14 de julho de 1999

Restrição externa e crescimento

Antônio Corrêa de Lacerda


Entre os aspectos de ordem conjuntural que pautam o debate econômico atual, começa-se a esboçar uma discussão mais ampla sobre as condições estruturais da economia brasileira. A desvalorização do câmbio alterou positivamente a expectativa sobre o comportamento do nível de atividade econômica. Há evidentes aspectos positivos no desempenho do valor agregado local, seja por substituição de importações ou possibilidades de exportações.

A nova substituição de importações se dá, em um primeiro momento, em setores de tecnologia tradicional e que foram fortemente afetados pela valorização cambial dos últimos anos. Nesse caso se encaixam, entre outros, têxteis, calçados e bens de consumo em geral, setores em que já existem uma base instalada, um relativo domínio da tecnologia e economia de escala para atendimento do mercado interno, além do externo.

Quanto às exportações, a questão é mais complexa. Em primeiro lugar, o aumento da disposição de oferta por parte dos produtores brasileiros não significa, automaticamente, maior demanda dos importadores no mercado internacional. Além disso, o baixo crescimento do comércio mundial, a queda dos preços dos bens transacionáveis, especialmente commodities agrícolas, e o efeito das desvalorizações dos asiáticos (o que tem provocado quedas de preços de mercado) implicam que nem sempre maiores volumes de mercadorias exportadas signifiquem mais receita.

Nos dois casos, tanto na substituição de importações quanto no caso das exportações, a desvalorização cambial é uma condição necessária, mas não suficiente, para garantir o rompimento da restrição externa decorrente dos erros da política econômica dos últimos anos -especialmente a valorização do câmbio, a ausência de uma política de desenvolvimento (entendida como a articulação de política industrial, comercial, ciência e tecnologia, educacional etc.) e os elevados juros. Tudo isso determinou um processo de inserção passiva do Brasil no cenário internacional.

Além da estagnação da economia (que teve como consequências aumento da quebra de empresas, inadimplência elevada e crescimento do desemprego), como efeito direto temos o déficit em transações correntes, que no acumulado dos últimos 12 meses permanece em cerca de US$ 32 bilhões. E aí temos não só o efeito do déficit na balança comercial como também, e principalmente, na dos serviços, com destaque para juros, remessa de lucros e dividendos das empresas transnacionais, conta de viagens internacionais e gastos com fretes e seguros.

O fato é que, em condições internas e externas diferentes, retomamos, neste final da década de 90, a restrição externa vivida pelo Brasil no início dos anos 80, em que o comportamento "stop and go" da economia brasileira foi determinante para o resultado da década perdida. O avanço do déficit em transações correntes nos últimos quatro anos, de 0,3% do PIB (Produto Interno Bruto) em 1994 para cerca de 4,5% do PIB em 1998, retomou a questão justamente num momento em que os efeitos das crises asiática e russa tornavam o financiamento aos países em desenvolvimento mais seletivo.

Embora em 1999 deva ocorrer uma diminuição substantiva do déficit em transações correntes -em números absolutos, para algo entre US$ 22 bilhões e US$ 24 bilhões-, essa diminuição será menor em termos relativos (de 4,5% para algo entre 3,5% e 4,0% do PIB), já que este, expresso em dólares, diminuirá substancialmente, pelo efeito da desvalorização cambial (de cerca de US$ 800 bilhões em 1998 para US$ 600 bilhões em 1999). A redução do déficit em transações correntes deste ano é fruto direto da desvalorização cambial e da retração de atividade, que diminuem a demanda por importações e, consequentemente, despesas com fretes e seguros e gastos de viagens internacionais.

A questão é que há um desequilíbrio estrutural da balança de serviços, decorrente principalmente da conta de juros e de remessas de lucros e dividendos. Para esse desequilíbrio ser compensado, dependemos fundamentalmente de um superávit na balança comercial. Ou seja, para eliminar a restrição externa ao crescimento, é fundamental que as exportações cresçam acima das importações e do nível de atividades.

Quanto à condução da política econômica e às suas opções, a experiência destes últimos meses trouxe-nos algumas lições importantes. Apesar de tardia e realizada de maneira atabalhoada, a desvalorização trouxe uma nova dinâmica para a economia brasileira e a oportunidade de uma virada na política econômica, de forma a compatibilizar estabilização de preços com uma política de desenvolvimento.

Os fatos desfizeram os mitos de que a política cambial era intocável e que a desvalorização traria a completa desorganização da economia. A sustentação cada vez mais difícil do câmbio valorizado tornou-nos mais vulneráveis do ponto de vista externo e implicou rigidez das taxas de juros, o que travou a atividade econômica e desorganizou as contas públicas, inviabilizando o Estado brasileiro.

Não é o caso de "chorar o leite derramado", mas é de lamentar que a mudança na política econômica tenha sido tratada como mito intocável durante tanto tempo. Isso levou a custos econômicos e sociais elevados, apesar das análises críticas de economistas e de segmentos importantes da sociedade brasileira, sempre desqualificados pelos condutores da política econômica.

Antônio Corrêa de Lacerda, 42, economista, é presidente do Conselho Federal de Economia, professor da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e autor de "O Impacto da Globalização na Economia Brasileira" (Contexto).

E-mail: lacerda@cofecon.org.br

4 de julho de 1999

Raízes do autoritarismo brasileiro

Lições contemporâneas

Maria da Conceição Tavares

Em homenagem aos mortos na luta pela terra

Folha de S.Paulo

Na nossa história recente, as raras passagens pela democracia política nunca conseguiram estabelecer um Estado de Direito com instituições capazes de conter dentro delas o seu próprio aperfeiçoamento. A moldura de regulação dos conflitos das oligarquias territoriais e financeiras sempre ameaça rasgar-se ao menor solavanco nas relações de poder intraburguesas. As lutas paralelas dos movimentos sociais sempre serviram de pretexto para o endurecimento do regime político. O acesso à terra, a educação e os direitos do trabalho nunca puderam ser reivindicados abertamente pela nossa população rural e urbana nos marcos do nosso precário Estado de Direito. Não por falta de "leis", mas porque uma das marcas terríveis do nosso capitalismo selvagem foi a descolagem completa entre a ideologia das elites bacharelescas liberais ou libertárias e os pactos de poder ferozmente conservadores que conduziram o país por meio de sucessivas alianças entre as cúpulas políticas territoriais e as cúpulas do poder ligadas ao Império e ao dinheiro.

Nossas "transições democráticas interrompidas" nunca alteraram a marcha batida do capitalismo excludente, dando a impressão sistemática de que os ideais reformistas ou revolucionários estão "fora de lugar", quando na verdade as idéias postas em prática pela chamada "sociedade civil" burguesa brasileira sempre estiveram no lugar: o de manter em movimento o "moinho satânico" do capital em suas várias formas.

Para manter o movimento do dinheiro e assegurar a propriedade do território -a ser retalhado e reocupado por formas mercantis sempre renovadas de acumulação patrimonial-, o Estado brasileiro é chamado periodicamente a intervir de forma centralizada e arbitrária. Os propósitos da intervenção autoritária são sempre os mesmos: manter a segurança e o domínio das nossas classes proprietárias ou tentar validar o estoque de riquezas acumulado, tanto pelo capital nacional como estrangeiro.

As nossas reformas burguesas sempre tiveram como limites dois medos seculares das nossas elites ilustradas: o medo do Império e o medo do povo. Todas as tentativas reformistas democráticas tenderam sistematicamente a extravasar os limites de tolerância da dominação oligárquica, fosse ele estabelecido pelas armas ou pelo famoso "pacto de compromisso" das elites políticas e sociais. A tentativa de conciliar o mandonismo das nossas burguesias regionais, donas do território, com o cosmopolitismo dos donos do dinheiro associados ao Império sempre produziu alianças políticas que excluíram os interesses majoritários da cidadania. Esse forte autoritarismo ligado à terra e ao dinheiro serviu sempre de embasamento para aniquilar as lutas populares e das classes médias radicalizadas, nas suas tentativas recorrentes de levar à prática as, nunca concluídas, reformas democráticas.

Nem os pactos oligárquicos, liberais ou autoritários, nem os projetos "nacional-desenvolvimentistas" encontraram tempo, dinheiro ou razão suficientes para levar adiante a reforma agrária e o ensino básico universal. Os sucessivos pronunciamentos sobre a "necessidade" de reforma agrária -desde o patriarca da Independência, passando pelo programa do Estatuto da Terra do governo Castelo Branco até os nossos dias- dão uma demonstração inequívoca da falta de vontade política do nosso poder central de enquadrar num pacto social concreto os direitos do nosso povo. Mesmo quando consagrados explicitamente em "pactos constitucionais", sempre formais e "provisórios".

A "necessidade" de ensino público fundamental também vem sendo reiterada como "direito universal" desde o Ministério da Educação do Estado Novo até o governo Fernando Henrique Cardoso, com os resultados conhecidos. No Brasil, até hoje, as tradicionais reformas burguesas continuam, portanto, sendo "revolucionárias" e, como tal, difíceis de aceitar pela ordem social vigente.

O fato de a nossa "revolução democrática-burguesa" continuar "incompleta" não se justifica, porém, nem pelo caráter tardio do nosso capitalismo, nem porque os nossos burocratas de Estado sempre procuraram fazer a "revolução pelo alto". Muitos outros países de capitalismo tardio, com governos autoritários e sociedades atrasadas, no seu processo de construção nacional, levaram a cabo as reformas agrárias e de ensino, requeridas pelas suas "modernizações conservadoras".

Na verdade, a história vitoriosa da constituição do capitalismo em mais de cinco quartos de século de Brasil independente e os seus percalços e "desvios históricos", do ponto de vista da incorporação popular, parecem dever pouco tanto à herança colonial quanto às idéias iluministas que animaram os corações e mentes de nossas elites bem pensantes.

O dado estrutural mais relevante para a história social e política da nossa "modernidade" parece ter sido sempre a apropriação privada de um território de dimensões continentais apenas para valorização mercantil-patrimonialista, sem que o uso social da terra e dos seus recursos naturais fosse levado em consideração pelos sucessivos regimes "republicanos" e pelas repetidas "reformas fiscais".

Ordem sempre significou domínio duro das classes proprietárias sobre a terra e as classes subordinadas, e progresso sempre resultou na acumulação "familiar" de capital e riqueza, qualquer que fosse a inspiração ideológica, positivista ou liberal, das elites no poder. Nunca se conseguiu constituir, por isso, nenhuma espécie de consenso amplo da "sociedade civil" sobre como governar de forma democrática o nosso país.

O processo de deslocamentos espaciais maciços das migrações rurais, em busca de terra, e rurais-urbanas, em busca de trabalho remunerado, produziu mudanças radicais nas condições de vida das nossas populações, mas sempre com um alargamento nas formas de exploração da mão-de-obra. Esse imenso processo "migratório" e de deslocamento recorrente das "fronteiras" de ocupação e de exploração capitalista não permitiu, até hoje, a formação de classes sociais subordinadas mais homogêneas e sedimentadas capazes de um enfrentamento sistemático com as classes dominantes que pudesse levar a uma ordem civil burguesa estabilizada e democrática.

Por sua vez, a "ordem" das elites de negócios sempre foi capaz de mudar as "regras jurídicas" e fazer "contratos de gaveta", produzindo assim uma sociedade mercantil predatória em constante "fuga para a frente", sem normas e sem dinheiro permanentes. A nossa (des)ordem civil burguesa jamais foi capaz de auto-administrar-se nos marcos de um Estado de Direito que respeitasse pelo menos os contratos privados, que dizer o direito público das gentes. Recorrendo periodicamente a golpes militares ou a elites políticas "salvacionistas", as classes dominantes brasileiras não enfrentaram até hoje uma acumulação política de forças democráticas acompanhadas de uma participação societária popular, capazes de produzir uma verdadeira sociedade civil emancipada.

As "forças de ocupação" dos donos do Império, do Território e do Dinheiro sobrepuseram-se sempre aos interesses de vida da maioria da população brasileira. Percorrendo os seus caminhos de dominação, ao longo dos últimos dois séculos, podem ser encontradas as razões da riqueza e da miséria da nação brasileira. É por isso que as bandeiras da emancipação nacional, da democracia e da justiça social continuam, hoje como ontem, a ser bandeiras esfarrapadas por sucessivas derrotas.

No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis e, enquanto não se tornarem uma ideologia hegemônica e consciente da maioria da sociedade nos sucessivos embates das lutas populares, não será possível mudar o significado histórico de um projeto de desenvolvimento para o futuro.

Maria da Conceição Tavares, 68, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

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