que as pessoas da classe média se preocupam cada vez mais com os alimentos que compram, os remediados caem na pobreza, e os pobres passam a ficar realmente sem nada e são os que sofrem mais. Têm-se sentido os efeitos em todo o mundo em todas as classes sociais com excepção dos realmente ricos. Conforme Josette Sheeran, chefe do Programa Alimentar Mundial da ONU, disse em Fevereiro, "Este é o novo rosto da fome… Há comida nas prateleiras mas as pessoas não têm com que pagar o preço do mercado. Existe uma vulnerabilidade nas áreas urbanas que nunca tínhamos visto antes. Há motins por causa dos alimentos em países onde nunca tinha acontecido tal coisa anteriormente" ( The Guardian, 26/Fevereiro/2008).
Embora o Haiti seja há muito um país muito pobre – 80 por cento das pessoas tenta subsistir com menos do que o valor de compra de dois dólares por dia nos Estados Unidos – a actual situação acarretou novas situações de desespero. Duas chávenas de arroz, que custavam trinta cêntimos o ano passado, custam agora sessenta cêntimos. A descrição dum artigo da Associated Press no princípio deste ano (29/Janeiro/2008) é pungente nos seus pormenores:
Era a hora do almoço num dos piores bairros de barracas do Haiti, e Charlene Dumas estava a comer lodo. Com os preços dos alimentos a subir, os haitianos mais pobres não têm com que pagar um prato de arroz diário, e alguns deles adoptam medidas desesperadas para encherem a barriga. Charlene, de 16 anos, com um filho de um mês, acabou por se entregar a um tradicional remédio haitiano contra as dores da fome: biscoitos feitos com o lodo seco amarelo do planalto central do país.
Os "biscoitos" também contêm gordura vegetal e sal. No final do artigo, lê-se o seguinte:
Marie Noel, de 40 anos, vende os biscoitos no mercado para arranjar comida para os seus sete filhos. A família dela também os consome.
"Tenho esperança de um dia vir a ter comida suficiente para comer, e deixar de comer isto", disse. "Sei que não me fazem bem".
Muitos países em Africa e na Ásia têm sofrido fortemente o impacto da crise, com a fome alastrando amplamente – mas todas as nações têm sido afectadas mais ou menos gravemente. Nos Estados Unidos – onde no ano passado o preço dos ovos aumentou 38 por cento, o leite 30 por cento, a alface 16 por cento e o pão de trigo 12 por cento – muita gente passou a comprar produtos menos caros. "Os preços mais altos dos alimentos começam a retrair os compradores", foi a forma como o Wall Street Journal intitulou uma sua notícia (3/Janeiro/2008).
De assinalar que, embora os preços do trigo estejam a preços recorde e os preços dos produtos à base de trigo nos Estados Unidos vão certamente subir, o custo do trigo existente num pão é apenas uma pequena parte do seu preço de venda. Quando o preço do trigo duplica, como aconteceu, o preço dum pão pode aumentar 10 por cento, de 3 dólares para 3,3 dólares, por exemplo. No entanto, o efeito da duplicação dos preços do milho, do trigo, da soja e do arroz é devastador para a gente pobre do terceiro mundo que compra fundamentalmente estes produtos a granel.
Com as despensas alimentares e as sopas dos pobres a atingir o ponto de rotura, os pobres dos EUA estão a ter um sofrimento mais profundo. Em geral, os pobres nos Estados Unidos tendem a pagar em primeiro lugar a renda, e as contas do aquecimento e da gasolina (para o carro em que vão para o trabalho). A comida passa assim a ser um dos poucos itens "flexíveis" do seu orçamento. Na zona central do meu estado natal de Vermont, no ano passado o recurso às despensas alimentares (i.e. o auxílio de programas de ajuda alimentar caritativa local, que dão artigos de mercearia directamente aos necessitados) aumentou 133 por cento em relação a todos os utilizadores e 180 por cento em relação aos trabalhadores pobres! (Hal Cohen, no Conselho de Acção da Comunidade Central de Vermont, comunicação pessoal, 20/Fevereiro/2008).
A recessão económica está a começar a fazer-se sentir em muitas regiões dos Estados Unidos, contribuindo para o aumento de pedidos de ajuda a diversos programas governamentais de auxílio alimentar ("À medida que os empregos desaparecem e os preços aumentam, a utilização de senhas alimentares atinge novo récorde", New York Times, 31/Março/2008). Mas, muitas vezes, as pessoas que utilizam os programas governamentais insuficientemente financiados, ficam sem alimentos nos últimos dias do mês, o que aumenta dramaticamente a procura nas despensas alimentares e nas sopas dos pobres por essa altura. E a verdade é que, enquanto aumenta a necessidade de comida, diminuem os donativos alimentares – a começar pela grande descida dos donativos federais (com os preços altos há muito menos produtos "excedentários" nos programas agrícolas, e assim no ano passado foram dados às despensas alimentares 58 milhões de dólares em alimentos, contra 242 milhões dados cinco anos antes).
Os supermercados arranjaram formas de ganhar dinheiro com produtos danificados ou fora de prazo que anteriormente ofereciam a organismos caritativos. Em Connecticut, tem havido uma explosão na procura de alimentos, que a oferta não tem conseguido acompanhar. Uma despensa alimentar de Stamford está a fornecer alimentos a quatrocentas famílias, o dobro do número do ano passado. Segundo o director dessa despensa familiar, "Tive que recusar pessoas… Houve alturas em que fui para casa e só me apetecia chorar" ( New York Times, 23/Dezembro/2007). Um professor da Universidade de Cornell, que estuda programas de ajuda alimentar nos Estados Unidos, resumiu assim a situação: "Está a formar-se uma crise nascente… Os pedidos de ajuda ao banco alimentar estão a subir rapidamente enquanto os recursos estão a diminuir em termos dramáticos porque os dólares já não chegam" ( Wall Street Journal, 20/Março/2008).
A crise alimentar a longo prazo
Por muito crítica que seja a crise alimentar a curto prazo – exigindo a atenção imediata mundial assim como a atenção de cada país – a crise estrutural, a longo prazo, é mais importante ainda. Esta última existe há décadas e contribui para, e é reforçada pela grave crise alimentar actual. Com efeito, é esta crise estrutural subjacente da agricultura e alimentar nas sociedades do terceiro mundo que constitui a verdadeira razão por que a actual crise alimentar é tão grave e tão difícil de ultrapassar no interior do sistema.
Tem havido uma gigantesca migração de pessoas do campo para as cidades, no terceiro mundo. Essas pessoas abandonam o campo porque não têm acesso à terra. Frequentemente as suas terras são-lhes roubadas em consequência das incursões das empresas agroindustriais, visto que são forçadas a abandonar as terras em virtude dos preços baixos que sempre receberam pelos seus produtos e das ameaças contra a vida campesina. Mudam-se para as cidades à procura de uma vida melhor, mas o que encontram é uma existência muito difícil – a vida em bairros de barracas no meio de uma alta taxa de desemprego e de sub-emprego. Muitos deles tentam esgaravatar numa economia "informal" comprando e vendendo coisas em pequenas quantidades. Da metade da humanidade que vive em cidades (3 mil milhões), cerca de mil milhões, ou seja um terço dos moradores em cidades, vive em bairros de barracas. O presidente de um distrito em Lagos, na Nigéria, descreve a situação da seguinte forma: "Temos um aumento enorme da população com uma economia estagnada ou em retracção. Imaginem esta cidade daqui a dez ou vinte anos. Já não há pobres urbanos – agora são os novos despojados urbanos". Um extenso artigo do New Yorker sobre Lagos terminava com uma nota de extremo pessimismo: "A coisa que mais impressiona quanto aos apanhadores de lixo e vendedores de Lagos é que, na sua essência, as vidas deles não têm nada a ver com as nossas. Vivem da sucata à margem da macroeconomia. Nos termos cruéis da globalização, são supérfluos". (13/Novembro/2006).
Um dos principais factores que contribui para esta migração em massa e permanente para as cidades – para além de serem sem-terra ou espoliados das suas terras – é a dificuldade de viver como pequeno agricultor. Isto tornou-se cada vez mais difícil, à medida que os países implementaram as políticas "neoliberais" recomendadas ou impostas pelo FMI, pelo Banco Mundial, e até mesmo por algumas ONGs ocidentais que trabalham nos países pobres do terceiro mundo. A ideologia neoliberal defende que se deve permitir que o chamado mercado livre concretize a sua magia. Afirma que, através das sanções benéficas duma "mão invisível", a economia funcionará mais eficazmente e será muito mais produtiva. Mas para que o mercado possa ser "livre" os governos não podem interferir.
No que diz respeito à agricultura, os governos têm que deixar de dar subsídios aos agricultores para comprarem fertilizantes, têm que deixar de se imiscuir no armazenamento e transporte dos alimentos, e deixar os agricultores e os alimentos entregues a si mesmos. Esta perspectiva também defende que os governos têm de deixar de subsidiar os alimentos para as pessoas pobres porque, depois, esse novo mercado sem freio resolverá todos esses problemas. Esta mentalidade tornou-se evidente quando a crise alimentar haitiana começou a desenvolver-se nos finais de 2007. Segundo o ministro do Comércio e Indústria do Haiti, "Não podemos intervir e fixar os preços porque temos que respeitar os regulamentos do mercado livre" (Reuters, 9/Dezembro/2007). Foi a mesma resposta que a Grã-Bretanha colonial adoptou em resposta à fome de batatas na Irlanda, assim como às fomes na Índia nos finais do século XIX. Mas esta forma de pensar está, até certo ponto, internacionalizada nas ideias de muitos dirigentes nos países "independentes" da periferia.
Esta ideologia, obviamente, não assenta na realidade – o chamado mercado livre não é nada eficaz. É totalmente incapaz de agir como um mecanismo que acabe com a pobreza e a fome. Temos que ter sempre presente que esta ideologia representa exactamente o oposto do que os principais países capitalistas têm feito durante toda a história e continuam a fazer hoje em dia. Por exemplo, o governo nacional americano auxiliou os agricultores de muitas maneiras durante mais de um século. Fê-lo através de programas governamentais para investigação e expansão, apropriando-se das terras dos índios e entregando-as a agricultores de origem europeia, subsidiando os agricultores directamente por meio duma enorme variedade de programas, incluindo empréstimos a juros baixos e estimulando a exportação de colheitas. É também de assinalar que os Estados Unidos, a Europa e o Japão desenvolveram, todos eles, as suas economias industriais ao abrigo de políticas proteccionistas, com a ajuda de diversos programas de apoio directo à indústria.
A falta de apoio governamental aos pequenos agricultores e consumidores do terceiro mundo resultou em que a vida dos pobres nesses países passasse a ser mais difícil. Como se refere num relatório independente encomendado pelo Banco Mundial: "Na maior parte dos países em transformação, o sector privado não avançou para preencher o vazio quando o sector público recuou" ( New York Times, 15/Outubro/2007). Por exemplo, muitos governos africanos, sob a pressão das políticas económicas neoliberais promovidas pelo Banco Mundial, pelo FMI e pelos países ricos do centro do sistema, deixaram de subsidiar a utilização de fertilizantes para as culturas. Se, por um lado, os fertilizantes importados são muito caros, a verdade é que os solos africanos são genericamente de fertilidade muito baixa e as colheitas são baixas quando não se utilizam fertilizadores sintéticos ou orgânicos. Como as colheitas baixaram depois de os governos deixarem de comparticipar na compra de fertilizantes e de ajudar por outras formas, houve mais agricultores a chegar à conclusão de que não conseguiam sobreviver e a emigrar para os bairros de barracas urbanos. Jeffrey Sachs – um médico parcialmente refeito do choque do mercado livre – reflectiu melhor. Segundo Sachs, "Tudo se baseava na ideia de que, se o governo se distanciar dos mais pobres dos pobres, estes mercados iriam resolver os problemas duma forma ou doutra… Mas os mercados não podem e não vão aparecer se as pessoas não tiverem nada. E se lhes tirarmos a ajuda, estamos a condená-los à morte". ( New York Times, 15/Outubro/2007).
No ano passado, o Malawi, um país africano, decidiu inverter o seu curso e agir contra todas as recomendações que tinha recebido. O governo reintroduziu os subsídios para fertilizantes e sementes. Os agricultores usaram mais fertilizantes, as colheitas aumentaram e a situação alimentar do país melhorou muito ( New York Times, 2/Dezembro/2007). Com efeito, acabaram por poder exportar alguns alimentos para o Zimbabué – embora houvesse em Malawi quem achasse que isso baixou demasiado o seu próprio abastecimento.
Acontece também um outro problema quando os agricultores capitalistas dos países pobres da periferia entram nos mercados mundiais. Enquanto os agricultores de subsistência vendem normalmente apenas uma pequena parte das suas colheitas, e utilizam a maior parte para consumo familiar, os agricultores capitalistas comercializam toda ou uma grande parte daquilo que produzem. Com frequência, alargam a sua produção e apropriam-se das terras dos pequenos agricultores, com ou sem qualquer compensação, e utilizam menos pessoas do que as que trabalhavam anteriormente numa determinada terra por causa das técnicas mecanizadas de produção. No Brasil, o "Rei da Soja" controla muito mais de 100 mil hectares e utiliza tractores gigantescos e equipamento de colheita para trabalhar a terra. Nas aldeias e cidades da China há frequentemente funcionários corruptos que vendem "terras comunitárias" a novos investidores sem uma compensação adequada aos agricultores – por vezes não há compensação nenhuma.
Assim, as condições difíceis para os agricultores provocadas por uma série de factores, agravadas pela implementação da ideologia do mercado livre, criaram uma corrente contínua de gente a abandonar o campo e a ir viver para as cidades que não tem trabalho para lhe oferecer. E os que vivem em bairros de barracas e não têm acesso a terras para cultivar os seus próprios alimentos ficam à mercê do preço mundial dos produtos alimentares.
Uma das razões para a crescente concentração das terras e espoliação dos agricultores de subsistência é a penetração das grandes empresas agrícolas multinacionais nos países da periferia. Desde a venda de sementes, fertilizantes e pesticidas para o processamento dos produtos agrícolas, até à sua exportação ou venda através dos grandes supermercados modernos, as multinacionais agroindustriais estão a ter um efeito devastador sobre os pequenos agricultores. Com o colapso dos sistemas de extensão de auxílio aos agricultores para guardar sementes e com o desmantelamento das empresas governamentais de sementes, abriu-se o caminho para as empresas de sementes multinacionais fazerem incursões ainda maiores.
As gigantescas empresas transnacionais, como a Cargill e a Monsanto, já se instalaram na maior parte do terceiro mundo – a vender sementes, fertilizantes, pesticidas e rações, ao mesmo tempo que compram e processam produtos agrícolas. Neste processo ajudam as maiores explorações agrícolas a tornarem-se "mais eficazes" – a cultivar áreas cada vez maiores. A vantagem principal das sementes geneticamente modificadas (GMO) é que ajudam a simplificar o processo do cultivo e permitem que grandes extensões sejam geridas por uma única entidade – um grande agricultor ou uma empresa – encurralando os pequenos agricultores.
Também se fazem sentir os efeitos negativos da penetração das grandes cadeias de supermercados. Como dizia um cabeçalho no New Yor Times,"Supermercados gigantes esmagam agricultores da América Central" (28/Dezembro/2004). Os grandes supermercados preferem negociar em grande escala com poucos agricultores do que com muitos pequenos agricultores. E a abertura de grandes supermercados acaba com os mercados tradicionais utilizados pelos pequenos agricultores.
A crise prolongada está a intensificar-se
Parece lógico que, com preços alimentares mais altos, os agricultores deviam ficar em melhor situação e produzir mais para satisfazer a "procura" indicada pelo mercado. Isso é verdade até certo ponto – principalmente para os agricultores que conseguem tirar partido de todas as vantagens físicas e monetárias da produção em grande escala. Mas os custos na origem para quase tudo o que é necessário para a produção agrícola também aumentaram, e portanto os lucros para os agricultores não são tão grandes como seria de esperar. Isto é um problema particularmente difícil para os agricultores que criam animais com base numa alimentação de cereais cada vez mais caros.
A acrescer, as coisas não estão a andar nada bem para os pequenos agricultores e para os agricultores de subsistência. Muitos deles estão tão enterrados em dívidas que lhes é difícil voltarem a pôr-se de pé. Calcula-se que no ano passado se tenham suicidado 25 mil agricultores indianos, porque não conseguiam sair da sua situação difícil. (O governo indiano propôs um orçamento que inclui empréstimos a pequenos agricultores endividados a bancos. Mas, mesmo que isso venha a ser posto em prática, os milhões que contraíram empréstimos a usurários locais não beneficiarão em nada). A concentração da propriedade e a expulsão dos pequenos agricultores e trabalhadores sem terra dessas áreas foi exacerbada pelas excepcionais subidas dos preços dos cereais nos últimos anos.
A subida dos preços dos cereais leva à subida do preço dos terrenos agrícolas – em especial dos grandes terrenos que podem ser trabalhados com maquinaria de grande escala. Isto está a acontecer nos Estados Unidos e em certos países da periferia. Por exemplo, a Global Ag Investments, uma companhia com sede no Texas, possui e explora 14 mil hectares de terrenos agrícolas brasileiros. Numa destas explorações, um único campo de soja cobre 650 hectares! Uma empresa da Nova Zelândia adquiriu cerca de 40 mil hectares no Uruguai e contratou gestores para explorarem vacarias instaladas nos seus terrenos.
Empresas privadas de investimento andam a comprar terrenos agrícolas nos Estados Unidos (Associated Press, 7/Mai/2007), e também no estrangeiro. Uma companhia americana está a cooperar com parceiros brasileiros e japoneses para adquirir 100 mil hectares no Brasil! O mesmo também está a acontecer com capital sul-americano à cabeça – um fundo de investimentos brasileiro, Investimento em Participações, está a comprar uma entrada minoritária num produtor de soja argentino que possui cerca de 160 mil hectares no Uruguai e na Argentina.
A subida dos preços dos cereais também levou à aceleração da desflorestação na bacia amazónica – 320 mil hectares (quase o tamanho da Ilha de Rhode) nos últimos cinco meses de 2007 – quando os agricultores capitalistas necessitavam desesperadamente de mais terras (BBC, 24/Janeiro/2008). Além disso, foram expropriadas gigantescas áreas de terrenos agrícolas para desenvolvimento – algumas delas de uso duvidoso, como para construção de habitações de estilo suburbano e campos de golfe para os ricos.
Na China, de 2000 a 2005, houve uma perda média de dez milhões de hectares por ano, por os terrenos agrícolas passarem a ser utilizados para desenvolvimento. Este país está a aproximar-se rapidamente do mínimo de terra agrícola arável que estabeleceu como necessário – cerca de 120 milhões de hectares – e a quantidade de terras agrícolas continuará muito provavelmente a diminuir. Numa das suas tentativas para conseguir o acesso para produções agrícolas estrangeiras, uma companhia chinesa fez um acordo para alugar cerca de um milhão de hectares de terras nas Filipinas para cultivo de arroz, milho e açúcar – ultrapassando um enorme protesto nas Filipinas que retardou temporariamente esse projecto (Bloomberg, 21/Fevereiro/2008). Como afirmou um agricultor, "O governo [filipino] e os chineses chamam-lhe uma parceria, mas a verdade é que os chineses vão ser os nossos senhorios e nós vamos ser os escravos deles".
Acabar com a fome mundial
Teoricamente, é muito simples acabar com a fome mundial. Mas pôr isso em prática está longe de ser simples. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer o direito a uma dieta saudável e variada como um direito humano básico que sem dúvida é. Os governos têm que se empenhar em acabar com a fome do seu povo e têm que implementar acções eficazes para pôr em prática esse empenhamento. Em muitos países, mesmo neste momento, há suficiente comida armazenada para alimentar toda a população com um alto nível de nutrição. Isto, claro, é sobretudo evidente nos Estados Unidos, onde se produzem tantos alimentos. É um verdadeiro crime que haja tantos pobres nos Estados Unidos com fome, subnutridos, ou que não saibam de onde virá a sua próxima refeição (o que só por si tem um preço psicológico) quando há tanta abundância de alimentos.
A curto prazo, é necessário que a situação de emergência de fome e subnutrição cada vez mais grave seja contrariada com todos os recursos à disposição de cada país. Embora a distribuição maciça a granel de cereais ou de leite em pó possa desempenhar um papel importante, os países deviam reflectir sobre a inovação venezuelana de instalar casas alimentares em todos os bairros pobres. Quando as pessoas acreditarem que o governo está realmente a tentar ajudá-los, e lhes confere poderes para encontrarem ou ajudarem numa solução para os seus próprios problemas, verificar-se-á uma explosão de entusiasmo e de voluntariado. Por exemplo, embora os alimentos no programa de alimentação da Venezuela sejam fornecidos pelo governo, as refeições para as crianças pobres, para os mais velhos e para os doentes são preparadas e distribuídas a partir das casas do povo com base em grande quantidade de trabalho voluntário. Além disso, a Venezuela instituiu uma rede de lojas que vendem alimentos básicos com descontos significativos em relação aos preços marcados nos supermercados privados.
O Brasil iniciou um programa em 2003 que se destina a aliviar as condições das pessoas mais pobres. Cerca de um quarto da população do Brasil recebe pagamentos directos do governo nacional, ao abrigo da Bolsa de Família, um programa anti-pobreza. Ao abrigo deste programa, uma família com uma receita per capita abaixo de 2 dólares diários por pessoa, recebe um subsídio que pode ir até aos 53 dólares por mês por pessoa ( The Economist, 7/Fevereiro/2008). Esta infusão de dinheiro está dependente de as crianças da família frequentarem a escola e participarem no programa nacional de vacinação. Este programa evidentemente está a ter um efeito positivo na vida e na alimentação das pessoas. Mas é um sistema que não tem o mesmo efeito dos programas da Venezuela, que mobiliza as pessoas para trabalharem em conjunto para seu próprio benefício e em benefício da comunidade.
Os jardins urbanos têm sido utilizados com grande êxito em Cuba e noutros países para fornecer os moradores da cidade com alimentos e também como fonte de receitas. Isto devia ser amplamente fomentado – com a utilização criativa do espaço disponível em aglomerados urbanos.
A agricultura tem que tornar-se a primeira prioridade do terceiro mundo. Até o próprio Banco Mundial está a começar a realçar a importância de os governos ajudarem a agricultura nos seus países. Como afirmou a Dra. Ngozi Okonjo-Iweala, directora-geral do Banco Mundial,
Actualmente, a atenção dos políticos mundiais está virada para o desastre do subprime e para as crises financeiras. Mas a verdadeira crise é a da fome e da subnutrição... este é o verdadeiro problema que devia atrair a atenção mundial. Sabemos que 75 por cento das pessoas pobres em todo o mundo são rurais e a maioria delas depende da agricultura para viver. A agricultura é hoje, mais do que nunca, um instrumento fundamental para combater a fome, a subnutrição e como apoio ao desenvolvimento sustentado e à redução da pobreza (All-Africa Global Media, 19/Fevereiro/2008)
Quase todos os países do mundo têm solo, água e recursos climatéricos para produzir alimentos suficientes para que todo o seu povo possa alimentar-se com uma dieta saudável. Além disso, já existe na maior parte dos países o conhecimento e as variedades de cultivo de modo que, se for prestada aos agricultores uma assistência adequada, estes poderão conseguir colheitas razoavelmente altas.
Embora seja essencial uma produção agrícola melhorada, no passado tem sido dado principal realce à produção de culturas para exportação. Mas se bem que isso possa equilibrar a balança de pagamentos de um país, a agricultura orientada para a exportação não garante alimentos suficientes para toda a gente nem promove um ambiente rural saudável. Para além dos produtos básicos, como seja a soja, a agricultura orientada para a exportação também leva naturalmente à produção de cultivos de luxo de alto preço procurados pelos mercados de exportação (luxos na perspectiva das necessidades alimentares básicas de um país pobre do terceiro mundo), em vez dos cultivos de subsistência de baixo preço necessários para satisfazer as necessidades da população doméstica. A produção de quantidades suficientes dos tipos de alimentos correctos dentro das fronteiras de cada país – por pequenos agricultores trabalhando em cooperativas ou por sua própria conta e usando técnicas sustentáveis – é a melhor maneira de atingir a meta da "segurança alimentar". Só assim pode ser protegida a população, pelo menos parcialmente, das flutuações de preços no mercado mundial. Isto, evidentemente, implica também não retirar terras à produção alimentar para produzir cereais para os mercados dos biocombustíveis.
Uma das formas de fazer isto e, em simultâneo, de acabar com o problema de tanta gente amontoada nos bairros de barracas urbanos – as pessoas mais susceptíveis às subidas dos preços alimentares – é proporcionar terras através de reformas agrárias significativas. Mas a terra só por si não basta. O início do regresso de agricultores precisa de apoio técnico e financeiro para a produção de alimentos. Adicionalmente, é preciso desenvolver sistemas de apoio social, como cooperativas e conselhos comunitários, para ajudar a promover a camaradagem e a solidariedade nas novas comunidades que se forem desenvolvendo. Provavelmente cada comunidade precisará de ser "semeada" com alguns activistas dedicados. Também será necessário disponibilizar habitação, electricidade, água e esgotos para atrair as pessoas que vivem na cidade a mudarem-se para o campo. Uma outra forma de encorajar as pessoas a mudarem-se para o campo e passarem a ser agricultores é apelar ao patriotismo e difundir a ideia de que eles são verdadeiros pioneiros, instituindo um novo sistema alimentar para ajudar os seus países a conquistar uma auto-suficiência alimentar, i.e., a independência das empresas transnacionais agroindustriais e o abastecimento de alimentos saudáveis para toda a população do país. Estes agricultores pioneiros precisam de ser encarados por si mesmos, pelo resto da sociedade e pelo seu governo como imprescindíveis para o futuro dos seus países e para o bem-estar da população. Têm que ser tratados com o maior respeito que merecem.
Conclusão
A alimentação é um direito humano e os governos têm a responsabilidade de providenciar para que o seu povo seja bem alimentado. Além disso, há formas conhecidas para acabar com a fome – incluindo medidas de emergência para combater a atual situação crítica, jardins urbanos, reformas agrárias que incluam todo um sistema de apoio aos agricultores, e técnicas agrícolas sustentáveis que promovam a qualidade do ambiente. A atual disponibilidade de alimentos para as pessoas reflete relações de poder econômicas e políticas muito desiguais dentro e entre os países. Um sistema alimentar sustentável e seguro exige uma relação diferente e muito mais equitativa entre os povos. Quanto mais os pobres e os próprios agricultores forem incluídos em todos os aspectos dos esforços para conquistar a segurança alimentar, e quanto mais forem motivados para esse processo, tanto maior será a probabilidade de atingir uma segurança alimentar duradoura. Como afirmou o Presidente Hugo Chavez da Venezuela, um país que tanto tem feito para combater a pobreza e a fome:
Sim, é importante acabar com a pobreza, pôr fim à miséria, mas a coisa mais importante é dar o poder ao povo para que ele possa combater por si mesmo.
Sobre o autor
Fred Magdoff is professor emeritus of plant and soil science at the University of Vermont in Burlington and a director of the Monthly Review Foundation.
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