30 de setembro de 2022

A inocência de Lula

É tão inocente como todos os brasileiros que não têm contra si sentença condenatória válida

Belisário dos Santos Jr.
Advogado, é membro da Comissão Internacional de Juristas

Guilherme Amorim Campos da Silva
Advogado, é doutor em direito do Estado (PUC-SP)

Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, membro fundador da Comissão Arns de Direitos Humanos e do Conselho da Conectas Direitos Humanos



A Constituição Federal estabelece no artigo 5º, LVII que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Trata-se de norma jurídica constitucional que irradia comando que deve determinar o agir de todo o aparato policial e Judiciário no país. O Supremo Tribunal Federal, depois de idas e vindas, deu interpretação literal à norma. Sentença penal condenatória é aquela de que não pende qualquer recurso.

O afastamento da presunção da inocência só virá, no âmbito da ação penal, com a apresentação dos elementos de culpabilidade do acusado, todos preordenados, previamente conhecidos de todas as partes e necessariamente em processo conduzido por autoridade judiciária isenta, imparcial e competente. E ainda assim só após a ausência de possibilidade de recurso.

O processo penal busca estabelecer a verdade aproximada sobre os fatos, dentro das regras democráticas e constitucionais. Somente após esse procedimento legal é que se pode afirmar a culpa de alguém pela prática de atos tipificados como crimes. A busca da verdade dos fatos sem atendimento às regras do Estado democrático de Direito é simples perseguição e não leva a resultado hígido. Os fins não justificam os meios, ainda mais se os meios em si são ilegais.

Muito se tem questionado sobre a inocência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), chegando-se a afirmar que todas as provas demonstravam sua culpa, julgado que foi por três instâncias, ainda que sem trânsito em julgado.

Não é verdade. O ex-presidente Lula é inocente. E isto por uma razão muito simples —e nem por isso menos jurídica. Como todos os processos a que respondeu foram anulados pelo STF, tendo-se em vista a incompetência absoluta do Foro de Curitiba e a revelação da parcialidade do juiz, as provas produzidas foram consideradas nulas e todo o resultado dos processos comprometido. Diz-se daí, portanto, que as provas produzidas são imprestáveis, comprometida a busca da verdade dos fatos, princípio básico de qualquer processo penal que queira buscar resultado válido e regular.

Outra, aliás, não poderia ser a conclusão do ministro Gilmar Mendes, do STF, em decisão proferida na medida cautelar na reclamação 56.018, concedida ao próprio ex-presidente Lula, que se insurgiu contra a cobrança de créditos tributários pela Procuradoria da Fazenda Nacional com provas obtidas pela Operação Lava Jato. Nessa decisão, afirmou-se com todas as letras: "Ante a ausência de sentença condenatória penal, qualquer cidadão conserva, sim, o estado de inocência. "

Assim, Lula é tão inocente como todos os brasileiros que não têm contra si sentença condenatória válida.

A inocência de Lula é a prova do restabelecimento do Estado democrático de Direito, esbulhado pela Operação Lava Jato e pela república paralela que se instalou em Curitiba, reprovadas pela autoridade do Supremo Tribunal Federal.

Economia virou muleta no debate entre presidenciáveis

Candidatos jogaram números ao vento enquanto se forma a tempestade

Alexa Salomão

Folha de S.Paulo

Os candidatos a presidência em debate na Globo. Ricardo Moraes/Reuters

Aqui e ali, se falou um pouco de saúde, costumes e malefícios da esquerda, mas as perguntas no último debate dos presidenciáveis neste 2022 antes do primeiro turno ficaram concentradas em duas grandes temáticas: ofensas pessoais e economia, sempre misturadas com acusações de corrupção.

À exceção do Padre Kelmon (PTB), que precisava ler a cola de perguntas básicas, os candidatos demonstraram que tinham estudado os números, sabiam os dados, mas trocaram a oportunidade do debate astuto da boa política pelo ringue da luta livre na lama intelectual.

Sempre é possível dizer que a toada belicosa do presidente Jair Bolsonaro (PL) insuflou os adversários. Mas não é verdade nesse caso. Todos tinham espíritos armados.

O eleitor foi submetido ao espetáculo de troca de acusações misturadas a expressões soltas sobre a importância de cadeias globais de valor, teto, calibragem dos juros, responsabilidade fiscal, controle do gasto público.

E daí se o PIB está para cima, a inflação para baixo e o orçamento secreto encosta em R$ 40 bilhões? Qual o significado de transferir R$ 4 trilhões para os bancos, R$ 350 bilhões para os pobres e devolver R$ 16 bilhões da roubalheira na Petrobras? Tudo assim, junto e misturado?

Foram números ao vento enquanto se forma a tempestade.

A recuperação interna emite sinais dúbios. Cresce o emprego. Cai o salário. Faltam medicamentos no SUS. Os estudantes estão abandonando as escolas. A inflação cede nos preços administrados, com a canetada do governo, mas segue pressionando os alimentos. O ano de 2023 não será fácil para o eleito, seja quem for.

Lá fora, o risco de recessão nas principais economias entrou no radar das maiores instituições financeiras. A China cresce menos e endurece o discurso político com os Estados Unidos. A tensão escala na Europa, com a Rússia avançando suas fronteiras sobre o território da Ucrânia. Winter is coming ao norte, e tudo indica que vai faltar gás nos aquecedores do velho continente.

Enquanto isso, os principais candidatos à presidência no Brasil passam mais de três horas investindo na polarização para arregimentar os últimos votos. A economia foi mera muleta para mascarar a intenção real —nocautear a moral do oponente e atordoar a percepção do leitor.

A proposta dos marqueteiros, ao que tudo indica, é levar o coração e o fígado do eleitor para as urnas, não suas mentes. É o Brasil que temos para hoje.

29 de setembro de 2022

A escolha continua tão fácil quanto em 2016 e 2018

Desejo apenas que a atual frente ampla contra o fascismo seja eterna enquanto dure

Nelson Barbosa


Lula e Bolsonaro - Marlene Bergamo/Folhapress e Adriano Machado/Reuters

Chegou a hora de começarmos a sair do buraco em que nos enfiamos no golpe parlamentar de 2016 e cavamos mais fundo na eleição censurada de 2018.

Assim como naqueles anos, a escolha política de 2022 continua muito fácil. A diferença é que agora a maioria dos formadores de opinião percebeu o óbvio: a demofobia de nossas elites tende ao autoritarismo, com risco de cairmos em um regime quase fascista.

Na economia, depois do fracasso do projeto tucano de Temer, ficou difícil defender mais uma vez que o povo precisa esperar reformas, reformas e reformas, que não acabam nunca, antes de melhorar de vida.

Reformas são necessárias, e meus leitores sabem que já defendi várias delas neste espaço. Porém, para quem tem fome e não tem emprego, não é possível esperar para sempre até que o projeto de neoliberais de jardim de infância dê certo.

No Brasil real, um governo para todos deve combinar reformas com medidas imediatas de geração de emprego, erradicação da pobreza e redução da desigualdade.

Na política, depois da revelação de que a Operação Lava Jato foi um movimento político contra a esquerda, ficou difícil dizer que o principal problema do país é a corrupção, bem como que corrupção só existe em um lado do espectro político.

Até agora, poucos luminares ex-lava-jatistas fizeram autocrítica de sua contribuição para surto udenista que ressuscitou o quase fascismo no Brasil, mas a parcialidade de nossa Justiça e mídia está registrada para a história.

As futuras gerações saberão quem fez o que e quando na "década perdida" de 2013-22, bem como quem defendeu a democracia e o bom senso mesmo quando isso não era moda.

Depois da tragédia do desgoverno Bolsonaro na economia, na saúde, na educação, no ambiente e em tantas outras áreas, ninguém mais acha graça em "fazer arminha". Dentre as funções do presidente da República, também está dar exemplo de comportamento. Nunca tivemos um mal exemplo tão grande como Bolsonaro.

Fanfarronice, apologia de armas, incitação à violência, estímulo ao desmatamento, desrespeito a minorias, desrespeito também a maiorias, sobretudo às mulheres, nepotismo, rachadinhas em série, orçamento secreto, sigilo de cem anos, ataques recorrentes à democracia, humilhação do Brasil em escala mundial e, para fechar o pacote, descaso com o sofrimento de milhares de famílias que perderam entes queridos durante a pandemia.

Nossa distopia bolsonarista com certeza será objeto de longos estudos, no Brasil e no mundo, para que ela nunca mais se repita. Digo isso sabendo perfeitamente que a eventual derrota de Bolsonaro não acabará com o bolsonarismo, como também sei que o atual surto de bom senso de ex-lava-jatistas não durará para sempre.

Como a história se move como um pêndulo, desejo apenas que a atual frente ampla contra o fascismo seja eterna enquanto dure, digamos, por pelo menos quatro anos, sob o comando de Lula e Alckmin.

Por fim, até as esquinas de Brasília sabem que voto no PT desde 1989, quando voltamos a ter eleições para presidente. No domingo (2) farei a mesma coisa, votando 13 em Lula e em candidatos progressistas para os demais cargos, pois a eleição não é só para presidente.

É importante votar em governadores, senadores e deputados comprometidos com um "Brasil de todos". Como identificar essas pessoas? Sugiro três critérios. Foi contra a o afastamento de Dilma em 2016? Foi contra a prisão de Lula em 2018? Apoia Lula hoje? Se a pessoa marcou sim três vezes, ela merece o seu voto.

Boa eleição para todos e evitem cair em provocação de bolsonarista maluco.

Alvo de Lula encolhe, e decisão sobre 1º turno deve ficar para urna

Com eleitores de Ciro e Simone mais convictos, apelos petistas atingem eleitorado menor

Bruno Boghossian


Os candidatos à Presidência Lula, Bolsonaro, Ciro e Simone Tebet - Marlene Bergam e Pedro Ladeira/Folhapress, Ney Xavier e Roberto Castello
 
Se a campanha de Lula (PT) projetava uma migração em massa de eleitores para fechar a fatura no primeiro turno, os petistas terão que esperar. Os números do Datafolha indicam que a fatia de votos disponíveis ficou mais magra, e a decisão final pode vir só diante da urna.

Chave para uma vitória do ex-presidente no domingo (2), apoiadores de Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) vêm resistindo às investidas pelo voto útil e aumentaram gradualmente sua conexão com a dupla.

Desde o início de setembro, cresceu a decisão de voto dos apoiadores de Ciro e Simone. No caso do pedetista, o percentual de eleitores que se dizem totalmente decididos a votar nele passou de 42% para 54%. Entre os apoiadores da emedebista, o índice foi de 51% para 62%.

Esses dados mostram que o tamanho do alvo de Lula diminuiu. Se o petista continua atrás dos eleitores de Ciro e Simone que ainda podem mudar de voto, sua campanha conseguirá falar com menos de 5% do total do eleitorado.

O petista já alcançou um percentual de votos válidos que favorece a ideia de encerrar a eleição no domingo, mas seus aliados esperavam chegar ao fim de semana com alguma gordura nesses índices.

Além de não representarem uma garantia, devido às bandas da margem de erro, esses 50% também podem ser insuficientes se os padrões de abstenção se repetirem no dia da votação. Tradicionalmente, o comparecimento é menor entre eleitores com baixa escolaridade, hoje mais alinhados ao PT.

Os dias finais de campanha criam uma incerteza paradoxal, uma vez que a maior dúvida é provocada pela estabilidade dos números.

As variações registradas na última semana ainda não permitem enxergar sinais de um fluxo significativo de eleitores às vésperas do primeiro turno. As principais mudanças se deram em segmentos que já tinham se mostrado voláteis desde o início da corrida.

A alteração mais marcante foi registrada entre os jovens. Em pesquisas anteriores, Lula chegou a ganhar oito pontos entre os eleitores de 16 a 24 anos, enquanto Jair Bolsonaro (PL) perdeu os mesmos oito pontos. Agora, o petista perdeu cinco, e o presidente ganhou sete.

No Sul, os índices de intenção de voto também vinham flutuando desde agosto, apontando para um empate técnico entre os dois líderes. Na nova pesquisa, Bolsonaro subiu seis pontos na região, abrindo uma vantagem numérica no limite da margem de erro (45% a 40%).

Nenhuma dessas mexidas foi suficiente para afetar os números gerais da corrida, uma vez que variações em outros grupos anularam os movimentos. A campanha continua produzindo efeitos sob a superfície, ainda que tenha mostrado baixa capacidade de mudar o rumo da eleição.

O cenário pode frustrar apoiadores de Lula no primeiro turno, mas desenham uma virada praticamente impossível para Bolsonaro no segundo.

A pior notícia para o presidente a esta altura é a manutenção de seus índices de rejeição em 52%. Essa taxa já freou seu crescimento no primeiro turno, mas também será carregada para um eventual segundo turno –favorecendo seu rival.

A única saída para Bolsonaro seria aumentar a rejeição a Lula, reativando o antipetismo que o impulsionou em 2018. Os ataques do presidente, no entanto, não se mostraram suficientes até aqui para que esse índice passasse da marca de 40%.

A principal dificuldade de Bolsonaro é o fato de que sua campanha não conseguiu potência para sustentar uma recuperação de votos em grupos do eleitorado considerados mais permeáveis a sua candidatura.

O quadro apresentado pelo Datafolha ao longo dos últimos meses mostra que o presidente só conseguiu continuar no jogo porque investiu na recuperação de eleitores que votaram nele em 2018 –mas esse retorno não foi suficiente.

Desde o lançamento da candidatura à reeleição, em julho, o presidente ganhou dez pontos nesse grupo. Àquela altura, 56% dos eleitores que haviam votado nele na última disputa se diziam dispostos a repetir a dose. Agora, esse índice chegou a 66%.

Naquele evento inaugural da campanha, Bolsonaro fez um discurso direcionado a sua base fiel, com ênfase em notas ligadas à pauta moral e um reforço da retórica de enfrentamento às instituições.

Com a jogada, o presidente ignorou alertas de que aquela plataforma soaria bem a eleitores simpáticos, mas poderia dificultar um crescimento fora daqueles limites. De fato, o máximo que ele obteve foi um tanque extra de oxigênio.

De julho para cá, o presidente subiu de 29% para 34% em votos totais no primeiro turno, segundo o Datafolha. Boa parte desse crescimento se deve àqueles dez pontos extras que sua candidatura ganhou entre antigos bolsonaristas.

Entre esses eleitores decepcionados, havia homens e mulheres, pobres e ricos. Mas poucos segmentos deram tanto impulso a essa recuperação como a classe média (34% para 43% em votos totais), o Sudeste (de 28% para 35%) e os evangélicos (43% para 50%).

Foram ganhos significativos em faixas numerosas do eleitorado, mas a alta de Bolsonaro perdeu ritmo desde o início de setembro.

A causa mais provável é a cristalização da rejeição ao presidente. Esse indicador parece ter ampliado a distância entre o presidente e antigos eleitores, criando um terreno acidentado para a retomada de votos até em segmentos que ele tratava como redutos de fácil acesso. Vencer a disputa sem o apoio desses grupos será praticamente impossível.

Rússia anuncia maior anexação na Europa desde a Segunda Guerra

Putin assinará absorção de 15% da Ucrânia na sexta, colocando OTAN num "momento 1938"

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

Moradora de Izium, cidade de Kharkiv que foi retomada pelos ucranianos, passa por prédio destruído - Serguei Bobok - 28.set.2022/AFP

O Kremlin confirmou que o presidente Vladimir Putin assinará nesta sexta (30) a anexação de quatro regiões que ocupa parcialmente na Ucrânia, equivalentes a 15% do território do vizinho invadido há sete meses.

A cerimônia ocorrerá em Moscou às 15h (9h em Brasília), e a praça Vermelha já está guarnecida de telões e faixas alusivas ao evento. É a maior absorção de território por força na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, e a primeira no continente desde que Turquia invadiu o norte de Chipre em 1974.

Serão incorporados à Rússia, após referendos organizados de forma quase emergencial pelas autoridades de ocupação, as duas autoproclamadas repúblicas do Donbass (Donetsk e Lugansk, no leste) e as províncias de Zaporíjia e Kherson (sul ucraniano). É uma área do tamanho de Portugal ou Santa Catarina.

Assim como na anexação pacífica da Crimeia em 2014, quando Putin mutilou o vizinho e estimulou a guerra civil no Donbass para evitar que o governo que derrubou seu aliado da presidência em Kiev se unisse às estruturas ocidentais, não haverá reconhecimento internacional salvo o de alguns poucos aliados laterais de Moscou (seis países e quatro encraves autônomos russos).

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, afirmou que não irá cessar os combates até reaver todo seu território. Foi apoiado pelos EUA e seus aliados na Otan (aliança militar ocidental). Novas sanções contra a Rússia estão sendo preparadas.

Do lado de Putin, ainda que sem reconhecer algo que a ONU não aprovará, está principalmente a China —uma grande porção do mundo, Índia e Brasil inclusos, condenam a guerra mas não apoiam o isolamento de Moscou para continuar a fazer negócios com os russos.

A anexação e a mobilização de pelo menos 300 mil reservistas, recebida com grande revolta na Rússia, constituem a mais aguda guinada de Putin na guerra. Na quarta (28), o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, anunciou uma meta mínima para a Rússia pela primeira vez: completar a conquista de Donetsk, que tem cerca de 40% de território ainda em mãos de Kiev.

Isso explicita tanto um mapa para o fim do conflito como os problemas de Putin: o fracasso em derrubar Zelenski com um golpe decapitador de regime no começo da guerra e as perdas de áreas ocupadas em Kharkiv (nordeste) no começo deste mês, muito por falta de tropa suficiente.

Agora, o presidente russo está anexando áreas que não estão totalmente sob seu controle, principalmente em Donetsk —as outras estão quase todas sob jugo de suas forças. A esperança de Moscou é criar um fato consumado, como na Crimeia, que também não tem reconhecimento da ONU mas é tratada como a área histórica russa que sempre foi.

É mais difícil. Enquanto no Donbass os separatistas pró-Rússia já controlavam boa parte da região desde 2014, no sul o que houve foi uma conquista "manu militari" que a Europa não via desde os anos 1930 e 1940 nessa escala. São áreas russófonas, mas muito mais heterogêneas do ponto de vista linguístico do que a Crimeia e o extremo leste do Donbass.

Seja como for, Putin prosseguiu, seja para achar um fim para sua guerra, seja para prolongá-la indefinidamente com o novo status e os reforços que lentamente chegarão de sua impopular mobilização. Os combates seguem em pontos diversos da frente de 1.000 km entre os países, e Zelenski disse que haveria uma "resposta dura" à anexação.

Com o que os nacionalistas chamavam de Nova Rússia estabelecida, ligando o Donbass à Crimeia por terra, o presidente agora usa seu poderio nuclear para ameaçar o Ocidente e Kiev: pela doutrina de Moscou, qualquer ataque, mesmo convencional, que for percebido como risco existencial para o Estado pode ser respondido com fogo atômico.

Enquanto muitos analistas veem nisso um blefe, é crescente a ideia de que Putin poderia empregar um artefato tático, de baixa potência, como alerta. Isso teria consequências imprevisíveis, dado o risco de escalada.

"MOMENTO 1938"

Na prática, Putin pode ter criado um "momento 1938" para a Otan. Naquele ano, Adolf Hitler exigiu a anexação de áreas alemãs étnicas da então Tchecoslováquia, os Sudetos, sugerindo que pararia sua expansão ali. A Europa aquiesceu e evitou a guerra, mas o ditador nazista não parou, levando ao conflito mundial no ano seguinte.

Obviamente, Putin não é Hitler e o contexto mundial é outro: uma guerra com a Otan destruiria a Rússia e o mundo como conhecemos, para começar. Mas uma eventual proposta do Kremlin de congelar o conflito após ter comido 22% do vizinho, contando aí os 7% representados pela Crimeia, colocaria um dilema moral não muito diferente na mesa.

As anexações, afinal, inviabilizam a Ucrânia como Estado, presumido objetivo inicial de Putin, que não queria ver a Otan e a União Europeia em sua maior fronteira. É possível argumentar que ele conseguiu isso indiretamente, com o Ocidente armando Kiev e diretamente com a entrada da Finlândia no clube militar.

De fato, contudo, a integração ucraniana com o arcabouço ocidental fica travada. Os blocos europeus são refratários a membros com questões territoriais.

O russo usa em seu favor não só a pressão nuclear, mas principalmente a energética. A chegada do inverno europeu está acompanhada da redução do fornecimento de gás russo para o continente, uma aposta no desgaste dos governos ante suas populações, afetadas pela inflação em alta e eventuais racionamentos. Isso pode, nas contas russas, enfraquecer o apoio a Kiev.

Na Rússia, a mobilização segue com incidentes diários, mas menos protestos do que há uma semana, quando foi anunciada. Nesta quinta (29), o governo da Finlândia anunciou o fechamento da última fronteira da União Europeia aberta a russos, dizendo que os 17 mil vizinhos que entraram em seu território para fugir do alistamento são um risco de segurança.

28 de setembro de 2022

Rússia sugere objetivo mínimo para encerrar Guerra da Ucrânia

Kremlin afirma que conflito dura pelo menos até a conquista de Donetsk, no leste

Igor Gielow


Telões são colocados na praça Vermelha com a frase 'Donetsk, Lugansk, Zaporíjia, Kherson - Rússia!", sugerindo um evento para comemorar a anexação - Ievguênia Novojenina/Reuters

A estratégia de saída de Vladimir Putin para a Guerra da Ucrânia ganhou contornos mais definidos nesta quarta-feira (28), quando o Kremlin afirmou que o conflito irá durar "no mínimo até a liberação da República Popular de Donetsk".

A frase foi do porta-voz Dmitri Peskov, na sua conferência telefônica usual com repórteres que cobrem o dia a dia do governo russo. É a primeira vez que uma meta da guerra iniciada em 24 de fevereiro foi colocada de forma tão objetiva.

Telões são colocados na praça Vermelha com a frase 'Donetsk, Lugansk, Zaporíjia, Kherson - Rússia!", sugerindo um evento para comemorar a anexação - Ievguênia Novojenina/Reuters

A autoproclamada república é uma das duas províncias ucranianas que compõem o Donbass, a bacia do rio Don, uma região de maioria russófona que estava parcialmente sob controle de separatistas pró-Kremlin desde a guerra civil que seguiu a anexação da Crimeia por Putin, em 2014.

Seu reconhecimento e o de sua irmã, Lugansk, foi um dos pretextos para a invasão —elas pediram ajuda de Moscou contra Kiev, assim como agora seus dois líderes estão em Moscou para finalizar a anexação formal das áreas à Rússia, numa espécie de fecho de ciclo.

Denis Puchilin, de Donetsk, e Leonid Psetchnik, de Lugansk, voaram à capital russa após os referendos nas duas regiões encerrados na terça (27). Assim como ocorreu nas áreas sulistas de Kherson e Zaporíjia de forma ainda mais suspeita por se tratar de regiões recém-ocupadas, uma maioria quase unânime votou a favor de ingressar na Rússia naquilo que foi descrito como uma farsa em Kiev e no Ocidente.

Psetchnik foi ao Telegram pedir a Putin que "considere a questão", no que foi seguido pelos demais líderes locais —mais um passo de um balé coreografado que deve ter o próximo passo com a fala do presidente ao Parlamento na sexta (30). A praça Vermelha, coração de Moscou, amanheceu com telões sendo montados sob cartazes com a frase "Donetsk, Lugansk, Zaporíjia, Kherson - Rússia!", sugerindo um evento para comemorar a anexação.

A fala de Peskov deixa claro que a fronteira que o Kremlin pensa em chamar de sua ainda não está sob seu controle. O problema para Moscou é que, enquanto o controle sobre Lugansk é quase total, assim como nas áreas ao sul, em Donetsk ainda falta algo como 40% do território para tomar. Segundo o Ministério da Defesa, a contraofensiva ucraniana para tentar retomar Liman, cidade estratégica da região, falhou nesta quarta.

Ainda não há relatos independentes disso, mas o fato é que os recentes sucessos militares do governo de Volodimir Zelenski, que reconquistou cerca de 5% de seu território ao capturar de volta a região de Kharkiv no começo do mês, estão estagnados.

O recuo ali obrigou Putin a mudar sua estratégia na guerra, decretando uma protelada mobilização parcial de pelo menos 300 mil reservistas e acelerando a anexação das partes que já domina da Ucrânia. É uma jogada de risco, pois a guerra até então pintada na TV estatal virou parte da realidade das cidades russas, com protestos e fuga de jovens para países vizinhos.

Ela não deve ter efeito imediato, dado que ao menos dois meses de treinamento são necessários, diz a Defesa, para mandar tropas à frente. Mas abre a perspectiva de um reforço cuja falta fez Putin fracassar na tentativa inicial de tomar Kiev de assalto e, depois, obrigou o recuo para focar o combate no Donbass e levou à perda de Kharkiv.

Antes da mobilização, o apoio popular a Putin estava em 83%, segundo o instituto independente Levada, e a maioria dos russos achava que as áreas ocupadas deveriam ou ser declaradas autônomas, ou serem absorvidas como entes da Federação Russa.

Ninguém falou sobre os custos disso, claro, ainda mais em um momento em que a economia russa luta para driblar as sanções impostas pelo Ocidente devido à guerra. A anexação da Crimeia, que se deu sem guerra e com um referendo entre uma população majoritariamente pró-russa, custou centenas de bilhões de dólares ao Kremlin.

Só o subsídio ao orçamento dos dois entes federais da península, a República da Crimeia e a cidade de Sebastopol, custou R$ 7,7 bilhões a Moscou em 2021. E é uma região que tem quase quatro vezes menos moradores do que as áreas ocupadas tinham no pré-guerra.

Isso dito, Peskov colocou politicamente um marco que antes não havia. No dia da invasão, Putin falou em "proteger os povos do Donbass" e prometeu "desmilitarizar e desnazificar" o vizinho.

Ao longo do tempo, autoridades foram admitindo interesses territoriais: um general falou em unir a Rússia à área separatista russa da Transdnístria (Moldova), anexando toda a costa ucraniana, e o chanceler Serguei Lavrov admitiu que queria ver Zelenski deposto.

Daí a desconfiança óbvia acerca do limite posto pelo porta-voz, que de todo modo não será aceito imediatamente por Kiev e pelo Ocidente. Mas Putin ainda pode jogar com a crise energética da chegada do inverno e da redução do fornecimento de gás russo ao continente para minar o apoio a Zelenski entre europeus —o que gera as suspeitas acerca do ataque aos gasodutos do mar Báltico na segunda.

Os EUA, por sua vez, anunciaram mais um pacote de ajuda militar a Kiev, de US$ 1,1 bilhão (R$ 5,4 bilhões), elevando para mais de US$ 16 bilhões (R$ 86 bilhões) o volume de armas comprometido com a guerra.

Por outro lado, Peskov pode sugerir a exaustão —ainda que momentânea e à espera do efeito da mobilização— da campanha russa. De resto, uma vez consideradas russas, as áreas ocupadas viraram parte da chantagem atômica contra o Ocidente: Putin já lembrou que sua doutrina nuclear permite o emprego desse tipo de bomba em caso de ataques convencionais que ameacem seu território.

Isso gerou temores no Ocidente de que o russo possa usar um artefato do tipo, talvez de menor potência, contra tropas ucranianas. Nesta quarta, o chanceler polonês, Zbigniew Rau, disse que a Otan deverá preparar uma "reação devastadora", ainda que não nuclear, se isso ocorrer.

"Vamos revogar o teto de gastos e criar um novo arcabouço fiscal"

Guilherme Mello, economista do PT, afirma que, em eventual novo governo Lula, não haveria aumento de carga tributária, mas uma composição diferente dos tributos

Luciana Dyniewicz e Adriana Fernandes


"Governo atual acabou com qualquer tipo de transparência e credibilidade nas contas do setor público", diz Mello Foto: Wether Santana/Estadão

Assessor econômico do PT, Guilherme Mello se esquiva de dar detalhes sobre o programa econômico de um eventual governo Lula. Sobre a ferramenta que substituirá o teto de gastos caso o ex-presidente seja eleito, por exemplo, Mello diz que explicitá-la significaria uma ameaça à credibilidade da campanha, dado que é preciso conhecer a formação do Congresso Nacional para dialogar com os parlamentares sobre o novo arcabouço fiscal.

"O que nos cabe neste momento, em que não somos governo e não temos conhecimento sobre a composição do Congresso, é anunciar os princípios que vão orientar a nossa proposta", afirma. Mello adianta apenas que a regra fiscal teria de compatibilizar sustentabilidade fiscal, recuperação do investimento público e aumento dos gastos sociais.

O economista também deixa em aberto qual seria a política de preço da Petrobras. “Nosso objetivo é criar instrumentos para gerir preços. Instrumentos que sejam capazes de minimizar essas oscilações (de preços). Isso tem de ser obviamente construído de maneira dialogada com a Petrobras, com governadores.” Entre as opções, acrescenta, uma seria criar um fundo de estabilização. Mello, no entanto, destaca que essa possibilidade não necessariamente seria a “favorita”.

Em relação ao BNDES, o economista afirma que ele seria usado para financiar pequenas empresas e investimentos que favoreçam a transição energética. Já sobre o sistema tributário, destacou que não haveria aumento na carga, apenas modificação de impostos e alíquotas para garantir maior progressividade, ou seja, reduzir a carga paga pelos mais pobres e aumentar a dos mais ricos.

A entrevista com o assessor econômico do PT encerra a série feita pelo Estadão com os economistas dos candidatos à Presidência. A campanha de Jair Bolsonaro não indicou ninguém para participar.

A seguir, trechos da entrevista com Guilherme Mello.

Se o Lula ganhar as eleições, o PT vai assumir em um ano difícil para a economia, com desaceleração global, juros altos e o impacto de medidas eleitoreiras adotadas neste ano. Qual o plano para lidar com esse cenário?

Ao mesmo tempo em que há esse cenário desenhado, vemos uma oportunidade para o Brasil não em 2023, mas nos próximos anos. O Brasil tem ficado à margem das nações não só do ponto de vista diplomático, mas de temas que são definidores do futuro, como sustentabilidade. Esses temas têm potencial de atrair investimentos. Há investidores que querem vir para o Brasil, mas não vêm devido às incertezas políticas e institucionais. Acreditamos que existe perspectiva para a economia brasileira caso o próximo governo seja capaz de recuperar credibilidade, transparência e diálogo com diferentes setores da sociedade e diferentes países. Se tem uma pessoa com a experiência do presidente Lula, um vice com a experiência do Geraldo Alckmin, a recuperação da credibilidade pode ocorrer até de maneira rápida com ações imediatas.

Quais ações seriam essas? A credibilidade é um dos pontos que os economistas do mercado e do setor produtivo cobram do PT, para que aponte uma trajetória. O PT disse que não vai dar detalhes nesse primeiro momento. Essas incertezas fazem com que as projeções para 2023 sejam muito díspares. Como pretendem acionar essa credibilidade?

Por que existe essa disparidade nas perspectivas para 2023? O governo atual acabou com qualquer tipo de transparência e credibilidade nas contas do setor público. Não se sabe o que esperar não só do ponto de vista fiscal, mas de vários ângulos: das medidas sociais, institucionais, das relações com os governadores, com o STF (Supremo Tribunal Federal) e com a democracia. Isso gera incerteza.

Mas como recuperar a credibilidade? Na área fiscal, por exemplo, o programa fala em revogar o teto de gastos. O que seria colocado no lugar?

Em primeiro lugar, é preciso fazer aquilo que você fala que vai fazer. Estamos anunciando que vamos revogar o teto de gastos e criar, no lugar, de maneira dialogada com o Congresso e a sociedade, um novo arcabouço fiscal. O que nos cabe neste momento, em que não somos governo e não temos conhecimento sobre a composição do Congresso, é anunciar os princípios que vão orientar a nossa proposta de um novo arcabouço fiscal.

"Governo atual acabou com qualquer tipo de transparência e credibilidade nas contas do setor público", diz Mello Foto: Wether Santana/Estadão

Não tem como dizer como seria esse novo arcabouço?

Se eu viesse aqui e falasse "o novo arcabouço vai ser isso", seria um primeiro passo para falta de credibilidade, porque estaria anunciando algo que não sei se vou conseguir cumprir. O que é possível dizer é que um eventual novo arcabouço, que vai ser discutido junto ao Congresso, terá métricas que compatibilizem a sustentabilidade fiscal com a necessidade de ampliação dos investimentos sociais e de infraestrutura.

Investimento ficaria de fora do teto?

Vocês estão pensando do ponto de vista de que vai ser uma regra de gasto. Não necessariamente vai ser isso. Se vai ser uma nova regra de gastos, uma regra de resultado ou uma combinação de regras, vai depender do processo de negociação com o Congresso.

As políticas, em grande parte, dependem da negociação com o Congresso. Mas, em eleições anteriores, vocês davam indicações mais concretas do que seria adotado.

Temos definições concretas de políticas. Apresentamos o Desenrola (programa de renegociação de dívida das família), uma política concreta. Apresentamos também a discussão do novo Bolsa Família. Entendo que setores, principalmente o mercado financeiro e parte da imprensa, querem uma concretude sobre a regra fiscal. O problema é que essa discussão não depende exclusivamente do Executivo. O que estamos colocando hoje, de maneira concreta, são os princípios norteadores de um novo arcabouço: ser flexível, que se adeque a momentos de crise. Ser anticíclico, ou seja, que, em um momento de grande crescimento, não superaqueça a economia e, em um momento de queda do crescimento, não jogue a economia mais para baixo. Ter mecanismos de acompanhamento dos impactos dos gastos públicos. Nosso objetivo é compatibilizar sustentabilidade fiscal, ou seja, uma estabilização da relação dívida/PIB ao longo do tempo, ao mesmo tempo que se recupere investimento público e o gasto social de boa qualidade.

Se Lula for eleito, como vocês vão tratar o reajuste dos salários do servidor público?

Tem carreiras que estão com salário congelado desde 2017. Nesse período, teve anos de altíssima inflação. O processo de negociação vai envolver uma mesa de diálogo. O que a gente pode garantir é que a forma de negociação vai ser muito diferente da desse governo e que a postura frente aos servidores públicos vai ser de valorização.

No programa de governo, vocês afirmam se opor à privatização da Eletrobras. Um eventual governo Lula faria uma reestatização?

Petrobras e Eletrobras terão um papel estratégico na transição ecológica e energética. O governo federal, apesar de ter perdido o controle majoritário da Eletrobras, ainda é um acionista relevante da empresa. Para nós, a questão fundamental é dispor de diferentes instrumentos para promover as transições que o Brasil precisa. Alguns deles são empresas puramente públicas. Outros são empresas mistas. Cada um tem uma função e pode exercer um papel. O importante para o Brasil não é se o governo vai ter 51% ou 49% de participação, mas é que todas as empresas, principalmente as que têm uma participação relevante no setor público, sejam rentáveis e tenham capacidade de investimento. Elas também precisam dialogar com o processo de transição portador de futuro. Se a Petrobras não se tornar rapidamente uma empresa de energia que dialogue com a sustentabilidade e com os combustíveis renováveis, se tornará cada vez mais uma empresa do passado.

"Estou convencido de que há todas as condições para que haja uma convivência positiva com Roberto Campos Neto" Foto: Werther Santana/Estadão

No caso da Petrobras, o ex-presidente Lula falou que a ex-presidente Dilma errou na política de preços. Mas o programa do PT fala que “é preciso abrasileirar o preço dos combustíveis”. O que seria feito?

Também acho que houve um exagero na política da ex-presidente Dilma. O que estamos falando é recuperar instrumentos e capacidade de gestão do setor público para ficarmos resistentes a choques externos. Isso não quer dizer congelamento de preços. Um país como o Brasil, que tem a Petrobras, que tem petróleo, que refina uma parte dos combustíveis, tem múltiplos instrumentos para utilizar. O fato de não utilizarmos esses instrumentos tornou o Brasil um dos países mais suscetíveis aos choques de preço e que teve uma das inflações mais altas do mundo. Nosso objetivo é criar instrumentos para gerir preços. Por exemplo, no caso de combustíveis, que não sejam insustentáveis, que não sejam transitórios – como é o caso agora das desonerações. Que sejam instrumentos capazes de minimizar essas oscilações sempre que elas ocorrerem. Isso tem de ser obviamente construído de maneira dialogada com a Petrobras, com governadores. Há uma série de opções no radar.

Por exemplo?

Uma opção, não estou falando que é a opção preferida, mas que foi proposta pelos senadores do PT é a criação de um fundo de estabilização de preços. Como vai ser desenhado esse fundo, também existem várias possibilidades.

Se o ex-presidente Lula for eleito, terá de lidar com o Roberto Campos Neto, que foi indicado para a presidência do Banco Central pelo governo Bolsonaro e que está fazendo uma política dura de juros. Como avaliam essa política e como trabalhar com ele caso vocês não pretendam alterar a independência do BC?

Estou convencido de que há todas as condições para que haja uma convivência positiva, porque o que estamos falando é discutir como o governo federal pode contribuir com o BC para alcançar seus objetivos. Os objetivos são a meta de inflação e a obtenção dela com o máximo de emprego possível. Achamos que o governo abriu mão de uma série de instrumentos que poderiam colaborar. Ele cria instabilidade e incerteza, o que dificulta a gestão da taxa de câmbio, do juros e da inflação. O presidente Lula tem muito clara essa questão do impacto da carestia na vida das pessoas. Então ele tem muito clara a necessidade de controlar o processo inflacionário.

Mas o presidente do BC pensa diferente de vocês.

Não acho. Ele tem como objetivo estabilizar a inflação. Se ele tem isso como objetivo, toda contribuição que puder ter do governo para não gerar instabilidade institucional ou política importa.

Vocês veem necessidade de elevar a carga tributária para bancar aumento de investimentos?

Nossa proposta de reforma tributária não prevê aumento de carga. Ela prevê que, ao final do processo, o País estaria com uma carga tributária igual ou muito próxima a atual, mas com composição dos tributos diferentes. Nos governos Lula, você teve aumento de arrecadação sem ter aumento de alíquotas de tributos. Ele fez isso promovendo a retomada do crescimento econômico, a formalização dos trabalhadores e com ganhos de eficiência da gestão da receita e da tributação.

No programa de governo, vocês falam em fortalecer bancos públicos, mas não detalham qual seria a estratégia e a função do BNDES. Ele voltaria a ter um papel semelhante ao dos outros governos do PT, com alguma política de campeãs nacionais?

O BNDES é um instrumento poderoso na promoção do desenvolvimento econômico. Ele deve atuar nos setores onde o sistema privado não o faz de maneira adequada. Um exemplo são as micro e pequenas empresas. Diferentemente das grandes empresas, as pequenas não têm acesso ao mercado de capitais. Se elas não se financiarem pelo sistema bancário, em particular pelo BNDES, que oferece crédito em condições razoáveis, ficam sem crédito e entram em uma espiral de crise. Também temos falado de o BNDES atuar com garantias soberanas para viabilizar investimentos em infraestrutura e de financiar as transições ecológica, energética e digital.

Como vê o apoio ao Lula dado por Henrique Meirelles, que tem uma análise de economia diferente da descrita no plano de governo do PT?

O apoio político do Meirelles, um ex-candidato à Presidência, é bem-vindo e sinaliza a amplitude da candidatura do presidente Lula. Na mesa (do evento em que Meirelles anunciou seu apoio), estavam Marina Silva, Guilherme Boulos, Luciana Genro e outras figuras de diversos partidos, o que mostra a força do movimento político liderado pelo presidente Lula. Foi um evento político relevante que, como disse o (Aloizio) Mercadante, une os divergentes para combater o antagônico. Cada um desses personagens têm diferentes opiniões sobre políticas públicas em geral e política econômica em particular.

Meirelles afirmou que o Lula está sendo mal assessorado em relação ao teto dos gastos. Como responde a essa crítica?

Acho isso pouco relevante. O relevante é o fato de ele ter declarado o apoio. Foi um apoio incondicional. Independentemente da opinião sobre um ponto ou outro que possa ter divergência, Meirelles teve a atitude de grandeza e de apoiar o candidato que ele acredita ser mais capaz de recuperar o Brasil. Acho que esse é o sentido do evento, do apoio. Divergências vão existir, mas o combate ao que representa o atual governo é algo que unifica os democratas.

Sobre Godard

1930-2022.

Fredric Jameson

Sidecar


Tradução / Após décadas em que títulos impenetráveis assinados por Jean-Luc Godard pipocavam regularmente nos festivais de cinema, enquanto a imagem de seu criador deteriorava de rebelde em velhote, senão sábio tecnologicamente obcecado, é impressionante, ao folhearmos as filmografias, lembrar o que muitos destes filmes significaram para nós como eventos, conforme esperávamos, nos anos 1960, por cada filme novo e inesperado, quão intensamente analisávamos os engajamentos políticos do grupo Dziga Vertov, com qual curiosidade genuinamente engajada nos perguntávamos o que o fim do período político traria, e, posteriormente, o que faríamos com as últimas obras do período “humanista”, de onde elas vinham, e se significavam um colapso ou uma renovação genuína.

Durante tudo isso, éramos entretidos ou provocados pelos “pensamentos” ou paradoxos cada vez mais ignóbeis, que ou demandavam meditação ou inspiravam um leve desprezo, atenuados pelo lembrete constante de que a visualidade, se é capaz de pensar, o faz de uma maneira não necessariamente acessível a todos nós; enquanto seus filmes continuavam “pensando” através de imagens quiasmáticas: Belmondo imitando Bogart, Piccoli convidado Bardot a utilizar a água de seu banho (“Não sou sujo”), os conquistadores globais exibindo seus cartões postais, a Revolução Cultural de Mao assumindo a forma da música mais contagiante, o mundo acabando em um engarrafamento, uma personagem em um banheiro devorando iogurte com um dedo, dois coletores de lixo africanos recitando Lênin, nossas estrelas de cinema favoritas perplexas com seus novos papéis, uma série interpolada de entrevistas-interrogatórios nas quais crianças de dez anos de idade são questionadas acerca da luta de classes, e modelos amáveis sobre as últimas decisões do sindicato trabalhista, ‘la musique, c’est mon Antigone!” – a narrativa deteriorando-se de maneira constante apenas para terminar em 3D ou em imagens densas como borboletas diante de um rosto.

Tudo isso se consolidando inexoravelmente na direção da impertinência final, em uma voz inconfundível, hoje indissociável de sua ideia de pedagogia: especificamente, de que a história é (nada mais, nada menos) a história do cinema. Por que não? Se tudo é narrativa, sempre mediada por esta imagem ou aquela no poster, como nas cenas de batalha da sequência infernal de Notre musique (2004), as próprias imagens devem disputá-la, como pessoas correndo umas atrás das outras, gritando e pulando sobre os carros – junto a seus estilos históricos distintos – mudos ou sonoros, preto e branco ou tecnicolor; pode ser que isso seja tudo o que ele sabe sobre a história, o que ele chama de cinema.

Ao longo da história do cinema, há a história de um filme, de onde ela vem? Das próprias imagens, conforme ele as extraí do mais sublime de seus filmes tardios, Passion (1982), desdobrando-se na ainda mais sublime linhagem de Scenario du film “Passion” (1982), que, da página mallarmeana em branco (ou plage, ou grève), uma jovem mulher aparece e tenta iniciar uma greve. Neste caso, a fábrica contra a qual ela protesta deve seguir, junto a seu proprietário, e depois sua esposa, e depois o hotel que ela administra. E, finalmente, um convidado misterioso de algum lugar para além do filme, tentando ele mesmo fazer um filme com uma narrativa, ele mesmo atormentado por imagens, as maiores pinturas do mundo, tableaux vivants das maiores pinturas do mundo, reconstruções em miniatura de sua arquitetura – Jerusalém pela qual as cruzadas cavalgavam, movidas pelo implacável concerto para piano de Antonín Dvořák, logo que o produtor potencial do filme é assediado por banqueiros e financiadores relutantes.

O pretenso diretor estrangeiro é tão deficiente como as outras personagens (gagueira, tosse), ele não consegue retribuir o amor de nenhuma mulher, ele não consegue transformar estas imagens em cenários narrativos, ele finalmente desiste e retorna para seu lar da própria história (a Polônia e Solidarność).

O filme agora se torna uma alegoria da nova Europa e sua “peu de realité”: atores grandiosos representam a França, Alemanha, Hungria, Polônia (as grandes tradições), com um diretor supostamente suíço; temas fundamentais como o amor e o trabalho nunca podem ser representados; pinturas grandiosas são tão mudas como as Voices of silence que Belmondo lê na banheira; mas Jean-Luc Godard tem seu roteiro, ele agora pode começar a gravar seu filme de ficção.

Scenario agora rebobina a fita, reproduz a coisa toda de trás para frente, desmontando a ficção de volta em suas partes, alongando-se sobre as imagens, superpondo-as, retornando às origens, identificando a suas próprias origens. Então, agora: dois filmes sobre a mesma coisa, dois filmes compartilhando o mesmo corpo: o cinema. Cinema, o estágio do espelho do filme.

Cinema quer dizer visualidade, sons, palavras (com vislumbres de dinheiro). Ele é a própria vida ou o viver enquanto tal, tudo é cinema. Os filmes tardios talvez tentem descer o aclive para o outro lado, começar com a narrativa, o cenário, e depois rasgá-los, nos dar com alegria estridente as peças em uma colisão festiva, pontuada por tiros brutos, filmes mudos com som, a história caminhando para trás.

Ele viveu, comeu, respirou, dormiu filmes. Ele foi o maior cineasta de todos os tempos? Se ele era algo, era o próprio Cinema, o cinema redescoberto em seu momento de desaparecimento. Se o cinema realmente está morrendo, então ele morreu junto; ou, melhor ainda, morreu com ele.

*Fredric Jameson é diretor do Centro de Teoria Crítica da Duke University (EUA). Autor, entre outros livros, de Arqueologias do futuro: o desejo chamado Utopia e outras ficções científicas (Autêntica).

27 de setembro de 2022

Não deveríamos aumentar desemprego para combater inflação, diz economista

Pavlina Tcherneva defende que os governos priorizem criação de vagas no serviço público em vez de auxílios emergenciais

Rafael Balago

Folha de S.Paulo

Pavlina Tcherneva, economista e professora da Bard College, de Nova York - Divulgação

Para a economista Pavlina Tcherneva, os governos cometem um grande erro ao aumentar as taxas de juros e, assim, favorecer o aumento do desemprego, como modo de combater a inflação. Ela defende que o setor público passe a ofertar vagas diretas a quem busca recolocação.

Neste ano, os bancos centrais de diversos países, como do Brasil e dos Estados Unidos, estão aumentando as taxas de juros para esfriar a atividade econômica e, assim, tentar conter a alta de preços.

"Trata-se de uma decisão política que, se obtiver sucesso, freará o crescimento econômico e deixará milhões de pessoas sem trabalho. A ideia é que quando as pessoas perdem seus salários e empregos, elas não gastam. Este é um método para combater inflação, mas não temos que fazer desse jeito", defendeu ela, durante um debate virtual realizado pelo Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), nesta terça (27).

De origem búlgara e doutora em economia, Tcherneva, 48, é professora no Bard College e pesquisadora do Levy Economic Institute, ambos de Nova York. Ela estuda teoria monetária e foi conselheira da campanha de Bernie Sanders à Presidência, em 2016. Em 2020, publicou o livro "The Case for a Job Guarantee", no qual propõe o modelo em que o Estado garante trabalho a todos que buscam uma ocupação.

Ela defende que os governos federais deveriam separar recursos para a criação de vagas, a serem gerenciadas por estados e cidades, a nível local. Estes trabalhadores, que seriam contratados de modo temporário, poderiam atuar em várias tarefas, como preparar comida em cozinhas comunitárias, de idosos, dar suporte a vítimas de violência e aulas de reforço a estudantes.

Os temporários poderiam também atuar em questões ambientais, como na despoluição de rios, na reciclagem de lixo e na criação de áreas verdes urbanas. E também em atividades remotas e flexíveis, como criar aplicativos de interesse público, auxiliar a transportar pessoas ou registrar a história das comunidades onde vivem.

Tcherneva reconhece que o maior entrave para transformar a ideia em realidade são os questionamentos relativos ao aumento dos gastos públicos, o que ela vê como um contrassenso.

"O público foi convencido de que os recursos [públicos] são escassos, mas isso é algo peculiar. Nós acabamos de ter a Covid, quando os EUA gastaram um quarto de seu PIB em um ano. Também fizemos isso durante a crise de 2008. Temos muitos exemplos de que quando o setor público quer financiar uma ação, isso não é um problema. Trata-se de uma escolha política não enfrentar o desemprego", afirma.

"Quando falamos sobre insegurança alimentar, há programas para fornecer comida a quem tem fome. Se falta moradia, há iniciativas que fornecem casas. Mas quando uma pessoa precisa de emprego, os governos dão uma pequena renda, algum treinamento, mas não um emprego em si", compara.

Ela lembra que a falta de ocupação gera uma série de dificuldades na vida de quem a experimenta.

"Os desempregados enfrentam muito mais problemas de saúde física e mental. Se ficam muito tempo fora do mercado, é difícil se recolocar depois. A questão leva a problemas de moradia, crime, encarceramento, pobreza. Só o custo de manter uma pessoa detida nos EUA é de US$ 35 mil por ano. De uma forma ou de outra, nós pagamos o custo de desemprego, que é muito alto."

Questionada pela Folha depois do evento se os governos deveriam priorizar ofertar empregos ou dar auxílios emergenciais, ela defendeu a primeira opção, mas disse que as duas alternativas se complementam para criar uma rede de proteção social efetiva.

"A política de estabilização deveria focar em empregos, mas não pode ser a única coisa, porque muitas pessoas não podem trabalhar. Elas podem ser estudantes, terem limitações físicas, estarem aposentadas, então o apoio financeiro é importante", pondera.

Ela aponta que há modelos intermediários. "Em comunidades rurais da Índia, há um programa no qual a pessoa, ao se cadastrar, ganha um cartão, com um saldo depositado. Você pode ficar com o dinheiro e não ir trabalhar, mas o programa funciona bem, porque as pessoas geralmente gostam de ter um trabalho", conta. "É algo que dá dignidade."

A pesquisadora reconhece que ideia de o Estado criar empregos diretos não é nova: o programa New Deal, implantado nos anos 1930 nos Estados Unidos, abriu milhares de postos temporários da mesma forma. O governo federal enviou recursos para as cidades gerenciarem as vagas e terem mão de obra para fazer melhorias.

Tcherneva aponta que o modelo foi testado por diversos países nas décadas seguintes, mas que enfrentou resistência de várias frentes.

"O lobby conservador foi muito contrário aos empregos do New Deal. Muitos pobres que viviam em estados conservadores se beneficiaram deles, e passaram a votar nos democratas. Também houve oposição de empresários, industriais. Economistas também são um grande obstáculo. Mas a geração mais jovem, especialmente os interessados no New Deal, estão pensando pela mesma linha, mas de modo mais amplo, no que é chamado de Green New Deal. Talvez seja a hora de reviver esta ideia", espera.

O populismo de extrema-direita de Jair Bolsonaro é horrível. Mas ele não veio do nada.

Rise of the Bolsonaros, um novo documentário que narra a ascensão de Jair Bolsonaro, é uma visão atraente. Mas ignora o fato de que as crises do Brasil estão enraizadas em seu modelo de desenvolvimento falho, não apenas na ascensão de uma família de fanáticos reacionários.

Alex Hochuli


Presidente Jair Bolsonaro aparece na televisão durante debate presidencial em São Paulo, 24 de setembro de 2022. (Rodrigo Paiva / Getty Images)

Tradução /A história de uma família poderosa que ganhou tudo e os três filhos que não tiveram escolha a não ser foder o Brasil juntos. É como a série Arrested Development.

Assim segue a sequência do título – com alguma licença poética para os propósitos desta resenha – do novo documentário da PBS após a ascensão da família Bolsonaro (também exibido na BBC como uma série de três episódios). Lançado um mês antes do Brasil ir às urnas numa corrida de dois polos: Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o documentário tenta alertar o mundo sobre as consequências de um segundo mandato para o representante da extrema direita.

No entanto, suas críticas são bastante fracas. Eles refletem como e por que a oposição não conseguiu reunir as massas. Ao contrapor a destruição da Amazônia às alegações de Bolsonaro sobre explorar suas riquezas incalculáveis, ele falha em dizer a verdade sobre o desenvolvimento brasileiro e seus fracassos. Pior, permite que o bolsonarismo seja um avatar do desenvolvimento (parte fundamental de sua mitologia), quando é justamente o contrário.

Com acesso impressionante a ex-ministros do governo e ao filho mais velho de Bolsonaro, Flávio, Rise of the Bolsonaros [Ascensão dos Bolsonaros], tenta – e principalmente consegue – evitar o tom histérico de muitos comentários liberais sobre o presidente. Assim, ao deixar os seus entrevistados falar, apresenta a luz e as sombras.

Em todos esses documentários, há uma grande escolha editorial a ser feita em como encontrar esse contraste e em quais sombras focar. O preconceito vulgar de Bolsonaro e a postura anti-ambiental são os principais aqui, com ameaças contra a democracia e incentivo à violência logo atrás.

O primeiro dos episódios de uma hora de duração reconstrói com paciência e sensibilidade quem é Jair Bolsonaro, desde suas raízes humildes no interior de São Paulo, passando pelo quartel do Exército do Rio de Janeiro (do qual foi expulso), até seus sete mandatos como membro do chamado baixo clero (políticos fisiológicos não influentes) no Congresso. Onde apenas conseguiu aprovar duas leis, em 27 anos como deputado.

Demasiado irrelevante para estar no nexo da corrupção do “big money”, Bolsonaro surge no episódio dois como o político-chave para explorar o sentimento anticorrupção e surfar na onda moralista de direita que tomou conta do Brasil de 2015 a 2018 – pavimentando seu caminho até o Planalto. O ex-assessor de Donald Trump, Steve Bannon, tem amplo tempo no documentário para exibir seu entusiasmo por Bolsonaro, que, ele insiste, inspirou Trump tanto quanto o contrário.

Aqui podemos notar uma oportunidade perdida. Apesar do acesso a uma série de especialistas nacionais e internacionais, o documentário nunca vai além da narrativa cansativa e errônea do “Trump Tropical”. Nesse sentido, não nos diz algo sobre o Brasil e sobre como os Bolsonaros são particularmente brasileiros, por mais que também possam fazer parte de uma onda de direita global. Há acenos para isso no retrato do “novo Brasil” no interior do país, das cidades a centenas de quilômetros da costa, do gado, da soja e das armas. Mas essa não é toda a história e deixa escapar como uma das economias de crescimento mais rápido do mundo (chegando a sexta posição no governo do PT) durante boa parte do século XX estagnou – apesar do boom impulsionado pelas commodities no início do século XXI.

Continuando onde a ditadura militar parou

Focado em seu mandato no poder, o episódio três também nos diz pouco sobre a continuidade autoritária representada pelo papel elevado dos militares na política (inclusive como ministros) sob Bolsonaro. Jair, repetidamente nos dizem, é um nostálgico da ditadura de 1964-1985, mas isso aparece como um defeito pessoal, uma inclinação puramente ideológica e não uma força dentro da sociedade brasileira que ganhou confiança na medida em que o Brasil se vê incapaz de encontrar uma saída para uma crise permanente.

Essa deficiência é mais clara em dois eixos. Primeiro, há o fanatismo dos bolsonaristas. A maioria já conhece a miríade dos ultrajes, mas repeti-los não é pecado em si; suas palavras apresentam uma janela para a visão de mundo bolsonarista. Mas há pouco dado materialmente para apoiá-lo. Um clipe do deputado Eduardo Bolsonaro, o terceiro filho do presidente, com o dedo do meio em riste para parlamentares da oposição é tão fortemente apresentada nos três episódios que quase deixa alguém se perguntando se essa é a extensão do provas incriminatórias que cercam a família Bolsonaro. (Como dizem, sempre há dinheiro por trás do gesto.)

A realidade – que explosões moralistas surgem em momentos de crise social – é perdida.

A questão do aumento da violência política é abordada principalmente através do sangrento assassinato da vereadora negra, lésbica e socialista Marielle Franco em 2018. Isso é extremamente importante. Mas o uso desse episódio como exemplo das consequências do machismo e da homofobia de Bolsonaro não é devidamente encaixado.

Marielle foi assassinada porque era uma feroz oponente do policiamento brutal, da política mafiosa e da intervenção militar no Rio, esses são conflitos e lutas que são obscurecidos na narrativa da PBS. O fato de ela ser uma mulher não branca provavelmente a tornava mais uma vítima fácil – alguém que pode ser assassinado impunemente – mas não era a raiz da questão. Ela foi assassinada porque representava uma ameaça às milícias: máfias autoritárias nascidas da polícia e militares do Brasil que controlam o Rio de Janeiro.

Mais amplamente, ao longo do documentário, a violência cotidiana da sociedade brasileira é bastante encoberta. Seria grosseiro criticar um documentário de três horas de duração por não incluir mais – ele faz muito, e o faz de forma atraente e envolvente para um público não brasileiro. Mas dada a centralidade da violência no apelo de Bolsonaro, mais alguns minutos sobre isso seriam ótimos. A insegurança cotidiana nas periferias do Brasil, criada e sustentada por grupos que variam entre – grandes gangues, criminosos de baixo escalão, grupos de vigilantes e milícias – cria um desejo de represália. Como observou Matthew Richmond, muitos “não gostam de Bolsonaro, mas pensam que pelo menos ele vai dar uma surra nos bandidos”. Sendo que ele tem conexão com milicianos e abafa qualquer investigação de corrupção sobre eles, sua família e seus ministros.

Em vez disso, aprendemos sobre o afrouxamento das leis de armas de Bolsonaro; um fato importante, mas que provavelmente apenas acelerará uma dinâmica já existente. Não explica realmente o bolsonarismo ou por que pode ser uma receita política de sucesso.

Na busca de raízes, principalmente no que diz respeito à homofobia e ao sexismo, somos informados em várias ocasiões que o Brasil é uma sociedade muito tradicional. Mas não é! E na medida em que o fanatismo do presidente é um importante ponto de conexão dele com sua sólida base, não é a tradição em si que está em ação. A virada para a direita no Brasil foi produto de mobilizações políticas (Vem pra Rua e MBL sendo um deles ) e não de uma maldição imutável enraizada na sociedade brasileira.

Tradicionalmente, a cultura brasileira tem uma certa frouxidão moral em seu cerne, que se manifestou como hipocrisia, uma vez que foi posta em contraste com as reivindicações moralizantes. Isso gerou uma “tolerância corrosiva”, um espírito de acomodação com o mundo imperfeito. Há sempre um acordo a ser feito e uma resolução cordial. Pregar algo como a erradicação dos homossexuais ou ver o diabo atrás de cada porta, como alguns pastores evangélicos fazem, é um tipo de ethos puritano que é relativamente novo no país – pelo menos em sua forma atual. Episódios anteriores de explosões puritanas foram, na verdade, interrupções políticas momentâneas em momentos de crise social, e não a regra.

Para muitos brasileiros da classe trabalhadora e pobres, a “salvação” é muitas vezes a única esperança que se mantém, mediada por um pentecostalismo em rápido crescimento, que promete saúde e riqueza imediatas. Se uma eleição fosse realizada apenas entre os autodenominados evangélicos (cerca de 30% da população), Bolsonaro venceria o primeiro turno com folga.

A sociedade capitalista é uma guerra de todos contra todos, mas no Brasil a guerra é quase literal (60 mil homicídios por ano). Além disso, as massas são privadas de chances como o emprego formal (a taxa de informalidade chega a 40%), depois de também terem sido arrancadas da antiga sociedade agrária. Nesse contexto, tentar preservar o pouco que se tem assume uma conotação existencial. Daí a ênfase na família, e por que Bolsonaro teve sucesso em se apresentar como o único verdadeiro defensor dela.

Devastação ambiental para gerar riquezas

Osegundo eixo em que as deficiências de Bolsonaro são retratadas é o meio ambiente – efetivamente o pecado capital do presidente. No limite, o documentário chega perto de sugerir que essa é a única razão pela qual você deve se importar. A Amazônia é “a questão que definiria o reinado [de Bolsonaro]”, nos dizem, enquanto a sequência do título chama os Bolsonaros de “uma família com o destino do mundo em suas mãos”.

O mandato de Bolsonaro criou um grau absurdo de omissão e impunidade na Amazônia, à medida que as agências de proteção foram prejudicadas e sucateadas, com desmatamento, aumento de conflitos e invasão de terras indígenas, além de assassinatos de líderes indígenas e ambientalistas. Isso, aprendemos, é justificado no bolsonarismo por sua visão da terra como um El Dorado (com os mineiros autônomos, portanto, livres, e a tentativa de desapropriação de terras indígenas, inclusive os assassinando-os). Esse seria, portanto, o caminho do Brasil para o enriquecimento. Nele, Bolsonaro é retratado como retomando de onde a ditadura militar parou.

Mas os espectadores estão recebendo a mais falsa das dicotomias: empregos, riqueza e desenvolvimento, contra salvar o planeta. Qualquer um seria desculpado por escolher os primeiros, especialmente os trabalhadores em dificuldades, se essa fosse realmente a escolha. Mas não é, e é justamente a dicotomia que os fervorosos apoiadores de Bolsonaro procuram apresentar ao público.

A incursão nos confins do interior do país em busca da expansão da produção primária – agricultura e indústrias extrativas – é, na verdade, uma aceleração da crescente falta de desenvolvimento brasileiro. O Brasil é um garoto-propaganda da desindustrialização prematura por sua diminuição da produção como parcela da produção, e do desemprego, um nível de renda ainda muito baixo (bem abaixo de onde estavam as economias avançadas na mesma época na década de 1980, por exemplo).

Nenhuma força política busca seriamente reverter essa tendência, que se intensificou ao longo do período do PT no poder, e que um novo governo terá que enfrentar se Lula for vitorioso. Essa foi uma das razões pelas quais a base política do partido encolheu, e não pode ser explicada citando os constrangimentos após a tomada do poder ou culpando a contra-ofensiva da direita, dadas as implicações para a classe trabalhadora brasileira e o futuro do país como um todo.

A realidade é que a destruição da Amazônia não é uma triste consequência do desenvolvimento, mas um reflexo de seu fracasso. O PT pode ter feito um trabalho decente em desacelerar o desmatamento, enquanto Bolsonaro o encorajou, mas ambos estão trabalhando dentro do mesmo conjunto de escolhas limitadas. O desastre de Bolsonaro é que ele representa uma aceleração das piores tendências “desenvolvimentistas” do Brasil.

Essas são, infelizmente, questões dificilmente exclusivas do Brasil. A rampa de entrada para o desenvolvimento parece fechada para a maioria, enquanto as consequências, como o aprofundamento da desigualdade socioeconômica, a política esclerosada, e o populismo espetacular, são quase universais hoje.

A fraqueza da oposição a Bolsonaro é evidente na medida em que não conseguiu apresentar uma visão verdadeiramente alternativa. “Não seja fanático, não destrua o Estado, não torne a sociedade mais violenta, não queime a Amazônia” é preferível ao contrário, mas serve apenas para conter a crise brasileira, não sua resolução. Não é à toa, então, que a oposição parecia ineficaz e perdida até que Lula voltou à cena política em março de 2021.

Em última análise, embora Rise of the Bolsonaros não seja um documentário ruim, ele reflete essa postura. Os produtores talvez não sejam inteiramente responsáveis; se você busca apenas documentar, você não pode inventar um pólo ideológico de oposição onde não há um, você pode apenas refletir o que está lá.

No final, ficamos com um documentário que se apresenta como “acontecimentos malucos no velho Brasil”, mas que também conclui que o mundo vai acabar se Bolsonaro for reeleito. A crítica histórica profunda permanece em falta; é mais desenvolvimento atrasado do que a crucial história de desenvolvimento tardio.

Sobre o autor

Alex Hochuli é escritor e consultor de pesquisa. Ele é co-apresentador do Aufhebunga Bunga, o podcast de política global, e coautor de "Politics at the End of the End of History".

26 de setembro de 2022

Para defender a democracia, o Supremo Tribunal Federal está indo longe demais?

O Supremo Tribunal Federal tem atuado como o principal controle do poder do presidente Jair Bolsonaro. Agora, muitos estão preocupados que o tribunal represente sua própria ameaça.

Por Jack Nicas e André Spigariol
Jack Nicas e André Spigariol, correspondentes no Brasil, conversaram com juízes, professores de direito, funcionários do governo e políticos brasileiros para relatar este artigo.


O juiz Alexandre de Moraes, membro do Supremo Tribunal Federal, usou o poder do tribunal para se opor às posições antidemocráticas do presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Créditos. Fábio Pozzebom/Agência Brasil

Tradução / O grupo no WhatsApp funcionava como uma espécie de vestiário digital para dezenas dos maiores empresários brasileiros. Havia um magnata dono de shopping centers, o fundador de uma marca de roupas de surfe e um bilionário dono de lojas de departamento. Eles reclamavam da inflação, trocavam memes e às vezes compartilhavam opiniões inflamatórias.

"Prefiro golpe do que a volta do PT", disse outro dono de shopping, José Koury, em 31 de julho, aludindo ao partido de esquerda que lidera as pesquisas de opinião para a eleição presidencial. O dono de uma cadeia de restaurantes respondeu com uma GIF de um homem aplaudindo.

Dada a história do Brasil com ditadores e o medo generalizado de que o presidente Jair Bolsonaro se recuse a aceitar uma derrota nas urnas, foi um comentário preocupante.

Mas o que aconteceu a seguir talvez tenha sido ainda mais alarmante para a quarta maior democracia do planeta.

Agentes federais invadiram as casas de oito dos empresários. As autoridades congelaram as contas bancárias deles, os intimaram a entregar seus registros financeiros, telefônicos e digitais e instruíram redes sociais a suspender algumas de suas contas.

A ordem partiu de um juiz do STF (Supremo Tribunal Federal), Alexandre de Moraes. A única evidência citada para embasá-la foram as mensagens do grupo de WhatsApp, que haviam sido vazadas para um jornalista. Nelas, apenas dois dos oito empresários haviam sugerido que apoiariam um golpe.

Foi uma demonstração muito clara de força judicial que veio coroar uma tendência que vem sendo formada há alguns anos: o STF ampliou seus poderes drasticamente para contrapor-se às posições antidemocráticas de Bolsonaro e seus seguidores.

Segundo especialistas em direito e governo, nesse processo o STF acabou enveredando por um rumo repressivo, ele próprio.

Moraes já colocou cinco pessoas na prisão sem julgamento por posts em redes sociais que ele diz que atacaram as instituições brasileiras. Ele ordenou às redes sociais a remoção de milhares de posts e vídeos, deixando pouca margem para apelações. E, este ano, dez dos 11 juízes do Supremo sentenciaram um deputado a quase nove anos de prisão por fazer o que disseram ter sido ameaças a eles durante uma live.

Especialistas legais dizem que a tomada de poder prejudica uma instituição democrática fundamental no maior país da América Latina no momento em que os eleitores se prepararam para escolher um presidente em 2 de outubro. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lidera as pesquisas há meses, enquanto Bolsonaro vem dizendo à população, sem qualquer evidência, que seus rivais estão tentando manipular a eleição.

Em muitos casos Moraes tem agido de modo unilateral, armado com os novos poderes que o STF se concedeu em 2019 e que em alguns casos lhe permitem atuar simultaneamente como investigador, promotor e juiz.

Dias Toffoli, o ministro do STF que criou esses poderes, disse em comunicado que o fez para proteger a democracia nacional: "O Brasil vive com o mesmo incitamento ao ódio que ceifou vidas na invasão do Capitólio americano, e as instituições democráticas precisam fazer todo o possível para evitar cenários como o 6 de janeiro de 2021, que chocou o mundo".

Lideranças políticas da esquerda e boa parte da imprensa e do público brasileiro têm em grande medida apoiado as ações de Moraes, vendo-as como medidas necessárias para se contrapor à ameaça singular representada por Bolsonaro.

Mas muitos especialistas em direito dizem que as próprias manifestações de força de Moraes, feitas em nome de salvar a democracia, ameaçam empurrar o país por um declive antidemocrático.

"É a história de todas as coisas ruins que acontecem na política", disse Luciano da Ros, professor brasileiro de ciência política que estuda a política do Judiciário. "No começo você tinha um problema. Agora tem dois."

Falando através de um porta-voz, Moraes se negou a comentar.

A crescente influência da corte pode ter severas consequências para o vencedor da eleição presidencial. Se Bolsonaro obtiver um segundo mandato, ele sugeriu que tentaria aparelhar o STF, dando a ele ainda mais controle sobre a sociedade brasileira. Se Lula vencer, ele teria que argumentar com ministros que poderiam complicar sua agenda para um país que enfrenta múltiplos desafios, incluindo fome crescente, desmatamento e profunda polarização.

"Historicamente, quando o Supremo se deu novos poderes, ele não disse depois que estava errado", diz Diego Werneck, um professor de Direito que estuda a corte. "Os poderes que são criados permanecem".

Se nenhum candidato receber mais de 50% dos votos na eleição do dia 2 de outubro, os dois primeiros terão um segundo turno no dia 30.

O STF já era uma instituição poderosa. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte julga entre 100 e 150 casos por ano. No Brasil, os 11 juízes do Supremo e os advogados que trabalham para eles emitiram 505 mil decisões nos últimos cinco anos.

Em 2019, alguns meses depois de Bolsonaro assumir o poder, um documento de uma página expandiu vastamente a autoridade do STF.

O Tribunal estava enfrentando ataques online de alguns seguidores de Bolsonaro. Normalmente, a polícia ou promotores teriam que abrir um inquérito para investigar tais atividades, mas não o haviam feito.

Então Dias Toffoli, o então presidente do STF, emitiu uma ordem autorizando o próprio STF a abrir uma investigação.

O tribunal investigaria as "fake news" –Toffoli usou o termo em inglês— que atacavam "a honradez" do tribunal e seus juízes.

Foi um papel inédito, transformando o tribunal em alguns casos em acusador e juiz, segundo Marco Aurélio Mello, ex-ministro do Supremo que no ano passado atingiu a idade de aposentadoria compulsória de 75 anos.

Mello, que é apoiador de Bolsonaro, acreditava que o tribunal estava violando a Constituição para resolver um problema. "No Direito, os meios justificam os fins, não o contrário", acrescentou.

Antonio Cezar Peluso, outro ex-juiz da Suprema Corte, discordou. As autoridades, disse ele, estavam permitindo a proliferação de ameaças. "Não posso esperar que o tribunal fique quieto", disse ele. "Tinha que agir."

Para comandar a investigação, Toffoli convidou Moraes, 53 anos, ex-ministro da Justiça e professor de direito constitucional que ingressara no STF em 2017.

Em seu primeiro ato, Moraes ordenou que uma revista brasileira, Crusoé, removesse um artigo online que apontava ligações entre Toffoli e uma investigação sobre corrupção. Moraes qualificou o artigo como "fake news".

O advogado André Marsiglia, que representava a Crusoé, considerou a decisão espantosa. O STF havia frequentemente protegido organizações de imprensa contra decisões semelhantes de tribunais de instâncias inferiores. Agora, disse ele, era o STF quem estava praticando a censura. "Não tínhamos a quem recorrer."

Moraes suspendeu a ordem mais tarde, após documentos legais comprovarem que o artigo estava correto.

Com o tempo, Moraes abriu novas investigações e reenquadrou seu trabalho em torno da proteção da democracia brasileira. Bolsonaro estava aumentando os ataques aos juízes, à mídia e ao sistema eleitoral do país.

Moraes ordenou que as principais redes sociais removessem dezenas de contas, apagando milhares de suas postagens, muitas vezes sem dar um motivo, de acordo com um funcionário de uma empresa de tecnologia que falou sob condição de anonimato, para evitar provocar o juiz. Quando a empresa de tecnologia desse funcionário revisou as postagens e contas que Moraes ordenou que ela removesse, descobriu que grande parte do conteúdo não violava suas regras, disse o funcionário.

Em muitos casos, Moraes foi atrás de influenciadores de direita que disseminaram informações enganosas ou falsas. Mas também foi atrás de pessoas de esquerda. Quando a conta oficial do Partido Comunista Brasileiro chamou Moraes de "skinhead" no Twitter e disse que o STF deveria ser dissolvido, Moraes ordenou que empresas de tecnologia suspendessem todas as contas do partido, incluindo um canal no YouTube com mais de 110 mil assinantes. As empresas obedeceram.

Moraes foi ainda mais longe. Em sete casos, ele ordenou a prisão de ativistas de extrema-direita sob a acusação de ameaçar a democracia por defenderam um golpe ou convocarem pessoas para atos públicos antidemocráticos. Pelo menos dois deles ainda estão detidos ou em prisão domiciliar. Alguns dos processos foram abertos pelo Ministério Público Federal, outros pelo próprio Alexandre de Moraes.

Em sua investigação, o tribunal descobriu evidências de que extremistas de direita discutiram ataques a ministros, estavam rastreando os movimentos dos magistrados e compartilharam um mapa de um prédio do tribunal, de acordo com um funcionário do STF que falou sob condição de anonimato porque as descobertas são parte de uma investigação sigilosa.

No caso de maior repercussão, Moraes ordenou a prisão de um congressista conservador depois que ele criticou Moraes e outros juízes em uma transmissão ao vivo online. "Tantas vezes eu imaginei você levando uma surra na rua", disse o deputado Daniel Silveira na transmissão ao vivo. "O que você vai dizer? Que estou incitando a violência?"

O STF votou por 10 a 1 para condenar Silveira a quase nove anos de prisão por incitar um golpe. Bolsonaro o perdoou no dia seguinte.

Com a maioria do Congresso, os militares e o Executivo apoiando o presidente, pode-se dizer que Moraes tornou-se o mais eficaz freio ao poder de Bolsonaro. Isso o converteu em herói da esquerda –e inimigo público número 1 da direita.

Bolsonaro tem vituperado contra ele em discursos, tentou, mas não conseguiu que ele fosse afastado e depois disse a seus seguidores que não respeitaria as decisões de Moraes (ele voltou atrás mais tarde nesse último ponto).

No mês passado, Moraes ganhou ainda mais poder, assumindo também a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, que fiscalizará a votação. (O momento foi uma coincidência.)

Em sua posse, o Moraes parecia falar diretamente com o Bolsonaro, que estava sentado nas proximidades. "Liberdade de expressão não é liberdade para destruir a democracia, para destruir instituições", disse Moraes, enquanto Bolsonaro franzia a testa.

As tensões entre os dois homens cresceram com o caso do grupo de WhatsApp dos empresários.

Bolsonaro criticou asperamente a ordem de Moraes, que em parte aprovou um pedido da polícia para realizar buscas nas residências dos membros do grupo. Em um momento incomum, a grande imprensa brasileira tomou o partido do presidente. "Trocar mensagens, meras opiniões sem ação, mesmo que as opiniões sejam contra a democracia, não constitui crime", disse a emissora Band em editorial.

Criticado, o gabinete de Moraes apresentou um documento legal adicional que disse fornecer mais evidências da ameaça potencial representada pelos homens. O documento reiterou ligações já públicas que alguns dos empresários tinham com agentes de direita.

Moraes descongelou as contas bancárias dos empresários mais tarde, e eles não chegaram a ser presos.

Luciano Hang, o magnata das lojas de departamento, disse que estava lutando para recuperar o controle de suas contas de mídia social, que coletivamente tinham pelo menos 6 milhões de seguidores. "Nós nos sentimos violados por ter a Polícia Federal aparecendo às 6 da manhã querendo pegar seu telefone", disse ele.

Lindôra Araújo, a vice-procuradora-geral da República e promotora de carreira, recorreu contra a ordem de Moraes contra os empresários, dizendo que o juiz cometeu abuso de poder, atacando-os por terem simplesmente expressado opiniões num chat privado. Segundo ela, a ordem de Moraes lembra "uma espécie de polícia do pensamento que é característica de regimes autoritários".

O recurso chegou a Moraes, que o rejeitou.

25 de setembro de 2022

O quebra-cabeça brasileiro

Entre 2006 e 2014, o lulismo conseguiu neutralizar o crescimento do conservadorismo popular, mas o preço a pagar por isso foi a desmobilização de suas bases sociais. Para que a história não se repita, é preciso maior audácia, não menos confronto.

Uma entrevista com
André Singer

Entrevistado por
Igor Peres

No próximo domingo, 2 de outubro, acontecem as eleições gerais no Brasil, e Lula lidera as pesquisas. (Foto: Ricardo Stuckert vía @LulaOficial)

No dia 2 de outubro serão realizadas as eleições presidenciais no Brasil. Embora Lula lidere todas as pesquisas, uma vitória nas urnas não se traduz automaticamente em vitória política ou social. Para isso, são necessárias transformações profundas, que só podem ser alcançadas com a mobilização popular. Porque se há algo que a história recente do Brasil mostra, é que sem uma força popular que respalde massivamente nas ruas, nenhuma mudança social progressiva pode ser sustentada ao longo do tempo.
Para pensar a fundo a disputa eleitoral fundamental que está por vir, entender o que está em jogo e poder situar a cojuntura atual do Brasil no processo mais longo dos últimos vinte anos, conversamos com André Singer, cientista político e professor da Universidade de São Paulo, autor de vários livros e porta-voz do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Igor Peres

Em Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador (Companhia das Letras, 2012), são mencionados os resultados de uma investigação anterior sua sobre as eleições presidenciais de 1989 e 1994 no Brasil. Apresenta então a ideia da “questão setentrional”, definida como uma “estranha monstruosidade política onde os excluídos sustentam a sua própria exclusão”. Como argumentado ali, esse era o empecilho que a esquerda vinha encontrando ao tentar construir uma alternativa de poder no país.

Aliás, você menciona a esse respeito uma declaração do próprio Lula após o revés na disputa de 1989: "a verdade mais crua é que quem nos derrotou foram os setores menos favorecidos da sociedade". Gostaria que comentasse a ideia da “questão setentrional” e sua importância para a compreensão do lulismo.

André Singer

A ideia da questão setentrional tem a ver com o período anterior a 2006, quando foi possível identificar um bloco conservador que tinha forte base no Nordeste e no Norte do Brasil. Essa base é tão importante que permitiu à ditadura derrotar, com votos no Congresso, uma das maiores mobilizações de massa da história recente do país: a campanha pelas "Diretas Já", ocorrida em 1984. Como essa base conservadora foi gestada? Através de uma articulação entre oligarquias regionais e bases eleitorais. Quando falo da "questão setentrional" quero dizer isso. O lulismo transformará essa relação e produzirá uma novidade no processo político brasileiro ao criar uma base fixa no Nordeste.

Por outro lado, após as eleições presidenciais de 1989, Lula diz algo como "fomos derrotados pela periferia, não pelos ricos". Essa periferia também pode estar localizada em grandes cidades brasileiras da região sudeste, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Acontece que as periferias das grandes cidades são formadas em certa medida por pessoas que vêm da região Nordeste.

Para entender, portanto, a questão setentrional, é fundamental a distinção que faço entre os pobres e as classes trabalhadoras. Os pobres fazem parte da classe trabalhadora, mas são uma fração —que chamei de subproletariado— desta última. Quando comecei a trabalhar a questão eleitoral, o que levantei foi que esse setor é vulnerável e carece do que poderíamos chamar de “cidadania trabalhista”. Essa fração da classe trabalhadora carece de direitos (estamos falando de cerca de metade da força de trabalho que nunca conseguiu se integrar totalmente ao mercado de trabalho).

O lulismo conseguiu começar a integrar parte desse contingente, que nos últimos anos voltou a crescer. Procurei caracterizar esse setor como um setor vulnerável e sugerir que essa vulnerabilidade o impede de participar da "luta de classes", como disse Paul Singer. Não é que você não possa fazer nada; mas, em condições normais, sua participação é difícil. Assim, me ocorreu pensar que essa condição é parte da explicação de por que uma parte da classe trabalhadora tende a não apoiar posições vinculadas aos sindicatos, por exemplo, tendendo a opções políticas que garantam a ordem. Isso é o que muda com a reeleição de Lula em 2006.

Igor Peres

É neste mesmo livro que a ideia de "Lulismo" ganha a estatura de um conceito. Ele nomeia o encontro entre uma ocasião adversa, marcada por denúncias de corrupção na arena legislativa nacional —que mais tarde se chamará Mensalão— e a decisão do Executivo nacional de adotar "políticas públicas para reduzir a pobreza e ativar o mercado interno sem confronto com o capital. Para explicar o que emerge desse encontro, você usa a categoria de "realinhamento eleitoral", movimento que acabaria por dar origem ao lulismo, em 2006. Você poderia reconstruir esse raciocínio?

André Singer

O lulismo é o corolário eleitoral de um programa prático que atende ao subproletariado. Acredito que este programa não foi concebido como tal, mas praticado. Em que consiste? É um programa de combate à pobreza. Não estou me referindo à distribuição de renda, que é um conceito mais complexo. Falo em reduzir a pobreza sem confrontar o capital.

A partir de 2004, já é perceptível a redução da pobreza, alcançada por meio do Programa Bolsa Família e do crédito consignado; em 2005, somou-se a essas duas iniciativas o aumento do salário mínimo. Esse programa prático teve muito sucesso, pois produziu um aumento no nível de consumo de parte da população que ganhava muito pouco, sustentando a situação econômica desse segmento em situação de baixo crescimento. Do meu ponto de vista, isso representou uma invenção. Foi algo que não foi planejado. Insisto, sem confrontar o capital: não foi feito em detrimento de certas diretrizes centrais do neoliberalismo (juros altos, baixos níveis de investimento público e uma estrutura cambial flutuante), e foi isso que permitiu que os dois governos de Lula se movessem dentro de um certa estabilidade. Não houve comoção social como se esperava e foi prenunciada por setores conservadores que diziam que o governo Lula seria um governo tumultuado.

O que chamo de "realinhamento eleitoral" ocorre em 2006 e é composto por dois elementos. O primeiro delas tem a ver com a mudança de posição dos mais pobres em relação a Lula, e o consequente surgimento do lulismo eleitoral. Ou seja, até 2002, o PT tinha um perfil eleitoral mais de classe média. A partir de 2006 houve uma mudança, e é justamente isso que interpreto a partir de uma ideia que vem da ciência política norte-americana, que busca pensar a transição de determinados setores do eleitorado de um bloco para outro. Se olharmos para os números, notamos que em termos de massa de votos, ambas as disputas presidenciais são semelhantes, o que muda é o perfil dos eleitores.

Os mais pobres passaram a votar em massa em Lula, principalmente no Nordeste (e continuam votando até hoje). Por sua vez, a classe média se voltou para o Partido da Social Democracia Brasileira (PSBD). É verdade que esta última sempre esteve relacionada à classe média, mas a classe média estava dividida. O Mensalão, que foi uma crise desencadeada por denúncias de corrupção relacionadas a suposta compra de votos na arena legislativa nacional, unificou a classe média contra o lulismo e contra o PT. Em suma, este foi o realinhamento que o lulismo deu à luz. Os mais pobres de um lado, a classe média do outro; é uma polarização social que persiste até hoje. Acredito que a hipótese do realinhamento sobreviveu até mesmo àquela grande mudança que a eleição de Bolsonaro representou em 2018.

Igor Peres

Em Os sentidos do lulismo você destaca a dificuldade do lulismo em passar de um "reformismo fraco" para um "reformismo forte". Analisa como o "sonho de Roosevelt" que surgiu como horizonte no segundo mandato de Lula está subordinado ao realismo da correlação de forças. E descreve também como a decisão de manter os antagonismos em equilíbrio e a arbitragem acabou sendo imposta como meio e fim de seu segundo mandato presidencial. Você poderia detalhar essa ideia?

André Singer

A questão da passagem de um reformismo fraco para um reformismo forte me dá a oportunidade de fazer alguns ajustes que só a passagem do tempo permite. Ambos os livros — Os sentidos do lullismo. Reforma gradual e pacto conservador e (2012) e O lulismo em crise. Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (2018)— foram escritos quentes, por assim dizer. Nesse sentido, e olhando para trás, eu diria que a segunda presidência de Lula é um mandato em que as grandes diretrizes neoliberais começam, de alguma forma, muito lentamente, a sofrer uma mudança. O investimento público, por exemplo, começa a descongelar. Era limitado e começa a se expandir. Há também algum tipo de contenção das taxas de juros e, além disso, uma pequena mudança em termos de política cambial.

São movimentos que apontam para uma política econômica mais próxima do desenvolvimentismo. Não se torna uma política econômica desenvolvimentista, mas visa a isso. Nesse sentido, acredito que o segundo termo seja diferente do primeiro. Entre outras mudanças importantes, destaco, por exemplo, a troca do primeiro ministro da Fazenda (que havia sido Antonio Palocci) por Guido Mantega. Agora, também é verdade que essa ainda é uma medida bastante homeopática, no sentido de preservar a premissa de não enfrentar o capital —que é o que garante a estabilidade política— mantendo um baixo nível de conflito, mesmo no segundo mandato de Lula.

Esta decisão é baseada em uma avaliação da correlação de forças em cada momento. Esta é uma questão decisiva, e devemos pensá-la de uma perspectiva objetiva e o menos ideológica possível. Como é medida a correlação de forças? Uma primeira maneira é olhar para a Câmara dos Deputados, que é uma expressão (um pouco distorcida, é verdade) do eleitorado de cada estado. Não é a única, mas é uma expressão significativa. O Congresso Nacional, tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado, retiraram, por exemplo, 30 bilhões de reais de investimentos na área da saúde (em valores da época) em 2007.

No Brasil temos o Sistema Único de Saúde (SUS) garantido pela Constituição de 1988, que é como se tivéssemos uma espécie de Sistema Único de Saúde, que na Inglaterra foi fruto de um forte reformismo após a Segunda Guerra Mundial. Mas na verdade isso nunca foi feito no Brasil. O sistema existe, mas não atende a todos e não o faz com a devida qualidade. Em 2007, uma enorme quantidade de investimento é retirada deste sistema. E por que o Congresso fez isso? Porque tem uma maioria conservadora. Poderia ter havido um processo social fora do Congresso? Sim, poderia, mas não houve. Seria preciso pensar em combinar ação institucional e mobilização social.

Igor Peres

Você dedica parte de O lulismo em crise à caracterização do primeiro mandato de quem sucedeu o ex-líder metalúrgico na presidência. Segundo o senhor, "[...] estimulada pelo capital político acumulado por Lula, Dilma levou a sério a ideia de acelerar o ritmo da iniciativa da presidente, dando lugar a uma política econômica desenvolvimentista". Gostaríamos que você resumisse o que você chama de o "ensaio desenvolvimentista" de Dilma.

André Singer

A principal medida que caracteriza o ensaio desenvolvimentista é a redução acentuada da taxa de juros. A taxa de juros havia sido apontada pela esquerda brasileira, antes da chegada do PT ao governo em 2003, como o principal obstáculo ao crescimento (se esse diagnóstico estava correto ou incorreto não posso dizer, porque não sou economista, sou um cientista político e não pretendo ser economista... quando falo de economia é porque entendo que a economia está no centro da política e que a luta de classes está no centro da economia). Toda a esquerda brasileira havia identificado o problema da taxa de juros como fundamental para a questão da distribuição de renda. E faz sentido, pois estamos falando em mudar o perfil de distribuição de renda em um dos países mais desiguais do mundo. Para tanto, todos concordam que a economia tem que crescer, algo assim não se faz com uma economia em recessão.

Nessa linha, Dilma tomou a corajosa decisão de baixar drasticamente a taxa de juros no início de 2012. Ela conseguiu porque travou uma grande e importante luta para mudar os rumos do Banco Central, quando estava apenas começando seu mandato. Ela escolheu um presidente do Banco Central que não veio do mercado financeiro, mas da burocracia do Banco Central, que é bem diferente. Os bancos privados não gostaram da queda das taxas de juros. Com isso, desencadeou-se o que chamo de “guerra do spread”: o Estado baixa sua taxa, mas os bancos privados continuam praticando a sua. Dilma usou os bancos públicos para fazer os bancos privados baixarem as taxas de juros, argumentando que se os bancos privados não fizessem o mesmo, perderiam clientes. Os bancos privados foram forçados a reduzi-la. Isso significa lutar com o cerne do capitalismo, que é o financeiro.

A segunda medida consistia em tratar da questão cambial, que basicamente significava administrar as importações e facilitar as exportações, favorecendo as indústrias brasileiras. Houve uma desvalorização cambial em torno de 20%. Aqui há um debate entre os economistas: há quem diga que essa magnitude de desvalorização não foi suficiente, que com essa desvalorização não foi garantida a competitividade da indústria nacional. Seja como for, é preciso reconhecer que Dilma foi a única que fez isso. E fez isso para favorecer a indústria brasileira.

Se os industriais viram insuficiente a magnitude da desvalorização, por que não fizeram um movimento para apoiar a decisão da presidente? Por que eles não pressionaram por mais desvalorização? O que de fato aconteceu foi que enquanto Dilma tomava essas decisões em questões econômicas, os industriais, paradoxalmente, começaram a mudar de posição em relação ao seu governo. Ela fez tudo para favorecê-los, mas eles se opuseram a ela por razões que não são fáceis de entender. Esse processo, que se inicia em 2012, levará à queda de Dilma em 2016.

Por fim, alterou as regras relativas ao setor de energia elétrica, que era uma demanda dos empresários industriais, principalmente os das indústrias eletrointensivas. Com eletricidade cara, os produtos brasileiros perderam competitividade. Em seguida, houve uma mudança no regulamento que baixou as taxas, incluindo as taxas domésticas, em setembro de 2012.

Em suma, eu diria que essas são as três principais medidas do ensaio desenvolvimentista. Acrescento mais uma informação: há quem acredite que o investimento público feito naquela altura estava longe de ser suficiente. É verdade que em 2011 foi feito um corte nos investimentos públicos, mas penso que, embora a magnitude dos investimentos não tenha sido provavelmente a ideal, há elementos para caracterizar o período de 2011 a 2014 como um "ensaio desenvolvimentista". O governo Dilma foi um avanço em relação ao mandato anterior. É como se ela tivesse dito: “agora vamos pisar no acelerador”. Mas a decisão saiu cara, porque a reação do capital nacional e internacional foi violenta e, mais uma vez, não houve tentativas de mobilização dos trabalhadores para defender esse "ensaio".

Igor Peres

No meio do caminho desenvolvimentista havia uma pedra... Usando uma passagem de Tocqueville, para quem as grandes convulsões sociais eclodem “quando as coisas estão melhores”, em Os sentidos do lulismo prenunciava que o subproletariado começaria a ter suas próprias demandas. No entanto, ao analisar os protestos de 2013, você chega a conclusões diferentes sobre a composição social daqueles que saíram às ruas naquele momento. Gostaríamos que você voltasse à caracterização desse evento decisivo na história recente do Brasil

André Singer

Junho de 2013 representa, como Marx disse em outro contexto, "relâmpagos em um céu sereno". Eu investiguei com base nos dados disponíveis e minha conclusão é que o subproletariado estava ausente das manifestações, que contaram principalmente com a participação dos setores médio e alto. O que aconteceu em 2013 foi uma espécie de transformismo, mas das ruas. Começou como um protesto de esquerda, honesto, de jovens, com uma visão interessante, muito mais radical que o lulismo, sem dúvida. Aquelas pessoas, que não tinham nada a ver com o subproletariado, entenderam que a situação era melhor, mas que precisavam avançar, dar um passo à frente. O que acontece é que eles acordaram um monstro que não podiam controlar.

Em questão de dias, entre 13 e 17 de junho do mesmo mês, as manifestações mudaram completamente de sentido. É incrível. Houve uma sequência de manifestações de esquerda pela redução do preço das passagens de transporte, principalmente em São Paulo. Essas manifestações terminaram em uma grande repressão no dia 13, que foi criticada até pelos jornais mais conservadores, porque a polícia estava realmente fora de controle. Em reação a essa repressão, desencadeou-se uma manifestação que foi aproveitada pela classe média conservadora, que usou o argumento antirrepressivo para iniciar um movimento de massas contra o lulismo, que na cidade de São Paulo foi representado pelo prefeito Fernando Haddad , e contra o governo federal liderado por Dilma Rousseff.

Na época eu não entendia: parecia uma grande manifestação de esquerda, mas não era. Tanto que dois dias depois, em uma terceira manifestação, a esquerda foi expulsa das ruas. Grupos vestidos com camisetas da seleção brasileira de futebol começaram a aparecer. Não se sabia exatamente de onde vinham, mas hoje vemos que esse foi o germe do bolsonarismo. Acho que isso tem a ver com o fenômeno das redes sociais. Tudo isso aconteceu no subsolo. Não teria acontecido cinco anos antes. Foi um "transformismo espontâneo". Muitas pessoas da esquerda participaram das jornadas, que se espalharam pelo país, e não as critico, porque não foi fácil entender o que estava acontecendo. Às vezes, a extrema esquerda e a extrema direita protestavam na mesma avenida. Em São Paulo houve até conflitos entre essas forças, mas não em outros lugares.

Em suma, 2013 é um evento muito especial. Há autores que o relacionam com os casos da Turquia ou do Egito, mas o caso brasileiro é diferente. Mas o que aconteceu em junho de 2013 foi um ponto de virada. Desde então, a direita mudou de posição e partiu para a ofensiva contra o governo, o que impactará no golpe parlamentar de 2016.

Igor Peres

Além do "ensaio desenvolvimentista", em O lulismo em crise você argumenta que Dilma também teria promovido um segundo "ensaio" em seu primeiro mandato, que você chama de "republicano". A tentativa do ex-juiz Sergio Moro de se apresentar como representante da indignação social contra a corrupção pode ter relegado essa iniciativa às sombras, pouco comentada até mesmo por analistas políticos dedicados a esse período. Gostaríamos que você voltasse à ideia de um "ensaio republicano".

André Singer

O que verifiquei em minha pesquisa foi que Dilma, além de realizar o que chamei de "ensaio desenvolvimentista" —que teve mais visibilidade— implementou outras transformações sistemáticas que não chamaram tanta atenção. A ex-presidente implementou uma política sistemática de combate ao que no Brasil chamamos de fisiologismo, ou seja, a ocupação de espaços no Estado em benefício próprio. Dilma tomou decisões muito claras e distintas no sentido de combater o fisiologismo, que lhe custou a maioria no Congresso (especialmente na Câmara dos Deputados) e pelo qual pagou um alto custo.

Por sua decisão de combater a fisiologia, Eduardo Cunha (PMDB), representante por excelência dessa prática, foi eleito presidente da Câmara dos Deputados. Estamos falando de um político extremamente agressivo, com grande capacidade de ação e articulação nessa esfera do poder legislativo. Dilma foi, mais uma vez, muito corajosa. O que acontece é que ela não o fez de forma mobilizadora. Ela incitou bestas; no caso do que chamei de “ensaio republicano”, segundo ensaio de Dilma, estou me referindo a parlamentares ferozes, que ela decidiu enfrentar sem recorrer à mobilização para se sustentar. Ela o fez sem as bases sociais necessárias, e a única maneira de realizá-lo com sucesso seria através da mobilização massiva das forças sociais. É sempre um processo arriscado, mas é uma opção. É como se ela tivesse contado com a força da investidura presidencial, que é grande, mas não onipotente.

Por outro lado, está ocorrendo um processo completamente diferente, do qual participa o juiz Sergio Moro, e que começa em 2014. Estou me referindo à Operação Lava-Jato, que foi um processo extraordinário, que produziu descobertas incríveis, e que foi realizada por uma ação de tipo inédito no Brasil. A operação acabou sendo, em suma, uma manobra faccional cujo objetivo claro era destruir o PT e o ex-presidente Lula. Mesmo assim, ela tem um aspecto republicano por causa do que descobriu. Mas o uso político e partidário da operação era absurdo do ponto de vista democrático. Um juiz tem que ser imparcial, e o juiz Moro demonstrou sua imparcialidade ao aceitar se juntar ao governo Bolsonaro, que foi o principal beneficiário de suas ações. Quando isso aconteceu, sua aura escureceu e a tese da natureza facciosa da operação foi demonstrada.

Então fica claro que o ensaio republicano de Dilma e a operação Lava-Jato são dois processos totalmente diferentes. Onde eles se cruzam? Eles se cruzam quando a Operação Lava-Jato faz suas descobertas sobre a Petrobras. Quando isso aconteceu, fazia mais de um ano que Dilma havia afastado toda a gestão da empresa, sem que sua ação tivesse relação direta com a Lava-Jato. Involuntariamente, então, e em um fato incrível, os processos se cruzam. O processo político brasileiro daqueles anos produziu acontecimentos que deveriam fazer parte de qualquer compêndio da política mundial. Distâncias à parte, é como 2013: fatos fora do roteiro conhecido, processos com direções opostas que se cruzam inesperadamente.

Igor Peres

Fonte de inspiração para o ensaio desenvolvimentista, "o roosevelteanismo surgiu no centro capitalista numa fase de keynesianismo dominante", sustenta em O lulismo em crise. "Aplicado à questão brasileira em tempos de globalização e neoliberalismo, despedaçou o lulismo, levando a sociedade a um lugar distante de qualquer anseio igualitário."

Talvez hoje já estejamos em condições de dar um nome a esse "lugar" que você menciona; podemos chamar de bolsonarismo. Recentemente, você vem analisando o que você caracteriza como um processo de "reativação da direita" no Brasil. Você poderia nos explicar o que quer dizer com isso?

André Singer

Acho que o processo de impeachment foi um golpe parlamentar. Não foi um golpe no sentido clássico do termo, mas um golpe parlamentar típico dos processos de erosão da democracia que estão ocorrendo em todo o mundo. É um processo que ocorre dentro das leis. Não rompe com as constituições, mas usa-as: se faz um uso golpista das leis. O impeachment está previsto na Constituição. Mas a mesma constituição prevê que este instrumento só poderá ser acionado quando houver crime de responsabilidade. E é claro que a presidente Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade. Portanto, acho que foi um golpe parlamentar que abriu as portas para o desmonte da democracia brasileira.

O bolsonarismo é uma continuação desse processo. O governo Temer já havia sido um governo de retrocessos sociais e econômicos muito importantes, e o de Bolsonaro segue essa tendência. O importante é que em 2018 houve eleições relativamente representativas. Digo relativamente porque a participação de Lula na disputa foi impedida, e isso foi resultado de uma ação deliberada da Operação Lava-Jato para impedir sua volta ao governo. Mesmo assim, o PT decidiu reconhecer os resultados, e se o PT reconheceu os resultados, eles devem ser analisados.

Examinando os resultados dessas eleições de 2018, percebe-se uma reativação de uma base de direita que é muito forte no eleitorado brasileiro, embora não seja a maioria. A direita tem uma base eleitoral próxima de 30%, o que equivale ao peso que o lullismo tem em condições normais, ou seja, em momentos anteriores ao início das campanhas. Quando estas últimas são ativadas, os eleitores que estão localizados entre os dois extremos tendem a se deslocar.

A dinâmica da reativação funciona, por exemplo, quando Bolsonaro adota uma retórica anticomunista que a princípio pode soar extemporânea para alguns. E isso porque não há ameaça comunista real no Brasil, já que o lulismo, como argumentei, não é comunista. É verdade que houve um processo político e econômico mais forte com Dilma, mas sem mobilização, como também mencionei anteriormente. Podemos pensar também, mesmo no contexto do governo Dilma, nas manifestações de junho de 2013, mas aqui a radicalização foi liderada pela direita, não pela esquerda.

Então, por que a retórica anticomunista tem ressonância? Porque há uma base caracterizada pelo que chamei de "conservadorismo popular". Esse segmento há muito é identificado pela literatura brasileira dedicada ao assunto, mas ao mesmo tempo é um fenômeno ainda pouco compreendido. Essa base é composta por setores da classe média baixa aos quais se somam frações da massa trabalhadora. São setores que não dispõem de muitos recursos, mas que, pela existência de um grande subproletariado, funcionam como classes médias e têm medo de perder o que têm. Os setores vulneráveis ​​—que não têm quase nada— também temem a desordem, pois são o elo mais fraco. Eles querem uma mudança, mas pelo medo com que se alimentam, pedem que qualquer transformação seja feita dentro da ordem.

A combinação de uma situação econômica negativa —que começou em 2015, ainda no governo Dilma— e uma tradição ideológica que tem longa história no país criou as condições para uma reativação da direita, antes adormecida, por Bolsonaro.

Em um estudo recente tentei mostrar que o lulismo neutralizou e desmantelou aquele conservadorismo popular entre 2006 e 2014, mas que o preço a pagar por isso foi a desmobilização. Havia uma espécie de entorpecimento deliberado do conservadorismo causado pela política homeopática do lulismo, que procurava evitar o confronto. Temos que esperar para ver o que acontecerá no processo eleitoral de 2022. Embora com continuidades, estamos hoje diante de uma nova situação devido à presença de fenômenos políticos com componentes fascistas na política nacional e internacional. Isso não fazia parte do cenário global até 2016, nem no Brasil em 2018. Mas é algo que aqui, como talvez também na Argentina, veio para ficar.

Esta entrevista foi realizada no âmbito do ciclo "A conjuntura brasileira entre o passado e o futuro", promovido pelo Departamento de Estudos Políticos do Centro Cultural de Cooperação (Buenos Aires).

Sobre o entrevistado

Jornalista e professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Foi porta-voz do primeiro governo de Lula da Silva no Brasil.

Sobre o entrevistador

Igor Peres é doutor em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atuou como professor visitante na Escuela Interdisciplinaria de Altos Estudios Sociales (IDAES). Atualmente desenvolve pesquisas sobre lulismo e kirchnerismo em perspectiva comparada.

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