31 de outubro de 2006

Política despolitizada: Do Oriente ao Ocidente

Wang Hui


Tradução / Estudiosos chineses curiosamente evitam discussões internacionais sobre a década de 1960, apesar do fato de a Revolução Cultural ter sido crucial naquela década turbulenta.[1] Eu diria que esse silêncio representa não apenas uma rejeição do pensamento radical e da prática da Revolução Cultural, mas também uma negação de todo o “século revolucionário” da China – esse que se estendeu desde a Revolução Republicana de 1911 até meados de 1976. O prólogo desse século foi do falimento da Reforma dos Cem Dias em 1898 até a ascensão de Wuchang em 1911; seu epílogo, o final da década de 1970 até 1989. Durante essa época, as revoluções francesa e russa foram os principais modelos para a China, e as características de cada uma definiram os seus conflitos políticos internos. O Movimento Cultural de 4 de maio valorizava a Revolução Francesa, e seus valores de “liberdade, igualdade e fraternidade”; os membros da primeira geração do Partido Comunista tomaram a Revolução Russa como modelo, criticando o caráter burguês de 1789. Mais tarde, com a crise do socialismo e ascensão da reforma na década de 1980, a aura da Revolução Russa enfraqueceu e os ideais da Revolução Francesa reapareceram. Mas com a queda final do século revolucionário da China, tanto o radicalismo francês quanto o russo tornaram-se alvos de críticas. A rejeição chinesa dos anos 60 não é, portanto, um acontecimento histórico isolado: é um componente orgânico de um processo não-revolucionário continuo e totalizante.

Por que a década de 1960 parece ser um tópico mais ocidental do que asiático hoje? Primeiro porque, embora o Ocidente e a Ásia estivessem conectados nessa década, houve diferenças muito importantes. Na Europa e América, a ascensão de movimentos sociais e protestos nos anos 60 desencadeou questionamentos das instituições político-capitalistas e uma densa crítica de sua cultura. No Ocidente, os anos 60 caracterizavam o pós-guerra, quando se desenvolvia uma crítica inescrupulosa da política doméstica e estrangeira de vários países. Em contrapartida, no sudoeste asiático (particularmente na Indochina), a ascensão dos anos 60 teve o formato de lutas armadas contra a dominação imperialista ocidental e opressão social. Movimentos de política revolucionária lutaram para transformar o Estado, para criar seu próprio espaço soberano para desenvolvimento econômico e transformação social. No contexto de hoje, as revoluções armadas da década de 1960 parecem ter desaparecido tanto da memória quanto do modo de pensar; mas a crítica contra o capitalismo permanece.

Há ainda um segundo ponto, que é o caráter particular da China nos anos 60. Começando na década de 1950, a República Popular da China apoiava incessantemente os movimentos liberais do “Terceiro Mundo” e outros movimentos sociais, até o ponto em que se viu de frente com a maior força militar do mundo: os Estados Unidos, na Coréia e no Vietnam. Quando os radicais europeus começaram a desenvolver uma crítica contra a esquerda stalinista, nos anos 60, descobriram que a China já tinha desenvolvido uma profunda análise crítica da linha ortodoxa soviética. Quando o novíssimo modelo de Partido Estado chinês estava se desenvolvendo, a corrosão da despolitização já se disseminava. Suas manifestações mais importantes foram a burocratização e as lutas de poder dentro do Partido Estado – conflitos que levaram à repressão da liberdade de expressão. No princípio da Revolução Cultural, Mao e outros buscavam estratégias contra a burocratização e as lutas de poder; mas o resultado final foi sempre que as estratégias revolucionárias acabavam envolvidas nesses mesmos processos – “despolitizadas” em lutas entre facções e burocratizadas, ou seja, incorporando os processos contra os quais deveriam combater – levando a uma nova repressão política e o fortalecimento do Partido Estado.

Mesmo antes de 1976, os anos 60 já haviam perdido seu brilho aos olhos de muitos chineses por causa das contínuas lutas entre facções e das perseguições políticas que ocorreram durante a Revolução Cultural. Seguido da morte de Mao e a restauração ao poder por Deng Xiaping e outros, o estado chinês adotou a Negação Completa da Revolução Cultural (彻底否定) no fim dos anos 70. Combinando sentimentos populares de dúvida e decepção, isso culminou em a uma mudança de atitude fundamental que tem durado até os dias de hoje. Durante os últimos 30 anos, a China passou de uma economia planificada a uma sociedade mercadológica, de quartel-general do mundo revolucionário a um crescente centro de atividade capitalista, de nação anti-imperialista do Terceiro Mundo a um imperialismo de “parcerias estratégicas”. Hoje, o argumento mais poderoso contra qualquer análise crítica dos problemas na China – a crise na sociedade agrícola, a grande desigualdade entre os setores rural e urbano, corrupção institucionalizada – é: “Então, você quer voltar aos dias da Revolução Cultural?” O eclipse dos anos 60 é resultado de uma despolitização; o processo de “negação radical” inviabilizou a possibilidade de qualquer crítica política autêntica das tendências históricas atuais.

Fins revolucionários

Como então podemos compreender a politização da era pós-guerra? Os resultados das duas Guerras Mundias tinham servido para desmentir o eurocêntrico sistema interestatal; com o início da Guerra Fria a ordem mundial foi definida, acima de tudo, pela divisão antagônica entre os Estados Unidos e os blocos soviéticos. Uma bela conquista da década de 1960 foi quebrar essa ordem bipolar. Da conferência de Bandung em 1955 até a vitória da Revolução Vietnamita em 1975, os movimentos sociais e lutas armadas na Ásia, África e América Latina adotaram a forma de um “processo politizador” que forçou uma abertura na ordem da Guerra Fria. A “Teoria dos três mundos” (三世界论, 19XX) de Mao foi uma resposta a essa nova configuração histórica. Seguindo os movimentos liberais nacionais – que minaram o imperialismo ocidental –, a ruptura do bloco comunista, cujo início se deu com a divisão sino-soviética, também criou um espaço para novos debates sobre o futuro do socialismo. As lutas teóricas e políticas culminaram em desafios para a estrutura de poder, o que aumentou ainda mais as dificuldades para o campo socialista. Isso também pode ser visto como processo de politização. Mas ainda assim, os anos 60 da China também possuíam uma contraditória “tendência despolitizadora” nas revoltas antiburocráticas que se transformaram em lutas entre facções – acima de tudo, na violência que isso gerou no fim dos anos 60. Em seu importante artigo, “Como traduzir a Revolução Cultural”, o sociólogo italiano Alessandro Russo afirma que essas violentas lutas de facção criaram uma crise na cultura política que se desenvolveu nos primeiros anos da Revolução Cultural, cujo foco inicial seria o debate aberto e as múltiplas formas de organização. [2] Essa crise levou ao reforço da estrutura do Partido Estado, o que se revelou como um processo de despolitização nos estágios finais da Revolução Cultural.

Descobrindo a democracia ocidental

As reflexões de Russo podem ser relacionadas com sua própria análise sobre o declínio dos sistemas democrático parlamentaristas do Ocidente nos últimos 30 anos. O pilar dessa democracia parlamentarista, diz Russo, foram os partidos políticos. Um sistema multipartidário pressupõe que cada partido tenha um caráter representativo específico e valores políticos, pelos quais lutarão contra seus rivais dentro do sistema institucional parlamentar. Entretanto, os valores dos partidos têm se tornado gradativamente indeterminados dentro de um amplo consenso macroeconômico, no qual a verdadeira política democrática desaparece. Sob essas condições, o parlamento passa de âmbito público a uma ferramenta para garantir a estabilidade nacional.

Assim, no cerne da crise democrática contemporânea está o declínio do partido político. No contexto de um sistema partidário enfraquecido as nações e o Estado tornam-se despolitizados. Nessa perspectiva, parece haver uma dinâmica interna comum tanto ao sistema unipartidário quanto ao multipartidário. Nos últimos trinta anos, suas estruturas evidenciam um processo de despolitização tanto na China quando no Ocidente, apesar das diferenças internas e históricas. Na China contemporânea o espaço para o debate político tem sido amplamente suprimido. O Partido Comunista chinês não é mais uma organização com valores políticos específicos, mas sim um mecanismo de poder. Dentro do próprio Partido é difícil que se estenda um verdadeiro debate; conflitos são entendidos como diferenças técnicas no caminho para a modernização, as quais só podem ser resolvidas dentro da estrutura de poder. Desde a metade da década de 1970 o Partido Comunista chinês deixou de conduzir debates públicos sobre estratégias e valores políticos. Mas a proeminente característica das transformações revolucionárias na China no século XX tinha sido justamente a conexão, íntima e contínua, entre o debate teórico e a prática política.

Um acontecimento chave desse processo foi o desaparecimento do conceito Conflito de Duas Linhas depois da Revolução Cultural. Mesmo quando esse termo era usado por aqueles que venciam um conflito entre facções, também poderia demonstrar um elemento central da história do Partido Comunista: que toda grande batalha política era intrinsecamente ligada a considerações teóricas e debates políticos. Desde as análises conflituosas sobre a problemática derrota revolucionária, passando pela catástrofe de 1927 até as disputas teóricas no começo dos anos 30 sobre o caráter social da Revolução Chinesa; desde as discussões de políticas nacionais e internacionais sobre a URSS e o período de Yan’an, até os debates contraditórios da Revolução Cultural, podemos traçar uma série de importantes divisões teóricas que surgiram em análises diversas das condições sociais, com implicações divergentes para a estratégia partidária. No meu ver, são precisamente essas disputas teóricas que mantêm a vitalidade interna de um partido e garantem que ele não se torne uma organização política despolitizada. Condicionar teoria e prática ao Conflito das Duas Linhas funcionava como um mecanismo corretor, possibilitando ao Partido reconhecer e consertar seus erros.

Mas devido à ausência de mecanismos que funcionassem nos moldes de uma democracia interpartidária, os debates e diferenças frequentemente encontravam uma “expressão” nas lutas de facção. Após a Revolução Cultural, muitos daqueles que sofreram com esse processo passaram a odiar, e em seguida a repudiar o conceito Conflito das Duas Linhas. Para reconquistar o poder no final da década de 1970 eles procuraram suprimir esse conceito e adotar a unidade partidária, ao invés de analisar como o Conflito das Duas Linhas teria se degenerado em um mero jogo de poder. Isso não apenas resultou em um persistente mascaramento da vida política do Partido, mas também destruiu a possibilidade de explorar a relação entre o Partido e a democracia. Além disso, tal comportamento levou o Partido a uma “estatização” – ou melhor, despolitização.

Nos anos 60 a China desenvolveu um amplo repertório teórico que envolvia temas como: o poder de transformação da história, economia de mercado, meios de produção, a luta de classes, burguesia, natureza da sociedade chinesa e a caracterização de uma revolução mundial. Houve diferenças intensas entre diferentes blocos políticos em todas essas questões; a união entre teoria e cultura política caracterizou esse período. No contexto subsequente, pode-se perceber que o processo de despolitização da China tem duas características-chave: primeiro, a “des-teorização” da esfera ideológica; e segundo, fazer da reforma econômica o objetivo exclusivo do Partido.

No caso da “des-teorização”, o ponto crítico ocorreu na década de 1970, quando os lemas de união entre teoria e prática foram substituídos pela ideia cautelosa de “atravessar o rio sentindo as pedras”. Entretanto, a expressão “sentindo as pedras”, por vários motivos, não descreve de forma precisa o processo de Reforma. Primeiro, na metade da década de 1970 o Partido Comunista chinês de fato havia se engajado em pertinentes discussões teóricas sobre o mercado, a mão-de-obra, os direitos civis e outras questões que tratavam de problemas relevantes para a China. Sem essas discussões, fica difícil imaginar como o trajeto da Reforma e do desenvolvimento do mercado teriam surgido. Em seguida, a partir do fim dos anos 70 houve uma série de discussões sobre as questões do socialismo, humanismo, alienação, economia de mercado e a questão da posse de terras, tanto dentro do Partido quanto na sociedade chinesa como um todo – os dois debates, dentro e fora do Partido, constituíram um processo contínuo e singular. Os debates criaram, portanto, tendências para uma “des-teorização” geral.

A segunda característica do processo de despolitização foi a iniciativa de uma reforma econômica no centro de todo o trabalho do Partido. Oficialmente, essa reforma trouxe a substituição do lema “Revolução e Construção” – presente quando o Partido admitia o chamado Conflito das Duas Linhas – por apenas “Construção”. Compreensivelmente, essas escolhas políticas foram recebidas com aplausos no fim da década de 70, quando apareciam como uma resposta às lutas entre facções e o caráter caótico dos últimos anos da Revolução Cultural. Ainda nesse ponto, a tensão entre partido e política que caracterizaram os primeiros anos da Revolução Cultural foi minuciosamente eliminada, A unificação de Estado e política – o sistema partidário – extinguiu a outrora cultura política.

De Partido Estado ao Estado Partido?

O conceito de Partido-Estado foi, obviamente, um termo pejorativo criado pelo Ocidente na época da Guerra Fria para designar os países comunistas. Hoje todos os países do mundo tornaram-se Partido-Estado ou – para estender o termo – “Partidos Estado”. Historicamente, era inviável o desenvolvimento dos sistemas políticos modernos quando diretamente oriundos do sistema monárquico; mesmo por volta da metade do século XX, alguns partidos políticos ainda não tinham aderido aos parâmetros da política nacional chinesa. A criação de um novo sistema de Partido-Estado foi fundamental para o desenvolvimento do período pós-guerra.

Quando o Partido exerce o poder, torna-se o Estado da ordem, o qual cada vez mais se transforma num aparato despolitizado, uma máquina burocrática, e não exerce mais a função de estimular ideias e práticas. Por esse motivo, eu diria que este método dominante e atual passou por uma transformação: de Partido-Estado para um sistema Estado-Partido, ou “Estado multipartidário”. Isto implica que o Partido não cumpre mais sua função política de outrora, torna-se apenas um aparato do Estado. O que eu quero enfatizar aqui é a mudança na identidade do Partido: não possui mais suas próprias convicções político sociais, podendo ter apenas uma relação estrutural e funcionalista com a manutenção do Estado. Se o sistema de Estado-Partido é o resultado de uma transformação problemática do sistema Partido-Estado, a China contemporânea é o exemplo prático desta tendência. E este caso na China deve ser visto também como sintoma de uma dinâmica de despolitização mundial. As análises que evitam o reconhecimento generalizado de uma crise nos partidos políticos, tentam buscar os melhores meios de reforma para o sistema político chinês – que incluem adotar o sistema multipartidário ocidental com o objetivo de uma reforma na China – são apenas extensões desta despolitização.

A Revolução Cultural foi possivelmente o último estágio em que o Partido-Estado reconheceu ter encarado uma crise, e portanto esboçou uma forma de auto renovação. Os debates políticos nas primeiras fases da Revolução Cultural incluíam correntes que visavam romper com o poder absoluto do Partido e do Estado, com o objetivo de alcançar uma soberania popular. A Revolução Cultural foi uma reação contra um primeiro estágio de estatificação do Partido; para mudar os rumos, era necessário reavaliar os valores políticos do Partido. Esforços para uma mobilização social e a estimulação da vida política fora do contexto Partido-Estado eram características cruciais deste primeiro período. Durante esses anos, fábricas na China foram reorganizadas nos moldes da Comuna de Paris, e as escolas, junto com outras Unidades de Produção, engajaram-se em experiências sociais. Devido a um forte movimento de reafirmação do sistema unipartidário, a maior parte dessas inovações foram breves e os processos autônomos ao Estado de ativismo político foram rapidamente reprimidos. Ainda assim, traços destas antigas experiências ainda reverberaram em organizações partidárias posteriores – por exemplo, a política de admitir representantes operários, camponeses e do exército popular em posições de liderança no Comitê Central, ou exigir que todos os níveis de Estado e de Partido enviem seus membros para fazer serviço comunitário em zonas rurais ou em fábricas, etc. Estas práticas, afetadas por um sistema burocratizado incapaz de prover energias criativas, tornaram-se, no fim dos anos ’70, alvos centrais do projeto governista de “organizar a bagunça” e “voltar ao normal”.

Hoje, trabalhadores tanto urbanos quanto rurais desapareceram totalmente não só dos corpos de liderança do Partido e do Estado, mas também do Congresso Popular Nacional. Seguido do fracasso da Revolução Cultural e do desenvolvimento de uma sociedade mercadológica, a despolitização tornou-se a principal vertente desta época: a via tem sido de crescente sobreposição de política e Partido-Estado, e o sistema Estado-Partido tem sido o método emergente.

Categoria de classe

A consolidação do sistema de Estado-Partido no contexto chinês está diretamente relacionada à categoria de classe. O caráter representativo dos partidos comunistas tornou-se inevitavelmente mais problemático com o passar do tempo, devido ao seu estabelecimento na liderança de alguns Estados. Seguindo a ruptura Sino Soviética no fim dos anos 50 e começo dos 60, Mao enfatizou a problematização da categoria de classe para estimular a renovação da cultura política do Partido. O alvo de sua crítica era a ideia soviética de “partido de todo o povo”, a qual indicava não só uma confusão sobre o caráter representativo do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), mas também a despolitização do sistema de Partido-Estado. Já que não há espaço aqui para avaliar a teoria de classe Marxista, o que precisa ser enfatizado é que na prática política chinesa, “classe” não é uma mera categoria centrada na natureza de propriedade de terras ou na relação dos meios de produção; ela se comporta mais como uma categoria política baseada no apelo por mobilização e auto renovação do Partido revolucionário. Analogamente, dentro do Partido, esta categoria foi usada para estimular o debate e as lutas, com o fim de evitar a despolitização sob as condições administrativas do Partido. Esta categoria definia atitudes políticas ou sociais, e visava uma política revolucionária ao invés de uma definição estrutural do conceito de classe.

Entretanto, esta subjetivação da categoria de classe possuía, internamente, perigos e contradições. Então, uma vez cristalizada de forma estrutural e enrijecida – isto é, conceito de classe despolitizado – seu dinamismo político esvaiu-se. Como um discurso cujo fundamento seria a identidade de classes, provou-se incapaz de estimular transformações políticas. Ao invés disso, tornou-se o modelo de poder mais opressivo, a base para um caráter impiedoso de lutas entre facções. A crescente predominância de discursos sobre identidade, “origem da família” ou “linhagem de sangue” foi uma negação e traição do panorama ativista e subjetivista que poderia ser o cerne da Revolução Chinesa, cuja principal tarefa seria desmanchar as relações de classe formadas por um histórico de violência e relações desiguais de propriedade.

O fracasso da Revolução Cultural não foi um produto de sua politização – resultando em debate, investigação teórica, organização social autônoma –, assim como não foi resultado da espontaneidade e da vitalidade de um espaço político e discursivo. O fracasso foi resultado da despolitização: lutas entre facções polarizadas, que eliminaram a possibilidade de uma esfera social autônoma, transformando o debate político em um simples meio para a disputa de poder, e o conceito de classe num mero mecanismo de identidade. A única maneira de superar a tragédia desse período é compreendendo suas possibilidades de repolitização. Se tomarmos 1989 como o ponto final do que foi a década de 1960 – a consolidação de um processo de despolitização –, esse ano também pode implicar a possibilidade do começo de uma longa estrada para a repolitização.

Derrotas e despolitização

Explicar o fenômeno da despolitização é uma tarefa complicada; certamente sua dinâmica não pode ser analisada apenas dentro da China. Considerando uma perspectiva histórica, pode-se dizer que grandes correntes de despolitização emergiram no despertar de praticamente todos os movimentos revolucionários fracassados: após a Revolução Francesa e a derrota das revoltas de 1848; após a década de 1960 na Europa e na Ásia; após 1989. De acordo com a análise de Carl Schmitt, o que ele chama de “neutralização” pode oferecer uma elucidação sobre esse processo.[3] Para Schmitt, o problema político central da década de 1920 foi a contenção da ascensão do poder da classe trabalhadora. A conexão desorganizada entre a economia e a política durante aquele período foi, de acordo com Schmitt, um erro. Se deveria então buscar uma nova forma de relacionamento entre a política e a economia, nem laissez-faire nem social-democrática. O conceito de neutralização de Schmitt, apesar de estar especificamente situado num contexto político e intelectual do ocidente, está claramente aberto para uma aplicação mais ampla.

Historicamente, o desenvolvimento do sistema capitalista foi baseado na hipótese de separação entre economia e política, e num desafio da burguesia emergente em deter o monopólio da aristocracia feudal sobre ambos. Schumpeter usou o conceito “political exchange” (algo como “intercâmbio político”) para descrever o processo ocorrido. Sem a proteção de alguns elementos da aristocracia, a burguesia viu-se incapaz de dar segmento aos seus próprios interesses. Intercâmbio político já implicaria numa certa separação entre as esferas política e econômica, entre as quais não poderia haver revezamento. Dessa forma, a separação entre política e economia não é um fenômeno que existe naturalmente, mas sim o produto de uma tentativa do Capital de concentrar mais poder através dessa divisão. Durante o longo século XIX, esse objetivo foi sendo gradualmente atingido em estruturas nacionais e supranacionais da economia de mercado. O capitalismo contemporâneo tenta criar uma esfera econômica autônoma em uma ordem política despolitizada, na qual o conceito chave seria esse de Estado neutro.

Uma vez que a burguesia afirmou seu objetivo de ir contra a monarquia e aristocracia, uma espécie de “política despolitizada” substituiu as múltiplas estruturas políticas do período revolucionário – um resultado do intercâmbio político manifestado na união de elementos capitalistas e não capitalistas que formaram as novas classes superiores. Esse processo de despolitização envolvia, por exemplo, uma legitimação constitucional que confiscasse os bens sociais e nacionais dos nouveau-riche. Como resultado, o sentido de democracia se transformou de popular para a forma representativa, a Nação Estado perdeu o espaço político e passou a ser uma estrutura institucionalizada de normas; os partidos políticos, então, abandonam a luta pela representação e passam a agir como mecanismo de distribuição de poder.

A época do capital financeiro envolveu uma institucionalização e legalização ainda mais profunda do “mercado autônomo ou espontâneo” – o placebo central da economia neoclássica, sob a qual todas as instituições não capitalistas e formas de trabalho foram tachadas de “interferência política”. A expansão desenfreada da economia de mercado para uma esfera política, cultural, doméstica e outras é vista como um processo apolítico, “natural”. Nesse raciocínio, os conceitos de mercado neoclássico e neoliberal são agressivamente positivistas, uma ideologia politicamente despolitizada. A retirada do Estado encabeçada por essas forças é uma proposição fundamentalmente despolitizadora.

A mudança na organização partidária chinesa

A atual despolitização chinesa aborda ainda outra espécie de mudança política, caracterizada pela luta dos setores de elite do Partido por transformarem-se em representantes de interesses específicos enquanto ainda se mantêm no poder estatal. Nessa instância, é o capital internacional que deveria passar por um processo de despolitização para ganhar apoio dos mecanismos de poder. Já que a abertura e dinamização do mercado estão sob a égide do Estado, muitos aspectos dos aparatos de poder estão imersos na esfera econômica (num sistema de Partido-Estado, isso deve incluir também os aparatos do Partido). A “reforma” dos direitos de propriedade, que ocasionou desapropriações em grande escala, tem sido um exemplo notório dessa mudança despolitizadora, que usa a lei para despolitizar a transferência e o direito de propriedade. No contexto da China contemporânea, ideias como modernização, globalização e crescimento podem ser vistas como conceitos chave de uma ideologia política despolitizada ou anti-política, cujo resultado é uma “militância” contra a compreensão política das mudanças sociais e econômicas em pauta na Abertura. Contra esse pano de fundo, por outro lado, está a crítica à corrupção, que também é uma crítica mais profunda à desigualdade e à injustiça envolvidas no processo de transferência de bens.

Três fatores sustentam o atual momento de despolitização da China:

  • No processo de Abertura, os limites entre a elite política e os proprietários de capital estão cada vez mais indefinidos. Logo, o Partido está mudando suas regras de base.
  • Sob a esfera da globalização, algumas das funções econômicas das nações-estado são cedidas a organizações de mercado internacionais (WTO), e assim uma ordem globalizada, despolitizada e legalizada está sendo consolidada.
  • Num momento em que tanto o mercado quanto o Estado têm sido gradativamente neutralizados ou despolitizados, questões como desenvolvimento tornam-se meras disputas técnicas sobre mecanismos de ajuste de mercado. Divisões políticas entre mão-de-obra e capital, esquerda e direita, estão fadadas a desaparecer.

Essas tendências começaram no fim dos anos 70 intensificaram-se nos anos 80, e alcançaram proporções mundiais na era da globalização neoliberal.

Estado e ideologia

O processo de despolitização contemporânea é um produto dessas transformações históricas, quando foi naturalizada um novo tipo de desigualdade social. A crítica à desigualdade deve conceber a repolitização como uma condição para seu próprio sucesso. O cerne dessa repolitização é a destruição, na teoria e na prática, desse Estado neutro concebido como “natural”. A desnaturalização deve ser usada para combater a despolitização.

Como devemos caracterizar o Estado contemporâneo? No campo da teoria marxista, a ascensão do Estado “neutro” levou alguns autores a propor uma separação entre poder e aparato de Estado, e a limitar os objetivos da disputa política à questão do poder do Estado. De fato, como Althusser apontou, “na prática política, os clássicos do marxismo tratavam o Estado como uma realidade mais complexa” do que na definição teórica.[4] A definição, ele argumenta, carece de uma descrição mais objetiva de “aparatos ideológicos de Estado ideológico” (AIE). Em contraposição aos “aparatos repressores de Estado”, os AIE´s incluem religião, educação, família, lei, associações trabalhistas, partidos políticos, mídia, esfera cultural. Enquanto há apenas um, unificado, aparato de Estado repressor, existe “uma pluralidade de aparatos de Estado ideológicos”. E considerando que os ARE´s pertençam ao domínio público, a maior parte dos AIE´s estão na esfera privada. No Estado pré-capitalista, havia um aparato de Estado ideológico – a Igreja –, enquanto no capitalismo os AIE´s dominantes se concentraram no par Escola-Família. Assim sendo, a vitória na disputa política pelo poder do Estado depende também do engajamento na luta dentro da esfera dos mecanismos ideológicos.

O sistema de AIE central da China na era socialista incluía os ministros da Propaganda, Cultura e Educação. Esse sistema combinava as funções de AIE e ARE mas sua função ideológica era mais proeminente. Na China contemporânea, apesar desse mecanismo ainda exercer uma função ideológica, enfrenta obstáculos insuperáveis. Assim, tem se tornado um mecanismo repressivo; seu controle de mídia e outros âmbitos não é primariamente ideológico, mas sim baseado na necessidade de preservar a estabilidade. Porque todos os aparatos de Estado penetram profundamente na vida nas instituições da vida cotidiana, o caráter fundamental da existência do próprio Estado assume uma espécie de forma política despolitizada. Gradativamente, isso é agora suprimido pela hegemonia ideológica do mercado.

Três componentes da hegemonia

Para confrontar a lógica da política despolitizada, devemos analisar as formas de hegemonia contemporâneas. Eu diria que há três componentes da hegemonia, com complexas inter-relações históricas. Primeiro, como esclarecido pela definição de hegemonia de Gramsci e pela ideia de “aparato de Estado ideológico” de Althusser, o monopólio da hegemonia e soberania do Estado e o monopólio da violência estão mutuamente envolvidos. Gramsci identificou dois modos de operação da hegemonia: poder dirigido, e liderança moral e intelectual. Poder dirigido funciona pela coerção, enquanto a liderança se refere à estratégia do grupo no poder de propor soluções a problemas comuns, que concomitantemente alocam poderes excepcionais a si mesmos. De acordo com os Cadernos da Cárcere, o Estado é uma forma particular de estrutura coletiva cujo foco é criar as condições mais vantajosas para a expansão e desenvolvimento de sua capacidade total.

Segundo, o conceito de hegemonia tem sido cautelosamente ligado a relações interestaduais. O pensamento ocidental tendia a distinguir a aproximação feita por Gramsci da crítica à hegemonia internacional dentro do pensamento político chinês. Minha intenção aqui é tentar reconstruir as ligações políticas e históricas entre os dois. O conceito de hegemonia para Mao sempre foi relacionado à esfera das relações globais. A “Teoria dos três mundos” não apenas tratava o Terceiro Mundo como um tema político, mas também relacionado a ligações e rompimentos com elementos do Segundo Mundo, que iria se opor aos dois poderes hegemônicos (os EUA e a URSS) e formar novos tipos de relações internacionais. A “Teoria dos três mundos” também buscava, através da investigação teórica, debate político e apelo moral, romper o poder ideológico e prestigiar os sistemas americano e soviético. A prática da contra-hegemonia implicava contestar a autoridade cultural. Os grandes clássicos chineses, as crônicas “Primavera e Outono” e os “Comentários do mestre Zuo”, usam os conceitos de autoridade ducal – controle pela força – e autoridade hegemônica – dominação através de cerimônias e rituais – para diferenciar os dois tipos de poder nos velhos estados de Qi, Jin, Chu e Qin. Embora o conceito de hegemonia, no universo oral do chinês, geralmente se refira à dominação e controle político, econômico ou militar, ele também envolve a questão ideológica.

O conceito de hegemonia de Gramci e o conceito de poder de Maquiavel estão explicitamente combinados no “Long Twentieth Century” de Giovanni Arrighi, onde a esfera da hegemonia ideológica nacional está ligada às relações políticas internacionais. Em Maquiavel, o poder conecta consentimento e força: poder implica no uso de forças armadas ou a ameaça das forças armadas; consentimento implica a autoridade moral. Pela virtude de seu poder hegemônico, os EUA tornaram-se um modelo de despolitização e também um modelo de modernização, marketização e globalização, além de ter estabelecido sua própria autoridade moral no âmbito mundial. A hegemonia americana se apoia nas múltiplas fundações de monopólio da violência, domínio econômico e soft power ideológico. Mas, assim como o processo de despolitização tem dimensões nacionais e internacionais, a possibilidade de romper essa estatificação politicamente despolitizada também existe dentro dessas duas dimensões. O colapso do expansionismo militar americano desde 2001 pode unir um número crescente de forças globais numa “des-americanização”.

Terceiro, hegemonia não apenas compara relações nacionais ou internacionais, como também está intimamente conectada ao capitalismo transnacional e supranacional; ela também deve ser analisada dentro da esfera das relações de mercado globais. Clássicos economistas políticos enfatizavam que o processo de reprodução é um incansável e inacabável processo global; algo que nunca foi tão claro como hoje, quando a ideologia de mercado constitui um tipo de hegemonia. A economia neoclássica é um exemplo didático da hegemonia ideológica globalizada – seus princípios permeiam as regras e os regulamentos das maiores instituições financeiras e transnacionais de comércio. Tudo isso funciona como “mecanismos globais de ideologia”, apesar de conterem certamente poder de coerção econômica. As expressões mais diretas dos mecanismos ideológicos de mercado são a mídia, propaganda, o “mundo das compras” etc. Esses mecanismos não são apenas comerciais, mas também ideológicos. Seu maior poder está no apelo para o “senso comum”, necessidade ordinárias que transformam as pessoas em consumistas, voluntariamente seguindo a lógica do mercado em sua vida cotidiana. Os mecanismos ideológicos de mercado têm um caráter fortemente despolitizador.

Os três componentes de hegemonia discutidos acima não operam separadamente um do outro, mas formam conexões de poder entrelaçadas. Eles são internos às instituições e mecanismos sociais contemporâneos, internos às atividades e crenças humanas. A política despolitizada está estruturada como essa conexão hegemônica – uma questão essencial para entender a atual situação da China. A hegemonia contemporânea costuma usar contradições internas para expandir sua operacionalidade. Por exemplo, a política econômica da China e seu trajeto de desenvolvimento estão presas a um processo de globalização capitalista, cujos resultados incluem sucessivas crises financeiras, junto com crescentes tensões e desigualdades sociais. Ainda na China, a globalização capitalista nunca foi vista como um fator nas contradições e conflitos de interesse a nível nacional.

Des-nacionalização?

O clima mais aberto na China durante a década de 1970 e 1980 permitiu definições de autonomia e liberalismo que desafiaram os mecanismos ideológicos do Estado. Entretanto, esse “processo des-nacionalizador”, como ficou conhecido nos círculos de crítica intelectual, não resultou numa repolitização. Pelo contrário, assim que a autoridade soberana da Nação Estado estava começando a ser desafiada pelas novas forças da globalização capitalista, os processos de autonomia e liberalismo do período foram reincorporadas na dinâmica de despolitização e consolidação da sua hegemonia ideológica internacional.

De fato, a “des-nacionalização” ilustra o resultado do violento conflito entre dois diferentes sistemas políticos nacionais, duas ideologias. A ideia de “nação” que é “des-nacionalizada” refere-se apenas à nação socialista. Des-nacionalização, portanto, é simplesmente o processo de identificação com uma forma hegemônica diferente. Na China contemporânea, a ideologia antissocialista usa a imagem da anti-estatificação para cobrir sua conexão interna com essa nova forma nacional. Mas a análise supracitada das múltiplas dimensões de hegemonia demonstra que essa nova forma de ideologia de Estado também tem uma dimensão supranacional, que constantemente se expressa como um ataque ao Estado a partir de uma posição supranacional.

Esse processo de des-nacionalização foi acompanhado por uma ideologia despolitizadora, incorporada numa nova forma de hegemonia que privilegia a modernização, globalização e mercado. “Des-nacionalização” presume a erosão de qualquer distinção entre poder de Estado e mecanismos de Estado. Uma vez que essa distinção seja eliminada, o espaço para a disputa política é desmanchado, e os problemas políticos tornam-se um processo “não-político” de des-nacionalização ou des-estatificação. Eles seriam ou absorvidos pelos mecanismos de Estado, ou restringidos pela lógica de fundações nacionais ou internacionais. Não ficariam apenas incapacitados de oferecer diferentes compreensões de desenvolvimento, democracia ou participação popular; também funcionariam como máquinas de mecanismos globais despolitizados. Uma questão pertinente de nosso tempo seria então como superar a despolitização auto-imposta dos movimentos sociais, e como ligar o internacionalismo crítico às disputas políticas dentro da estrutura de Nação Estado.

Hoje, qualquer desafio para a lógica fundamental de política despolitizada exigirá de nós a identificação de fissuras dentro das três formas de hegemonia; desmontar a qualidade totalizante destas três esferas e encontrar dentro delas novos espaços para a disputa política. A globalização contemporânea e suas instituições incitam a transnacionalização do capital financeiro, da produção e do consumo, mas ao mesmo tempo busca limitar a imigração à estrutura de uma regulação estatal, criando assim rivalidades regionais entre trabalhadores. Nossa resposta não deve retrair-se ao âmbito nacional, mas sim recriar um internacionalismo crítico a fim de expor as contradições internas da globalização. Na China, por causa dos inúmeros conflitos entre a prática da Reforma e valores socialistas, permanecem contradições internas entre o movimento de reforma e os AIE. Como resultado, os AIE estão se transformando em mecanismos repressivos do Estado, baseando-se na força ou autoridade administrativa para impor um sistema de controle. Dessa maneira, os AIE chineses operam seguindo uma lógica de des-ideologização e despolitização, apesar de fazerem seu apelo na linguagem da ideologia.

Com base primeiramente em exigências de legitimação, o Partido Comunista Chinês, quando lançou a Campanha de Negação Completa da Revolução Cultural, não repudiou a Revolução Chinesa ou os valores socialistas, tampouco toda a soma do pensamento de Mao Zedong. Isso criou um efeito duplo. Primeiro, a tradição socialista funcionou até certo ponto como uma barreira das reformas estatais. Toda vez que um Partido Estado fez alguma troca política de grande porte, essa transição teve de ser conduzida em uma forma de negociação. No mínimo, esse Estado teve que se apoiar numa linguagem particular a fim de harmonizar a transformação política com seus objetivos sociais. Mas, por outro lado, a tradição socialista dava aos trabalhadores, camponeses e outras esferas sociais alguns meios legítimos de contestar ou negociar a corrupção do Estado ou procedimentos de mercado desiguais.

Além disso, dentro do processo histórico de negação da Revolução Cultural, houve uma reativação do legado da China, o que proveria uma abertura para o desenvolvimento de uma política futura. Essa abertura não teria sido uma simples retomada do século XX, mas também um ponto de partida na busca por meios de romper a estatificação de uma política despolitizada, depois do fim da época revolucionária. Numa época em que todas as formas anteriores de subjetividade política – partido, classe, nação – enfrentam a crise da despolitização, a busca por novos modelos deve ser acompanhada de uma redefinição dos limites da política em si.

Notas:

[1] NLR and the author wish to thank Kuan-Hsing Chen, Chua Beng-Huat, Christopher Connery and the journal Inter-Asia Cultural Studies for kindly allowing the publication of this edited extract of “Depoliticized Politics”. The full text is published as “Depoliticized Politics, Multiple Components of Hegemony and the Eclipse of the Sixties” in Inter-Asia Cultural Studies, vol. 7, no. 4, a special issue on the Asian Sixties edited by Christopher Connery.

[2] Russo, “Como traduzir a Revolução Cultural”, Estudos Culturais Inter-asiáticos, vol. 7, no. 4. Eu gostaria de expressar meus profundos agradecimentos a Alexandre Russo e a Claudia Pozzana, que participaram em extensas discussões sobre esses tópicos comigo na Universidade de Bologna em 2004. Sem eles, este artigo não poderia ter sido escrito.

[3] Ver Carl Schmitt, “The Age of Neutralizations and Depolitizations” (1929), Telos, Summer 1993, Issues 96.

[4] Louis Althusser, “Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes Toward an Investigation)” in Lenin and Philosophy and Other Essays, trans. Ben Brewster, Londres, 1971, p. 135.

15 de outubro de 2006

China's New Leftist

Pankaj Mishra


No início deste ano encontrei Wang Hui no café "Thinker's" perto da universidade de Tsinghua em Pequim, onde é professor. Um homem compacto, de pequena estatura, já com algumas madeixas cinzentas no seu cabelo curto e uma cara agradável sempre pronta a abrir-se num sorriso, chegou, como doravante chegaria a todos os nossos encontros subsequentes, numa velha bicicleta, vestido de bombazina escura, casaco de camurça e uma camisola de gola alta preta, num estilo que não estaria deslocado num campus universitário americano.

Co-editor do principal jornal intelectual da China, o Dushu (Leitura), e autor de uma história em quatro-volumes sobre o pensamento chinês, Wang, ainda nos seus 40’s, surgiu como uma figura central num grupo de escritores e de académicos conhecidos como a Nova Esquerda. Estes intelectuais defendem “uma alternativa chinesa” à economia de mercado neoliberal, que garantirá o bem-estar para os 800 milhões de camponeses deste país, deixados para trás pelas reformas recentes. E, ao contrário da maioria da classe dissidente na China, que nasceu dos protestos na Praça de Tiananmen em 1989 e que consiste maioritariamente em activistas dos direitos humanos e pró-democracia, Wang e a Nova Esquerda vêem a liderança comunista como uma força conducente à mudança. Acontecimentos recentes - o afastamento de líderes partidários no final do mês passado sob acusações de corrupção e os contínuos esforços para limitar os excessos do mercado - sugerem que esta visão não é nem utópica nem paradoxal. Embora os elementos da Nova Esquerda nunca tenham participado nas políticas do governo, as suas preocupações são crescentemente amplificados pelo Governo Central.

Nos anos mais recentes, Wang reflectiu eloquente e frequentemente sobre aquilo que os estrangeiros consideram ser o principal paradoxo da China contemporânea: um estado autoritário que promove uma economia de mercado livre mas assente num sistema socialista. Nesta primeira tarde, Wang pouco tempo dedicou a conversa de circunstância, passando quase imediatamente a uma análise dos problemas do país. Descreveu como o partido comunista, embora oficialmente empenhado nas questões da igualdade, tinha aberto a direcção do partido aos homens de negócios, ricos. Muitos dos seus representantes locais usaram, disse ele, o seu poder arbitrariamente para se transformarem em empresários bem sucedidos à custa das populações rurais que era suposto apoiarem e juntaram-se a especuladores em bens imobiliários para se apropriarem de terrenos detidos colectivamente pelos camponeses. (De acordo com as autoridades chinesas, 60 por cento das aquisições de terrenos são ilegais.) O resultado foi uma aliança da interesses das elites política e comercial, afirmou Wang, que fazem lembrar alianças similares nos Estados Unidos e em muitos países asiáticos de leste.

Enquanto descrevia como é que as reformas do mercado aumentaram a distância entre ricos e pobres, entre áreas rurais e urbanas, ao nosso redor estudantes bem vestidos percorriam uma colecção de obras intelectuais (Leo Strauss, Jürgen Habermas), consultavam o seu email e saboreavam o seu café moca. No "Thinker's", um café privado, e na livraria vizinha "All Sages", Wang aparentava ser famoso. Os estudantes cumprimentaram-no com reverência; o grupo de funcionários foi extremamente atencioso. Contudo, Wang ainda pertence a uma minoria. Distanciando-se dos excessos do maoismo e dos fracassos da velha economia planificada, a maioria dos intelectuais chineses, mesmo aqueles sem ligação ao Estado, vêem a economia de mercado como indispensável para a modernização e para o renascimento da China. Zhu Xueqin, um professor de história na universidade de Shanghai que é um dos intelectuais liberais mais conhecidos da China, disse-me que quer mais, não menos, reformas de mercado. Para ele, a instabilidade actual de China é causada não por forças económicas mas sim por um regime politicamente repressivo que impede a emergência de uma democracia representativa e de um governo constitucional.

Wang reconhece prontamente que o empenho da China na reforma económica não deixou de trazer grandes benefícios. Aplaude a primeira fase, a que durou de 1978 a 1985, por melhorar a produção agrícola e o nível de vida rural. É a actual obsessão do governo central em criar riqueza nas áreas urbanas - e a sua decisão em ceder a autoridade política a líderes locais do Partido, que frequentemente ignoram de modo explícito as directrizes do governo central - que conduziu, segundo ele, a desigualdades profundas na China. A adopção de uma nova economia de mercado neoliberal traduziuse, para ele, no desmantelamento dos sistemas do Estado Providência, um alargar das diferenças entre os dos ricos e dos pobres e o aprofundar igualmente das crises ambientais não somente na China mas também nos Estados Unidos e nos outros países desenvolvidos. Para Wang, é a tarefa dos intelectuais lembrar ao Estado os seus antigos deveres por cumprir para com os camponeses e trabalhadores.

Apesar da sua invocação de princípios socialistas, Wang foi rápido em dizer-me que não gosta do rótulo de Nova Esquerda, mesmo que ele próprio a tenha usado. Os “intelectuais reagiram contra “ o esquerdismo” dos anos 80, responsabilizando-o por todos os problemas de China,” disse, e “ os radicais de direita usam a expressão Nova Esquerda para nos desacreditar, para que nos vejam como o que resta dos tempos do Maoismo.” Wang não se importa igualmente em ser identificado com os inteletuais radicais dos anos 60 na América e na Europa, a quem a expressão Nova Esquerda era inicialmente dirigida. Muitos deles tiveram, disse ele, a paixão e as palavras de ordem mas muito pouca experiência política e, não surpreendentemente, muitos deles acabaram por se juntar aos neoconservadores apoiando “projectos de fantasia” como a democracia no Iraque.

Wang prefere o termo “intelectual crítico” para si mesmo e para os seus colegas, alguns dos quais fazem igualmente parte do movimento emergente dos activistas na China rural, nos campos, trabalhando para aí aliviar a pobreza e reduzir os danos ao meio ambiente. Embora seja amplamente esquerdista, a Dushu publica artigos que abarcam um largo espectro ideológico. O próprio trabalho de Wang inspira-se num espectro alargado de pensadores ocidentais, do historiador francês Fernand Braudel ao teórico da globalização, Immanuel Wallerstein. “A qualidade intelectual é importante para mim,” referiu Wang. “Eu não quero publicar qualquer lixo esquerdista.” A revista publicou debates teóricos sobre a teoria pós-colonial assim como, reivindica, algumas das análises das mais importantes na China sobre o modo como as reformas do governo orientadas para as zonas urbanas prejudicaram a sociedade rural. Há limitações quanto ao que a Dushu pode publicar, naturalmente, e Wang é sincero sobre este assunto. Como com todos os jornais intelectuais na China continental, os autores e os editores da Dushu têm que exercer um certo grau de autocensura. Os artigos não podem directamente criticar a liderança ou afastarem-se muito da linha oficial nos assuntos que o governo chinês considera os mais sensíveis – a Formosa ou as minorias muçulmanas e budistas no Xinjiang e no Tibete.

“Eu tenho sido muito questionado pelos países ocidentais, ` como é que define a sua posição?”’ disse-nos Wang. À pergunta “`o senhor é um dissidente?’ Eu digo não. O que é um dissidente? É uma categoria da guerra-fria. E já não tem agora nenhum significado. Muitos dos dissidentes chineses na América podem já voltar para a China. Mas estes não o querem fazer. Estão a viver bem nos Estados Unidos. Às pessoas que me perguntam se nós somos dissidentes, eu digo, nós somos intelectuais críticos. Apoiamos algumas das políticas do governo e opomo-nos a outras. Tudo depende realmente do conteúdo das políticas.”

Nascido em Yangzhou na província sudoeste de Jiangsu, Wang tinha apenas 7 anos e acabara de entrar para o ensino primário quando a Revolução Cultural se iniciou, em 1966. O caos de uma década, que traumatizou gerações mais velhas, parece ter deixado memórias pouco incómodas para Wang. Recorda ser levado pela sua escola decidiu para trabalhar nas aldeias por uma semana ou duas durante o ano escolar. “A minha geração de intelectuais urbanos,” disse, com um certo ar de orgulho, “é a última a ter a experiência em primeira-mão das condições de vida no campo.”

Relembra os 20 meses em que trabalhou nas fábricas em volta de Yangzhou após a escola secundária como uma experiência valiosa. Em 1977, fez os primeiros exames após a Revolução Cultural para entrada na universidade, durante a qual muitas universidades foram fechadas ou nas quais eram admitidos somente camponeses, trabalhadores e soldados. “Milhares de aspirantes a estudantes,” lembrou, “estavam a concorrer para um único lugar.”

Quando se deslocou de Yangzhou para Pequim a fim de começar os seus estudos para doutoramento nos meados dos anos 80, Wang considerou-se como fazendo parte de uma classe ainda mais privilegiada. Os “intelectuais,” disse, “tinham sido o alvo durante o tempo de Mao; agora, no pós-Mao, eram de novo a elite”. E nessa altura, disse Wang, todos concordaram acerca do que era necessário ser feito: a China tinha que abandonar as suas tradições “feudais” e socialistas e alcançar o ocidente capitalista. Marcados pela revolução cultural, os intelectuais viram o socialismo na China como um fracasso. Consequentemente, acreditaram, argumenta Wang, que uma sociedade consumista de tipo ocidental poderia ser recriada com sucesso e seria ambientalmente sustentável na China. O Ocidente, especialmente os Estados Unidos, constituíam o ideal.

Wang começou primeiro por desenvolver as suas próprias opiniões sobre a China contemporânea enquanto estava a trabalhar numa tese sobre um dos mais admirados escritores chineses modernos, Lu Xun (1881-1936). Lu Xun, explicou Wang, foi um escritor de esquerda, mas era também um escritor muito crítico dos escritores e dos activistas de esquerda. Criticou a tradição chinesa, mas foi igualmente um excelente erudito clássico. Deu as boas-vindas à ideia ocidental de progresso, mas foi igualmente céptico acerca dela. Os paradoxos em Lu Xun ajudaram Wang a ver que a modernidade chinesa não poderia ser uma simples questão de abandonar o velho e de abraçar o novo - como o tinha sido quer para os maoístas quer para os capitalistas do mercado livre.

Para Wang, os problemas associados com o desenvolvimento desigual de China foram primeiro identificados pelos manifestantes na Praça de Tiananmen em 1989. O próprio Wang, foi um dos últimos manifestantes a deixar a praça na manhã de 4 de Junho de 1989, à medida que os tanques do Exército de Libertação do Povo se aproximavam. Normalmente bastante rápido e circunstancial, Wang foi ficando cada vez mais animado enquanto descrevia no seu inglês fluente, se bem que ocasionalmente idiossincrático, como um “movimento social alargado” emergiu do trauma provocado pela terapia de choque das reformas do mercado. Os estudantes a exigir a liberdade de expressão e de reunião eram certamente os mais visíveis. Mas havia, referiu, muito mais chineses nas cidades - trabalhadores, funcionários públicos e pequenos empresários - a exigirem que o Governo controlasse a corrupção e a inflação, que tinha disparado até perto de 30 por cento após o abandono da gestão controlada dos preços dos produtos de primeira necessidade.

Na Primavera de 1989, Wang era um membro na prestigiada Academia das Ciências Sociais da China. Wang disse-me que viu “o potencial democrático” nos protestos e sentiu-se obrigado a participar mesmo que tenha tido reservas acerca da falta “de coerência teórica e de metodologia” dos estudantes. Para Wang, os líderes dos estudantes recordaram-lhe os intelectuais chineses do início do século XX, que nunca foram mais unidos do que quando rejeitaram radicalmente tudo o que se referia ao passado. Não obstante, depois de o governo ter procurado esmagar os dissidentes declarando a lei marcial a 20 de Maio de 1989, Wang envolveu-se ainda mais no movimento. Na noite de 3 de Junho, quando os tanques e os carros blindados atravessaram Pequim, matando centenas de resistentes desarmados e ferindo alguns milhares mais, Wang estava entre aqueles que se encontravam no centro da Praça de Tiananmen. Ouvia os disparos, mas alguns estudantes mais radicais tinham recusado sair.

Wang decidiu permanecer e tentar convencer os estudantes a não sacrificarem as suas vidas. “Sabia,” disse, “que se o resultado fosse a violência, seria desastroso para o todo o país.” Wang disse que os seus receios foram fundados: a violência reduziu o espaço para o debate político e o governo chinês usou o período de silêncio intelectual que se seguiu para começar a desmantelar mais mecanismos do Estado Providência, como as empresas públicas, que garantiram durante muito tempo benefícios para os trabalhadores, desde o seu nascimento até ao final das suas vidas.

Eventualmente, os estudantes que advogavam a retirada pacífica prevaleceram e persuadiram o Exército de Libertação do Povo a dar-lhes a passagem segura pelo lado sudeste da praça. Imediatamente antes do amanhecer, centenas de estudantes deixaram a praça através de um corredor estreito, empurrados e insultados por soldados hostis. No espaço de minutos, os estudantes dispersaram. Alguns deles foram depois presos e condenados a longos períodos de prisão; outros fugiram para Hong Kong e eventualmente para o Ocidente; muitos outros, como Wang, desapareceram por algumas semanas.

Quando Wang retornou a Pequim nos finais de 1989, as autoridades esperavam-no. “Esta foi a altura mais difícil para mim,” disse. Foi-lhe perguntado repetidamente: “A que organização pertencia? Quem eram os seus companheiros?” Depois dos interrogatórios que duraram longos meses, foi colocado na província noroeste de Shaanxi, onde dúzias de outros jovens eruditos de Pequim estavam já a ser submetidos - à maneira tipicamente chinesa - a “reeducação” pela sua sujeição às condições de vida rurais.

No caso de Wang, a punição pela pedagogia parece ter sido mais bem sucedida do que as autoridades chinesas poderiam ter antecipado. Wang data a sua “educação real” à altura que passou em Shaanxi, uma das regiões mais pobres da China. Ficou chocado pela óbvia disparidade entre as cidades litorais, a usufruírem então dos primeiros frutos da reforma económica, e as províncias. Ficou também chocado com sua própria ignorância e dos seus colegas no movimento social de 1989. “Nós não tínhamos ideia nenhuma do quanto a velha ordem em muitas regiões da China rural estava em crise profunda,” disse-nos.

O sistema comunitário de Shaanxi foi desmantelado como parte das reformas de Deng Xiaoping, e a terra foi redistribuída. Mas esta área não produziu nada de muito valor, nem sequer bastantes produtos alimentares. O aprofundamento da pobreza conduziu a um forte aumento na criminalidade e nos problemas sociais; surgiram conflitos violentes assentes em discórdias sobre terrenos; os homens dedicaram-se ao jogo, espancando e mesmo vendendo as suas esposas e filhas. Wang viveu numa aldeia ao nível do mar onde o seu dormitório era inundado frequentemente enquanto dormia. Muito do seu trabalho diário consistia em escrever os panfletos didácticos que advertem os camponeses contra os perigos do jogo e do crime; trabalhou igualmente na reconstrução de uma escola primária que foi destruída pelas águas das enchentes. “Foi durante esse ano,” disse Wang, “que me apercebi de quão importante era ainda o Sistema de Previdência Social e uma rede cooperativa para muitas pessoas na China. Esta não é uma ideia socialista. Mesmo as dinastias imperiais que governaram a China mantiveram um equilíbrio entre as áreas ricas e as pobres através dos impostos e da caridade.

As “pessoas confinam a experiência da China à ditadura comunista e aos fracassos da economia planificada e pensam que o mercado fará agora tudo. Não vêem quantas coisas funcionaram no passado e são populares para o comum dos cidadãos, como o seguro médico cooperativo nas áreas rurais, onde as pessoas se organizaram para se entre-ajudarem. Isto pode voltar a ser hoje útil, uma vez que o Estado já não investe nada em cuidados

Muitas das pessoas pobres que Wang conheceu durante esse ano em Shaanxi viam-no como um homem educado de Pequim que poderia dizer aos mandarins do governo central para lhes mandar alguma ajuda. “Eu senti o peso deste papel,” disse Wang. “Eu não poderia dizer-lhes que não estava posição para fazer fosse o que fosse.” Wang voltou, disse-me, do seu exílio de 10 meses com um sentido apurado da distância entre o mundo dos intelectuais e o das pessoas comuns.

Durante o tempo que viveu em Shaanxi, o influente Journal of Literary Review denunciou a sua investigação sobre Lu Xun como um exemplo “da liberalização burguesa.” Contudo, Wang não teve nenhum problema ao voltar à vida académica.

Wang Hui. Créditos: Tony Law para o The New York Times

Wang não gosta muito de falar sobre 1989. Queixa-se do “estereótipo” da China nos meios ocidentais, emergente de Tiananmen. No entanto, a nossa conversa sobre Tiananmen foi fora do comum. Ao viajar através das cidades chinesas, vi que era difícil conseguir que as pessoas falassem sobre isto. Quando Deng Xiaoping procurou enterrar para sempre os fantasmas de Tiananmen apelando para as reformas rápidas do mercado em 1992, pode bem ter calculado que a ideia de riqueza pessoal - e do acesso aos bens ocidentais de marcas de topo de gama - compensaria muitas pessoas que recentemente tinham enriquecido pela falta de democracia política. Se assim era, isto parece mostrar que ele tinha razão. A maior perturbação pública na China desde Tiananmen ocorreu em Agosto de 1992, quando centenas de milhares de chineses tentaram comprar acções na nova bolsa de valores de Shenzen.

O esforço para criar riqueza nas áreas urbanas a partir de indústrias orientadas para a exportação - parte da política “deixem primeiro que alguns enriqueçam ”, anunciada por Deng Xiaoping e afirmada pelos seus sucessores - permitiu que a economia chinesa alcançasse uma taxa de crescimento média de 10 por cento e fez da China o quarto país industrial do mundo. Contudo, a China permanece um dos países mais pobres do mundo. Mais de 150 milhões de pessoas sobrevivem com um dólar por dia. Perto de 200 milhões de habitantes rurais estão a encher as cidades em busca de trabalho fracamente remunerado. Mais de quatro milhões de chineses participaram nos 87.000 protestos que se registaram em 2005, e estas estatísticas podem não exprimir inteiramente a raiva e o descontentamento da população chinesa, que vive com uma das desigualdades de rendimento mais elevada do mundo e com sistemas de saúde e ensino em degradação, assim como um sistema de impostos e de tributação arbitrário que é imposto pelos dirigentes partidários locais. Muita desta realidade, disse Wang, pode ser colocada aos pés “dos radicais de direita” ou dos economistas neoliberais que citam Milton Friedman e Friedrich Hayek (defensores dos mercados não regulados que inspiraram Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos anos 80) e que defendem a integração da China na economia global sem ter em conta o custo social das privatizações em massa. E são eles, acrescentou Wang que se associaram à elite dominante e que dominaram os meios estatais.

Somente na última década, acrescenta Wang, os intelectuais da Nova Esquerda começaram a questionar a ideia de que uma economia de mercado conduz inevitavelmente à democracia e à prosperidade. Wang, que ajudou a criar o jornal académico “Xueren” (O Estudante) depois do seu regresso do exílio em 1991, estava bem posicionado para observar estes intelectuais. À medida que entraram em maior contacto com académicos e com pensadores ocidentais, tornaram-se mais conscientes dos problemas não apenas nas sociedades europeias e americanas mas igualmente nos países do pós-comunismo que estavam a tentar trazer as suas economias de planeamento central para situações mais próximas dos modelos neoliberais. A intenção da China em fazer parte da Organização Mundial do Comércio (o que fez em 2001) provocou debates inesperadamente acirrados entre os universitários. Como descreveu Wang, os termos do debate tinham mudado: “Muitas pessoas sabiam então que a globalização não é uma palavra neutra descrevendo um processo natural. Faz parte do crescimento do capitalismo ocidental, a partir dos tempos do colonialismo e do imperialismo.” O que não significa dizer que a Nova Esquerda passou a defender uma posição fácil de antiglobalização; tem sido crítica de posições recentes anti-Japonesas e anti-Americanas que se têm verificado nas classes médias urbanas chinesas - que Wang apelidou de “nacionalismo consumidor.” Isto representa, na opinião de Wang, o mesmo tipo de globalização que a América defende: “É realmente uma forma de hipernacionalismo, e é por isto que se ouve falar de tarifas e das penalizações sobre a China quando os interesses económicos americanos estão a ser atingidos.”

Wang fez uma pausa e, depois, continuou então: “Muitas pessoas aprenderam igualmente que a razão devido à qual a economia chinesa não entrou em colapso, à semelhança das economias dos tigres asiáticos em 1997, foi que o Estado foi capaz de a proteger. Agora, naturalmente, a China, com a sua economia virada para a exportação é mais dependente da ordem mundial ocidental, especialmente da economia americana, do que a Índia.”

Em Janeiro deste ano, Wang publicou um longo artigo de investigação em que expõe a situação dos trabalhadores numa fábrica da sua cidade natal, Yangzhou, uma cidade de aproximadamente um milhão de habitantes. De acordo com Wang, em 2004 o governo local vendeu uma rentável empresa pública que fabricava produtos têxteis a um promotor imobiliário da cidade de Shenzen, no Sul da China. As acções dos trabalhadores foram compradas por 30 por cento do seu valor real, e mais de mil trabalhadores foram despedidos como consequência de perdas decorrentes da má gestão da fábrica. Em Julho de 2004, os trabalhadores entraram em greve. Naquilo que Wang retratou como uma agitação sem precedentes na história de Yangzhou, os trabalhadores barricaram uma das principais auto-estradas, impediram o tráfego de autocarros e atacaram os portões dos edifícios do governo local.

Wang referiu que estava a ajudar os trabalhadores a processarem o governo local. Tinha estado a trabalhar numa fábrica próxima antes de entrar na faculdade e este facto fê-lo, disse, sentir uma ligação particular a estes trabalhadores. Lembrou-se de que o seu salário tinha sido baixo - menos de 2 dólares por mês à taxa de câmbio actual - mas, disse ele, o que era fundamental era que os trabalhadores que conheceu então sentiam-se seguros no seu trabalho. As pessoas pensam, disse, “que o mercado forçará automaticamente o Estado a tornar-se mais democrático. Mas isto não tem qualquer fundamento. Basta pensar na aliança que elites forjaram no processo de privatização. O Estado mudará somente quando estiver sob a pressão de uma grande força social, como os operários e os camponeses.”

A história de Wang sobre Yangzhou não é única. Há muitos relatos de como oficiais do governo local que controlam bens públicos acumularam fortunas com a privatização de bens do Estado. De acordo com um relatório recente redigido pelo activista Liu Xiaobo, mais de 90 por cento das 20.000 pessoas mais ricas na China têm familiares no Governo ou entre os oficiais de Partido Comunista Chinês.

Para Wang, a democracia não é uma simples questão de aumentar a liberdade política da classe média ou de criar direitos constitucionais para uma minoria já substancialmente dotada de poder devido às reformas do mercado. A democracia na China, disse ele, tem que ser baseada no consentimento e mobilização activos da maioria da sua população, e ser capaz de lhes assegurar justiça social e económica.

Contudo, para alguns intelectuais da Nova Esquerda, como Cui Zhiyuan, um amigo íntimo e colaborador de Wang que ensina ciência política na universidade de Tsinghua, há oportunidade na colisão entre o capitalismo e o socialismo. “Há mais espaço para novas ideias,” Cui disseme enquanto descrevia porque tinha voltado à China depois de muitos anos nos Estados Unidos: “O sistema capitalista está fixo no Ocidente, mas as coisas ainda estão a fluir em países como a China e a Índia. Nós temos uma oportunidade histórica de construir uma sociedade não apenas melhor, mais também mais justa que no ocidente.” Para Cui, é importante esclarecer primeiro os conceitos. “Não é útil,” disse, “ver o socialismo e o capitalismo como opostos e separados. Ambos evoluíram juntos ao longo do século XX. Não existem somente os Estados Providência europeus; mesmo o capitalismo americano tem uma componente socialista, nascida de compromissos assumidos com os sindicatos.”

Nos últimos anos, Cui encontrou uma audiência receptiva e poderosa numa questão que está na base do estado socialista chinês: a posse colectiva da propriedade. Os economistas liberais chineses argumentam que a propriedade privada é sagrada e inviolável numa economia de mercado, uma ideia radical no contexto chinês. Num artigo que publicou em Dushu em 2004, Cui questionou esta noção, sublinhando a natureza essencialmente comunal da posse de propriedade. Mencionou a decisão de Thomas Jefferson de reformular os princípios de John Locke de vida, liberdade e propriedade substituindo-os por vida, liberdade e felicidade na Declaração de Independência.

“Jefferson reconheceu,” disse, “que os direitos de propriedade emanam da sociedade, não da natureza. Isso é a razão pela qual não existia nenhum artigo específico sobre direitos de propriedade na Constituição dos Estados Unidos, o que veio a ser introduzido mais tarde com a Quinta Emenda.” Cui referiu, com um enorme contentamento que o seu artigo tinha circulado extensamente entre os legisladores no Congresso Nacional do Povo Chinês, no Parlamento da China, em 2004. Tinha ajudado, disse ele, a provocar um debate que conduziu o Congresso a adoptar uma emenda de compromisso à Constituição, similar na sua redacção, à Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que simplesmente estabelece que nenhuma pessoa “ seja privada de vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal.”

Nesta Primavera começou a tornar-se claro que a defesa da Nova Esquerda de um Estado Providência está a ter eco no seio da liderança comunista, que receia a instabilidade social e deseja consolidar o seu poder e legitimidade. Em Março, algumas semanas antes do meu encontro com Wang, o Congresso do Povo Chinês reuniu-se em Pequim e transformouse inesperadamente num fórum para o primeiro debate ideológico aberto dentro do partido desde há anos. Os legisladores acusaram as autoridades governamentais de vender os interesses de China às forças de mercado. O sentimento anti-mercado foi de tal forma forte que legislação em defesa da propriedade privada e que concedia títulos de terrenos a agricultores – a favor da qual investidores estrangeiros na China e empresários chineses tinham feito lobby - não foi sequer discutida. Descrevendo os principais novos investimentos em áreas rurais, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, sublinhou que “construir um espaço rural socialista” era “a principal tarefa histórica” do Partido Comunista Sublinhou igualmente as etapas para equilibrar o crescimento económico com a protecção ambiental.

Um jornalista alemão disse-me que tinha sido o discurso mais à esquerda que tinha ouvido de um líder chinês ao nível do Governo Central durante os seus oito anos em Pequim: “nem mesmo os políticos americanos e europeus falam na realização de um produto per-capita verde”. Wang concordou. Disse que estava igualmente satisfeito por ver o presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao preocuparem-se com as relações com os países asiáticos. “Nós estivemos demasiado obcecados com os Estados Unidos durante a governação de Jiang Zemin,” disse. “Precisamos realmente de melhorar as nossas relações com o Japão e com a Índia. Pertencemos a antigas e distintas civilizações e não podemos apenas ser simples seguidores e imitadores da América.

É uma grande realização,” acrescentou sorrindo, “que o primeiroministro tenha abertamente admitido que os sistemas de cuidados médicos e educação são um fracasso. Nunca tal tinha acontecido antes.” Wang pensa que o governo foi sincero sobre a erradicação da pobreza rural. Mas continuava cauteloso. “Houve tanta descentralização na China,” disse, “que não é fácil traduzir a política do governo central em acção.” No mês passado, no primeiro afastamento de um alto membro do partido desde 1995, a liderança central removeu o chefe do partido de Shanghai sob acusações de corrupção, levando a especular se haveria ou não uma reconfiguração das relações entre o governo central e os líderes provinciais e talvez mesmo uma mudança na política para por em prática sistemas de segurança social e reduzir a poluição. Wang permaneceu céptico. “O exemplo de Shanghai é pelo menos encorajador” Wang referiu numa mensagem recente de email: “ penso que daqui haverá alguns resultados políticos, mas são resultados em vez de razões.”

Os perigos não conseguir melhorar as condições de vida da maioria são muito claros para Wang: “Se nós não melhoramos a situação, haverá mais autoritarismo. Nós já vimos na Rússia como as pessoas preferem um governante mais forte como Putin porque estão cansadas da corrupção, caos político e estagnação económica. Quando a mercantilização radical faz as pessoas perder o seu sentimento de segurança, a procura de ordem e de uma intervenção superior é inevitável.”

Ao atacar os governos locais corruptos, a Nova Esquerda parece frequentemente querer instituir o grande governo fraternal ao estilo dos políticos autoritários. A concordância crescente entre a retórica socialista do Governo Central e as ideias da Nova Esquerda deixa certamente muitos inquietos. A conhecida escritora de Taiwan, a democrata Lung Yingtai, disseme no início desse ano que estava preocupada com o facto dos intelectuais da Nova Esquerda parecerem demasiado próximos ideologicamente do regime Comunista. Levando este ponto de vista um pouco mais longe, Liu Junning, um teórico político liberal popular que abandonou a China em 1999, depois de ter sido colocado na lista negra pelo governo chinês mas que entretanto regressou, tem afirmado que a Nova Esquerda é um outro nome para a velha guarda nacionalista do partido comunista, que tem sido inspirada pelo ódio ao Ocidente.

Enquanto isto parece um exagero, Wen Tiejun, um antigo funcionário do Governo que gere projectos de reconstrução rurais e que é identificado com a Nova Esquerda, participou no que ele próprio chama de “sessões de reflexão” com Hu Jintao e Wen Jiabao. Tipicamente, os intelectuais dos países comunistas (Vaclav Havel ou Adam Michnik, por exemplo) ganharam a sua autoridade moral ao assumir uma posição crítica face ao Estado todopoderoso. Como é que os pensadores da Nova Esquerda na China ajustam o seu relacionamento com um Estado que encarcerou muitos dos seus colegas e mostra geralmente pouca tolerância a críticas ao partido?

Quando coloquei esta questão a Cui, ele perdeu momentaneamente a sua maneira de estar exuberante. “É uma pergunta muito importante,” disse. “Como tratar moral e intelectualmente o governo. Este é para nós um grande desafio.”

Cui não considera o regime comunista como uma “totalidade.” Havia, disse ele, muitos aspectos diferentes, quer a nível local quer central. “Quase diariamente,” acrescenta Cui o “New York Times publica artigos sobre camponeses que se agitam contra o governo Comunista, mas se escutar o que os camponeses estão a dizer, eles estão a dizer ao governo central que o governo local violou os seus direitos. Assim, mesmo os camponeses podem ver os diferentes aspectos do Estado, os que os apoiam e os que não apoiam.”

Wang Xiaoming, professor de estudos culturais na universidade de Shanghai, posiciona-se à direita de Wang Hui mas diz que simpatiza com a atitude pragmática da Nova Esquerda para com o regime Comunista. “A sociedade civil é muito fraca na China,” disse, “e uma vez que o governo é o agente mais activo da mudança, temos que pressionar o governo para fazer o que deve fazer além de pressionar o governo para ceder alguns dos seus poderes.”

Quando me encontrei com Wang Hui pela última vez, recusou qualquer ideia sobre a crescente influência da Nova Esquerda sobre o regime. “O que nós tentamos fazer é criar uma situação intelectual na qual novas políticas podem ser exploradas,” disse. “Eu sei que muitos líderes lêem o artigo de Wen Tiejun; leram igualmente o artigo de Cui sobre os direitos de propriedade. Houve outros artigos na Dushu que foram igualmente influentes, e eu estou satisfeito quanto a isso. Mas nós não temos nenhuma outra ligação com o regime.”

Wang parece igualmente não sentir nenhuma ansiedade quanto à convergência ideológica com o regime poder transformar os intelectuais da Nova Esquerda em analistas e conselheiros pro-governamentais, o que faz parte de uma velha tradição chinesa de intelectuais aconselharem o Estado. “Nós olhamos para as coisas de uma perspectiva naturalmente chinesa, mas nós tentamos igualmente pensar para além da estrutura do Estado-nação,” afirmou. “As pessoas perguntam no Ocidente, como pode a China desenvolver o capitalismo com um estado autoritário? Mas isso é ignorar como é que o capitalismo moderno cresceu no Ocidente, sem muita democracia e com a ajuda do imperialismo e do colonialismo. É de questionar se este modelo económico único do Ocidente pode ser globalizado sem grandes guerras e sem a destruição do ambiente. Esta não é uma questão abstracta. A China parou de abater as suas florestas, muitas das quais já desapareceram, mas algum país ainda tem que produzir a madeira para o consumo chinês.”

No nosso último encontro, Wang falou igualmente um pouco mais sobre um assunto que Cui tinha discutido comigo: como é que a ascensão da China e da Índia traz novos desafios e possibilidades com implicações profundas para o mundo em geral. “As sociedades ocidentais dominaram nestes dois últimos séculos e deram forma ao mundo com as decisões que tomaram” disse. “A China e Índia desempenharão agora papéis igualmente cruciais neste novo século. Mas quais serão? Eu penso que é muito importante para os intelectuais chineses e indianos não se limitarem a imitar o Ocidente. Têm que explorar alternativas ao modelo ocidental da modernidade. Se não o fizerem, os “consumidores nacionalistas” já estão a afirmar: `a América dominou, agora é a nossa vez.”’
Wang riu, e acrescentou: “isto não é interessante.”

O artigo mais recente de Pankaj Mishra para a revista foi sobre os exilados do Tibete. A sua última obra é "Temptations of the West: How to be Modern in India, Pakistan, Tibet and Beyond."

1 de outubro de 2006

O significado do trabalho: Uma perspectiva marxista

Harry Magdoff

Monthly Review


Pode-se esperar que os marxistas tenham poucas discordâncias sobre o significado do trabalho no passado e no presente. O mesmo não se pode dizer, entretanto, acerca do trabalho no futuro. Uma vez que irei falar acerca do trabalho sob o socialismo e o comunismo, sob uma perspectiva histórica, o que vou apresentar aqui é uma perspectiva marxista, não a perspectiva marxista.

Um bom exemplo de como as interpretações subjetivas e os preconceitos de classe podem influenciar a visão individual de uma sociedade socialista encontra-se na novela utópica outrora popular de Edward Bellamy, Looking Backward. Este livro apareceu em 1888, no meio de um período de rápida industrialização, concentração crescente de poder econômico e luta de classes violenta. Bellamy imaginou que a construção de trusts da sua época acabaria finalmente por levar à concentração de todo o capital nas mãos de uma única corporação gigante. Isto simplificaria a mudança de propriedade de todos os meios de produção para o estado, o qual aplicaria então regras racionais, para criar uma sociedade bem ordenada e igualitária. Tal cenário de uma transição indolor, pacífica, e a concepção de uma ordem social justa, prendeu a imaginação do público aqui e no exterior. Nada desde o romance Uncle Tom's Cabin teve uma influência tão grande neste país. Milhões de exemplares do livro foram vendidos, muitos leitores foram convertidos a formas de pensamento socialistas, "Bellamy Clubs" brotaram por todo o lado, e as ideias expressas no livro contribuíram fortemente para o programa do Partido Populista.

Bellamy utilizou um artifício literário simples e agora familiar para apresentar a sua utopia. O herói, Julian West, emerge de um sono hipnótico no ano 2000 para descobrir-se em um Estados Unidos em que as classes, a exploração e o dinheiro haviam desaparecido e onde todos desfrutavam dos padrões de vida das camadas médias acomodadas da Boston do século XIX. Como West estava no novo mundo, o leitor aprendia como uma boa sociedade teria sido alcançada e como funcionava.

O que é relevante para a presente discussão é o modo como Bellamy tratou o trabalho na sua utopia, uma vez que ele transporta para o seu sonho sobre o futuro as atitudes características da burguesia em relação ao trabalho e ao lazer. O trabalho é um fardo. Idealmente, deveria ser evitado. Mas se isso não for possível, deveria ser ultrapassado na vida o mais cedo possível, de modo a que o máximo tempo de vida das pessoas pudesse ser desfrutado no lazer. Assim, em Looking Backward, toda a gente é obrigada incorporar-se ao exército do trabalho aos 21 anos, laborando em tarefas de "interesse comum" durante os primeiros três anos. Posteriormente seriam livres para escolher uma ocupação, sujeita a algumas restrições do governo. O trabalho obrigatório acaba aos 45 anos, começando então um novo período de boa vida para damas e cavalheiros cultivados.

Para sermos justos devemos dizer que Bellamy não denigre o trabalho como tal. É a sua concepção do lazer que tipifica a mentalidade da burguesia na sociedade capitalista e nas classes superiores ao longo de história. Adam Smith, o grande teórico da economia capitalista, é muito mais explícito quando, num contexto diferente, define trabalho como uma atividade que exige ao trabalhador que desista "da sua tranquilidade, liberdade e felicidade". O salário, de acordo com Smith, é a recompensa que o trabalhador recebe pelo seu sacrifício. Como é totalmente diferente a perspectiva marxista! Veja-se o profundo desprezo de Marx, relativamente a esta atitude negativa de Smith para com o trabalho:

"O teu trabalho será medido pelo suor do teu rosto"! Era a maldição de Jeová sobre Adão. E isto é o trabalho para Smith, uma maldição. A "tranquilidade" surge como o estado adequado, como idêntica à "liberdade" e à "felicidade". Parece bastante afastado do pensamento de Smith que o indivíduo, "no seu estado normal de saúde, força, atividade, habilidade e destreza", necessite também do dispêndio normal de um número de horas de trabalho, e da interrupção da sua tranquilidade. É certo que o trabalho é medido exteriormente, pela adequação dos objetivos atingidos e pelos obstáculos a superar na procura desses objetivos. Mas Smith nem suspeitava que a superação de obstáculos constituísse, em si mesma, uma atividade libertadora, – e que, por outro lado, os objetivos externos fossem estabelecidos a partir das urgências naturais e meramente externas, tornando-se assim em objetivos do próprio indivíduo – daí a auto-realização, a objetivação do assunto, daí a verdadeira liberdade, cuja ação é, precisamente, o trabalho. Ele tem de fato razão, em que o trabalho nas suas formas históricas, tais como o trabalho escravo, o trabalho servil e o trabalho assalariado, aparece sempre como algo repulsivo, sempre como trabalho forçado por causas externas; em oposição, e por contraste, ao trabalho como forma de "liberdade e felicidade". Isto é duplamente válido: para este trabalho contraditório; e, relacionadamente, para o trabalho que ainda não criou, por si próprio, as condições subjetivas e objetivas... pelas quais se torna trabalho atraente, uma forma de auto realização do indivíduo, que exclui uma mera forma de diversão ou de gozo pessoal. O trabalho realmente livre... é ao mesmo tempo o da mais maldita severidade e o do mais intenso esforço. O trabalho da produção material pode assumir este caráter apenas (1) quando seu carácter social é assumido, (2) quando é de uma natureza científica e ao mesmo tempo de caráter geral, não meramente um esforço humano, como uma força natural especificamente dirigida, mas algo aparece no processo de produção de uma forma meramente natural, espontânea, como uma atividade que regule todas as forças de natureza. A propósito, Adam Smith só tinha em mente os escravos do capital.

Marx e Engels, viram o trabalho como fundamental para a existência humana. Este tema é desenvolvido por Engels, no seu ensaio inacabado "O papel desempenhado pelo trabalho na transformação do macaco em homem" ("The Part Played by Labour in the Transition from Ape to Man") onde sustenta que o trabalho "é a primeira condição básica para toda a existência humana, e isto numa tal extensão que, em determinado sentido, nós temos de dizer que o trabalho criou o próprio homem". Esta especulação de Engels sobre a evolução dos seres humanos, focaliza-se na ideia de que, caminhando em dois pés, liberta-se o uso das mãos, tornando possível o seu desenvolvimento para tarefas mais complexas. A especialização das mãos, em contrapartida, conduziu ao trabalho, ao domínio sobre a natureza, e à diferenciação das espécies humanas. O trabalho conduziu as pessoas a uma situação em que "tinham que dizer algo uns aos outros". Assim, com o trabalho surgiram a fala e os estímulos, que tiveram uma influência decisiva no cérebro dos símios, transformando-os gradualmente em seres humanos. Desenvolvimentos posteriores da evolução, nesta direção, conduziram à sociedade:

Pela combinação do funcionamento das mãos, dos órgãos da fala, e do cérebro, não só em cada indivíduo mas também em cada sociedade, os homens tornaram-se aptos a executar operações mais complicadas, e puderam fixar e alcançar, para si próprios, objetivos progressivamente mais elevados. O trabalho de cada geração modificou-se, tornando-se melhor e mais diversificado. A agricultura foi complementada pela caça e pela criação de gado; depois apareceram a fiação, a tecelagem, o tratamento de metais, a cerâmica e a navegação... comércio, indústria, arte e ciência.

Entretanto, com a crescente complexidade da sociedade, surgiu a propriedade privada, a separação das pessoas em classes, e uma divisão social do trabalho —tudo isto alterou profundamente o significado do trabalho. Diferenças no ambiente, conduziram a diferenças no modo como as pessoas trabalhavam e nas coisas que produziam. O tipo de terra e a disponibilidade de animais, peixe, florestas, minérios, carvão, quedas de água, etc, influenciaram os meios de produção e de subsistência de cada comunidade. A Natureza providenciou, igualmente, as oportunidades e os obstáculos. Apesar destes constrangimentos, foi no entanto o fator social que cada vez mais determinou a organização do trabalho e a distribuição de seus produtos.

A primeira divisão social do trabalho

Nas primeiras formas de organização social, a família e as relações de parentesco fixaram o padrão da forma como empreender ou nomear as diferentes tarefas. Há várias teorias – ou deveremos antes dizer especulações? – sobre como este modo de produção de baixa-tecnologia baseada nas relações pessoais, e de produção para uso próprio (em lugar de produção direccionada para a troca) levou a que se desse o domínio do sistema de troca, da propriedade privada, e de uma divisão do trabalho crescentemente rígida. De acordo com Engels, a precoce divisão "natural" do trabalho "eventualmente arruina a colectividade de produção e de apropriação, eleva, em regra geral, a apropriação de produtos por indivíduos, criando assim a troca entre indivíduos.... Gradualmente, a produção de artigos torna-se a forma dominante" ( Origin of the Family, Private Property and the State [New York: International Publishers, 1972], 237). Mas seja qual for a exactidão da sucessão destes desenvolvimentos, é claro que a divisão do trabalho baseado na propriedade privada e a troca tornou-se a característica dominante de vida económica.

Para Marx e Engels a primeira e decisiva divisão está entre a cidade e o campo. Tal como expôs Marx:

"Os fundamentos de toda a divisão do trabalho já bem desenvolvida, e que surge pela troca de artigos, estão na separação entre a cidade e o campo. Pode-se dizer que toda a história económica da sociedade é resumida no movimento desta antítese." ( Capital, vol. 1 [Moscow: Progress Publishers], 333)

A diferenciação de cidade e campo surge, claro está, da divisão entre o trabalho agrícola e o industrial e comercial. Eventualmente outras separações acontecerão dentro das cidades, tais como entre trabalho industrial, comercial, e actividades financeiras. Mas o que precisa de ser entendido é que a antítese cidade-campo abrange muito mais do que somente cidade versus quinta. Tal como as nações evoluem, as diferenças regionais emergem e cristalizam-se. Hoje, mesmo nos países industriais mais avançados, os conflitos e contrastes existem entre, por um lado, regiões que se especializaram na indústria, comércio, e finanças, e, por outro, aquelas que se ocupam principalmente da agricultura. Além disso, com o progresso do comércio internacional e do império construído pela superioridade industrial e militar das nações capitalistas, é criada uma divisão internacional do trabalho e é reproduzida (pelo uso de força e pelas "normais" operações do mercado) entre os países centrais ("cidade") e os periféricos ("campo").

Para ser preciso, as novas formações sociais e os avanços verificados nas forças produtivas alteram aspectos particulares no modo como as pessoas são separados por especialização de trabalho e estilo de vida. Há ainda duas características comuns a todas as formas de divisão do trabalho social: (1) é sempre coincidente com um jogo particular de relações hierárquicas entre indivíduos, grupos sociais, e, em certos períodos da história, ou das nações – se associado ao sistema patriarcal, à escravidão, às castas, propriedades, ou classes modernas. E (2) é sempre assumido, é amoldado, e é reproduzido por e para um grupo social dominante, geralmente incluindo aqueles que detêm ou controlam os meios de produção primários.

Quando a formação social opera com base na escravidão, nas castas, na propriedade, ou nas corporações, a distribuição das ocupações é normalmente rigidamente controlada e tende a ser hereditária. Mas até mesmo num ambiente de individualismo com um mercado de trabalho "livre", a gama de oportunidades profissionais é mantida dentro de limites estreitos. Neste tipo de sistema social, uma classe relativamente pequena de capitalistas possuí e controla os meios de produção principais, nos quais a maioria das pessoas procuram emprego para viver. Em última análise, a definição dos tipos de trabalhos disponíveis e a forma como trabalho é dividido, é directamente ou indirectamente determinado pelo egoísmo dos donos e gestores do capital.

A segunda divisão do trabalho

As estruturas hierárquicas que enquadram a antítese cidade/campo vinculam a segunda principal divisão que estabelece a perpetuação das diferenças entre as pessoas, i.e., a separação entre as actividades mental e manual. As raízes desta contradição e o seu reforço psicológico radicam em tempos longínquos. Atente-se, por exemplo, como Sócrates vê o trabalho manual e o trabalhador manual:

Aquilo que se designam de artes mecânicas, guarda em si um estigma social e são justamente desonradas nas nossas cidades. Estas artes causam dano aos corpos daqueles que trabalham nelas ou dos que as têm a seu cargo, quer compelindo os trabalhadores a uma vida sedentária, quer compelindo, na verdade, em alguns casos a passar o dia inteiro junto à fornalha. Esta degeneração física resulta também na deterioração da alma. Além disso, os trabalhadores nestas actividades simplesmente não têm disponibilidade para estabelecer amizades ou exercer a cidadania. Por conseguinte eles são vistos como maus amigos e maus patriotas. E em algumas cidades, especialmente as militares, não é legal a um cidadão dedicar-se a actividades mecânicas.* 

Sócrates reflecte claramente as atitudes e a ideologia dos cidadãos livres da classe alta numa sociedade onde os escravos estão quase na sua totalidade comprometidos com tarefas manuais. Mas a humilhação do trabalho físico não é apenas típica de sistemas sociais baseados em várias formas de trabalho forçado; é comum a todas as sociedades divididas por classes. Como explicou Veblen:

A distinção entre proezas e trabalhos penosos é uma odiosa distinção entre empregos. Aqueles empregos classificados como exploração são merecedores, honrados, nobres; os empregos que não contêm o elemento proeza, e especialmente aqueles que impliquem subserviência ou submissão, são desmerecedores, humilhantes, ignóbeis. O conceito de dignidade, valor, ou honra, aplicado tanto a pessoas como a comportamentos, tem como consequência primeira o desenvolvimento de classes e as distinções de classe.... (Thorstein Veblen, The Theory of the Leisure Class [New York: Random House, 1934], 15)

A "proeza" de Veblen difere do uso marxista dado a este termo. A diferença deve-se ao facto de ele considerar um largo espectro de actividades não-manuais. O objectivo da sua classificação é identificar os grupos sociais "proeza" que emergem tão rapidamente logo que os trabalhadores manuais assim consigam produzir meios de subsistência excedentarios que suportem caciques, fidalgos, padres, latifundiários, comerciantes, capitalistas, pessoal militar, governadores, etc. Esclarece-se que a categoria "proeza" neste contexto inclui muitas ocupações úteis e não-exploradoras. Mas o que é importante é que os elementos objectivos que criam e perpetuam divisões e subdivisões nos trabalhadores manuais e não-manuais – a propriedade privada, as estruturas de classe exploradoras, e o estado – são reforçadas por uma psicologia social subjectiva, encorajadora e ideológica, que separa as pessoas e o seu trabalho de acordo com graus de inferioridade e superioridade.

Os tipos particulares de classificação alteram-se, obviamente, com o passar do tempo. Porém, os preconceitos profundos passam directamente de um sistema social para o outro. Por essa razão, a submissão tradicional das mulheres relativamente aos homens e a identificação do trabalho das mulheres dentro e fora de casa com o trabalho penoso tem-se adequado aos interesses de muitas classes exploradoras, até aos nossos dias. De forma semelhante, o racismo que serviu os donos de escravos norte-americanos há mais de cem anos, persistiu como um instrumento de opressão e discriminação, como a principal restrição aos negros que os conduziu para empregos mais inseguros, de baixo-estatuto, e menos remunerados.

A divisão do trabalho e a indústria moderna

As classes dominantes sempre estiveram interessadas no recrutamento, na disciplina e na manutenção da força de trabalho. Isto é verdadeiro tanto para as sociedades capitalistas como para as sociedades feudais ou escravocratas. Embora nos dias de hoje o sistema salarial possa parecer estabilizado, possa parecer até uma instituição auto-regulada, isso deve-se a uma longa história de luta, durante a qual, a interacção de pressões económicas e estatais foi forjando um proletariado dependente do salário para o seu próprio sustento. As formas mais severas de coerção aconteceram quando as relações capitalistas foram impostas nos territórios coloniais. Mas a formação de um proletariado industrial nas nações "civilizadas" também não foi um mar de rosas:

Devido à natureza da sociedade britânica do século XVIII, na qual surgiu o industrialismo moderno, devido à competitividade cruel imposta pelo mercado que o simples produtor tem de enfrentar, devido à alienação do trabalho que esta mudança de hábitos implica, e devido, acima de tudo, ao facto deles encararem os empregados como inimigos dentro do sistema distributivo de uma economia capitalista, o proletariado industrial moderno foi introduzido no seu papel, não tanto pela atracção ou recompensa monetárias, mas mais por compulsão, força e medo. Não era permitido que se crescesse num jardim vibrante de sol; esse proletariado foi forjado a fogo pelos golpes poderosos de um martelo.... A relação típica é de domínio e medo, medo da fome, do despejo, da prisão para aqueles que desobedecerem às novas regras industriais. Até agora, a experiência de outros países num estágio semelhante de desenvolvimento não tem, no essencial, sido muito diferente. (Sidney Pollard, The Genesis of Modern Management [Baltimore, Maryland,: Penguin Books, 1968], 243)

A mudança para o sistema de trabalho assalariado alterou profundamente o modo de vida e o significado do trabalho para os antigos agricultores independentes e artesãos. No século XVII o trabalho para os assalariados em Inglaterra era visto como uma forma de escravatura. Não só eram muitas as fábricas construídas como asilos e prisões como também a disciplina laboral imposta nessas instalações pressupunha práticas prisionais. No período pre-industrial o tempo dedicado ao trabalho era determinado pela tarefa a ser executada e por condições naturais (o clima para os agricultores, as marés para os pescadores, etc). O trabalho, o lazer e as festas religiosas, foram interrelacionados, resultando daí uma ténue demarcação entre "trabalho" e "vida". *O sistema fabril, por outro lado, criou uma disciplina de trabalho completamente nova, onde o tempo e a tarefa passaram a ser rigidamente controlados por inspectores.

O capitalismo acabou também por introduzir uma nova fase na divisão do trabalho. Para além de se ter verificado uma precoce divisão social do trabalho, o processo de produção foi ele próprio fragmentado. O extensivo uso da máquina, rotinizou os diferentes segmentos da produção à qual todo o trabalhador está ligado, transformando desta forma o trabalhador num apêndice da máquina que, tanto ele como ela, operam. Estas mudanças são analisadas de uma forma brilhante no clássico de Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital (Nova Iorque: Monthly Review Press, 1974) [1] . Actualizando a análise de Marx do processo do trabalho no Volume I de O Capital, Braverman esclarece:

A força de trabalho [numa sociedade capitalista] tornou-se um produto. O seu uso já não está organizado de acordo com as necessidades e desejos daqueles que a vendem, mas bastante mais de acordo com as necessidades dos seus compradores, que são principalmente empregadores que procuram ampliar o valor do seu capital. E é do especial e permanente interesse destes compradores o depreciar este produto. O modo mais comum de depreciar a força de trabalho está exemplificado no princípio de Babbage: subdividi-lo nos seus elementos mais simples. E tal como o modo de produção capitalista cria uma população activa adequada às suas necessidades, o princípio de Babbage é, como um perfeito molde deste "mercado de trabalho", imposto em proveito dos próprios capitalistas. 
Cada uma das fases do processo de trabalho é separada, tanto quanto possível, do conhecimento especializado e da formação, e reduzido a uma simples operação. Enquanto isso, as relativamente poucas pessoas que tiveram acesso ao conhecimento especializado e à formação, são libertadas, na medida do possível, das obrigações relacionadas com as operações simples. Deste modo, todo o processo de trabalho se enquadra numa estrutura que nos seus extremos polariza aqueles cujo tempo é infinitamente valioso, e aqueles cujo tempo quase nada vale. Inclusivamente, poder-se-ia designar isto como a lei geral da divisão capitalista do trabalho. Esta não é a única força que actua sobre a organização do trabalho, mas é certamente a mais poderosa e a mais abrangente. Os seus resultados, mais ou menos conseguidos em todo o tipo de indústria e de ocupação, dão um forte testemunho da sua validade. Ela molda não apenas o trabalho, mas também as populações, pois a longo prazo leva à criação de uma força de trabalho massificada e desqualificada que é a característica principal das populações em países capitalistas desenvolvidos. (82.83)

No subtítulo do livro de Braverman pode-se ler: "A Degradação do Trabalho no Século XX". É importante entender que não é apenas a alienação e a desumanização do próprio processo de trabalho que humilha o trabalho numa sociedade capitalista. A insegurança, o desemprego frequente, a exigência dos aspectos ligados à procura de trabalho, o emprego crescente em ocupações geradoras de desperdícios e socialmente prejudiciais, não mencionando as reduzidas recompensas para a maioria dos trabalhadores – tudo isto são contributos para a degradação do trabalho nos nossos dias. Não é portanto de admirar que Studs Terkel, que entrevistou um conjunto alargado de trabalhadores ao longo do país, sobre as suas ocupações laborais, referisse na introdução do seu fascinante livro Working (New York: Pantheon Books, 1972):


Este livro, embora seja acerca do trabalho, é, pela sua própria natureza, acerca da violência – tanto para o espírito como para o corpo. É acerca das úlceras mas também dos acidentes, acerca dos gritos nos estádios mas também das lutas ao murro, acerca dos colapsos nervosos mas também dos pontapés no cão que passa. É, acima de tudo (ou abaixo de tudo), acerca das humilhações diárias. Sobreviver ao dia-a-dia é já um considerável triunfo para os mortos vivos que estão entre os muitos de nós.... 
É também acerca da procura do significado de cada dia, mas também do pão de cada dia, do reconhecimento mas também do dinheiro, da surpresa em vez do entorpecimento; em resumo, de um tipo de vida em vez de um tipo de morte de segunda a sexta. Talvez a imortalidade seja também parte da questão. Ser recordado foi o desejo, revelado ou não, dos heróis e heroínas deste livro.... 
Para muitos, existe um descontentamento dificilmente escondido. O blues dos colarinhos azuis já não são cantados mais amargamente do que os queixumes dos colarinhos brancos. "Eu sou uma máquina", diz o soldador. "Eu estou enjaulado", diz o caixa do banco, e repete o balconista de hotel. "Eu sou uma mula", diz o metalúrgico. "Um macaco pode fazer o que eu faço", diz o recepcionista. "Eu sou menos do que uma enxada", diz o trabalhador emigrante. "Eu sou um objecto", diz o modelo de alta moda. Tanto o colarinhos azuis como os brancos pronunciam uma frase idêntica: "eu sou um robô".... 
Nora Watson [uma entrevistada] poderia ter dito muito sucintamente a mesma coisa. "Eu penso que a maioria de nós está à procura de uma profissão, não de um trabalho. A maioria de nós, como é o caso do trabalhador de uma linha de montagem, tem trabalhos que são irrelevantes para espírito. Os trabalhos não são suficientemente estimulantes para pessoas."*

Marx e o trabalho sob o socialismo

Para Marx, o objectivo primeiro do socialismo seria eliminar as misérias do trabalho e do modo de vida surgidos do capitalismo. Mas, como é bem conhecido, ele não definiu o projecto de uma tal sociedade. O futuro seria moldado no processo da revolução, influenciado pelas circunstâncias históricas e em resposta à experiência ganha pela classe trabalhadora na medida em que se envolvia na transformação revolucionária do estado e da sociedade. Não obstante havia aspectos que seriam essenciais à revolução levada a cabo pelos explorados: a abolição de classes e da propriedade privada no que diz respeito aos meios de produção, e a favor do controlo social da produção. Isto necessariamente implicou, na estrutura marxista, a dissolução de todas as formas da divisão do trabalho nele criada, divisão essa determinante para a existência tanto de propriedade privada como de uma sociedade baseada na divisão por classes. Tão central foi este ponto no pensamento de Marx que se pode percepcionar a sua visão do que poderia ou deveria ser o objectivo último de uma sociedade comunista:

Numa fase mais avançada da sociedade comunista, depois da subordinação escravizante dos indivíduos à divisão do trabalho, e com isso também o fim da antítese entre trabalho mental e o físico, depois de o trabalho se ter tornado, não apenas um meio para viver, mas uma necessidade primária da vida, depois de as forças produtivas terem aumentado com todo a envolvente de desenvolvimento do indivíduo, e depois de todas as nascentes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente – só então se pode abandonar completamente o estreito horizonte do direito burguês, e a sociedade inscrever finalmente nas suas bandeiras: de cada um de acordo com as suas capacidades, para cada um de acordo com as suas necessidades. (Critique of the Gotha Program)

É preciso enfatizar que Marx viu este ideal como sendo algo que seria percebido só após se ter passado por um longo processo, desde a nova ordem social "emergida da sociedade capitalista que é, sob todos os aspectos, económico, moral, e intelectual, ela própria estampada com as marcas de nascença do útero da velha sociedade da qual ela emergiu". Ele não abordou no entanto, os obstáculos que se atravessarão no caminho para o objectivo último se as "marcas de nascença da velha sociedade" estiverem embutidas no seio da nova sociedade. Este problema tornou-se evidente com o resultado da experiência daqueles países que sofreram revoluções sociais. É agora evidente que, após a revolução, a persistência em dividir o trabalho entre intelectuais e trabalhadores, entre os administradores e as massas, e entre os dirigentes das cidades e da província, levam à perpetuação de conflitos de interesse entre sectores da sociedade, juntamente com o espírito de competição e o individualismo. Não existem dúvidas de que Mao Tse-tung foi profundamente impressionado por esta experiência, dado que ele enfatizou repetidamente que, se se pretendia que o socialismo progredisse, havia a necessidade de prestar atenção à eliminação das principais diferenças entre as pessoas.

E acerca desta última visão que Marx nos deixou? Será razoável considerarmos isso como um ideal? Não há tempo agora para fazermos uma abordagem desta questão em todas as suas vertentes. Porém, gostaria de referir que por detrás desta visão, repousam duas suposições, sendo que uma é alicerçada nos escritos de Marx e Engels, e a outra, de acordo com o meu conhecimento, eles ignoraram.

Uma suposição básica da factibilidade do objectivo comunista é que a natureza humana não é constante ao longo do tempo: que os impulsos aquisitivos, o individualismo, e a competição não são dados biológicos. O facto de as pessoas mudarem o seu comportamento social e as suas atitudes está no próprio cerne da teoria do materialismo histórico: embora os "homens sejam produto das circunstâncias e da educação, e portanto homens transformados sejam produtos de outras circunstâncias e de outra educação também ela mudada", não deveria ser esquecido "que as circunstâncias são mudadas precisamente por homens e que o próprio pedagogo deve ser também ele educado" (Marx, Theses on Feuerbach ). O suporte desta proposição vem de um estudo da história e especialmente de investigações de antropólogos. "O Sr Proudhon não sabe", escreveu Marx em Poverty of Philosophy, "que toda a história não é mais do que a transformação contínua da natureza humana".

Uma objecção à visão comunista, apontada frequentemente, é a de se considerar que as pessoas só trabalham por incentivos económicos. Isto apesar de tal noção ser refutada por muitas das sociedades primitivas de que temos conhecimento, onde predominam incentivos não-económicos para o trabalho: responsabilidade social, tradição, desejo de prestígio, e prazer na habilidade artesanal. Dado que existem registos de no passado se terem verificado mudanças nas atitudes das pessoas para com a comunidade e para com o seu trabalho, é razoável assumir que a natureza humana se adaptará, e com entusiasmo, a uma ordem social baseada na cooperação, na eliminação da divisão rígida do trabalho, e na oportunidade de um desenvolvimento mais completo do indivíduo.

Encontra-se aqui envolvida precisamente uma segunda suposição relativa à natureza das necessidades das pessoas – um assunto ao qual Marx e os marxistas prestaram pouca atenção. Se as necessidades das pessoas são ilimitadas, e especialmente se elas gerarem em si mesmas uma paixão pelo consumo, como aquele que caracteriza as nações capitalistas avançadas do Ocidente, então isso levaria a concluir que as propostas para alcançar a fase mais alta de comunismo, são na realidade muito fracas. O problema não é apenas a questão de os recursos da Terra serem limitados, embora isso só por si já fosse razão suficiente para cepticismo. A procura sem limites de um sempre cada vez mais elevado nível de vida material, e à escala mundial, só poderia resultar na reprodução das mais nefastas características de uma sociedade de classes. A procura de um incessante crescimento da produção de uma já bastante alargada gama de bens requereria, entre outras coisas, a continuação de uma rígida divisão do trabalho, a concentração do fabrico em grandes empreendimentos e enormes cidades. Ao mesmo tempo, a igualdade na distribuição teria de ser esquecida. Na ausência de limites para as necessidades não haveria qualquer modo prático de satisfazer os desejos de todos os consumidores: as possibilidades de produção necessariamente limitadas requereriam desigualdade na distribuição [de bens], conjuntamente com a intensificação de conflitos entre sectores privilegiados e despojados.*

Tudo isto leva a concluir que a condição necessária para se atingir uma sociedade verdadeiramente comunista, é o total abandono da cultura capitalista e consumista. Isto significaria uma abordagem completamente nova ao planeamento das cidades e aldeias, do transporte, da localização da indústria, da tecnologia, e de muito mais. Acima de tudo, a nova cultura teria que de ser fundada numa visão das necessidades de pessoas e num modo de vida que seria consistente com a manutenção de uma sociedade cooperativa e igualitária.

Embora, como referido anteriormente, os marxistas tenham negligenciado questionar as necessidades e as exigências de uma nova cultura, é verdade que estas preocupações estão muito presentes num famoso romance utópico de um marxista: News from Nowhere (1890) de William Morris. Num certo sentido este livro pode ser considerado uma resposta a Edward Bellamy. Morris estava perturbado com as ideias de Bellamy, como se pode perceber por uma análise por ele exposta em Looking Backward:

[Bellamy] diz-nos que todo o homem é livre de escolher a sua própria ocupação e que o trabalho não representa um fardo para as pessoas. Aideia que ele transmite é a de um enorme exército preparado, firmemente instruído, compelido por algum destino misterioso numa ansiedade incessante dirigida para a produção de mercadorias de modo a satisfazer todo o capricho, mesmo que seja imprevidente e absurdo, e que deve ser considerado na sua totalidade.... Acredito que o ideal do futuro não aponta para uma diminuição da energia despendida pelo homem, reduzindo ao mínimo o trabalho, pois creio antes numa redução ao mínimo do sofrimento no trabalho, tão pequeno que deixará de ser sofrimento.... No entanto, no respeitante a este aspecto, o sr. Bellamy preocupa-se desnecessariamente com a procura (com óbvio fracasso) de algum incentivo para o trabalho por forma a substituir o medo da fome, que é no presente o nosso único receio, contudo, e procurando não ser demasiado repetitivo, o verdadeiro incentivo para um trabalho feliz e útil deverá ser o prazer no próprio trabalho. ( Commonweal [January 22, 1889], tal como o citado em A. L. Morton, The English Utopia [Londres: Lawrence & Wishart, 1952], 155)

O romance utópico que Morris escreveu um ano depois é, como se poderia esperar, notavelmente diferente do de Bellamy. Ele não dá uma prescrição completa para todos os aspectos da nova sociedade, nem pretendeu que a sua visão fosse a única e a necessária forma de futuro. Em vez disso, trata-se da expressão de uma preferência pessoal para o tipo de mundo em que ele gostaria de viver. Por outro lado, em contraste com Bellamy, Morris exibe um senso da história, a compreensão de que as transformações sociais ocorrem como resultado de lutas travadas pelas classes sofridas, e a consciência das potenciais mudanças na natureza humana e nas relações sociais. O que é de especial interesse no presente contexto, é a sua ênfase na satisfação do que pode provir do trabalho. No entanto tal só poderá ser entendido num ambiente com um tipo de vida mais simplificado e onde exista uma libertação das pressões exercidas por desejos artificialmente estimulados. No novo mundo de Morris, as grandes cidades desaparecerão e serão substituídas por aldeias, bosques, e prados. Nestas condições, a divisão rígida do trabalho vai desaparecendo na medida em que as pessoas forem tendo tempo e interesse para se dedicarem à aprendizagem de novos saberes. Acima de tudo, ele realça a satisfação que poderá resultar da aquisição de saberes que envolvam as actividades manuais, da própria actividade manual, e do desenvolvimento da criatividade daí resultante.

O que é especialmente interessante, no News from Nowhere, é que o autor não nos proporciona as respostas que precisamos para o complexo mundo de hoje. Uma vez que as soluções que propõe interessam a um futuro distante, estas só serão utópicas na sua essência. As soluções reais terão que ser fornecidas pela história. Por outro lado, as opiniões que ele emite sobre a qualidade de vida, sobre o trabalho, e sobre a cultura numa sociedade sem classes, merecem atenção. Todos eles têm o mérito de sugerir ideias que podem influenciar a direcção das lutas dos dias de hoje, e nos direccionar para uma vida melhor.

Este texto é uma reconstrução a partir de anotações de uma apresentação ao Terceiro Diálogo Norte Americano Cristão-Marxista, em maio de 1982, no Seminário Teológico de Wesley, Washington, D.C. Na sessão de abertura, onde ocorreu esta apresentação, uma perspectiva cristã foi apresentada por monsenhor George Higgins.

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