Terry Eagleton
Times Literary Supplement
Slavoj Žižek é menos um filósofo que um fenômeno. Filho de comunistas eslovacos, é o representante na Terra (por assim dizer) do falecido psicanalista francês Jacques Lacan, nos últimos 20 anos Žižek tem viajado o planeta como um rockstar intelectual, reunindo imensos fãs clubes por onde passa. Ele é provocante, extravagante e divertido. Ele foi tentado, nos disse, a sugerir para a “orelha” de um dos seus livros: “No seu tempo livre, Žižek gosta de navegar na internet buscando pornografia infantil e de ensinar ao seu filho pequeno como arrancar as pernas de uma aranha”. Ele foi o objeto de uma instalação chamada “Slavoj Žižek não existe”, atuou em dois filmes (Žižek! e The Pervert’s Guide to Cinema), e apareceu numa “orelha” deitado no divã de Sigmund Freud embaixo de uma imagem de uma genitália feminina. Seus cerca de quarenta livros, com títulos como O Sublime Objeto da Ideologia, O Assunto delicado, Aproveite o sintoma! e Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Lacan (Mas tinha medo de perguntar a Hitchcock), são colagens dessaranjadas de idéias, que vão de Kant à ciência da computação, de Santo Agostinho à Agatha Christie. Parece não haver nada neste mundo que não seja triturado pelo seu moinho intelectual. Uma digressão gera outra, até que o autor parece tão obscuro quanto o leitor sobre o que ele deveria estar discutindo. Além disso, e para o horror de todo resenhista, os livros de Žižek vêm engordando a cada ano. A Visão em Paralaxe (Boitempo, 2008), com quase 400 páginas densamente impressas, que vão da biopolítica à Robert Schumann, à neurociência e Henry James, surgiu há apenas dois anos, Em Defesa das Causas Perdidas é um livro que traz à tona Lênin e Heidegger, Cristo e Robespierre, Mao e ecologia, e é um calço de porta ainda mais pesado.
Slavoj Žižek é, assim, o grande exemplo europeu de um filósofo pós-moderno. Ele é um cruzamento entre guru e provocador, sábio e showman. Em estilo tipicamente pós-moderno, seus trabalhos saltam, insolentemente, sobre as fronteiras entre a alta cultura e a popular, desviando no meio de um Parágrafo de Kierkgaard para Mel Gibson. Formado filósofo em Liubliana e em Paris, ele é cinéfilo, teórico da psicanálise, teólogo amador e analista político. É membro do Círculo Lacaniano de Liubliana, uma associação tão improvável como uma de Hegelianos de Huddersfield. Quando trata de política, ele revela os meandros de Rousseau ou Carl Schmitt assim como quando fala jornalisticamente dos distúrbios de Paris, da Guerra ao Terror, ou da relação da Turquia com a União Européia. Ele próprio foi um político em sua Eslovênia natal e a sombra do conflito iugoslavo se abateu sobre seus comentários mordazes a respeito da guerra, o racismo, o nacionalismo e os conflitos étnicos.
Mas se seus livros são pós-modernos no método, são, entretanto, lúcidos no estilo. A este respeito, ele é uma espécie de constrangimento àqueles que acreditam que os filósofos continentais sofrem de dislexia [Word-disorder]. A escrita de Žižek é nítida e facilmente consumida. Ludwig Wittgenstein uma vez disse que gostaria de escrever um livro de filosofia só de piadas; e embora haja muito mais em Žižek que histórias engraçadas, a anedota cômica é uma das suas mais finas escritas. Ele vêm de uma boa linhagem de humor cínico do leste europeu, como quando afirmou que a diferença entre a União Soviética e a um-pouco-mais-reformista Iugoslávia é que, enquanto na União Soviética as pessoas caminhavam a pé enquanto seus representantes dirigiam carros, na Iugoslávia as próprias pessoas dirigiam seus carros por meio de seus representantes políticos. Ele nos conta, com um prazer macabro, que muito da legislação que especifica o que é um segredo de estado na China é, ela mesma, classificada como segredo de estado. Para ilustrar a interação entre presença e ausência, ele conta, em outro de seus livros, a história de uma guia que conduzia um grupo de visitantes por uma galeria de arte do leste europeu durante a era soviética e parou diante de um quadro chamado “Lênin em Varsóvia”. Não havia nenhum sinal de Lênin no quadro; ao invés disso ele retrata a esposa de Lênin na cama com um belo e jovem membro do Comitê Central. "Mas onde está Lênin?", perguntou uma perplexa e absorta pessoa, ao que o guia responde grosseiramente: “Lênin está em Varsóvia”.
Há duas piadas em particular, que são, por assim dizer, sobre o leitor Žižekiano. A primeira me referirei brevemente: Žižek parece uma leitura divertida e, em muitos aspectos, é mesmo; mas ele também é um pensador extremamente extenuante criado nas altas tradições da filosofia européia. A segunda é que Zizek não é um pós-modernista em hipótese nenhuma. Na verdade, ele é visceralmente hostil a toda essa corrente de pensamento, como este último livro ilustra. Se ele rouba um pouco da roupagem pós-modernista, ele tem pouco menos que um desprezo pelo multiculturalismo deles, pelo anti-universalismo, pelo dandismo teórico e pela modernosa obsessão com a cultura.Defesa das Causas Perdidas está aí pra desafiar a sabedoria convencional do fim das ideologias; que as grandes narrativas estão se arrastando, quase parando; que a época da grandes explicações acabou, e que a ideia de emancipação global está tão morta na água, como o antigo proprietário do Daily Mirror.
Žižek é extremamente sério com estas questões embora haja um elemento típico de contrariedade sobre isso também. Ele começou sua carreira editorial como uma espécie de pós-marxista, e agora voltou seu caminho para o marxismo. Esta é uma maldição que marca sua sensibilidade como um todo, erigida maliciosamente. Paradoxo para Žižek é o equivalente estilístico do pensamento dialético. E nada pode ser mais paradoxal que subir no navio revolucionário no exato momento em que ele foi furado no casco. Enquanto ele próprio se torna mais e mais em voga, sua política se torna menos. Ele tem apenas que farejar uma ortodoxia que sente um comichão em se me intrometer; então se é o marxismo que agora está fora de moda, há uma lógica perversa no fato de ele ter que voltar a este tão assertivamente. Neste livro, como em muitos anteriores, ele abraça o se pode chamar de técnicas pós-modernas (ironia, paradoxo, pensamento lateral, multiplicidade, e até mesmo, às vezes, uma certa dissimulação descarada) a serviço de posições completamente tradicionais.
O caso conscientemente ultrajante que este livro tem que discutir é se existe um momento “redentor” a ser arrancado de empreendimentos revolucionários fracassados como o Jacobinismo, Leninismo, Stalinismo e Maoismo. Žižek não é , de maneira nenhuma, um defensor do terror político. O Mao que ele nos apresenta aqui é, por exemplo, o assassino em massa que ponderou que “metade da China deve morrer” no Grande Salto para Frente, e que comentou que, apesar de uma guerra nuclear poder abrir um buraco no planeta, ela deixaria o cosmos praticamente intocado. Seu objetivo não é justificar tais demências, mas tornar as coisas mais difíceis para a recusa delas pelo típico liberal classe-média. Na busca de tais objetivos, o livro no traz uma riqueza em insights filosóficos e políticos; entretanto não fica claro se estes validam a tese central do livro.
Vejamos, por exemplo, sua “defesa” da adesão de Heidegger ao nazismo na década de 1930, e da defesa, cerca de quarenta anos depois, do apoio de Foucault à Revolução Iraniana. Ambas adesões Žižek vê como profundamente condenáveis; mas na sua opinião eram, ao menos, compromissos com a necessidade de mudança revolucionária, mesmo que Heidegger e Foucault tenham apostado nos cavalos errados. Por trás deste caso está a dívida que tem Žižek a Alain Badiou, um dos principais filósofos franceses, a quem o livro presta algumas simpáticas críticas. Para Badiou, a vida boa, ética e politicamente, consiste num apego obstinado a algum “Evento” que explode inesperadamente na cena histórica, transforma as coordenadas da realidade humana remodelando, dos pés à cabeça, os homens e mulheres que se mantêm fiéis a ele. Um dos exemplos deste “evento” do ateu Badiou é a vida e a morte de Cristo.
Há um certo grau de formalismo gaulês nesta noção. Como no existencialismo, o conteúdo exato do evento redentor, ao contrário do fato miraculoso da sua ocorrência,nem sempre é o principal ponto em jogo. Žižek concorda com Badiou que é melhor se apegar desastrosamente a tal revelação da verdade que ficar indiferente a ela, o que certamente não é o caso. Não há nada admirável na fidelidade para o seu próprio bem. A indiferença não é o mais hediondo dos crimes. O pensamento radical francês frequentemente contrasta algum momento privilegiado da verdade e a inautenticidade bovina do cotidiano, e Badiou não é uma exceção. Existe um elitismo espiritual nesta ética que é difícil conciliar com as sugestivas reflexões deste livro sobre a ideia de democracia.
A essência da vida ética para Žižek, Badiou e Lacan é a recusa em recuar, mantendo-se obstinadamente fiel ao seu desejo. Apenas forçando seu desejo até o fim, como nos protagonistas das tragédias, alguém pode florescer. O grande ícone de Lacan é, assim, Antígona, que se recusa a aceitar meios-termo [settle for half]. Há algo de perigoso e de atrativo em tal ética; mas neste livro, é uma visão que permite Žižek defender a idéia de revolução e rejeitar o terror revolucionário. Sobre Robespierre e Stalin, diz Žižek, não é que eles não foram extremados demais, mas que não foram revolucionários o suficiente – se tivessem sido, o terror político não teria sido necessário. O terror jacobino, por exemplo, é visto como um tanto implausível como o testemunho da inabilidade do grupo em realizar uma transformação tanto econômica como também política. Algo similar e dito sobre a Revolução Cultural de Mao.
Mas se seus livros são pós-modernos no método, são, entretanto, lúcidos no estilo. A este respeito, ele é uma espécie de constrangimento àqueles que acreditam que os filósofos continentais sofrem de dislexia [Word-disorder]. A escrita de Žižek é nítida e facilmente consumida. Ludwig Wittgenstein uma vez disse que gostaria de escrever um livro de filosofia só de piadas; e embora haja muito mais em Žižek que histórias engraçadas, a anedota cômica é uma das suas mais finas escritas. Ele vêm de uma boa linhagem de humor cínico do leste europeu, como quando afirmou que a diferença entre a União Soviética e a um-pouco-mais-reformista Iugoslávia é que, enquanto na União Soviética as pessoas caminhavam a pé enquanto seus representantes dirigiam carros, na Iugoslávia as próprias pessoas dirigiam seus carros por meio de seus representantes políticos. Ele nos conta, com um prazer macabro, que muito da legislação que especifica o que é um segredo de estado na China é, ela mesma, classificada como segredo de estado. Para ilustrar a interação entre presença e ausência, ele conta, em outro de seus livros, a história de uma guia que conduzia um grupo de visitantes por uma galeria de arte do leste europeu durante a era soviética e parou diante de um quadro chamado “Lênin em Varsóvia”. Não havia nenhum sinal de Lênin no quadro; ao invés disso ele retrata a esposa de Lênin na cama com um belo e jovem membro do Comitê Central. "Mas onde está Lênin?", perguntou uma perplexa e absorta pessoa, ao que o guia responde grosseiramente: “Lênin está em Varsóvia”.
Há duas piadas em particular, que são, por assim dizer, sobre o leitor Žižekiano. A primeira me referirei brevemente: Žižek parece uma leitura divertida e, em muitos aspectos, é mesmo; mas ele também é um pensador extremamente extenuante criado nas altas tradições da filosofia européia. A segunda é que Zizek não é um pós-modernista em hipótese nenhuma. Na verdade, ele é visceralmente hostil a toda essa corrente de pensamento, como este último livro ilustra. Se ele rouba um pouco da roupagem pós-modernista, ele tem pouco menos que um desprezo pelo multiculturalismo deles, pelo anti-universalismo, pelo dandismo teórico e pela modernosa obsessão com a cultura.Defesa das Causas Perdidas está aí pra desafiar a sabedoria convencional do fim das ideologias; que as grandes narrativas estão se arrastando, quase parando; que a época da grandes explicações acabou, e que a ideia de emancipação global está tão morta na água, como o antigo proprietário do Daily Mirror.
Žižek é extremamente sério com estas questões embora haja um elemento típico de contrariedade sobre isso também. Ele começou sua carreira editorial como uma espécie de pós-marxista, e agora voltou seu caminho para o marxismo. Esta é uma maldição que marca sua sensibilidade como um todo, erigida maliciosamente. Paradoxo para Žižek é o equivalente estilístico do pensamento dialético. E nada pode ser mais paradoxal que subir no navio revolucionário no exato momento em que ele foi furado no casco. Enquanto ele próprio se torna mais e mais em voga, sua política se torna menos. Ele tem apenas que farejar uma ortodoxia que sente um comichão em se me intrometer; então se é o marxismo que agora está fora de moda, há uma lógica perversa no fato de ele ter que voltar a este tão assertivamente. Neste livro, como em muitos anteriores, ele abraça o se pode chamar de técnicas pós-modernas (ironia, paradoxo, pensamento lateral, multiplicidade, e até mesmo, às vezes, uma certa dissimulação descarada) a serviço de posições completamente tradicionais.
O caso conscientemente ultrajante que este livro tem que discutir é se existe um momento “redentor” a ser arrancado de empreendimentos revolucionários fracassados como o Jacobinismo, Leninismo, Stalinismo e Maoismo. Žižek não é , de maneira nenhuma, um defensor do terror político. O Mao que ele nos apresenta aqui é, por exemplo, o assassino em massa que ponderou que “metade da China deve morrer” no Grande Salto para Frente, e que comentou que, apesar de uma guerra nuclear poder abrir um buraco no planeta, ela deixaria o cosmos praticamente intocado. Seu objetivo não é justificar tais demências, mas tornar as coisas mais difíceis para a recusa delas pelo típico liberal classe-média. Na busca de tais objetivos, o livro no traz uma riqueza em insights filosóficos e políticos; entretanto não fica claro se estes validam a tese central do livro.
Vejamos, por exemplo, sua “defesa” da adesão de Heidegger ao nazismo na década de 1930, e da defesa, cerca de quarenta anos depois, do apoio de Foucault à Revolução Iraniana. Ambas adesões Žižek vê como profundamente condenáveis; mas na sua opinião eram, ao menos, compromissos com a necessidade de mudança revolucionária, mesmo que Heidegger e Foucault tenham apostado nos cavalos errados. Por trás deste caso está a dívida que tem Žižek a Alain Badiou, um dos principais filósofos franceses, a quem o livro presta algumas simpáticas críticas. Para Badiou, a vida boa, ética e politicamente, consiste num apego obstinado a algum “Evento” que explode inesperadamente na cena histórica, transforma as coordenadas da realidade humana remodelando, dos pés à cabeça, os homens e mulheres que se mantêm fiéis a ele. Um dos exemplos deste “evento” do ateu Badiou é a vida e a morte de Cristo.
Há um certo grau de formalismo gaulês nesta noção. Como no existencialismo, o conteúdo exato do evento redentor, ao contrário do fato miraculoso da sua ocorrência,nem sempre é o principal ponto em jogo. Žižek concorda com Badiou que é melhor se apegar desastrosamente a tal revelação da verdade que ficar indiferente a ela, o que certamente não é o caso. Não há nada admirável na fidelidade para o seu próprio bem. A indiferença não é o mais hediondo dos crimes. O pensamento radical francês frequentemente contrasta algum momento privilegiado da verdade e a inautenticidade bovina do cotidiano, e Badiou não é uma exceção. Existe um elitismo espiritual nesta ética que é difícil conciliar com as sugestivas reflexões deste livro sobre a ideia de democracia.
A essência da vida ética para Žižek, Badiou e Lacan é a recusa em recuar, mantendo-se obstinadamente fiel ao seu desejo. Apenas forçando seu desejo até o fim, como nos protagonistas das tragédias, alguém pode florescer. O grande ícone de Lacan é, assim, Antígona, que se recusa a aceitar meios-termo [settle for half]. Há algo de perigoso e de atrativo em tal ética; mas neste livro, é uma visão que permite Žižek defender a idéia de revolução e rejeitar o terror revolucionário. Sobre Robespierre e Stalin, diz Žižek, não é que eles não foram extremados demais, mas que não foram revolucionários o suficiente – se tivessem sido, o terror político não teria sido necessário. O terror jacobino, por exemplo, é visto como um tanto implausível como o testemunho da inabilidade do grupo em realizar uma transformação tanto econômica como também política. Algo similar e dito sobre a Revolução Cultural de Mao.
Não é o núcleo de sua tese central que faz deste livro tão interessante, mas as torres laterais. Slavoj Žižek, como de costume, parece satisfatoriamente incapaz de lembrar o caso que vinha debatendo, e faz umas esplêndidas digressões, incluindo uma narrativa da mudança do papel do scherzo em Shostakovich, discorrer sobre o poema “Ode a Alegria” de Schiller, e reflexões sobre as obras perdidas de Einsenstein. Em Defesa das Causa Perdidas é um livro frenético, uma eclética parodia da erudição intelectual, por alguém tão seguro de sua capacidade em perceber as sutilezas de Kafka ou John Le Carré que pode exagerar um pouco.
Terry Eagleton é Distinguished Visiting Professor em inglês na Lancaster University. Seu último livro é Humour, publicado este ano.
Terry Eagleton é Distinguished Visiting Professor em inglês na Lancaster University. Seu último livro é Humour, publicado este ano.
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