1 de novembro de 2002

Classes, economia e a segunda Intifada

Adam Hanieh



Tradução / A atual Intifada palestina e a brutal resposta de Israel tem sido objeto de inúmeros artigos de opinião durante os últimos dois anos. No âmbito das análises da esquerda há um vácuo decepcionante, com muito dos escritos tentando explicar o caráter da política israelense através da opinião de direita de Ariel Sharon. Dentro deste esquema, a estratégia de Israel é apresentada como uma extensão racista dos desígnios colonialistas nos Territórios Ocupados incluindo por vezes a expulsão de palestinos da Cisjordânia e Faixa de Gaza (daqui para a frente referidas como C/ FG).

O que está de modo impressionante ausente de, virtualmente, toda a análise de esquerda é qualquer discussão de classe e de economia política tanto em Israel como nos Territórios Ocupados. Embora possa parecer uma acusação estranha a ser feita a textos compreendidos na área da esquerda, acredito que a ausência de uma análise de classe é em si mesmo uma indicação da confusão de muitas das análises de esquerda sobre o Estado de Israel. Para a maior parte da esquerda, a política de Israel é simplesmente entendida como um binômio de opostos entre a direita Likud e a inclinação mais pacífica do Partido Trabalhista. Pretendo mostrar mais à frente que esta visão resulta de uma errada aproximação ao entendimento da formação das classes em Israel e que se não se colocar as classes sociais no centro da nossa análise torna-se difícil desenvolver uma compreensão adequada do que realmente está acontecendo.

No fundamental, argumento que o capitalismo israelense foi trazido à existência pelo movimento trabalhista sionista (hoje representado pelo Partido Trabalhista) e que o processo de Oslo foi um passo chave na sua formação. [1] A guerra de Israel contra o povo palestiniano é, hoje, a extensão lógica deste processo apontando para a criação de um Estado-cantão palestino. Devido ao papel central do movimento trabalhista sionista na construção do capitalismo israelense, os termos “esquerda” e “direita” são frequentemente confundidos no caso israelense.

Além do mais, durante os últimos dez anos, Israel tem-se progressivamente libertado da dependência da mão-de-obra barata palestina enquanto estreita a dependência dos Territórios Ocupados relativamente à economia israelense. O resultado é uma sociedade palestina com uma estrutura de classes fortemente distorcida – uma classe capitalista dependente de relações privilegiadas com o capital israelense e uma classe operária com pouco peso estratégico na luta de libertação.

Classes e Estado na sociedade de Israel

Muitos dos comentários, acadêmicos ou populares sobre Israel, vêem no peso predominante do Estado de Israel nas primeiras quatro décadas desde o estabelecimento do país em 1948 uma evidência de Israel como tendo constituído uma economia socialista. Esta crença encontra suporte na determinação política coletiva – particularmente o movimento Kibbutz – e na força do movimento sindical, o Histadrut, o maior empregador singular durante a maior parte da história de Israel. [2]

Desde os meados de 80, conhecendo uma aceleração durante os anos 90, a política econômica de Israel sofreu uma dramática transformação. Durante os últimos cinquenta anos, a estrutura econômica do país alterou-se significativamente e Israel abraçou a visão em expansão do capitalismo global. Largamente baseado nas receitas do FMI e do BM, o governo israelense privatizou empresas, distendeu o controle governamental sobre o mercado de capitais e reduziu os salários reais.

As abordagens tradicionais relativamente à política econômica de Israel tendem a explicar estas mudanças como resultado de uma alteração ideológica nas elites israelenses. De acordo com essas abordagens os líderes israelenses abraçaram as receitas do capitalismo neoliberal em meados da década de 80 tendo em conta os problemas econômicos de Israel, depois de serem portadores de uma versão da ideologia socialista.

Em contraste, uma nova geração de pensadores israelenses escrevendo sobre as últimas décadas têm argumentado da necessidade de uma nova abordagem relativamente à compreensão das autoridades israelenses. [3] Têm argumentado que o desenvolvimento do movimento sionista é melhor compreendido no contexto do movimento colonizador tentando ganhar controle sobre a terra e o mercado de trabalho. A classe capitalista privada do movimento colonizador inicial era fraca e dividida, e a aproximação coletivista do movimento colonizador liderado pelo movimento trabalhista sionista constituiu a mais eficaz forma de colonização da terra e de expulsão da população árabe. A força do Histadrut e o papel central do movimento trabalhista sionista é melhor entendido através da fragilidade da classe capitalista judaica existente antes de 1948 e da necessidade de fornecer trabalho aos imigrantes judeus em simultâneo com a exclusão dos operários palestinos do mercado de trabalho como antecâmara da expulsão.

Devido à natureza embrionária tanto da classe capitalista como da operária durante o período de colonização, o Estado de Israel desenvolvido após 1948 estava empenhado não apenas na colonização da terra mas na construção da própria estrutura de classes. Esta formação de classes passou por duas fases chaves entre o período de 1948 e 1985:

1. 1948-1973: Este período foi caracterizado por elevados níveis de crescimento financiados por transferências unilaterais de capital provindos das reparações alemãs e de judeus no exterior. Foi um período inicial de formação do Estado e das classes. Deste modo o Estado direcionou virtualmente todas as transferências de capitais para os grupos econômicos considerados aliados no “projeto nacional”. Grupos esses que evoluíram para conglomerados chave dominando a economia israelense nos anos seguintes. A classe operária israelense foi formada através de elevados níveis de imigração de judeus árabes, africanos e asiáticos – que etnicamente se definiram como os “Mizrahim.”

Seguindo a ocupação israelense da C/ FG em 1967, a economia israelense experimentou o chamado boom palestino. A ocupação incrementou de modo significativo o mercado doméstico de Israel e forneceu outra fonte de força de trabalho. [4] Esta força de trabalho era barata e altamente explorada e, por meados da década de 80, os palestinos da C/ FG constituíam cerca de 7% da força de trabalho israelense. Cerca de um terço da força de trabalho da C/ FG trabalhava em Israel em 1985, com 47% deste número a trabalhar na indústria de construção. Esta força de trabalho barata proporcionou um grande impulso à economia israelense preenchendo os mais baixos níveis do mercado de trabalho e cobrindo alguma carência motivada pelo prolongado serviço militar israelense. Permitiu também a alguns trabalhadores Mizrahim subirem a posições de controle e de supervisão, reduzindo assim alguma tensão étnica surgida durante a década de 70 entre os Mizrahim e os judeus europeus.

2. 1974-1985: No final da década de 60, o largo núcleo de conglomerados fundiram-se em cinco grupos – Koor, Hapoalim, Leumi, Clal e IDB. Os primeiros quatro grupos eram controlados pelo Estado, Histadrut e o movimento trabalhista sionista, enquanto o IDB era privado. Começando com a ocupação israelense da C/ FG em 1967 e acelerada com a guerra de 1973, a produção militar passou a ocupar o centro da política econômica de Israel. Estes gastos militares eram contratados pelo Estado a grupos econômicos e levaram a taxas massivas de acumulação para o núcleo central dos grupos econômicos enquanto a economia como um todo sofria de estagflação. [5]

Em meados da década de 80, este sistema começou a ser abalado por um número variado de fatores. Ao nível global, a recessão e a queda de encomendas militares no mercado internacional começaram a limitar os lucros dos grupos. Ao nível local, os primeiros sintomas de hiperinflação começou a estrangular a economia como um todo e tornou o planejamento financeiro difícil.

Em resposta a estas alterações, o Estado – sob a tutela da ala trabalhista do movimento sionista – empreendeu uma significativa mudança de direção que começou com o Plano de Estabilização Econômica de 1985 (PEE). Esta mudança consistiu em quatro processos inter-relacionados:

1. Uma alteração da relação entre o Estado e os grupos econômicos chave. O PEE inaugurou uma nova fase na relação do Estado com a classe capitalista. Os grupos econômicos fundamentais foram separados do aparelho de Estado passando para as mãos da nova classe capitalista. O Estado não mais protegeria estes grupos, sendo que eles tornaram-se locais fundamentais de acumulação de capital para uma verdadeira classe capitalista. Isto foi conseguido através da fratura do império Histadrut, passando as suas componentes para o setor privado, e da privatização de setores governamentais.

2. A coalescência de uma nova classe capitalista. Esta classe capitalista veio de uma fusão de três diferentes fontes: do capital global – frequentemente com ligações ao movimento sionista – como o capitalista americano Ted Arison e o bilionário canadense Charles Bronfman; capital privado local anteriormente suportado pelo Estado, como as famílias Recanati e Ofer; e em terceiro lugar elementos da burocracia estatal que chefiaram a ESP e o processo de privatização.

3. A inserção de Israel na economia global. Começando em meados da década de 80, a economia israelense foi sendo integrada na economia mundial através da redução das taxas aduaneiras e das normas de investimento. A classe capitalista, mencionada no ponto anterior não era homogênea. O terceiro setor da classe capitalista atrás mencionada, anteriormente da burocracia estatal, tendeu a constituir-se em gestores de novas companhias privadas. Seguindo o início das negociações com os palestinos no princípio da década de 1990, um vasto setor de capitalistas oriundos de Israel foram integrados no novo mundo globalizado através de significativos investimentos e ligações financeiras com o capital estrangeiro, em particular nos Estados Unidos e Ásia. Em terceiro lugar, o capital internacional – particularmente o americano – começou a investir de modo muito significativo em Israel, à medida que o país se integrava na ordem mundial capitalista.

4. Reestruturação da relação entre classes. A quebra dos conglomerados e do império Histadrut teve um significativo impacto nas relações entre a classe operária e a classe capitalista. O antigo sistema, onde coexistiu uma camada privilegiada de trabalhadores com um sector altamente explorado foi abaixo através da ruptura da ligação entre o Histadrut e a economia. Houve um largo aumento da taxa de exploração da classe operária reflectida em altas taxas de produtividade excedendo o aumento real de salários. Várias políticas estatais contribuíram para isto, em particular a desvalorização da moeda e o enfraquecimento da ajuda sobre o custo de vida que estava a ser pago para compensar a inflação. Alem do mais, políticas fiscais governamentais tais como o fim ou diminuição dos subsídios a certos bens contribuíram para uma transferência de riqueza dos mais pobres para a nova classe capitalista.

Estas medidas, caracterizadoras da “nova” política econômica de Israel, tiveram reflexos a nível político e cultural. Algumas indicações destas mudanças incluem: (1) o aumento de organizações cívicas e movimentos extra-parlamentares à medida que o governo se retirava da esfera pública, (2) um aumento da “MacDonaldização” da cultura israelense à medida que o capital norte-americano penetrava na economia e, (3) desenvolvimentos políticos como o processo de Oslo que constituiu um passo fundamental no movimento do capital israelense para um patamar global e regional.

Deve ser salientado que a força motriz deste processo foi o Partido Trabalhista. A sua base social de apoio foi tradicionalmente constituída pelos judeus mais abastados da Europa e América, enquanto o rival Likud começou a ganhar apoios entre as camadas mais pobres de judeus vindos de África e do Oriente Médio (Mizrahim) nos anos setenta. O partido Likud ganhou as suas primeiras eleições em 1977, em larga medida devido ao suporte dos mais pobres e da posição de inferioridade dos Mizrahim em simultâneo com a visão de que o partido Trabalhista representava a elite de judeus europeus. Hoje em dia é mínima a diferença entre as politicas econômicas dos Trabalhistas e do Likud – ambos abraçaram sinceramente como sua a política neoliberal dominante. A nível político existe, de igual modo, uma coincidência entre as correntes fundamentais dos Trabalhistas e do Likud relativamente ao conflito palestiniano. É esta convergência entre os trabalhistas e o Likud que explica o colapso do partido Trabalhista como força política em Israel. [6]

Oslo e o capitalismo israelense

No início do processo de Oslo, a classe capitalista emergente encorajava as negociações. Um exemplo típico foi Benny Gaon. Gaon tornou-se presidente da companhia de bandeira da Histadrut, a Koor em 1987, e dirigiu a privatização da companhia. Para Gaon e a nova classe capitalista israelense, Oslo era um passo essencial na abertura de Israel ao mercado global. De acordo com este ponto de vista, seria impossível atrair um significativo investimento estrangeiro enquanto o conflito persistisse. Seria igualmente difícil para as companhias de Israel investir nos Estados Unidos, Europa, ou nos chamados mercados emergentes sem uma resolução política do conflito Israel-palestino. Koor lançou o seu Projeto de Paz pouco após a assinatura da Declaração de Princípios em 1993, e que uniu homens de negócios israelenses, palestinos, árabes e europeus em projetos de investimentos conjuntos na região. Foi também um parceiro importante da Autoridade Palestina em projetos de infra-estrutura e de exportação para a C/ FG.

A razão deste apoio foi largamente sustentada na necessidade de acabar o boicote árabe à economia israelense e no assegurar da estabilidade do ambiente econômico em Israel. Israel apontou como objetivo subcontratar industrias de baixa tecnologia, como as têxteis, no Egito e Jordânia, com uma mão-de-obra muito mais barata do que em Israel. Em larga medida, este foi um objetivo conseguido, com companhias israelenses agora a produzirem em zonas industriais da Jordânia, Egito e nos Territórios Ocupados.

Com início em 1993, Israel começou, planejadamente, a substituir os trabalhadores palestinos que ali trabalhavam desde 1967, por mão-de-obra importada da Ásia e do leste da Europa. Ainda que esta mão-de-obra fosse ligeiramente mais cara e tivessem que ser alojados e trazidos para o país eram altamente explorados e, frequentemente, “ilegais” (ainda que com o conhecimento completo das autoridades israelenses). Eles formaram um exército de reserva de força de trabalho ideal pois facilmente podiam ser deportados para o país de origem com base na acusação de permanecerem no país ilegalmente.

Mais importante, os trabalhadores estrangeiros que chegavam em centenas de milhares após os acordos de Oslo significava que a economia israelense não estava mais dependente de trabalhadores palestinos. Em vez disso, o trabalho palestiniano tornou-se uma “torneira” que podia ser aberta ou fechada dependendo da situação política e econômica. Entre 1992 e 1996, o emprego palestino em Israel desceu de 116.000 trabalhadores (33% da força de trabalho palestiniana) para 28.100 (6% da força de trabalho palestina). Os dividendos provenientes do trabalho em Israel desceram de 25% do PIB palestino em 1992 para 6% em 1996. [7] Entre 1997 e 1999, com uma melhoria na economia israelense houve um aumento de trabalhadores israelenses para níveis anteriores a 1993. No entanto, no seguimento da corrente Intifada, o número de trabalhadores desceu drasticamente devido ao fechamento de fronteiras e recusa de autorização de entrada. Desde setembro de 2000 cerca de 75 a 80.000 palestinos perderam o seu trabalho dentro de Israel ou nos colonatos. Este quadro indicia que a força de trabalho palestina em Israel tornou-se uma segunda reserva de força de trabalho, a par com os trabalhadores estrangeiros.

Relação entre a Autoridade Palestiniana e Israel

O ponto capital da estratégia israelense para com a C/ FG é o controle sobre a população palestina sem uma administração militar direta sobre cidades e vilas. Oslo tentou manter o movimento palestino, economia e fronteiras sob controle israelense ao mesmo tempo que a Autoridade Palestiniana (AP) governava os territórios com um poder assentado no acordo dos governos de Israel e dos Estados Unidos. A primeira responsabilidade da Autoridade Palestina era assegurar a “segurança” de Israel – i.e., agir como uma força policial da autoridade ocupante. No sentido colonialista clássico, os palestinianos deveriam poder ser governados por eles próprios, mas cuidadosamente circunscritos ao contexto de uma dominação e controle israelense.

A economia palestina é completamente integrada e dependente da economia israelense. Aproximadamente 75% de todas as importações para a C/ FG vêm de Israel com 95% das exportações destes territórios a terem como destino Israel. O completo controle das fronteiras por Israel significa a impossibilidade para a economia palestina de desenvolver relações comerciais significativas com um terceiro país. A C/ FG é altamente dependente de bens importados, chegando estes a aproximadamente 80% do PIB. Nesta situação de uma produção local muito fraca e de grande dependência de importações, o poder econômico da classe capitalista palestina não surge da produção industrial local sendo antes de natureza mercantil. Os seus lucros surgem dos direitos exclusivos de importação de bens israelenses e do controle de grandes monopólios concessionados aos leais a Arafat. A relação privilegiada com o capital israelense é a característica definidora da burguesia palestina. Desde 1993 a burguesia fundiu-se com seções da burocracia da Autoridade Palestina, formando um pilar importante da governança palestina.

Desde o início do processo de Oslo, a Autoridade Palestina tem estado completamente dependente de Israel, dos Estados Unidos e da Europa na garantia da sua própria existência. Entre 1995 e 2000, 60% da receita total da Autoridade Palestina advém de taxas indiretas coletadas pelo governo de Israel de bens importados do estrangeiro e destinados aos Territórios Ocupados. Estes dinheiros são recebidos pelo governo israelense e depois transferido todos os meses para a Autoridade Palestiniana de acordo com um processo definido no acordo econômico do Protocolo de Paris em 1995. [8] Significa isto que se o governo israelense decidisse reter esse dinheiro – como acontece desde dezembro de 2000 – a Autoridade Palestina encontrar-se-ia numa grave crise fiscal.

As outras fontes maiores de rendimento da Autoridade Palestina são donativos vindos dos Estados Unidos, Europa e governos árabes. Em 2001, estes fundos cobriram cerca de 75% do orçamento para salários da Autoridade Palestina. Sem ele, 122.000 empregados da Autoridade Palestina não teriam sido pagos. Além disto, doadores estrangeiros suportam programas de emergência como o auxílio alimentar, esquemas de criação de emprego e reconstrução de infra-estruturas destruídas. O défice comercial total da C/ FG representa 45 a 50% do PIB, sendo principalmente financiado por ajuda internacional.

Esta relação entre as áreas palestinas e a economia de Israel assim como a natureza mercantil da classe capitalista palestina deu um caráter distintivo à classe operária palestina. A força de trabalho está dividida em três grandes áreas de emprego – trabalhadores em Israel e nos colonatos que são gravemente afetados pela situação vivida, um largo número de empregados no setor público da Autoridade Palestina, e um setor privado dominado pelo pequeno comércio. Não existe, virtualmente, nenhuma classe operária industrial a mencionar na C/ FG.

Enquanto a força de trabalho palestina em Israel tem diminuído de importância para a economia israelense, ela ainda constitui uma proporção significativa da força de trabalho total. Nos meses que antecederam a Intifada em 2000, mais de 20% da força de trabalho palestina da C/ FG (excluindo Jerusalém) trabalhava em Israel ou nos colonatos.

Em 1998, durante a primeira insurreição nos Territórios Ocupados, a proporção da força de trabalho palestina dentro de Israel ascendia a 50%. Portanto, durante doze anos houve uma quebra de 60% na proporção de trabalhadores palestinos a trabalhar para empregadores israelenses. Para onde foram estes trabalhadores?

O maior setor de emprego desde o processo de Oslo tem sido o setor público da Autoridade Palestina, que dá conta de cerca de 25% do emprego na economia local. A proporção da força de trabalho empregada no setor público quase que duplicou desde meados de 1996. Mais de metade dos gastos da Autoridade Palestina é em salários para o setor público.

O terceiro maior setor de emprego é o setor privado, particularmente na área dos serviços. O que distingue este setor é que é esmagadoramente dominado por pequenos negócios familiares. Do território palestino está ausente qualquer grande indústria significativa devido a 30 anos de políticas anti-desenvolvimentistas de Israel. Para cima de 90% do setor privado palestino emprega menos de dez pessoas.

Implicações políticas

A nível econômico, Oslo sustentou o desenvolvimento de uma classe capitalista parasitária estabelecida na confiança com o capital israelense para obter os seus ganhos. Entretanto Israel acabou com a sua dependência da força de trabalho barata palestina através de um fluxo maciço de altamente explorados trabalhadores estrangeiros. Como alternativa, os trabalhadores palestinos tornaram-se um exército de reserva usados ou deitados fora arbitrariamente.

Décadas de políticas anti-desenvolvimentistas e o completo controle sobre o território significa para os trabalhadores palestinianos ou a dependência de um setor público pago pela ajuda internacional, ou a concentração em empresas pequenas e familiares.

Esta estrutura da classe operária palestiniana é altamente significativa em termos de estratégia política. Ainda que a classe operária palestina seja numerosa, não há nenhum setor com peso econômico no sentido de organizar uma estratégia de classe no centro do movimento nacional de libertação palestiniana. Situação que difere, talvez, do exemplo do movimento anti-apartheid na África do Sul, na qual a classe operária organizada – e particularmente os mineiros – foram capazes de desempenhar um papel central no movimento.

A realidade desta estrutura de classes tem uma clara expressão no terreno. Desde abril deste ano, cerca de 700.000 pessoas na Cijordânia têm vivido sob recolher obrigatório na maior parte do tempo. Recolher obrigatório – de fato, prisão domiciliar –, significa que ninguém que viva numa cidade palestina importante possa deixar a sua casa sem a ameaça de ser morto pelo exército israelense. Os dias em que o recolher obrigatório é levantado por algumas horas dão aos residentes tempo suficiente para comprar comida e ver amigos, mas não para manter qualquer atividade produtiva. Num tal contexto o planejamento básico da vida torna-se uma impossibilidade. É impossível saber, de um dia para o outro, se se está em condições de ir trabalhar, de ir à escola ou universidade. O resultado é uma população cuja vida foi colocada em pausa.

A realidade do recolher obrigatório ilustra perfeitamente as mudanças na estrutura de classes tanto israelenses como palestinas, desde Oslo. Numa sociedade capitalista funcionando normalmente, este tipo de situação seria impossível pois levaria à paralisação de todo o setor produtivo em alguns meses. Durante a primeira Intifada, começada em 1988, Israel impôs também toques de recolher obrigatórios regulares em algumas cidades e vilas, mas nunca por um período e à escala atual. Estas medidas, assim como a não ida ao trabalho durante a primeira Intifada causada por greves gerais, levou o chefe do Serviço de Emprego de Israel a apelidar a situação de “traumática” para a economia israelense. Hoje, todos os líderes políticos israelenses apoiam a permanência do recolher obrigatório e defendem a separação econômica.

A estrutura da classe operária palestina afeta profundamente a estratégia política da Intifada. Os conceitos de greves ou outras ações laborais não existem, pois não têm qualquer efeito sobre a economia de Israel e só afetaria os trabalhadores palestinos e suas famílias. Outra sugestão de ação política regularmente levantada durante a Intifada é o boicote aos produtos israelenses. Apesar de algumas tentativas simbólicas, a relação econômica entre as economias israelenses e palestinas torna estas ações virtualmente impossíveis pois a maioria dos produtos são importados de Israel. Não há nenhuma fonte local de produtos diariamente necessários, como cimento, carne, muitos frutos e vegetais ou produtos elétricos. Eletricidade, linhas telefônicas, água e mesmo a Internet palestina é, em última instância, controlada pelo governo israelense.

Está Oslo morto?

Um comentário comum que se ouve nos principais meios de comunicação assim como em meios da Autoridade Palestina e do governo israelense é que a atual Intifada representa o fim do processo de Oslo. Alguns comentadores palestinos acusam Israel de querer destruir a Autoridade Palestina e voltar à chamada Administração Civil israelense que governou a C/ FG até 1993.

O problema com estas afirmações é que, numa análise mais fina, elas têm pouca semelhança com o que está realmente a acontecer no terreno. É importante aqui distinguir entre o que Oslo pretendeu representar e o que foi planejado para atingir.

Se o processo de Oslo é compreendido como uma estratégia para a criação de um estado cantão — pouco importando os apertos de mão nos jardins da Casa Branca —, então é claro que Oslo está longe de estar morto. Durante o último mês, o governo israelense tem levado a cabo um plano com o propósito de expropriar terras na Cijordânia forçando os palestinos a moverem-se para esses cantões. Este plano assemelha-se às reservas edificadas pelo governo sul-africano para a população negra durante os tempos do apartheid. Um muro de nove metros de altura estendendo-se por centenas de quilômetros está sendo construído em torno das cidades do nordeste da Cijordânia de Nablus, Jenin, Qalqilya e Tulkarem. Um muro similar está a ser construído à volta de Jerusalém. Em conjugação com isto, um novo sistema de passagem está a ser implementado, requerendo que cada palestino que deseje ir de uma cidade palestina a outra deva obter uma autorização semanal especial fornecida pelo comandante militar israelense na Cijordânia. Todas as mercadorias para as áreas palestinas têm que passar por um dos três pontos de trânsito sob controle militar israelense. No essencial, a Cijordânia foi dividida em três cantões – norte, centro e sul da Cijordânia – com todos os movimentos de mercadorias ou pessoas entre essas áreas sob controle dos militares israelenses.

Esses três cantões na Cijordânia estão separados por grandes blocos de colonatos e grandes rodovias indisponível aos palestinianos. Placas especiais distinguem condutores israelenses e palestinianos, constituindo outro pilar do sistema de apartheid emergente na Cijordânia.

A população palestina na Faixa de Gaza foi efetivamente separada de qualquer conexão com a Cijordânia durante mais de uma década, constituindo de fato o quarto cantão nos planos israelenses. A Faixa de Gaza está vedada por uma barreira desde há muitos anos e é agora uma das zonas do planeta mais densamente povoadas – com um milhão de pessoas literalmente fechadas em alguns quilômetros quadrados. São mesmo requeridas autorizações dos militares israelenses para os pescadores palestinos que vão ao mar para o ganha-pão.

Para além deste processo estão as alterações econômicas acima delineadas: uma tentativa do capitalismo israelense de impor uma solução política para o conflito que ajudasse a integração de Israel no mercado global; permitisse a liberalização da economia israelense, a redução das despesas militares e a abertura dos mercados de trabalho e de consumidores do Oriente Médio à economia israelense.

O maior impedimento a este processo é constituído pelas massas palestinas, não a AP. O objetivo da atual estratégia israelense não é a destruição da AP mas exatamente o oposto, fortalecendo-a a fim de melhor reprimir a população. Alguns membros da AP irão neste processo, mas não são os indivíduos que são importantes, antes a estrutura como um todo e o seu papel.

É difícil hoje falar de uma “Intifada” no sentido de um movimento popular e de massas. Pelas razões acima mencionadas, há pouca participação das massas no atual levantamento. Há no entanto um forte espírito de resistência reunida na expressão árabe “samideen” – ou inabalável. É por isso que a forma de repressão adotada pelo governo israelense é caracterizada por punições coletivas da população – tácticas destinadas a desmoralizar e a matar à fome a população até levá-la à submissão.

Notas

1. The Declaration of Principles (DOP), commonly called the Oslo Agreement, was signed between the government of Israel and the Palestine Liberation Organization on September 13, 1993. It was the product of secret negotiations between the Israeli government and Palestinian negotiators. Despite the widespread illusion that Oslo was an agreement intended to achieve peace and establish a Palestinian state in the West Bank and Gaza Strip, it was a highly flawed agreement that gave the illusion of Palestinian sovereignty but perpetuated Israeli dominance in all areas as I shall demonstrate later in the article.

2. The Histadrut (General Federation of Workers in Eretz Israel) was the administrative backbone of the pre-state settlement, controlling the colonization effort, economic production and marketing, labor employment, and defense. The Histadrut was not a trade union in the classical sense, instead, its priorities were defined by “national” objectives not the interests of workers. Indeed, in 1960, the General Secretary of the Histadrut Pinhas Lavon characterized the organization, The General Federation of Workers was founded forty years ago by several thousand young people wanting to work in an under-developed country where labor was cheap, a country which rejected its inhabitants and which was inhospitable to new comers. Under these conditions, the foundation of the Histadrut was a central event in the process of the rebirth of the Hebrew People in its father-land. Our Histadrut is a general organization to its core. It is not a worker’s trade union.” Quoted in Haim Hanegbi, Moshe Machover, and Akiva Orr, “The Class Nature of Israel,” in New Left Review 65 (January–February, 1971).

3. For some examples of this analysis, see Gershon Shafir, Land, Labor and the Origins of the Israeli-Palestinian Conflict, 1882–1914 (Cambridge: Cambridge University Press, 1989); Zeev Sternhell, The Founding Myths of Israel: Nationalism, Socialism and the Making of the Jewish State (Princeton University Press, 1998) and Ilan Pappe ed., The Israel/Palestine Question: Rewriting Histories (London: Routledge, 1999).

4. Lewin-Epstein, Noah and Moshe Semyonov, “Occupational Change in Israel: Bringing the Labor Market Back,” Israel Social Science Research 2, no. 2, (1984): 3–18.

5. For detailed discussion on this issue see the work of Jonathan Nitzan and Shimson Bichler, particularly, “From War Profits to Peace Dividends: The New Political Economy of Israel,” Capital and Class, vol. 60 (Autumn 1996).

6. There are recent signs that Israeli big business may be attempting to rebuild the Labor Party as a political force with considerable business support shifting to Haifa’s Labor Mayor Amram Mitzna as a candidate for Labor Party leadership against Ben Eliezer in recent months.

7. World Bank, Trade Options for the Palestinian Economy—Working Paper No. 21 (English), March 2001.

8. The Paris Protocol was an economic agreement signed in 1995 as part of the Oslo process. It gave precise expectations of which goods Palestinians were allowed to export and import, as well as tax regulations and other economic issues.

Adam Hanieh é pesquisador e assistente em organizações de direitos humanos em Ramallah, Palestina.

O redescobrimento do imperialismo

Este texto foi originalmente escrito como introdução aos Ensaios sobre o imperialismo e a globalização, de Harry Magdoff, que deverá ser publicado na Índia pela Cornerstone Publications.

John Bellamy Foster

Monthly Review


Tradução / Durante quase todo o século XX, o conceito de “imperialismo” foi excluído do conjunto dos discursos políticos aceitáveis para os círculos dominantes do mundo capitalista. Qualquer referência ao “imperialismo” durante a Guerra do Vietnã, sem importar quão realista fosse, quase sempre era tida como um sinal de que o autor estava no lado esquerdo do espectro político. Em 1971, no “Prefácio” à edição americana do Imperialism in the Seventies [Imperialismo nos Anos Setenta] de Pierre Anime, Harry Magdoff apontava: “Como regra, os corteses acadêmicos preferem não usar o termo ‘imperialismo’. Acham-no de mau gosto e não científico”.

De repente, isso já não é certo em nossos dias. Intelectuais e membros da elite política norte-americana estão abraçando calorosamente uma aberta missão “imperialista” ou “neo-imperialista” dos Estados Unidos, reiteradamente enunciada nos meios escritos mais influentes como o New York Times e o Foreign Affairs. Este ardor imperialista é em muito devido à guerra contra o terrorismo empreendida pela administração Bush, a qual está tomando a forma de conquista e ocupação do Afeganistão e –se suas ambições se concretizarem– também do Iraque. Segundo a Estratégia de Segurança Nacional da administração Bush, não há limites ou fronteiras reconhecíveis ao uso do poder militar para promover os interesses dos Estados Unidos. Frente a esta tentativa de estender o que só pode ser denominado Império Norteamericano, intelectuais e figuras políticas não só estão retornando à idEia de imperialismo, mas também à visão sustentada por seus impulsores do início do século XIX, ou seja, o imperialismo como grande missão civilizadora. As comparações entre os Estados Unidos, a Roma Imperial e o Império Britânico são comuns na imprensa reinante. Tudo de que se necessita para fazer deste conceito algo completamente útil é despojá-lo de suas velhas associações marxistas com a hierarquia econômica e a exploração, por não mencionar o racismo.

Michael Ignatieff, professor de Políticas de Direitos Humanos da Kennedy School of Government, da Universidade de Harvard, escreveu no New York Times (28 de julho de 2002): “O imperialismo soube ser a carga do homem branco. Isto lhe deu uma má reputação. Mas o imperialismo não deixa de ser necessário porque é politicamente incorreto”. Ao referir-se às operações bélicas no Afeganistão, acrescentava: As Forças Especiais não são trabalhadores sociais. São um destacamento imperial que estende o poder e os interesses norte-americanos na Ásia Central. Chamem-no operações de paz, chamem-no construção de uma nação, chamem-no como queiram, o que está ocorrendo em Mazar é uma política imperial. Em rigor, toda a guerra norte-americana contra o terror é um exercício de imperialismo. Isso pode perturbar aos norte-americanos, que não gostam de pensar que seu país é um império. Mas de que outro modo se podem denominar as legiões de soldados, espiões e Forças Especiais dos Estados Unidos que marcham pelo globo? (Ignatieff, 2002). O general John Ikenberry, professor de Geopolítica e Justiça Global na Universidade do Georgetown, e colaborador habitual do Foreign Affairs, uma publicação do Conselho de Relações Exteriores, sustenta:

Sob a sombra da guerra contra o terrorismo lançada pela administração Bush, estão circulando com força novas idéias em relação à grande estratégia dos Estados Unidos e da reestruturação do mundo unipolar de hoje. Tais ideias demandam um uso unilateral, e inclusive preventivo, da força norte-americana, facilitado se possível por coalizões voluntárias, mas em última instância não constrangidas pelas regras e normas da comunidade internacional. Levadas a extremo, estas noções formam uma visão neo-imperial na qual os Estados Unidos se atribuem o papel de fixar os parâmetros, determinar as ameaças, usar a força, e administrar justiça em escala global (Ikenberry, 2002).

Para o Ikenberry, isso não implica uma crítica. A esse respeito, afirma: “Os objetivos e modus operandi imperiais dos Estados Unidos são muito mais limitados e amenos que aqueles dos antigos imperadores”.

Outras influentes figuras políticas e intelectuais do mainstream, sempre adaptadas à moda, não são menos diretas em seu apoio ao neo-imperialismo. Sebastian Mallaby, colunista do Washington Post e autodenominado “imperialista reticente”, ao escrever no Foreign Affairs (abril de 2002) explica que “a lógica do neo-imperialismo é muito atrativa para que a administração Bush possa resistir a ela”. No “The Case for American Empire” [Argumentos para o Império Americano], publicado no Weekly Standard, Max Boot, um colunista do Wall Street Journal, observa:

Os Estados Unidos enfrentam a perspectiva de ação militar em muitas das mesmas terras onde gerações de soldados coloniais britânicos desenvolveram suas campanhas. Todos esses são lugares onde os exércitos do Ocidente tiveram de aplacar a desordem. Afeganistão e outras turbulentas terras estrangeiras clamam pelo tipo de administração externa ilustrada que alguma vez proveram os ingleses, seguros de si mesmos, com suas calças de montar e seus cascos de safári (Boot, 2001).

Em seu último livro, Warrior Politics [Política do guerreiro], o ensaísta do Atlantic Monthly, Robert Kaplan, argumenta a favor de uma cruzada norte-americana “para levar prosperidade a remotas partes do mundo, sob a suave influência imperial dos Estados Unidos”. O assessor de Segurança Nacional do presidente Carter, Zbigniew Brzezinski, sustenta que a principal tarefa dos Estados Unidos na preservação de seu império consiste em “prevenir conluios e manter a dependência entre os vassalos, manter submissos e protegidos aos tributários, e evitar que os bárbaros se juntem”. Stephen Peter Rosen, titular do Olin Institute for Strategic Studies da Universidade de Harvard, na Harvard Review (maio-junho de 2002), escreveu: “Nosso objetivo [o das forças armadas norte-americanas] não é combater um rival, mas sim manter nossa posição imperial, e manter a ordem imperial”. Henry Kissinger começa seu Does America Need a Foreing Policy? [Os Estados Unidos precisam de uma política externa?], com estas palavras: “Os Estados Unidos gozam de uma proeminência que não alcançaram sequer os grandes impérios do passado”84.

Entretanto, dentro do discurso do establishment há regras para esta reapropriação dos conceitos de “império” e “imperialismo”. As motivações excepcionalmente benévolas dos Estados Unidos devem ser enfatizadas. Aqueles que propõem o novo imperialismo devem limitar-se aos conceitos militares e políticos de império e imperialismo (evitando qualquer sentido de imperialismo econômico). E devem evitar todas as noções radicais que vinculam o imperialismo ao capitalismo e à exploração.

As bases econômicas do imperialismo

O berço da noção de imperialismo econômico, como algo oposto ao imperialismo em geral, foi nos Estados Unidos, pouco mais de um século atrás. Em seu ensaio “The Economic Basis of Imperialism” [“As bases econômicas do Imperialismo”], publicado pela primeira vez na Norh American Review, em 1898, em tempos da guerra Hispano-Norte-Americana, Charles A. Conant concluiu que o imperialismo era necessário para absorver capital excedente frente à escassez de oportunidades de investimentos rentáveis; em outras palavras, para aliviar o que ele denominava problema de “capital congestionado”.

Se os Estados Unidos deverão realmente adquirir posses territoriais, estabelecer capitanias gerais e regimentos, adotar um ponto médio para proteger soberanias nominalmente independentes, ou contentar-se com estações navais e representantes diplomáticos como base para assegurar seus direitos de livre comércio com o Leste, é uma questão de detalhe [...] A partir de seus sentimentos, quem aqui escreve não é partidário do “imperialismo”, mas não teme que esta palavra signifique somente que os Estados Unidos deverão afirmar seus direitos ao livre mercado em todos os velhos países que estão sendo abertos aos recursos excedentes dos países capitalistas e, deste modo, recebendo os benefícios da civilização moderna. Pode-se discutir se esta política suporta o governo direto sobre grupos de ilhas semi-selvagens, mas do ponto de vista econômico da questão não há senão uma opção: ou entrar por algum meio na competição para o emprego de capital e empreendimentos americanos nesses países, ou continuar com a desnecessária duplicação dos existentes meios de produção e comunicações, com a conseqüente superabundância de produtos não consumidos, as convulsões que se seguem da paralisia do comércio, e a constante queda dos lucros sobre os investimentos que tal política negativa trará vinculada (Conant, 1900: 29-30).

No final do século XIX e começo do século XX, os conflitos entre as grandes potências pela partilha da África, a guerra sino-japonesa (1894-1895), a hispano-norte-americana, a sul-africana (Guerra Boer) e a russo- japonesa, assinalaram o começo do novo imperialismo, associado ao capitalismo monopolista, o qual era qualitativamente diferente do colonialismo que o tinha precedido. Isso gerou uma teoria econômica do imperialismo entre os impulsores do imperialismo, que já não o viam como um mero “sentimento”, como enfatiza a análise de Conant. Do mesmo modo, as mudanças no imperialismo logo deram origem a uma análise mais exaustiva, que foi inaugurada com o clássico do John A. Hobson, Imperialism: A Study [Imperialismo: um estudo], publicado em 1902. Hobson era um destacado crítico britânico da Guerra Boer, e desde este ponto de partida desenvolveu sua crítica ao imperialismo. Em um famoso capítulo intitulado “The Economic Taproot of Imperialism” [“A raiz Econômica do Imperialismo], Hobson assinalava:

Cada melhora nos métodos de produção, cada concentração da propriedade e do controle, parece acentuar a tendência [à expansão imperialista]. À medida que uma nação atrás de outra ingressa na economia das máquinas e adota métodos industriais avançados, torna-se mais difícil para seus industriais, mercaderes e financistas dispor rentavelmente de seus recursos econômicos [...] Em todas as partes aparecem poderes produtivos excessivos, capital excessivo em busca de investimento. Todos os homens de negócios admitem que o crescimento dos poderes produtivos em seus países excede o crescimento do consumo, que se podem produzir mais bens que os que podem ser vendidos com lucros, e que existe mais capital que o que pode ser investido rentavelmente. Esta situação econômica é a que forma a raiz do Imperialismo (Hobson, 1938).

O trabalho de Hobson não era socialista. Acreditava que o imperialismo originava-se na posição dominante de certos interesses econômicos e financeiros concentrados, e que as reformas radicais que abordassem a má distribuição da renda e as necessidades da economia doméstica podiam frear o impulso imperialista. Contudo, seu trabalho adquiriria muito mais significação por meio da influência que exerceu sobre as análises marxistas do imperialismo que estavam surgindo nessa época. O mais importante deles foi Imperialismo, fase superior do capitalismo, de Lênin, publicado em 1916. O principal propósito da análise de Lênin era explicar a rivalidade interimperialista entre as grandes potências, as quais haviam conduzido à Primeira Guerra Mundial. Mas no curso de sua análise, Lênin vinculou o imperialismo ao capitalismo monopolista, argumentando que “em sua definição o mais breve possível [...] o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo”. Nesse contexto, explorou um conjunto de fatores econômicos que foram muito além da má distribuição da renda ou dos objetivos de ganho de corporações monopolistas particulares. O capitalismo monopolista era visto como uma nova fase, mais à frente do capitalismo competitivo, na qual o capital financeiro, uma aliança entre as grandes empresas e o capital bancário, dominava a economia e o Estado. A competição não era eliminada, mas continuava principalmente entre um grupo relativamente pequeno de empresas gigantescas que tinham a capacidade de controlar grandes porções da economia nacional e internacional. O capitalismo monopolista, neste sentido, era inseparável da rivalidade interimperialista, que se manifestava basicamente sob a forma de uma luta pelos mercados globais. A resultante divisão do mundo em esferas imperiais e a luta que esta implicava, conduziu diretamente à Primeira Guerra Mundial. A mais complexa perspectiva de Lênin sobre o imperialismo superava o argumento que se centrava simplesmente na necessidade de achar pontos de investimento para o capital excedente. Lênin também pôs ênfase no ímpeto para obter um controle exclusivo sobre as matérias-primas e um controle mais estrito sobre os mercados externos que surgiu no marco das condições globalizantes da fase monopolista do capitalismo.

Análises marxistas posteriores (e radicais não-marxistas) focalizaram-se mais ainda que a de Lênin em alguns dos traços mais gerais do imperialismo, característicos do capitalismo em todas suas fases, tais como a divisão entre centro e periferia, um assunto que tinha sido abordado por Marx. Mas o sentido que Lênin lhe deu –como uma forma nova e mais desenvolvida de imperialismo, associada à concentração e centralização do capital e ao nascimento da fase monopolista–, manteve muita de sua significação em nossa época, que se caracteriza por um capitalismo monopolista em uma fase avançada de globalização. Nesse sentido, o próprio êxito das teorias marxistas do imperialismo, que mostraram a exploração capitalista sistemática da periferia e as condições de rivalidade interimperialista com grande detalhe –de modo que o imperador foi visto em toda sua nudez– foi o que fez com que o termo “imperialismo” superasse os limites toleráveis para o discurso dominante. Enquanto existiu a União Soviética e uma poderosa onda de revoluções antiimperialistas foi evidente na periferia, não houve possibilidade de que o capitalismo abraçasse abertamente o conceito de imperialismo em nome da promoção da civilização. As intervenções militares norte-americanas no Terceiro Mundo para combater as revoluções ou para ganhar controle dos mercados eram, invariavelmente, apresentadas no discurso oficial dos Estados Unidos em termos associados às motivações próprias da Guerra Fria, e não em termos dos objetivos imperiais.

A Era do Imperialismo 

The Age of Imperialism [A Era do Imperialismo], de Harry Magdoff, publicado em 1969, distinguiu-se por ser a tentativa direta mais influente para rebater a visão dominante na política externa dos Estados Unidos durante o período da Guerra do Vietnam, mediante um tratamento empírico da economia do imperialismo norteamericano85.

O trabalho de Magdoff não podia ser efetivamente desqualificado como mera ideologia, porque visava arrancar as roupagens do imperialismo norte-americano, observando sua estrutura econômica do modo mais direto possível, usando para isso estatísticas econômicas dos Estados Unidos. Portanto, atraiu consideráveis ataques por parte do establishment, ao mesmo tempo em que inspirou muitos dos que protestavam contra a guerra.

A Era do Imperialismo representou o retorno da crítica ao imperialismo a um lugar de proeminência no seio da esquerda norte-americana. Ao abordar o que era amplamente visto como uma anomalia na relação dos Estados Unidos com o resto do mundo, originada na existência de uma política externa intervencionista acompanhada por uma aparente “economia isolacionista”, Magdoff demonstrou que a economia dos Estados Unidos, de fato, era algo menos isolacionista. A esse respeito, o autor punha o acento sobre o fluxo de investimentos externos diretos no exterior e seu efeito na geração de um fluxo de lucros. Além disso, criticava o erro comum de comparar simplesmente as exportações ou os investimentos externos das corporações multinacionais com o PIB. Ao contrário, a importância destes fluxos econômicos só podia ser estimada ao relacioná-los com setores estratégicos da economia, como as indústrias de bens de capital; ou ao comparar os lucros do investimento externo com os benefícios dos negócios não-financistas no nível doméstico. Neste sentido, Magdoff contribuiu com informação que mostrava que, em 1950, os lucros dos investimentos externos representavam 10% dos lucros totais (descontados os impostos) das corporações domésticas não-financeiras, enquanto que por volta de 1964 tais lucros tinham crescido até 22%.

Esta obra também foi notável por seus argumentos sobre a expansão financeira internacional do capital americano, apoiada na posição hegemônica do dólar na economia mundial e no crescimento da armadilha da dívida no Terceiro Mundo. Foi assim que Magdoff desenvolveu sua primeira explicação do “processo de fluxo transbordado” inerente à contínua dependência em relação à dívida externa. “Se um país toma emprestado, digamos, US$ 1.000 por ano”, escreveu, “em pouco tempo o pagamento de serviços da dívida será maior que o ingresso de dinheiro de cada ano” (Magdoff, 1969). Se se tomar o singelo caso de um empréstimo anual de US$ 1.000 a 5% de juros “a ser devolvido em cotas iguais durante 20 anos”, disto se segue que no quinto ano quase cinqüenta por cento do empréstimo anual irá ao pagamento dos serviços da dívida; no décimo ano quase 90% do empréstimo será destinado ao pagamento de serviços da dívida; no quinto ano, o fluxo para o pagamento de juros e amortização será maior que o próprio empréstimo; e no vigésimo ano “o tomador estará pagando mais de US$ 1.50 sobre a dívida passada por cada US$ 1 de novo dinheiro que toma emprestado”.

Não seria por acaso possível, perguntava Magdoff, que um país evitasse esta armadilha deixando de tomar dinheiro emprestado ano após ano, e em seu lugar usasse o dinheiro pedido para desenvolver indústrias que gerassem renda para prescindir dos créditos e inclusive cancelar a dívida? Uma boa parte da resposta podia achar-se no fato de que, como o pagamento tem que fazer-se na moeda do país credor, a dívida só poderia ser paga (independentemente da taxa de crescimento) se houvesse suficientes exportações que provessem as divisas necessárias. Já em 1969, muito antes que a dívida do Terceiro Mundo fosse considerada um problema crítico, Magdoff observava que:

O crescimento de pagamento de serviços da dívida do mundo subdesenvolvido cresceu muito mais rápido que suas exportações. Assim, o peso da dívida tem se tornado mais opressivo e, em conseqüência, cresceu a dependência financeira com relação às nações industriais líderes e suas organizações internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (Magdoff, 1969). 

Segundo Magdoff, a essência do imperialismo tal como se manifestou no final do século XX radicava na globalização do capital monopolista sob as condições da hegemonia dos Estados Unidos. Nas páginas finais de A Era do Imperialismo, lê-se:

A típica empresa internacional de negócios já não se limita a uma gigantesca empresa petroleira. Pode ser tanto General Motors ou General Electric, que têm entre um 15 e 20% de suas operações em negócios externos e fazem todos seus esforços para incrementar tais percentagens. O objetivo explícito que perseguem essas empresas internacionais é obter o mais sob custo de produção por unidade, a escala mundial. Também é seu objetivo, embora não o diga abertamente, alcançar o topo no movimento de fusões no Mercado Comum Europeu e controlar uma parte tão grande do mercado mundial como a que têm no mercado americano (Magdoff, 1969).

A maior parte dos ensaios do livro de Magdoff, Imperialism: From the Colonial Age to the Present [Imperialismo: da Época Colonial ao Presente], publicado em 1978, versa sobre as falsas concepções da história do imperialismo. A esse respeito, foi de grande importância a resposta de Magdoff à pergunta: “O Imperialismo é necessário?”. Como réplica a afirmação estendida de que o capitalismo e o imperialismo eram categorias completamente separadas, e que este último não era necessariamente um atributo do primeiro, Magdoff argumentou que o capitalismo foi um sistema mundial desde seus primórdios, e que a expansão imperialista em um sentido amplo foi parte do sistema, tanto como a busca de lucros. Também polemizou com aqueles expoentes da esquerda que pretendiam gerar uma análise do imperialismo moderno mediante uma teoria particular das crises econômicas ou da necessidade de exportação de capital, em vez de reconhecer que o imperialismo era intrínseco às tendências globalizadoras do capitalismo desde seu princípio. Apesar da importância das leis econômicas do movimento do capitalismo na geração do imperialismo moderno, devia evitar-se qualquer explicação simples, mecânica e estreitamente econômica (separada de fatores políticos, militares e culturais). Em troca, as fontes últimas deviam buscar-se no desenvolvimento histórico do capitalismo a partir do século XVI. “A eliminação do imperialismo”, concluía Magdoff, “requer a derrocada do capitalismo” (Magdoff, 1978).

Vigiando o conceito de imperialismo

A resposta mais corrente a esses argumentos e a seus derivados consistiu em colocar o termo “imperialismo” (na medida em que estava vinculado ao capitalismo) cada vez mais por fora do reino dos discursos aceitáveis. Assim, foi caracterizado como um termo puramente ideológico. Ao mesmo tempo, houve tentativas de isolar especificamente o termo “imperialismo econômico”, dissociando-o –mediante o método estreito e compartimentalizador da ciência social convencional–, do imperialismo político, do imperialismo cultural, etc., para depois submetê-lo a uma crítica especial86.

86 O exemplo mais claro disto é Steven J. Rosen e James R. Kurth, Testing Theories of Economic Imperialism (1974). Em um ensaio crítico nesse volume, Harry Magdoff concluiu que um “quadro analítico [que] pusesse em compartimentos separados aspectos chave do problema do imperialismo, que são na verdade inseparáveis [seria equivocado]. A tentativa de estabelecer uma diferenciação clara entre temas militares, políticos e econômicos leva a ignorar o mais essencial: a interdependência e interação mútua desses fatores. Tal modo de pensar –incluindo o uso da abstração ‘interesse nacional’– é bastante tradicional na ciência social ortodoxa, um fato que de muito apresenta inabilidade histórica de enfrentar tanto o crescimento e a significância do imperialismo ou das [novas] raízes imperialistas no capitalismo monopolista” (Magdoff em Rosen e Kurth, 1974: 86).

Este ataque contra as posturas marxistas e radicais sobre o imperialismo foi tão eficaz que, em novembro de 1999, Prabhat Patnaik escreveu um artigo para o Monthly Review intitulado “O que ocorreu com o Imperialismo?”, no qual expôs a questão do quase completo desaparecimento do termo nas análises da esquerda nos Estados Unidos e Europa. Era particularmente assombroso que isto tivesse ocorrido em face às intervenções militares norte-americanas (tão abertas como encobertas) em países como Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Granada, e Panamá, e apesar do papel predatório das multinacionais em todo mundo (por exemplo, na Índia, onde a Union Carbide matou milhares de pessoas). Dizia Patnaik: “Os marxistas mais jovens mostram-se confusos quando se menciona este termo. Os assuntos prementes de nossos dias […] discutem-se sem referência alguma ao imperialismo […] O tema virtualmente desapareceu das páginas das publicações marxistas, especialmente naquelas com menor tradição”. A história e a teoria do imperialismo, assinalava Patnaik, já não são temas de discussão.

É possível observar o significado histórico deste assunto na cisão ideológica que ocorreu, primeiro, como resposta às lutas sobre a globalização e as novas Guerras Balcânicas, e mais tarde em relação aos ataques de 11 de setembro ao World Trade Center de Nova Iorque e ao Pentágono, e a subseqüente guerra contra o terrorismo. Por um lado, os intelectuais inscritos nas correntes dominantes –particularmente ante a ampliação das operações militares dos Estados Unidos e da OTAN, mas também em resposta a assuntos tais como o apoio norte-americano à Organização Mundial do Comércio (OMC)–, mostraram-se mais dispostos a se reapropriarem do conceito de imperialismo com a intenção de lhe outorgar mais brilho ao que vinha sendo apresentado como a hegemonia benéfica ou o “imperialismo brando” da única superpotência mundial. Por outro lado, os pensadores pós-marxistas e ex-radicais com freqüência assumiram a tarefa de criticar qualquer uso do conceito de imperialismo no sentido marxista clássico, desligando-o do capitalismo, da exploração global, e do imperialismo econômico, e argumentando que, dado que o termo era inaceitável no discurso elegante, devia ser descartado.

Um exemplo disto é o artigo de Tom Barry, intitulado “A Return to Interventionism” [“Um retorno ao intervencionismo”], que apareceu online no Foreign Policy in Focus, em 11 de março de 2002, em aparente resposta aos ataques de 11 de setembro e à guerra contra o terrorismo. Barry, que em seus escritos prévios dos anos 1970 não tinha vacilado em adotar o conceito de imperialismo, sustentava:

Para alguns, especialmente na nova e velha esquerda, esta [a era do Vietnam] foi “Era do Imperialismo”, uma era na qual os Estados Unidos estiveram assegurando seu controle sobre os recursos e os estados do mundo “em desenvolvimento”. Havia debilidades analíticas nesta crítica antiimperialista, especialmente porque não explicava muito bem por que os Estados Unidos estavam tão profundamente envolvidos em lugares de, aparentemente, tão pouca importância econômica, como o Vietnam do Sul. Tampouco era de grande ajuda a crítica à América do Norte imperial para explicar o lado idealista do intervencionismo norteamericano, a compulsão wilsoniana de levar a liberdade e a democracia ao resto do mundo. Se o objetivo era reformar a política externa dos Estados Unidos, criticando este país como um poder imperial manifesto, isto não tinha efeito nem sobre os fazedores de políticas norte-americanos nem sobre o público. O que sim parecia funcionar, como modo de suavizar as tendências da política externa norteamericana que respaldavam a repressão e a intervenção militar no Terceiro Mundo, era a crítica a partir dos direitos humanos (Barry, 2002).

A partir dessa perspectiva, houve uma razão que bastou para que se abandonasse completamente o tema: o fato de que os “fazedores de políticas dos Estados Unidos”, isto é, os representantes do sistema de poder dominante, não terem sido atraídos ao conceito de imperialismo. Adicionalmente, esteve presente o fato de que uma população doutrinada não viu no termo nenhuma relação com a história norte-americana, em parte porque não tinha conhecimento das centenas de intervenções militares nas quais se envolveram os Estados Unidos, nenhuma compreensão mais ampla do significado do termo imperialismo. Depois de tudo, não é certo que os Estados Unidos procuram, primordialmente, com exceção de alguns deslizes aqui e lá, “levar a liberdade e a democracia ao resto do mundo”? Contudo, ao mesmo tempo em que aparecia este artigo, os exércitos norte-americanos estavam realizando operações bélicas no Afeganistão, construindo bases na Ásia central, e lançando intervenções nas Filipinas e outros lugares. Ao mesmo tempo em que a noção de uma “Era do Imperialismo” estava sendo criticada pela esquerda norte-americana, os comentaristas do sistema e as figuras políticas estavam elogiando a nova era do imperialismo liderada pelos Estados Unidos.

Uma crítica mais influente sobre a noção de imperialismo foi lançada por Michael Hardt e Antonio Negri no livro Empire (2000), publicado pelo Harvard University Press. Segundo Hardt e Negri, o imperialismo culminou com a guerra do Vietnam. Para estes autores, a Guerra do Golfo, de 1991, na qual os Estados Unidos lançaram seu poder militar sobre o Iraque, foi realizada “não como uma função de suas próprias motivações nacionais [dos Estados Unidos], mas sim em nome do direito global […] A força policial mundial dos Estados Unidos opera, não com um interesse imperialista, mas sim com um interesse imperial [quer dizer, em função dos interesses de um Império sem centro e sem fronteiras]. Neste sentido, a Guerra do Golfo anunciou, como afirmava George Bush [pai], o nascimento de uma nova ordem mundial” (Hardt e Negri, 2000).

Em outra passagem do livro, os autores declaravam: “Os Estados Unidos não constituem –e, na verdade, nenhum outro Estado-nação pode constituir hoje– o centro de um projeto imperialista”. Precisamente esta posição foi a que recebeu maior ênfase nos generosos elogios ao livro de Hardt e Negri que se derramaram desde lugares tais como o New York Times, a revista Times, o London Observer e Foreign Affairs87. Tratase de uma posição que nega a relação entre os Estados Unidos e o imperialismo em seu sentido clássico, em seu sentido de exploração, e além disso considera que a extensão da soberania e o poder norte-americanos refletem o “império” e o papel civilizador “imperial” (a extensão da Constituição norte-americana em escala global).

Recentemente, Todd Gitlin, ex-presidente do Students for ao Democratic Society e atual professor de jornalismo e sociologia em Columbia, em um artigo para a página de opinião editorial do New York Times (5 de setembro de 2002), escreveu:

A esquerda norte-americana […] teve sua versão do unilateralismo. A responsabilidade pelos ataques [de 11 de setembro] devia, de algum modo, imputar-se ao imperialismo norte-americano, porque toda responsabilidade deve imputar-se ao imperialismo norte-americano, o qual constitui um perfeito eco da idéia da direita de que todo o bem é e deveria ser de algum modo norte-americano. Os intelectuais e ativistas da extrema esquerda não podiam sentir-se muito afligidos com a compaixão e a defesa […] Como sabiam pouco sobre a rede Al Qaeda, classificaram-na sob o rótulo de antiimperialismo, e aos ataques norteamericanos contra os talibans sob o rótulo do Pântano do Vietnam. Para eles, não agitar a bandeira se converteu em uma causa premente […] Os liberais pós-Vietnã agora têm uma oportunidade, livres como estão de nossa ansiedade sessentista pela bandeira e de nossa reflexividade negativa, de abraçar o patriotismo liberal que não pede desculpas e não se acovarda (Gitlin, 2002).

Segundo Gitlin, escrevendo de um lugar da imprensa do establishment e que veio publicando artigos que desavergonhadamente elogiam um “imperialismo” norteamericano supostamente benigno, “toda a acusação de ‘imperialismo norte-americano’ foi um tipo de distorção extrema introduzida pela esquerda”. Não importa que o estabelecimento de bases militares norte-americanas permanentes na Arábia Saudita, como conseqüência da guerra dos Estados Unidos contra Iraque em 1991, tenha sido o fator que induziu os fundamentalistas islâmicos a sair da Arábia Saudita (incluída a própria Al Qaeda) e voltar-se para os Estados Unidos. Não importa que Osama bin Laden tenha obtido seu treinamento terrorista nas guerras patrocinadas pelos Estados Unidos que os fundamentalistas islâmicos lideraram contra os soviéticos no Afeganistão. Não importa que Saddam Hussein tenha sido um ex-cliente imperial dos Estados Unidos em tempos da guerra Irã-Iraque (e inclusive até ao momento de sua invasão ao Kuwait). E não importa que a Arábia Saudita e Iraque ocupem o primeiro e o segundo lugar a nível mundial por suas reservas conhecidas de petróleo, ou o fato de que o Afeganistão seja a porta da frente da Ásia central, uma das áreas mais ricas do mundo em reservas de petróleo e gás natural. Finalmente, não importa que os Estados Unidos agora tenham bases militares na Ásia central e estejam dispostos a ficar. De algum modo, apesar de tudo isto, e apesar do fato de que o “suposto imperialismo” atualmente está sendo aclamado amplamente no mainstream, a esquerda não se permite tocar no tema do imperialismo norte-americano como parte de uma crítica à política externa dos Estados Unidos. Se o imperialismo está sendo redescoberto, isso só é feito dentro de certos limites ideológicos circunscritos.

Ricos mais ricos e pobres mais pobres, no nível global

Um aspecto essencial da redescoberta do imperialismo nos setores predominantes consiste na justificação do domínio político e militar dos Estados Unidos, separando-o de qualquer noção sobre a crescente brecha em nações ricas e pobres, tal como o enfatizam as teorias marxistas e o destaca o novo movimento antiglobalização e anticapitalista. Um sinal do impacto deste novo movimento anticapitalista global está dado pela medida em que o establishment global e seus aliados têm sentido a necessidade de defender seus próprios antecedentes. Uma boa parte desta defesa consiste em afirmar que os militantes antiglobalização não sabem do que estão falando. Dizem-nos que se o imperium norte-americano parecer mais dominante que nunca, isto não tem nada a ver com a exploração econômica.

Um exemplo ilustrativo pode ser observado no artigo que escreveu Virginia Postrel, uma das colunistas estáveis em temas econômicos do New York Times, em 15 de agosto de 2002. O título era muito atrativo: “The Rich Get Richer and the Poor Get Poorer. Right? Let’s Take Another Look” [“Os ricos se fazem mais ricos e os pobres se fazem mais pobres. Verdade? Vamos dar mais uma olhada”]. O artigo estava pensado para aparecer antes da Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável em Johannesburg, em agosto e setembro de 2002, e seu objetivo era o de refutar Noam Chomsky, de quem se referia a seguinte entrevista: “A desigualdade está crescendo durante o período globalizador, no interior dos países e entre os próprios países”. Segundo Postrel, Chomsky não só estava totalmente equivocado, mas também estava o Relatório sobre Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, do ano 1999, o qual chegava à mesma conclusão com base na informação sistematizada pela própria ONU.

Qual era o engano nas afirmações de Chomsky e das Nações Unidas, segundo Postrel e outros defensores da globalização e da liberalização? A informação, insistem, tem muitas falhas.

O relatório das Nações Unidas, e outros informes também, observam as brechas de renda entre os países mais ricos e os mais pobres, e não entre indivíduos ricos e pobres. Isto significa que indivíduos previamente pobres em países enormes poderiam tornar-se muito mais ricos e quase não aparecer nas estatísticas (Postrel, 2002).

Desta maneira, os defensores neoliberais do sistema global mesclam e confundem duas questões separadas: a brecha entre países e a desigual distribuição da renda na população mundial. Em rigor, há uma diferença legítima entre ambos os assuntos. O tamanho dos países é irrelevante quando se examina a brecha entre países. A economia mundial funciona através de diferentes Estados. A história do capitalismo se caracteriza por uma crescente brecha em Estados ricos e pobres, uma brecha que se distingue pelo fato de que os Estados ricos crescem, em boa medida, por meio da exploração de outras nações. Às vezes, um Estado grande é o que explora um grupo de Estados menores. Em outros casos, trata-se de um Estado pequeno que extrai excedente de Estados muito maiores. Pense-se no atual Império Norte-americano e no antigo Império Britânico.

Os ideólogos do capitalismo global, dedicados a demonstrar o caráter benigno do imperialismo norte-americano, insistem em que a globalização e a liberalização conduzirão à igualdade econômica entre nações, grandes e pequenas. Os dados que a ONU exibe, entretanto, provam conclusivamente que isto não ocorreu. Ao contrário, a brecha entre Estados se alargou.

Ainda assim, o New York Times não se importa. Importam-lhe as pessoas. Postrel assinala:

Nas três últimas décadas […] os maiores países do mundo, China e Índia, avançaram economicamente. Também o têm feito outros países asiáticos com populações relativamente grandes. O resultado é que 2,5 bilhões de pessoas viram aumentar seus padrões de vida em direção ao do 1 bilhão de pessoas que vivem nos países já desenvolvidos, decrescendo assim a pobreza global e incrementando a igualdade global. Do ponto de vista dos indivíduos, a liberalização econômica foi um enorme êxito (Postrel, 2002).

Que exemplos! Vejamos a contribuição da Índia à redução da pobreza global. Segundo o mais recente relatório do Banco Mundial, 86% da população da Índia vive com menos de dois dólares diários88 . Em 1983, o 10% com maiores ingressos na Índia representavam o 26,7% da renda e dos gastos; em 1991, sua participação era de 28,4%, e em 1997 se elevou para 33,5%. Dificilmente se pode dizer que isso é um sinal de crescente igualdade! (Banco Mundial, World Develpment Report, edições de 1990, 1996 e 2003)89.

Consideremos agora o caso da China. Três décadas atrás, a China era a nação mais desigual do mundo. Então, seus líderes políticos tomaram outro caminho para perseguir seus objetivos. Em lugar da prévia prioridade que lhe atribuía à igualdade, disse aos cidadãos que enriquecer era bom. Respirou-se a iniciativa privada, ampliou-se a abertura aos investimentos estrangeiros, o Estado chinês se sentiu cômodo com as multinacionais norte-americanas, foram dadas as boas-vindas à globalização, entrou o Banco Mundial, e recentemente a China se converteu em membro da OMC.

O resultado foi exatamente o contrário do que o dogma prevalecente nos teria feito esperar, e que Postrel e outros defensores da globalização neoliberal simplesmente assumem como verdadeiro. A China, que alguma vez se destacou por sua devoção à igualdade, tornou-se crescentemente desigual. Tanto é assim que por volta de fins dos anos noventa, a distribuição de renda na China se assemelhava bastante à má distribuição da renda dos Estados Unidos (veja a Tabela 1).

Tabela 1

Distribuição da renda nos Estados Unidos e China

Participação percentual na renda ou no consumo*


10% inferior
20% inferior
10% superior
20% superior
China
2,4
5,9
30,4
46,6
Estados Unidos
1,8
5,2
30,3
46,4

* Dependendo da informação disponível, os economistas do Banco Mundial calculam a distribuição da renda por meio da renda ou do consumo.

Fonte: World Bank, World Development Report 2000/2001. As informações dos Estados Unidos correspondem a 1997; as da China, a 1998.

De fato, existe um robusto conjunto de dados sobre a distribuição da renda em escala mundial. A informação foi desenvolvida mediante um exaustivo e muito competente estudo realizado pelo Branco Milanovic, um economista do Banco Mundial. Milanovic se internou na incrível quantidade de informação estatística dos computadores do Banco Mundial e seu estudo deu origem a um panorama sobre a distribuição de renda da população mundial em 1988 e 1993. Demonstra que, em rigor, a desigualdade aumentou durante esses anos (veja a Tabela 2).

Tabela 2

Distribuição da renda mundial: porcentagens acumuladas de população e rendas

Participação percentual na renda ou no consumo*

Percentual acumulado da população mundial
Percentual acumulado da renda mundial

1988
1993
10% inferior
0,9
0,8
20% inferior
2,3
2,0
50% inferior
9,6
8,5
75% inferior
25,9
22,3
85% inferior
41
37,1
10% inferior
46,9
50,8
5% inferior
31,2
33,7
1% inferior
9,3
9,5


Fonte: Branko Milanovic (World Bank, Development Research Group), "True World Income Distribution, 1988 and 1993: First Calculation Based on Household Surveys Alone", The Economic Journal , 112 (January 2002), pp. 51-92.

É notável que, em 1993, o 1% mais rico recebeu uma parte maior (9,5%) da renda mundial que os 50% mais pobre, enquanto que 5% mais rico, nesse mesmo ano, tinham uma participação na renda que excedia com acréscimo a de 75% mais pobre e estava aproximando-se da renda do 85% mais pobre. (Milanovic explorou a informação com muito mais detalhe do que se apresenta aqui, e concluiu que 1% mais rico tinha a mesma renda que 57% mais pobre das pessoas deste planeta). Estes números são exatamente o que alguém poderia esperar da história completa do capitalismo, o qual prospera mediante uma ampliação da brecha entre ricos e pobres, uma lei do sistema que agora opera sobre um espaço global. Esta exploração global é o núcleo do imperialismo, que é tão básico para o capitalismo, e tão inseparável, como o é a própria acumulação. Mas isto não é tudo em relação ao imperialismo, o qual representa uma história complexa que contém fatores políticos, militares e culturais (raciais). A partir de uma perspectiva marxista, o imperialismo econômico não está realmente separado destes outros elementos, que são, igualmente, parte do desenvolvimento capitalista global. Do mesmo modo que a busca de lucros é o mantra do imperium norteamericano, seu poder militar e político está apontado para estender esta busca e para ampliar seu alcance em escala mundial, colocando em todo momento e sempre em primeiro lugar os interesses das corporações e do Estado norte-americanos.

O redescobrimento do imperialismo no seio do mainstream só significa que na atualidade estes processos estão sendo apresentados, especialmente por parte dos círculos governantes nos Estados Unidos, como inevitáveis, como uma realidade da qual não se pode escapar. Entretanto, é claro que a revolta contra esta nova fase do imperialismo apenas começou. A maior parte da população mundial conhece aquilo que os comentaristas norte-americanos convenientemente esquecem, isto é, que o imperialismo dos Estados Unidos se parece com o dos impérios exploradores do passado, e provavelmente sofrerá o mesmo destino, com revoltas internas e com os “bárbaros” a suas portas.

Notas:

84 As citas de Boot, Brzezinski, Kaplan, Kissinger, Mallaby, e Rosen estão tomadas de Philip S. Golub (2002). Veja também Martin Walker (2002).

85 As obras de Magdoff The Age of Imperialism: The Economics of U.S. Foreign Policy (1969) e, Imperialism: From the Colonial Age to the Present (1978) foram publicados pela Monthly Review Press. A discussão que se segue acerca do trabalho de Magdoff pode ser encontrada em John Bellamy Foster (2000: 385–94).

87 Para um tratamento mais detalhado do livro de Hardt e Negri sobre esse tema, veja John Bellamy Foster (2001: 1–9).

88 Esta informação é para o ano de 1992, o ano mais recente para este tipo de informação que está disponível. O limite de US$ 2 está baseado na paridade do poder de compra. Isto significa que os dados foram ajustados para determinar que quantidade de um determinado encargo de mercadorias de consumo poderia ser comprada por US$ 2, eliminando os efeitos das diferenças entre preços de país em país.

89 Estes dados foram extraídos das tabelas do Banco Mundial sobre a distribuição de renda – em edições recentes o World Development Report intitulado “Poverty and Income Distribution.” Ao calcular os percentuais de distribuição de renda, o Banco Mundial baseia-se em pesquisas em domicílio de renda ou despesas compiladas pelos vários países. No sentido de assegurar que os dados sejam compatíveis, o pessoal do Banco Mundial usa sempre quando possível as despesas domésticas ao invés de dados de renda. No caso da Índia, os dados referidos estão baseados nos gastos domésticos per capita.

Bibliografia

Barry, Tom 2002 “A Return to Interventionism” em Foreign Policy in Focus, 11 de março. Em .

Boot, Max 2001 “The case for American Empire” em Weekly Standard, Vol. 7, Nº 5, 15, outubro.

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Foster Bellamy, John 2000 “Harry Magdoff,” em Arestis, Phillip e Sawyer, Malcolm A Biographical Dictionary of Dissenting Economists (Northampton, Mass.: Edward Elgar).

Foster Bellamy, John 2001 “Imperialism and ‘Empire’” em Monthly Review (Londres) Nº 53, dezembro.

Hardt, Michael e Negri, Antonio 2000 Empire (Cambridge, Mass: Harvard University Press).

Hobston, John 1938 (1902) Imperialism. A Study (Londres: Georg Allen & Unwin).

Ignatieff, Michael 2002 “Barbarians at the Gate?” em The New York Review of Books, 28 de julho.

Ikenberry, John 2002 “America’s Imperial Ambition” em Foreign Affairs, Vol. 81, Nº 5, setembro-outubro.

Jalée, Pierre 1971 El Imperialismo en 1970 (México: Siglo XXI).

Magdoff, Harry 1969 The Age of Imperialism: The Economics of U.S. Foreign Policy (Nova Iorque: Monthly Review Press).

Magdoff, Harry 1978 Imperialism: From the Colonial Age to the Present (Nova Iorque: Monthly Review Press).

Milanovic, Branko 2002 “True World Income Distribution, 1998 and 1993: First Calculation Base on Household Survey Alone” em The Economist Review, novembro.

Patnaik, Prabhat 1990 “Whatever Happened to Imperialism?” em Monthly Review, novembro.

Postrel, Virginia 2002 “The Rich Get Rich and the Poor Get Poor Right? Let’s Take Another Look” em The New York Time, 15 de agosto.

Rosen, Steven J. e Kurth, James R. 1974 Testing Theories of Economic Imperialism (Lexington, Mass.: Lexington Books).

Walker, Martin 2002 “America’s Virtual Empire” em World Policy Journal, Vol. 19, verão.

Stephen Jay Gould - O que significa ser radical?

O que significa ser um radical?

Richard C. Lewontin e Richard Levins

Monthly Review

Monthly Review Volume 54, Number 6 (November 2002)

Tradução / No início deste ano, Stephen Jay Gould desenvolveu um câncer no pulmão que se alastrou tão rapidamente que já não havia qualquer esperança de sobrevivência. Faleceu em 20 de maio de 2002, aos 60 anos. Vinte anos antes escapara à morte por um mesotelioma, induzido, como supomos, por alguma exposição ao amianto. Ainda que a sua cura tenha sido completa, nunca perdeu a consciência da sua mortalidade dando a sensação, pelo menos aos seus amigos, de uma quase bem disposta aceitação do inevitável. Tendo sobrevivido a um câncer que foi provavelmente consequência de um envenenamento ambiental, sucumbiu a outro. 

A vida pública, intelectual e política de Steve Gould foi extraordinária, senão única. Primeiro, foi um biólogo evolucionário e historiador da ciência cujo trabalho intelectual teve um impacto maior na nossa visão do processo evolutivo. Segundo, foi, de longe, o divulgador científico mais amplamente conhecido. Terceiro, foi um ativista político consistente no apoio ao socialismo e na oposição a todas as formas de colonialismo e opressão. A figura que mais se lhe aproxima neste aspecto foi a do biólogo britânico da década de 30, J. B. S. Haldane, um dos fundadores da moderna teoria genética da evolução, um maravilhoso ensaísta sobre ciência para o público genérico, e um marxista peculiar, colunista no Daily Worker que acabou por se afastar do Partido Comunista devido à exigência de que o seu trabalho científico seguisse a doutrina partidária.

O que caracteriza o trabalho de Steve Gould é o seu radicalismo consistente. A palavra radical tornou-se sinônimo de extremista no uso corrente: a Monthly Review é uma publicação radical para os leitores do Progressive; Steve Gould submeteu-se a uma cirurgia radical quando os tumores foram removidos do seu cérebro; e um radical é alguém que está abertamente no campo da esquerda (ou da direita). Mas uma breve incursão ao Oxford English Dictionary recorda-nos que a origem da palavra radical é, de facto, radix , a palavra latina para raiz. Ser radical é considerar as coisas desde a sua raiz, ir à origem do paradigma, tentar reconstituir a ação e as ideias desde os primeiros princípios. O impulso para ser radical é o impulso para perguntar, “Como sei aquilo?” e “Porque estou a seguir este percurso ao invés de outro?” Steve Gould possuía esse impulso radical e seguia-o onde era importante. 

Primeiro, Steve era radical na sua ciência. A sua mais conhecida contribuição para a biologia evolucionária foi a teoria do equilíbrio pontuado que desenvolveu com o seu colega Niles Eldridge. A teoria padrão da mudança da forma de organismos no tempo evolutivo é que ela ocorre constantemente, paulatinamente e gradualmente com mudanças mais ou menos iguais a acontecerem em iguais intervalos de tempo. Esta parece ter sido a visão de Darwin, embora a prosa de Darwin no século XIX admita quase qualquer leitura. A genética moderna mostrou que qualquer mudança hereditária no desenvolvimento que seja provável sobreviver causará apenas uma ligeira alteração no organismo, que tais mutações ocorrem a uma taxa razoavelmente constante em períodos de tempo longos e que a força da seleção natural devidas a essas pequenas mudanças são também de pequena magnitude. Todos estes fatos apontam para uma mudança mais ou menos constante e lenta nas espécies durante longos períodos. 

Quando olhamos para registos fósseis, no entanto, as mudanças observadas são muito mais irregulares. Verificam-se maiores ou menores mudanças abruptas na forma entre fósseis que se sucedem no tempo geológico sem muita evidência dos supostos registos intermédios entre eles. A explicação usual é a de que os fósseis são relativamente raros e estamos apenas a observar instantâneos ocasionais da evolução real dos organismos. Esta é uma teoria perfeitamente coerente, mas Eldridge e Gould recuaram ao paradigma e questionaram se a taxa de mudança sob a seleção natural seria realmente constante como todos assumiam. Examinando algumas séries de fósseis com um registo temporal mais completo do que o normal, encontraram evidência de longos períodos de virtualmente nenhuma mudança pontuados por curtos períodos durante os quais parecia ocorrer a maior parte da mudança na forma. Eles generalizaram esta descoberta numa teoria em que a evolução ocorre repentina e abruptamente e apresentaram várias possíveis explicações, incluindo aquela em que muito da evolução verificou-se após súbitas grandes alterações no ambiente. Steve Gould foi mesmo mais longe na sua ênfase acerca da importância de grandes acontecimentos irregulares na história da vida. Deu grande importância às súbitas extinções em massa de espécies após colisões de grandes cometas com a Terra e na subsequente repovoação do mundo vivo a partir de um grupo restrito de espécies sobreviventes. Deve-se resistir à tentação de ver alguma conexão simples entre a teoria de Gould da evolução episódica e a sua adesão à teoria marxista das etapas históricas. A conexão é muito mais profunda. Ela reside no seu radicalismo. 

Outro aspecto do radicalismo de Gould em ciência foi a forma da sua abordagem geral à explicação evolucionária. A maioria dos biólogos preocupados com a história da vida e a sua atual distribuição geográfica e ecológica assume que a seleção natural é a causa de todas a características dos organismos vivos ou extintos sendo que a tarefa do biólogo, na medida em que tem de fornecer explicações, é aparecer com uma narrativa razoável da razão porquê certas características particulares de uma espécie foram favorecidas pela seleção natural. Se, quando a espécie humana perdeu a maior parte do seu pelo corporal ao evoluir dos seus ancestrais macacos, ainda assim manteve olhos castanhos, então olhos castanhos deve ser uma coisa boa. Uma grande ênfase dos escritos científicos de Steve Gould era no sentido de rejeitar este adaptacionismo Panglossiano simplista e voltar à diversidade fundamental dos processos biológicos na busca das causas da mudança evolutiva. Ele argumentou que a evolução foi resultado tanto de forças aleatórias como seletivas e que as características podem ser subprodutos físicos da seleção por outros atributos. Também argumentou fortemente a favor da contingência histórica da mudança evolutiva. Alguma coisa pode ser selecionada por alguma razão num determinado momento, e depois por uma razão completamente diferente em outro momento, de modo que o produto final é o resultado de toda a história de uma linha evolutiva e não pode tornar-se compreensível pelo seu significado adaptativo no presente. Deste modo, por exemplo, os humanos são como são porque os vertebrados terrestres reduziram muitas formas de barbatanas a quatro membros, os corações dos mamíferos tendem a posicionar à esquerda, enquanto os dos pássaros à direita, os ossos do ouvido interior eram parte do maxilar dos nossos antepassados reptilianos, e aconteceu uma seca na África oriental num tempo crucial da nossa história evolutiva. Portanto, se uma vida inteligente nos visitar vinda de algures do universo, não devemos esperar que tenham forma humana ou sofram de uma hierarquia sexista, ou tenha um posto de comando nas suas naves espaciais.

Gould enfatizou igualmente a importância de relações de desenvolvimento entre diferentes partes de um organismo. Um caso famoso foi o seu estudo do alce irlandês, enorme e extinto, com enormes chifres, muito maiores em proporção relativamente ao tamanho do animal do que é visto no moderno veado. A história adaptacionista inventada foi que os chifres de veados machos estão sob constante seleção natural para o seu aumento pois os machos usam-nos em combate com outros quando competem para aceder às fêmeas. O alce irlandês impulsionou a evolução desta forma de machismo demasiado longe e os seus chifres tornaram-se tão pesados que não puderam cumprir as tarefas da sua vida diária e extinguiu-se. O que Steve mostrou foi que para o veado em geral, espécies com um corpo maior possuem chifres que são mais do que proporcionais no tamanho – uma consequência da taxa de aumento diferencial do tamanho do corpo e do tamanho dos chifres durante o desenvolvimento. De fato, o alce irlandês tinha chifres exatamente do tamanho que seria de prever para a dimensão do seu corpo e nenhuma história especial de seleção natural é requerida.

Nenhum dos argumentos de Gould sobre a complexidade da evolução rejeita Darwin. Não existe nenhum novo paradigma mas sim uma perfeitamente respeitável “ciência normal” que acrescenta excelência ao esquema original darwiniano. Eles tipificam a sua regra radical para a compreensão: ir sempre aos processos biológicos básicos e ver aonde isso conduz.

A maior fama de Steve Gould não foi como biólogo mas como divulgador da ciência para o público leigo, em lições, ensaios e livros. A relação entre conhecimento científico e ação social é problemática. O conhecimento científico é esotérico, possuído e compreendido por uma pequena elite, ainda que o uso e controle desse conhecimento pelos poderes privados e públicos tenham enormes consequências para todos. De que modo pode existir nem que seja uma ilusão de um estado democrático quando conhecimento vital está nas mãos de uns poucos? A resposta imediata é que existem instrumentos de popularização da ciência, principalmente o jornalismo científico e os textos de divulgação científica, que criam um público informado. Mas essa popularização é em si mesma um instrumento de ofuscação e de pressão das agendas das elites.

Os jornalistas da ciência sofrem de uma dupla deficiência: primeiro, não importa o quanto são educados, inteligentes e motivados, eles têm que, no fim, acreditar no que os cientistas lhes dizem. Mesmo um biólogo tem que confiar no que um físico afirma sobre a mecânica quântica. Grande parte da reportagem científica começa com uma conferência de imprensa ou uma nota produzida por uma instituição científica. “Cientistas do Blackleg Institute anunciaram hoje a descoberta do gene da susceptibilidade à lesão motora.” Segundo, a mídia para a qual os repórteres científicos trabalham fazem imensa pressão para que escrevam notas dramáticas. Onde estará o editor que concede preciosos centímetros de coluna para um artigo sobre ciência cuja mensagem seria a de que é tudo muito complicado, que não é possível fazer previsões, que existem sérias dificuldades experimentais no caminho que se percorre para a descoberta da verdade, e que podemos nunca vir a saber a resposta? Terceiro, a natureza esotérica do conhecimento científico coloca barreiras retóricas quase insuperáveis entre mesmo o mais sábio jornalista e o leitor. Não é geralmente percebido que uma explanação transparente em termos acessíveis ao leitor leigo requer o mais profundo conhecimento possível do assunto por parte do redator. 

Os cientistas, e os seus biógrafos, que escrevem livros para um público leigo estão usualmente preocupados em abraçar acriticamente o romance da vida intelectual, as maravilhas da sua ciência, e a propagandear um ainda maior apoio ao seu trabalho. Onde está o coração empedernido que não possa ser cativado por Stephen Hawking e a sua aventura intelectual? Mesmo quando a intenção é simplesmente informar o público leigo sobre uma área do conhecimento científico, as complicações do atual estado da compreensão são tão grandes que a pressão para contar uma história simples e apelativa são irresistíveis.

Steve Gould foi uma excepção. Os seus trezentos ensaios sobre questões científicas, publicados na sua coluna mensal da Natural History Magazine, muitos dos quais amplamente divulgados em livros, combinam uma exata e sutil explicação dos problemas e achados científicos, com uma técnica de exposição que nem condescende com os seus leitores nem super-simplifica a ciência. Ele disserta sobre a verdade complexa de um modo que os seus leitores leigos o possam compreender, enquanto envolve a sua prosa com referências ao basebol, música coral, e arquitetura de templos. Claro que quando consideramos a escrita para uma audiência popular, temos que ser claros sobre o que queremos dizer por popular. O escritor uruguaio Eduardo Galeano pergunta o que queremos dizer com escrever para “o povo” quando a maior parte do nosso povo é iletrado. No norte há menor iliteracia formal, mas Gould escrevia para uma audiência altamente educada, mesmo que não especialista, para a qual música coral ou arquitetura de templos fornece metáforas mais cheias de significado do que as próprias ideias científicas.

A maior parte dos assuntos que Steve aborda pretende ser ilustrativo da complexidade e diversidade dos processos e produtos da evolução. Apesar da imensa diversidade de matérias sobre as quais ele escreveu, existiu uma linha unificadora: que a complexidade do mundo vivo não pode ser tratada como uma manifestação de algum grande princípio geral, mas que cada caso deve ser entendido por um exame completo e da compreensão das suas muitas relações causais. 

Na sua vida política Steve fez parte do movimento geral da esquerda. Foi ativo no movimento contra a guerra no Vietnã, no trabalho da Ciência para o Povo, e na Escola Marxista de Nova York (New York Marxist School). Identificava-se a si mesmo como marxista, mas, tal como o darwinismo, nunca é certo o que essa identificação implica. Apesar da nossa camaradagem estreita em muitas coisas ao longo de muitos anos, nunca tivemos uma discussão sobre a teoria marxista da história ou de economia política. Essencialmente, ao insistir na sua adesão a um ponto de vista marxista, ele aproveitou a oportunidade que lhe era oferecida pela sua imensa fama e legitimidade como um intelectual público para fazer uma difusão pública acerca da validade de uma análise marxista.

Ao nível das lutas políticas reais, a sua mais importante atividade foi no combate ao criacionismo e na campanha para destruir a legitimidade do determinismo biológico, incluindo a sociobiologia e o racismo. Argumentou perante o poder legislativo do estado do Arkansas que diferenças entre evolucionistas ou problemas evolucionistas não resolvidos não punham em causa a demonstração da evolução como um princípio organizador para entender a vida. Foi um dos autores originais do manifesto desafiando a pretensão da sociobiologia de que existe uma natureza humana derivada e determinada pela evolução que garante a perpetuação da guerra, do racismo, da desigualdade de sexos e do capitalismo empresarial. Através de toda a sua carreira continuou a atacar esta ideologia e mostrou a superficialidade das suas supostas raízes na genética e na evolução. A sua mais significativa contribuição para deslegitimação do determinismo biológico, no entanto, foi a sua muitíssimo lida exposição do racismo e da desonestidade de proeminentes cientistas, A falsa medida do homem (The Mismeasure of Man). Aqui, mais uma vez, Gould mostrou a importância de voltar ao paradigma.

Não contente simplesmente em evidenciar o preconceito de classe e o racismo expressos por biólogos, antropólogos e psicólogos americanos, ingleses e europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial, ele examinou de fato os dados sobre os quais se baseavam as suas pretensões de cérebros maiores e mentes superiores dos europeus nórdicos. Em todos os casos as amostras haviam sido deliberadamente enviesadas, ou os dados mal representados ou mesmo inventados ou ainda as conclusões mal retiradas. Os dados consistentemente fraudulentos sobre o QI produzidos por Cyril Burt já haviam sido expostos por Leo Kamin, mas isto poderia ter sido rejeitado como uma patologia isolada num corpo saudável de investigação. A evidência produzida por Gould de dados difusos cozinhados por um conjunto de proeminentes investigadores mostrou à evidência que Burt não foi um caso aberrante mas antes típico. É amplamente aceito que compromissos ideológicos podem ter um efeito inconsciente nas direções de investigação e conclusões dos cientistas. Mas fraude deliberada e generalizada no interesse de uma agenda social? Que ataque mais radical sobre as instituições da ciência “objetiva” poderia ser imaginado?

Ser um radical no sentido que enforma este memorial não é fácil pois envolve um constante questionamento das bases das pretensões e ações, não apenas dos outros, mas também de nós próprios. Ninguém, nem mesmo Steve Gould, pôde reivindicar o sucesso em ser consistentemente radical, mas, como escreveu Rabbi Tarfon, “Não é nossa obrigação ter sucesso, nem tão pouco somos livres de desistir da luta.”

Richard C. Lewontin e Richard Levins são colegas e camaradas há 40 anos. São autores de The Dialectical Biologist (Harvard University Press, 1987), e Biology as Ideology: The Doctrine of DNA (HarperCollins, 1992). Lewontin é Research Professor de Biologia em Harvard e deu um curso conjunto com Steve Gould. Levins é responsável pelo programa de Ecologia Humana na Harvard School of Public Health .

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