3 de dezembro de 2000

Desnacionalização e vulnerabilidade externa

Lições contemporâneas

Maria da Conceição Tavares

Folha de S.Paulo

Na década de 90, as autoridades monetárias deixaram entrar, sem controle, montantes crescentes de capitais estrangeiros de todos os tipos. A liberalização comercial e financeira produziu um aumento brutal dos passivos externos do país, que dobraram nos últimos cinco anos, alcançando cerca de US$ 450 bilhões. A crise internacional de 1997 provocou uma fuga de capitais violenta, e a ameaça de colapso cambial, em fins de 1998, levou o país a recorrer ao FMI para obter um empréstimo de contingência de US$ 40 bilhões e restabelecer o financiamento externo, cujas necessidades globais alcançaram US$ 73 bilhões em 1999 (contra US$ 12,6 bilhões em 1994). Os compromissos externos diminuíram em 2000, mas a situação deve piorar em 2001 tanto pelo acúmulo de amortizações já programadas como pelo novo aperto de crédito no mercado internacional, que está levando à crise vários países da periferia (Equador, Argentina, Turquia, África do Sul e Coréia).

O crescimento do Investimento Direto Estrangeiro (IDE) ajudou a financiar as contas externas nos últimos três anos, mas concentrou-se na aquisição de empresas públicas e privadas nacionais, sobretudo dos setores de serviços, que não geram um dólar de receita, mas pedem tarifas em dólar. Os principais negócios foram as operações de privatização dos setores de energia elétrica (US$ 34,3 bilhões) e de telecomunicação (US$ 26,4 bilhões). O setor financeiro foi o terceiro grande negócio, com cerca de US$ 18 bilhões de aquisições por bancos estrangeiros. Estes estão entrando no mercado brasileiro não apenas para "concorrer" com os bancos nacionais mas também para garantir patrimonialmente as relações de crédito que mantêm com as grandes empresas, sobretudo as internacionais. Os multibancos europeus, que têm uma contabilidade mais flexível que os americanos, participaram das privatizações dando apoio colateral ao levantamento de fundos no exterior.

A partir da crise asiática, a capacidade de endividamento autônomo das empresas privadas diminuiu, atingindo o limite bruto de US$ 140 bilhões. Dada a fragilidade externa do país e o apelo da liquidez internacional, as dívidas privadas de boas empresas que não possam ser roladas tendem a ser convertidas em aquisições patrimoniais. Essa é a razão básica pela qual as operações de investimento direto estrangeiro alcançaram, nos últimos três anos, montantes da ordem de US$ 30 bilhões ao ano. Descontado o volume de recursos externos que é retido pelas empresas e bancos como saldo líquido no mercado interbancário, o resto é vendido ao Banco Central em troca de títulos da dívida pública com correção cambial, o que agrega ao passivo externo um aumento dos passivos fiscais e de gastos correntes com juros internos, além do risco cambial.

O aumento das necessidades de financiamento externo em 2001 e as pressões do FMI (a partir do caso argentino) para liberalizar e privatizar ainda mais devem desencadear uma nova onda de privatizações, das quais a do Banespa inicia a ofensiva na direção dos grandes bancos públicos. As intenções sobre o setor financeiro público já constam do memorando de Política Econômica de março de 1999, emitido por ocasião das primeiras revisões do acordo com o FMI. As "recomendações" para a privatização dos bancos federais, em particular o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, começam a circular nos relatórios das empresas de consultoria e na imprensa, e a privatização em curso do resto do setor elétrico deverá terminar em 2001.

As operações de privatização têm sido invocadas como um bom negócio para abater a dívida pública interna, mas as evidências são de sentido contrário (ver Aloysio Biondi, "O Brasil Privatizado", Ed. Perseu Abramo, 1999). No caso do Banespa, os números ainda estão na memória de todos. O valor da operação de privatização do Banespa foi equivalente a quase US$ 3,5 bilhões. O Santander vendeu ao Banco Central US$ 2 bilhões (por sinal, o mesmo montante de créditos que tinha contra a Telefónica de España quando da privatização das teles), recebendo em troca títulos da dívida pública com correção cambial cujo rendimento é mais do que o dobro das taxas européias. Dado o ágio do leilão, ganhou ainda o direito de remeter lucros sem pagar imposto, ou incorporá-los ao seu patrimônio líquido por um montante de R$ 5,8 bilhões de créditos tributários. Os créditos do Santander contra o Tesouro e o Banco Central, no momento presente, são de cerca de R$ 9,5 bilhões, superiores, portanto, ao valor do leilão em R$ 2,5 bilhões, o que representa aumento dos compromissos do Tesouro, e não "abatimento da dívida".

A esterilidade da avalanche de investimento direto estrangeiro sobre o crescimento da economia pode ser avaliada pela taxa de investimento interno, que subiu apenas 2% ao longo de uma década (de 15,2%, em 1991, para 17,2%, em 1999). Os poucos investimentos diretos estrangeiros que implicaram expansão de capacidade foram feitos nas indústrias química, automobilística e de equipamentos eletroeletrônicos e de telecomunicações, assim mesmo com abundante financiamento público. Esses investimentos geraram, porém, um violento aumento de importações, os três apresentando um déficit comercial da ordem de US$ 15 bilhões a US$ 16 bilhões ao ano, mesmo depois da desvalorização cambial.

Em resumo, estamos desnacionalizando a nossa economia e piorando o balanço de pagamentos, o que agrava cada vez mais a vulnerabilidade externa do país. Não é à toa que o exame, mesmo superficial, do que ocorreu nos últimos anos com a economia brasileira dá a qualquer analista cuja cabeça ainda funcione, uma profunda sensação de absurdo e irracionalidade.

Sobre a autora

Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

11 de novembro de 2000

Simples e torto

Fábio Wanderley Reis

Folha de S.Paulo

"Medo" de esquerda e direita? Como não capto o alcance da esquisita insinuação de André Singer na réplica a minha resenha de seu livro, dirijo-me ao que interessa.

1. Ressalto que minha resenha começa por conceder a possível ocorrência de alguma "ideologização" no processo eleitoral brasileiro que os dados do livro indicam e que se ajusta à afirmação do PT no nível da disputa presidencial e aos efeitos do segundo turno. Meu problema, assim, é antes o de tentar apontar os simplismos e exageros quanto à leitura dessa possível ideologização que resultam dos defeitos da análise de Singer.

2. André Singer desconjunta em "motivos" e temas diversos minha crítica, que contém dois pontos focais: a manipulação metodologicamente deficiente dos dados e o entendimento insatisfatório e as distorções quanto à dimensão cognitiva da noção de ideologia. Quanto aos dados, o que é tratado por ele como um "artifício" meu, isto é, a demanda de que a correlação encontrada entre voto e autolocalização na "esquerda" e na "direita" seja examinada separadamente entre os que sabem e os que não sabem o significado das categorias, corresponde na verdade a uma regra elementar da lógica da análise multivariada, a ser encontrada em qualquer manual de metodologia, que recomenda a introdução de variáveis de controle para aferir a força ou o sentido real de correlações aparentes. Cerca de 20% de eleitores informados, que os dados de Singer mostram, combinados com eleitores desinformados, que se distribuam às cegas entre esquerda e direita e "acertem" casualmente na correspondência com o voto, podem produzir "preditores" razoáveis deste -e as correlações iniciais de Singer (que, aliás, não vão além de "V" de Cramer de 0,33 e 0,37) podem se mostrar, com o controle sugerido, bem menos afins a suas teses.

Singer afirma que "fez o teste" (onde?, quais são os números?) e que a correlação entre os desinformados é "fortemente significativa". Ora, essa reiteração do uso ritualista de coeficientes de significação, em que o livro é abundante, ilustra o equívoco banal de esquecer que a significação estatística, a qual se refere a erro amostral, não tem nenhuma conexão necessária com a intensidade das correlações: correlações fracas podem ser significativas. No "teste" feito, como se comparam, do ponto de vista da intensidade, as correlações que se dão nos casos dos informados e dos desinformados? A possibilidade que avento tem a ver com algo substantivo: mesmo numa boa amostra (ou no universo...), eleitores desinformados podem, sim, estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autolocalização, particularmente tratando-se de categorias pouco numerosas em ambas as variáveis. Não vejo como se poderá negar tal possibilidade, quanto à qual coeficientes de significação nada acrescentam.

3. Dizer que "definir esquerda e direita não é fácil", que há confusões entre liberalismo político e liberalismo econômico, ou o que mais seja, redunda justamente em dizer que a ideologia contém um importante elemento cognitivo. Se André Singer pretende nos ensinar algo com a idéia de que, mesmo não sendo capaz de verbalizá-lo, o eleitor teria a percepção "intuitiva" do conteúdo de "esquerda" e "direita", esse algo não pode ser senão que tal eleitor se encontraria em níveis intermediários de cognição, diferentes dos do eleitor que não tem nem sequer essa intuição. Ora, o que nos interessa são precisamente os matizes que o eleitorado apresenta a respeito. Trabalhos anteriores já foram, quanto a isso, muito além de André Singer, revelando a articulação de níveis diversos de cognição e estruturação ideológica com condições socioeconômicas distintas e seus efeitos sobre o voto. "Dialogar adequadamente" com esses trabalhos seria levá-los em conta e procurar avançar com respeito a eles. E caberia esperar que André Singer tratasse, quem sabe, de esclarecer a "relevância" de esquerda e direita, mostrando-nos como a operação dessas categorias se relaciona com os matizes já estabelecidos. Mas, em vez de lidar de maneira devidamente refinada e atenta com a dimensão cognitiva e de explorá-la nos dados, a análise de André Singer apaga os matizes e joga no mesmo saco, como eleitor "ideológico", tanto o eleitor sofisticado que opera com informações complexas ao votar quanto o eleitor tosco que projeta sua indigência e desinformação sobre partidos e candidatos, e que é eventualmente manipulável. Com isso, perdemos mais do que boa análise: arriscamos confundir as metas pelas quais cabe ansiar. Vale talvez a pena esperar uma segunda edição revista. Bem revista.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Ideologia banida?

André Singer

Folha de S.Paulo

Por força das regras deste Jornal de Resenhas não pude tomar conhecimento dos argumentos contrapostos à minha réplica por Fábio Wanderley Reis. Como não se quer dar a qualquer dos polemistas o privilégio da última palavra, fico privado da possibilidade de responder ao que você, leitor, acaba de ler.

Compreendo a intenção de manter a equidade, mas é pena que o debate seja interrompido. O tema é relevante e atual, como acabam de demonstrar as eleições municipais, em que o confronto entre esquerda e direita ficou claro em cidades do porte de São Paulo, Curitiba e Recife. Está em jogo nesta discussão saber se a oposição entre esquerda e direita (que envolve também o posicionamento ao centro, uma vez que no Brasil vigora o pluripartidarismo) merece ser levada em consideração como um dos determinantes do voto ou deve ser banida do rol de motivos que influenciam o eleitor.

Sustento no meu livro que parcela significativa do eleitorado, de acordo com pesquisas quantitativas realizadas na primeira metade da década de 90 -e reproduzidas este ano pelo Datafolha, com resultados coerentes-, possui uma percepção intuitiva da existência da divisão dos partidos e candidatos entre esquerda, centro, direita. Indico, ainda, que cerca de 80% dos eleitores aceitam se posicionar numa escala que vai de 1 a 7, sendo 1 mais à esquerda e 7 mais à direita (situação confirmada uma vez mais pelo Datafolha no "survey" divulgado pela Folha em 16/7 passado). Por fim, apresento evidências de que tal posicionamento tende a ser coerente com o voto e com determinadas opiniões, como a de ser contrário ou favorável ao uso de tropas militares para reprimir greves.

A conclusão da análise dos dados é que a variável identificação ideológica deve ser incluída como uma das que têm peso na hora de decidir o voto. Outras variáveis estruturais, como escolaridade, grau de urbanização e identificação partidária, também influenciam o eleitor, sem falar de fatores de curto prazo, como avaliação retrospectiva do governo, propostas de políticas específicas, avaliação do candidato e andamento da campanha.

A proposta que defendo em "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp) não é, portanto, como disse meu crítico, "considerar "ideológico" o eleitorado brasileiro" (Jornal de Resenhas, 9/9/ 2000), mas incorporar à compreensão do voto uma variável que a ciência política até então deixava de lado.

Já o resenhista acredita que a escala esquerda-direita não tem consistência para o eleitorado, uma vez que este declara não saber o significado dos termos. Seria, assim, um equívoco raciocinar sobre as motivações do eleitor a partir de categorias que não fazem sentido para o próprio eleitor. Além de apontar a baixa capacidade deste, expressa em sua incompetência para verbalizar o significado de esquerda e direita, o crítico esgrime a dimensão cognitiva do conceito de ideologia, que remeteria para uma visão mais estruturada do universo da política, como não sendo compatível com o comportamento da massa dos votantes, cuja percepção é sabidamente fragmentada. A meu ver, nenhuma das razões trazidas à baila justificam a barreira que o resenhista quer opor à inclusão da identificação ideológica como uma das variáveis do comportamento eleitoral. Em primeiro lugar, porque os dados evidenciam que um contigente importante dos eleitores reconhece significados políticos na divisão esquerda-direita quando estimulados a isso. Aceito que o elemento cognitivo seja importante para qualificar corretamente a identificação ideológica, mas não para excluí-la do campo de visão analítica.

Em segundo lugar, o fato de que a ideologia seja uma forma de organizar o pensamento a partir de princípios abstratos, como liberdade e igualdade, utilizada em geral por quem dispõe de maior treino intelectual, não implica que ela não possa ser absorvida como sinalizadora de posicionamentos políticos por parte de uma massa de eleitores chamada a escolher entre grupos que se distribuem ao longo do espectro esquerda-direita. Ou seja, é um erro, a meu ver, desconsiderar, em nome da complexidade das categorias ideológicas, o fato de que elas também ajudam a entender a massa dos eleitores.

Esse é o fulcro da divergência. Reafirmo que, aceita a concepção do meu oponente, deixaremos de lado um dos elementos que orientam o voto nas democracias em geral e também no Brasil. Trata-se de uma discordância científica. Posta em seus devidos termos, cabe ao leitor chegar a uma conclusão.

André Singer é professor do departamento de ciência política da USP e repórter especial da Folha.

9 de novembro de 2000

Um livro

Paulo Nogueira Batista Jr.

Folha de S.Paulo

Na segunda-feira passada, chegou às minhas mãos o meu novo livro, "A Economia como ela é...". Eu sei, leitor, que não há nada de excepcional em publicar um livro nos dias de hoje. Políticos, economistas, jornalistas, atrizes, proprietários de circo, dançarinas de ventre, enfim, toda uma variada fauna acredita ter uma mensagem a oferecer ao distinto público e encontra, sem grande dificuldade, meios de chegar à página impressa.

Antigamente, era diferente. Ter um livro publicado era uma honra e uma distinção. Quando um autor passava na rua, as pessoas cochichavam, reverentes: "Aquele lá tem livro publicado, tem livro publicado!". E o autor, mesmo que de um único e solitário opúsculo, desfilava, tranquilo, orgulhoso da sua condição de escritor impresso.

O tempo passou e o livro se trivializou. É cada vez maior o número de escritores e menor o número de leitores.

Se tiver um mínimo de sensibilidade, o sujeito que resolve lançar um livro tem que se explicar direitinho, quase deve pedir desculpas.

Bem. Preliminarmente, posso dizer que em 20 anos de atividade como economista e pesquisador, e descontadas as obras em co-autoria, só havia publicado dois livros até agora. Não abusei, portanto.

E acredite, leitor, nem sempre é fácil escrever um livro e assegurar que ele seja editado corretamente. De todos os meus livros, o que mais me custou foi, sem dúvida, este último, que será lançado em São Paulo na próxima segunda-feira à noite, na livraria Cultura, e no Rio, na livraria Argumento do Leblon, na segunda seguinte, dia 20.

Foi um parto difícil. O drama começou com a escolha da editora errada, a Revan, do Rio de Janeiro, que tratou de forma extraordinariamente incompetente e desleixada o meu pobre e indefeso livro. Revi e corrigi as provas durante meses e meses. A editora cometia e repetia uma montanha de erros, misturava arquivos, alterava o texto sem avisar o autor. Quase me levou à loucura.

Um exemplo cômico foi a insistência em trocar a expressão rodriguiana "idiotas da objetividade" por "idiotas da juventude", algo que poderia me incompatibilizar com toda uma nova geração de leitores. Por alguma razão misteriosa, o erro era corrigido e reaparecia em provas subsequentes, quem sabe se por alguma auto-referência inconsciente da jovem equipe da Revan.

Depois de meses de desacertos e adiamentos, briguei com a editora e a publicação voltou à estaca zero. Alguns amigos, solidários com as minhas agruras, se prontificaram a me ajudar a encontrar uma boa editora. E, lá do céu, vendo que eu já havia padecido o bastante, Deus resolveu finalmente me colocar no caminho certo.

Conheci a Ivana Jinkings, dona da Boitempo Editorial, que se interessou imediatamente pelo trabalho. A Ivana era a editora ideal para um autor traumatizado. Cuidou pessoalmente do livro, com carinho e dedicação.

A troca de editora atrasou a publicação mais alguns meses. Mas valeu a pena. O livro foi reestruturado e submetido a novas atualizações e revisões. Aproveitei para incluir material novo de pesquisa, ainda inédito, que ficara pronto nesse meio tempo.

Graças à Ivana, o livro ficou uma beleza. Foi tudo checado e rechecado, nos mínimos detalhes. A uma certa altura do trabalhoso processo de revisão e correção, a Ivana comentou: "O pior é que ninguém vai reparar nesse cuidado todo que estamos tendo".

Quem sabe? A verdade é que nós tivemos um esmero de artesão de catedral gótica medieval. Os restauradores do século 20 descobriram maravilhados que, nos pontos mais altos e inacessíveis das catedrais góticas, os artesãos haviam ornamentado as construções com detalhes rigorosamente invisíveis de qualquer ponto do chão ou das galerias. Era um trabalho de amor e fé, que jamais seria contemplado por ninguém, feito pelo artista para Deus e para si.

Mas repare, leitor, que o bonito dessa história é que, séculos e séculos depois, os restauradores modernos redescobriram, afinal, os detalhes ocultos do trabalho desses artesãos anônimos.

Vamos parar por aqui. Percebo que, no meu entusiasmo de ex-autor traumatizado, estou exagerando na comparação.

Quero dizer apenas que o livro recapitula e sistematiza um pouco as minhas lutas e polêmicas dos anos recentes. Conta a história de uma batalha geralmente inglória contra as tendências dominantes no pensamento e na política econômica do país.

Desse esforço talvez se possa dizer, "mutatis mutandis", o que disse François Truffaut do seu filme-livro "O Homem que Amava as Mulheres": de todas essas peripécias e controvérsias, ficará de qualquer modo alguma coisa, um traço, um testemunho, um objeto retangular, 426 páginas em brochura -um livro.

Sobre o autor

Paulo Nogueira Batista Jr., 45, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como ela é..." (Boitempo Editorial. E-mail: boitempo@ensino.net).

8 de novembro de 2000

Acesso bancário

Fernando Nogueira da Costa


Há uma divisão social no país: os cidadãos com e os sem conta corrente, estes excluídos do mercado financeiro. Estima-se que somente cerca de 15% da população brasileira tem conta bancária -no máximo 25 milhões de pessoas. Na rede bancária nacional, em 1999, eram movimentadas 49,9 milhões de contas correntes e 44,8 milhões de contas de poupança, a grande maioria de clientes pessoas físicas. As pessoas jurídicas possuíam 4.360.461 de contas correntes e 448.210 depósitos de poupança. Verifica-se, então, que a clientela bancária deve ter, em média, mais de uma conta corrente. No ano passado, as contas correntes dos bancos gigantes -Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Bradesco, Itaú, Unibanco e Banespa- somavam cerca de 35,4 milhões.

Qual é o perfil socioeconômico dessa parcela da população cliente dos bancos? Basta cruzar os dados com os da distribuição de rendimento médio mensal das pessoas de 10 anos ou mais de idade, no Brasil, para perceber que eles privilegiam as contas correntes dos 10% mais ricos, que recebem 47,5% do total da renda. O rendimento médio mensal dessas pessoas era, em 1998, R$ 2.539 (quase 20 salários mínimos). Em torno de 60% do mercado composto pela "elite", os "batalhadores" e os "remediados" reside na região Sudeste.

O segmento que no Brasil tem 21 milhões de domicílios, com renda de até dez salários mínimos, é o alvo da missão social dos bancos públicos. A parcela com renda inferior a dois salários mínimos é composta de 10 milhões de domicílios de "desbancarizados". Dos com renda de dois a cinco salários mínimos, só 20% têm conta corrente. Os com renda de cinco a dez salários mínimos representam 22% da população e detêm 15% do PIB, porém são pouco sofisticados no uso do sistema bancário.

Um dos segmentos privilegiados pelos bancos privados representa 35% do PIB nacional e é composto de clientes com renda domiciliar de 10 a 30 salários mínimos e/ou de R$ 5.000 a R$ 30 mil em volumes de negócios. Cerca de 78% das suas famílias são "bancarizadas", possuem, em média, 2,9 produtos por cliente, 46% utilizam as centrais telefônicas, 10% utilizam "home banking". Outro segmento que recebe um tratamento personalizado possui acima de 30 salários mínimos de renda domiciliar e/ou mais que R$ 30 mil em volume de negócios. Esse é o mais expressivo em termos de retorno financeiro, consumindo em média quatro produtos. No mercado brasileiro, é constituído por 2 milhões de famílias com renda acima de 30 salários mínimos (representam 40% do PIB), das quais 92% são "bancarizadas", 65% têm nível superior e 40% já utilizam "home banking".

Na economia com pior concentração de renda do mundo desenvolvido e/ou em desenvolvimento, o mercado que realmente interessa aos bancos privados é excludente e concentrado, inclusive regionalmente. Lamentavelmente, no programa de privatização das instituições financeiras públicas, se concede uma significativa participação no disputado mercado bancário sem a exigência de os vencedores dos leilões se comprometerem com a manutenção do papel social histórico do banco público: o atendimento bancário da população e o financiamento do desenvolvimento nacional.

Percebe-se, assim, a ameaça social que representa mais um golpe de "privataria" financeira. Ao privilegiar interesses privados em desfavor dos sociais, o "Relatório de Alternativas para a Reorientação Estratégica do Conjunto das Instituições Financeiras Públicas Federais (IFPFs)", elaborado pelo consórcio Booz Allen & Hamilton Fipe/USP, sob encomenda do BNDES, desdenha esse papel social dos bancos públicos. A proposta de eliminar suas ações comercial e de acesso leva ao fechamento de suas agências. Atualmente, o país possui 5.612 municípios, 16.223 agências e 6.610 postos de atendimento bancário (PAB). No entanto, 73% da rede de agências localiza-se no Centro-Sul. Há 1.638 municípios sem atendimento bancário, 163 com PAB, mas sem agência, e 1.395 com uma única agência. Em outras palavras, 57% dos municípios já não despertam hoje interesse de atendimento bancário.

Só uma parcela mínima dos municípios de regiões mais pobres é atendida por bancos privados. Evidência disso é o fracasso nas tentativas de privatização dos bancos estaduais do Norte e Nordeste.

Causou surpresa o fato de, em pouco tempo, o pagamento de contas de água, luz, gás e telefone nas 6.500 lotéricas espalhadas pelo país representar 50% do total pago em todo o sistema bancário. A justificativa é que as casas lotéricas, em nome da CEF, deram acesso ao público de baixo poder aquisitivo. Existem 25 milhões de famílias no Brasil que não têm acesso a bancos, mas têm contas para pagar.

A dificuldade de acesso ao crédito bancário tradicional justifica a busca dos bancos públicos pela ampliação da "bancarização" da população, seja por meio da rede lotérica, seja dos Correios. A "desbancarização" foi o fator mais grave de concentração de renda, durante o longo regime de alta inflação, cindindo a população entre os que detinham o "dinheiro de pobre" e os que se protegiam com o "dinheiro (indexado) de rico". O apoio político às IFPF aumentará desde que atuem como "bancos dos pobres". Será uma revolução financeira dar prioridade ao microcrédito, dirigido aos pequenos empreendimentos de trabalho autônomo, e não ao grande capital.

Sobre os autores
Fernando Nogueira da Costa, 49, professor associado do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador da área de economia da Fapesp, é autor dos livros "Economia em Dez Lições", "Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista" e "Ensaios de Economia Monetária".

14 de outubro de 2000

Quem tem medo da esquerda e da direita?

André Singer responde a resenha de Fábio Wanderley Reis

André Singer

Folha de S.Paulo

Em "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp), revelo que pesquisas realizadas entre 1989 e 1994 traziam uma novidade. A autolocalização do eleitor no espectro ideológico se mostrava relacionada ao voto nos pleitos presidenciais que conduziram Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Passo a sugerir, então, que o posicionamento do eleitor na esquerda, no centro ou na direita deveria ser levado em conta como um dos determinantes do voto no Brasil. Tratava-se, como foi escrito neste Jornal de Resenhas (9/9/2000) por Fábio Wanderley Reis, de um propósito "simples e claro", a meu ver sustentado por argumentação lógica. Mesmo tendo evidenciado pleno entendimento do propósito do trabalho, o resenhista optou por ignorar os argumentos, em lugar de combatê-los abertamente.

Alega três motivos para rejeitar a tese. Primeiro, coloca em dúvida a relação entre o autoposicionamento do eleitor no espectro ideológico e o voto. Segundo, critica a idéia de que os eleitores possam intuir sentidos políticos nas palavras "esquerda" e "direita", a ponto de saberem se posicionar no espectro ideológico, mesmo que não consigam verbalizar o significado de tais vocábulos. Por fim, afirma, contraditoriamente, que, se a premissa anterior for aceita, ela conduzirá a categorias irrelevantes para a compreensão do comportamento eleitoral. Acusa-me ainda de não estabelecer um "diálogo adequado" com estudos anteriores -"como os de minha própria autoria", esclarece o resenhista. Responderei pela ordem.

Será verdade que os dados apresentados no livro não sustentam a hipótese de um significativo vínculo entre a autolocalização do eleitor em uma escala de sete pontos (na qual "um" corresponde ao posicionamento mais à esquerda e "sete", mais à direita), com o voto nas eleições de 1989 e 1994? O núcleo da dúvida está no suposto "fato de que os eleitores entrevistados, que ignoram o significado das categorias e se colocam às cegas numa ou noutra, têm uma chance razoável de estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autocolocação na escala esquerda-direita" (grifo meu).

Relação não-casual

Ora, tal afirmação desconhece as inúmeras evidências, apresentadas no livro, de que tal relação não é casual. Ou será que o fato de 60% dos eleitores que se posicionaram à direita, pesquisados pelo Datafolha por meio de uma mostra nacional, terem votado em Collor no primeiro turno de 1989, contra 24% de votantes em Collor entre os que se posicionaram à esquerda, não quer dizer nada? Será que a decisão de votar em Lula por parte de 47% dos que se colocaram à esquerda, na mesma ocasião, contra apenas 16% dos que se colocaram à direita, não chama a atenção de um pesquisador experiente como Fábio Wanderley Reis? Por falta de espaço, deixo de mencionar muitos outros dados significativos que se encontram no livro sobre a eleição de 1989.

Na eleição de 1994, decidida com a vitória de Fernando Henrique logo no primeiro turno, os dados revelados pela Toledo e Associados, numa pesquisa feita no Estado de São Paulo, foram ainda mais reveladores. Dos eleitores paulistas que se posicionaram à direita, 85% preferiram FHC, enquanto esse número caía para 35% entre os que se colocaram à esquerda. Dos entrevistados que se posicionaram à esquerda, 64% optaram por Lula, apesar do apoio que havia, mesmo na esquerda, ao Plano Real. Em contrapartida, o número de eleitores de direita que escolheram Lula despenca para 14%.

Como é possível, diante desses dados, que um intelectual de primeira linha, como Fábio Wanderley Reis, sugira que os entrevistados acertaram por acaso? Cumpre mencionar que as relações citadas foram submetidas, sem exceção, a teste estatístico para verificar exatamente se as associações entre a autolocalização na escala e o voto estavam fora da margem de acaso. Os resultados dos testes, à disposição de todos no livro, foram inequívocos. Eles mostraram que as relações encontradas não eram casuais.

Para contornar a força das evidências apresentadas por mim, o resenhista recorreu a um artifício. Afirmou que os resultados poderiam decorrer do fato de eu não ter separado os eleitores que sabem explicar o que é esquerda e direita daqueles que não sabem fazê-lo. De acordo com o crítico, a minoria dos que sabem, ao votar de modo coerente, teria contaminado a aferição das associações. Caso fossem separados os que sabem dos que não sabem, ficaria demonstrado que a grande maioria, formada pelos que não sabem, revelaria absoluta falta de coerência. Pois bem, fiz o teste com dados da pesquisa Datafolha de março de 1990, e o resultado mostrou que a associação entre posicionamento e voto é fortemente significativa também entre os que não sabem verbalizar o que é esquerda e direita.

Mas como posso afirmar que essa associação revela algo sobre o voto se eu mesmo reconheço que a grande maioria não sabe o que quer dizer esquerda e direita? Eis a segunda crítica. Embora pareça uma observação dotada de bom senso, trata-se de outra recusa em apreciar os argumentos do livro. Definir esquerda e direita não é tarefa fácil. Qualquer observador medianamente informado da política sabe que há várias acepções possíveis para uma e outra. Tome-se, apenas a título de exemplo, o caso da direita no Brasil. Diante da pergunta o que é direita, um eleitor sofisticado poderia afirmar: direita é a corrente política que defende a liberdade. O analista talvez considerasse a resposta "correta", se imaginasse que o entrevistado estava a pensar na livre iniciativa. No entanto, dada a associação da direita brasileira com o regime militar recente, deveríamos também aceitar como certa uma resposta segundo a qual a direita seria a defensora da ordem, mesmo que a custo da liberdade. Portanto duas definições contraditórias do que seja direita revelam-se igualmente aceitáveis.

O conteúdo de esquerda e direita é relativamente variável e subjetivo. Como mostrou Giovanni Sartori -a quem eu teria lido mal, segundo o resenhista-, esquerda e direita são elementos tão usados na gramática política justamente por funcionarem como caixas vazias, nas quais é possível colocar sempre novos conteúdos. Mas, se são caixas vazias, qual é a sua utilidade, afinal?

Ocorre que esquerda e direita funcionam como sinalizadores de diferentes posicionamentos dos partidos e candidatos ao longo de um mesmo eixo. São úteis porque organizam, concentram e simplificam um feixe variável de conteúdos, muitas vezes percebidos vagamente pelo público de massa, que permitem aos candidatos, partidos e eleitores "conversarem" sobre as disputas democráticas. Por isso, de 80% a 90% dos eleitores reconhecem, de modo intuitivo, que há partidos e candidatos de esquerda, centro e direita. Mesmo que não consiga verbalizar com palavras próprias o significado dos termos, o eleitor percebe, por exemplo, que Lula estava à esquerda de Collor em 89 e de Fernando Henrique em 94.

O PT foi o primeiro partido abertamente de esquerda a disputar a Presidência com chances de vitória. Isso tornou a divisão ideológica mais explícita e difundida pelos meios de comunicação. Desse modo, não espanta que o eleitor intua quem está em que lugar na divisão espacial esquerda-direita. Os dados que apresento no livro a respeito são igualmente contundentes. As pesquisas que pedem ao eleitor que indique, na escala de um a sete, em que ponto se encontram os partidos brasileiros, mostram que os entrevistados tendem a reconhecer corretamente a posição relativa dos mesmos. Mas, quando questionada, grande parte dos entrevistados não sabe explicar o que é esquerda e direita.

Isso quer dizer que esquerda e direita são termos destituídos de conteúdo e, portanto, que a relação entre o autoposicionamento do eleitor e o voto, embora existente, seria irrelevante? Tal a terceira crítica.

Se o eleitor intui a divisão espacial que existe entre partidos e candidatos, se identifica com determinado ponto dentro da mesma escala e, finalmente, vota de modo coerente com o ponto em que se coloca no espectro ideológico, é evidente que a identificação ideológica configura um bom preditor do voto. Como insisto em meu livro, não se trata do único nem necessariamente do preditor mais importante. Todavia ele existe e, nas duas eleições que analisei, mostrou-se um dos melhores preditores do voto, mesmo quando, em 94, o Plano Real foi um importante determinante do sufrágio.

Devolvo, portanto, a pergunta ao meu crítico: mesmo aceitas as premissas acima -de que esquerda e direita estejam associadas a um conteúdo político frouxo, uma vez que os eleitores não sabem verbalizá-lo-, por que desconhecer a variável da identificação ideológica?

Não creio que o posicionamento à esquerda e à direita seja destituído de conteúdo para o eleitor. No último capítulo indico linhas de associação cujo aprofundamento, em novas pesquisas, poderia descobrir aspectos importantes dos sistemas de crença presentes no eleitorado brasileiro. Sugiro que o posicionamento à direita está vinculado, sobretudo nas camadas de baixa renda e escolaridade, a uma adesão à ordem, evidenciada pelo apoio a medidas repressivas contra manifestações oriundas da organização popular.

Por fim, longe de me furtar ao "diálogo adequado" com os estudos anteriores, deixo claro no livro que pretendo apenas aduzir uma peça ao quebra-cabeça do comportamento eleitoral no Brasil e não reinventar a roda. A menos que por "adequado" Reis entenda a mera repetição do que ele e sua geração descobriram com "argúcia e rigor", como está escrito no próprio volume resenhado. Por que tanto medo da esquerda e da direita?

André Singer é professor de ciência política na USP e repórter especial da Folha.

Palestinos sob sítio

Edward Said coloca a Palestina no mapa

Edward Said

Vol. 22 No. 24 · 14 December 2000

Tradução / [Este artigo faz referência a diversos mapas. O Mapa Um mostra a situação em Hebron hoje, com a cidade árabe dominada por assentamentos israelenses. O Mapa Dois segue a seqüência das transferências israelenses do território da Cisjordânia para a autonomia palestina entre 1994 e 1999. O Mapa Três oferece um quadro detalhado da Cisjordânia após o segundo envio de tropas israelenses no início de 2000. A situação demográfica atual de Jerusalém Oriental anexada pode ser vista no Mapa Quatro. O Mapa Cinco detalha as expropriações de terra na mesma parte da cidade, entre 1967 e 1999. Todos os mapas foram fornecidos pela Foundation for Middle East Peace, de Washington.]

Em 29 de setembro, um dia após Ariel Sharon, protegido por cerca de mil policiais e soldados israelenses, marchar para dentro do Haram al-Sharif (o “Santuário Nobre”), de Jerusalém, num gesto planejado para asseverar seu direito de, como israelense, visitar o local sagrado muçulmano, iniciou-se uma conflagração que continua quando escrevo estas linhas no final de novembro de 2000. O próprio Sharon não se arrepende e culpa a Autoridade Palestina por “incitação deliberada” contra Israel “como uma democracia forte” cujo “caráter judeu e democrático” os palestinos querem mudar. Ele foi ao Haram al-Sharif, escreveu no Wall Street Journal alguns dias depois, “para inspecionar e certificar-se de que todos têm liberdade de culto e livre acesso ao Monte do Templo”, mas não mencionou a sua enorme comitiva armada ou o fato de que a área foi isolada antes, durante e após a sua visita, o que dificilmente garante a liberdade de acesso. Também se esqueceu de dizer algo sobre a conseqüência de sua visita: no dia 29, o exército israelense matou oito palestinos a tiros. O que todos ignoraram, ademais, é que os habitantes originais de um lugar sob ocupação militar - o que Jerusalém Oriental tem sido desde que foi anexada por Israel em 1967 - têm o direito, pela lei internacional, a resistir por qualquer meio possível. Além disso, dois dos mais antigos e maiores santuários muçulmanos do mundo, que remontam a 1.500 anos atrás, foram, na suposição de arqueólogos, construídos no local do Monte do Templo – uma convergência de lugares religiosos que uma visita provocadora de um general israelense extremista nunca iria ajudar a resolver. Um general, vale a pena lembrar, que desempenhou um papel em várias atrocidades que remontam à década de 1950, e incluem Sabra, Chatila, Qibya e Gaza.2

Segundo a União de Comitês de Ajuda Médica Palestina, até o início de novembro de 2000, 170 pessoas haviam sido mortas e 6 mil, feridas; estes números não incluem 14 mortes de israelenses (oito delas soldados) e um número ligeiramente maior de feridos. Entre os palestinos mortos havia pelo menos 22 com menos de 15 anos e, segundo a organização israelense B’tselem, 13 palestinos cidadãos de Israel, mortos pela polícia israelense em manifestações dentro de Israel. Tanto a Anistia Internacional quanto a organização Human Rights Watch condenaram severamente Israel pelo emprego desproporcional da força contra civis; a Anistia publicou um relatório detalhando a intimidação, tortura e detenção ilegal de crianças árabes em Israel e Jerusalém. Parte da imprensa israelense foi consideravelmente mais informativa e direta em seus relatos e comentários sobre o que está acontecendo do que a mídia européia e dos Estados Unidos. Escrevendo no Ha’aretz em 12 de novembro, Gideon Levy observou com alarme que dos poucos membros árabes do Knesset (o parlamento israelense) a maioria foi punida por se opor à política de Israel para os palestinos: alguns foram substituídos nas comissões parlamentares, outros estão sendo julgados, e outros estão sendo interrogados pela polícia. Tudo isso, conclui, faz parte do “processo de demonização e deslegitimação que está sendo movido contra os palestinos dentro de Israel, assim como contra aqueles nos Territórios Ocupados”.

“A vida normal”, tal como existia para palestinos que vivem na Cisjordânia ocupada e na Faixa de Gaza, é agora impossível. Mesmo os mais ou menos 300 palestinos aos quais foi permitida liberdade de movimento e outros privilégios VIP, nos termos do processo de paz, já perderam essas vantagens, e, a exemplo dos mais ou menos três milhões restantes que agüentam o duplo peso da vida sob a Autoridade Palestina e o regime de ocupação israelense – sem mencionar a brutalidade dos milhares de colonos israelenses, alguns dos quais agem como “vigilantes” aterrorizando vilarejos e grandes cidades palestinas como Hebron – estão sujeitos a bloqueios, cercos e estradas com barricadas impossibilitando o deslocamento. Até Yasser Arafat tem de pedir permissão para deixar ou entrar na Cisjordânia ou Gaza, onde seu aeroporto é aberto e fechado à vontade pelos israelenses, e seu quartel tem sido bombardeado punitivamente por mísseis disparados por helicópteros. Quanto à circulação de mercadorias para dentro e fora dos territórios, está paralisada. Segundo o Escritório de Coordenação Especial das Nações Unidas nos Territórios Ocupados, o comércio com Israel representa 79,8% das transações dos palestinos; o comércio com a Jordânia, que vem em seguida, responde por 2,39%. O fato deste percentual ser tão baixo é atribuível diretamente ao controle israelense sobre a fronteira entre a Palestina e a Jordânia (além das fronteiras com a Síria, o Líbano e o Egito). Com o fechamento da fronteira com Israel, portanto, a economia palestina vem perdendo US$ 19,5 milhões por dia em média, o que equivale a três vezes a ajuda total recebida de fontes doadoras durante os primeiros seis meses do ano. Para uma população que continua a depender da economia israelense – graças a acordos econômicos firmados pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Oslo – isso significa um duro golpe. O que não diminuiu foi o ritmo de construção de assentamentos israelenses. Ao contrário, de acordo com o abalizado Relatório sobre os Assentamentos Israelenses em Territórios Ocupados (RISOT, em inglês), quase dobraram nos últimos anos. O Relatório acrescenta que “1.924 unidades de assentamentos foram iniciadas” desde o começo do regime “pró-paz” de Ehud Barak, em julho de 1999 – e existe, além disso, o programa em andamento de construção de estradas e de expropriação de propriedades para este fim, além da degradação da terra agrícola palestina, tanto pelo Exército quanto pelos colonos. O Centro Palestino de Direitos Humanos, com sede em Gaza, documentou “as limpezas” de olivais e cultivos de legumes pelo Exército Israelense (ou, como prefere ser conhecido, a Força de Defesa Israelense) perto da fronteira de Rafah, por exemplo, e em ambos os lados do bloco de assentamento de Gush Katif. Gush Katif é uma área de Gaza – cerca de 40% – ocupada por alguns milhares de colonos que podem regar seus jardins e encher suas piscinas, enquanto 1 milhão de habitantes palestinos da Faixa (800 mil deles são refugiados da ex-Palestina) vivem numa zona ressecada e sem água. De fato, Israel controla todo o abastecimento d’água dos Territórios Ocupados e reserva 80% dela para o uso pessoal de seus cidadãos judeus, racionando o resto entre a população palestina: esta questão nunca foi seriamente debatida durante o processo de paz de Oslo.

Qual o significado deste alardeado processo de paz? O que se alcançou? E, se é que foi um processo de paz, por que a condição miserável dos palestinos e o número de mortos aumentaram muito mais do que antes da assinatura dos Acordos de Oslo, em setembro de 1993? Por que, como observou o New York Times em 5 de novembro, a “paisagem palestina encontra-se agora decorada com as ruínas de projetos baseados na integração pacífica”? O que significa falar de paz se tropas e colonos israelenses ainda estão presentes em números tão grandes? Segundo o já citado Relatório RISOT, 110 mil judeus viviam em assentamentos ilegais em Gaza e na Cisjordânia antes dos Acordos de Oslo; de lá para cá, o número cresceu para 195 mil, uma cifra que não inclui os judeus – mais de 150 mil – que fixaram residência na Jerusalém Oriental árabe. O mundo foi iludido ou a retórica da “paz” foi na essência um gigantesco embuste?

Algumas das respostas a essas questões acham-se enterradas em maços de documentos assinados pelas duas partes sob os auspícios dos Estados Unidos, que só foram lidos pelo reduzido grupo de pessoas que os negociaram. Outras são simplesmente ignoradas pela mídia e governos que, é o que parece agora, se dedicaram a promover políticas desastrosas de informação, investimento e cumprimento da lei, independentemente dos horrores que aconteciam na prática. Poucos, entre os quais me incluo, tentaram relatar o que estava acontecendo, desde a rendição inicial dos palestinos, em Oslo, até o presente, mas, em comparação com a mídia convencional e os governos, para não falar dos relatórios e recomendações sobre a situação divulgados por grandes agências de financiamento, como o Banco Mundial, a União Européia e muitas fundações privadas – notadamente a Fundação Ford – que cooperam com a impostura, nossas vozes tiveram um efeito desprezível, exceto tristemente como profecia.

Os distúrbios das últimas semanas não se limitaram à Palestina e Israel. As demonstrações de sentimento antiamericano e antiisraelense nos mundos árabe e islâmico são comparáveis às de 1967. Manifestações de rua furiosas ocorrem diariamente em Cairo, Damasco, Casablanca, Túnis, Beirute, Bagdá e no Kuwait. Milhões de pessoas expressaram seu apoio à Intifada al-Aqsa, como ficou conhecida, assim como seu repúdio ao comportamento submisso de seu governos. A Cúpula árabe realizada em Cairo, em outubro, produziu as costumeiras denúncias grandiloqüentes de Israel e alguns dólares a mais para a Autoridade de Arafat, mas sequer o menor protesto diplomático – a retirada de embaixadores – foi feito por qualquer dos participantes. No dia posterior à Cúpula, o Abdullah da Jordânia, que estudou nos Estados Unidos e cujo conhecimento da língua árabe consta como tendo progredido até o nível de escola secundária, voou para Washington para assinar um acordo comercial com os Estados Unidos, o principal apoio de Israel. Após seis semanas de turbulência, Mubarak relutantemente retirou seu embaixador de Tel Aviv, mas ele depende grandemente dos US$ 2 bilhões de dólares que o Egito recebe de ajuda anual dos Estados Unidos e é improvável que vá muito além disso. A exemplo de outros líderes no mundo árabe, ele também precisa dos Estados Unidos para protegê-lo de seu povo. Enquanto isso, a raiva, humilhação e frustração árabes continuam a crescer, ou porque seus regimes são tão antidemocráticos e impopulares, ou porque as questões básicas – emprego, renda, nutrição, saúde, educação, infraestrutura – caíram abaixo de níveis toleráveis. Apelos em prol do Islã e as expressões generalizadas de indignação funcionam como substitutos de um sentido de cidadania e democracia participativa. Isso é um mau presságio para o futuro, tanto dos árabes, quanto de Israel.

Nos círculos ligados a relações internacionais durante os últimos 25 anos, o comentário é que a causa da Palestina morreu, o pan-arabismo é uma miragem, e os líderes árabes, a maioria desacreditados, aceitaram Israel e os Estados Unidos como parceiros, e no processo de se livrar de seu nacionalismo, conformaram-se à panacéia da desregulamentação numa economia global, cujo primeiro profeta no mundo árabe foi Anwar al- Sadat e cujo influente propagandista foi o colunista do New York Times e especialista em Oriente Médio, Thomas Friedman. Em outubro último, após sete anos elogiando em suas colunas o processo de paz acertado em Oslo, Friedman viu-se em Ramallah sitiado pelo Exército Israelense (e sob fogo). “A propaganda israelense de que os palestinos na maioria das vezes têm governo próprio na Cisjordânia é pura besteira,” anunciou. “É verdade que os palestinos controlam suas próprias cidades, mas os israelenses controlam todas as estradas que ligam essas cidades entre si e, portanto, todos os seus movimentos. O confisco israelense de terra palestina para mais assentamentos prossegue até hoje, sete anos depois de Oslo.” Conclui que apenas “um Estado Palestino em Gaza e na Cisjordânia” pode trazer a paz, mas nada diz sobre o tipo de Estado que seria. Nem fala nada sobre o fim da ocupação militar, mas isso tampouco fazem os documentos de Oslo. Por que Friedman nunca discutiu isso nos milhares de centímetros que publicou desde setembro de 1993, e por que mesmo agora ele nada diz que os eventos de hoje são o desfecho lógico de Oslo desafia o senso comum, mas isso é típico da falta de sinceridade que cerca o assunto.

O otimismo daqueles que se encarregaram de assegurar que a miséria dos palestinos fosse mantida afastada do noticiário parece ter desaparecido numa nuvem de poeira juntamente com a “paz” que os Estados Unidos e Israel se empenharam tanto em consolidar em seus próprios interesses estreitos. Ao mesmo tempo, a velha estrutura que sobreviveu à Guerra Fria está esfarelando lentamente com o envelhecimento das lideranças árabes, sem sucessores viáveis à vista. Mubarak até se recusou a nomear um vicepresidente, Arafat não tem nenhum sucessor claro; nas repúblicas Ba’ath “socialistas democráticas” do Iraque e Síria, assim como no Reino da Jordânia, os filhos assumiram – ou assumirão – no lugar dos pais, cobrindo o processo de autocracia dinástica com um remendo de legitimidade.

No entanto, chegou-se a um ponto crítico, e para isso a Intifada palestina é um sinal significativo. Pois ela é não apenas uma rebelião anticolonial do tipo visto periodicamente em Setif, Sharpeville, Soweto e em outros lugares, mas também mais um exemplo do descontentamento geral com a ordem pós-Guerra Fria (econômica e política) demonstrada nos eventos de Seattle e Praga. A maioria dos muçulmanos do mundo vê o levante como parte de um quadro mais amplo que inclui Sarajevo, Mogadício, Bagdá sob as sanções comandadas pelos Estados Unidos, e Chechênia. O que deve estar claro para todo governante, inclusive Clinton e Barak, é que o período de estabilidade garantido pela dominação tripartite de Israel, Estados Unidos e regimes árabes locais acha-se agora ameaçado por forças populares de magnitude incerta, direção desconhecida, e visão não nítida. Qualquer que seja a forma que assumam futuramente, será de uma cultura não oficial dos despossuídos, silenciados e desprezados. Muito provavelmente, também, trará em si as distorções de anos de política oficial do passado.

Enquanto isso, é correto dizer que a maioria das pessoas que ouvem frases como “as partes estão negociando,” ou “vamos voltar à mesa de negociação,” ou “você é meu parceiro de paz,” supuseram que exista paridade entre palestinos e israelenses e que, graças às corajosas almas de cada lado que se encontraram secretamente em Oslo, as duas partes finalmente estiveram acertando as questões que as “dividem”, como se cada uma tivesse um pedaço de terra, um território onde pudesse estar de frente para a outra. Isso é seriamente – na verdade, maliciosamente – enganador. Com efeito, a desproporção entre os dois antagonistas é imensa, em termos do território que controlam e das armas de que dispõem. O noticiário tendencioso oculta a extensão da disparidade. Considere o seguinte: citando um levantamento de editoriais publicados na grande imprensa americana, feito pela Liga de Anti-Difamação, o Ha’aretz de 25 de outubro constatou “uma tendência de apoio” a Israel, com 19 jornais expressando solidariedade a Israel em 67 editoriais, 17 fazendo uma “análise equilibrada”, e apenas nove “manifestando crítica aos líderes israelenses (particularmente Ariel Sharon), a quem acusavam de responsabilidade pela conflagração”. Em novembro, o relatório da Fairness and Accuracy in Reporting (Noticiário Imparcial e Exato) registrou que, das 99 notícias sobre a Intifada transmitidas pelas três maiores redes dos Estados Unidos, entre 28 de setembro e 2 de novembro, apenas quatro faziam referência aos “Territórios Ocupados”. O mesmo relatório chamou atenção para frases como “Israel (...) novamente se sente isolada e sitiada”, “os soldados israelenses sob ataque diário”, e, num confronto onde seus soldados foram obrigados a recuar, “os israelenses cederam território à violência palestina.” Fórmulas altamente parciais desse tipo são inseridas em comentários dos noticiários das redes, obscurecendo os fatos da ocupação e desequilíbrio militar: as Forças de Defesa de Israel têm usado tanques, helicópteros de ataque Cobra e Apache, mísseis, morteiros e metralhadoras pesadas, fornecidos pelos americanos e britânicos; os palestinos não possuem nada disso.

O New York Times só publicou um artigo de opinião de um palestino ou um árabe (e acontece de o autor apoiar os acordos de Oslo) numa avalanche de comentários editoriais favoráveis às posições dos Estados Unidos e Israel; o Wall Street Journal não publicou nenhum artigo nessa linha; nem o Washington Post. Em 12 de novembro, um dos mais populares programas de televisão dos Estados Unidos, o Sessenta Minutos da CBS, transmitiu uma seqüência que parecia planejada para deixar o Exército Israelense “provar” que o assassinato de Mohammad al-Dura, de 12 anos, símbolo do sofrimento palestino, foi orquestrado pela Autoridade Palestina. Foi dito que a Autoridade teria plantado o pai do menino na frente das posições das armas israelenses e levado para uma posição próxima a equipe de TV francesa que gravou o assassinato - tudo para provar um argumento ideológico.

A deturpação fez com que se tornasse quase impossível o público americano entender a base geográfica dos eventos, e este é um dos mais geográficos dos litígios. Não se pode esperar que ninguém acompanhe e, mais importante, retenha um quadro cumulativamente preciso das disposições ocultas que prevalecem em condições práticas, resultado de negociações, a maioria delas secretas, entre Israel e uma equipe palestina desorganizada, pré-moderna e tragicamente incompetente, sob o domínio de Arafat. Numa hora decisiva, as resoluções específicas - 242 e 338 - do Conselho de Segurança das Nações Unidas são agora esquecidas, tendo sido marginalizadas por Israel e pelos Estados Unidos. Ambas as resoluções estipulam inequivocamente que a terra adquirida por Israel como resultado da guerra de 1967 deve ser devolvida em troca da paz. O processo de Oslo começou jogando efetivamente essas resoluções na lata de lixo - e, por isso, foi muito mais fácil, após o fracasso da Cúpula de Camp David, em julho último, alegar, como o fizeram Clinton e Barak, que os palestinos eram os culpados pelo impasse, e não os israelenses, cuja posição continua sendo a de que os territórios conquistados em 1967 não devem ser devolvidos. A imprensa americana mencionou seguidamente a oferta “generosa” de Israel e a vontade de Barak em ceder parte de Jerusalém Oriental e algo entre 90 e 94% da Cisjordânia aos palestinos. Mas ninguém na imprensa americana ou européia definiu exatamente o que seria “cedido” ou de qual território da Cisjordânia ele estava “oferecendo” 90%. Toda a história era uma quimérica tolice, conforme Tanya Reinhart mostrou no Yediot Aharanot, o maior diário de Israel. Na matéria “A Farsa de Camp David” (13 de julho), ela informa que foram oferecidos 50% da Cisjordânia aos palestinos em cantões separados; 10% seriam anexados por Israel e nada menos do que 40% seriam deixados “para discussão”, para usar o eufemismo que designa a continuação do controle israelense. Se você anexa 10%, não desmonta nem interrompe os assentamentos (como fez Barak), recusase repetidamente a voltar às linhas de 1967 ou a devolver Jerusalém Oriental, decidindo, ao mesmo tempo, reter áreas inteiras como o Vale do Jordão, e assim cercar completamente os territórios palestinos de modo que eles não tenham fronteira com nenhum Estado a não ser com Israel, além de reter as estradas de “desvio”, de triste fama, e suas áreas adjacentes, os famosos “90%” caem rapidamente para algo entre 50-60%, cuja maior parte só vai ser discutida no futuro muito distante. Afinal de contas, mesmo o último envio de tropas israelenses, acertado nos encontros de Wye River Plantation, em 1998, e reconfirmado em Sharm el Sheikh, em 1999, ainda não aconteceu. É oportuno repetir que Israel é o único Estado do mundo sem fronteiras oficialmente declaradas. E se olharmos para os 50-60% em termos da antiga Palestina, veremos que correspondem a cerca de 12% da terra de onde os palestinos foram expulsos em 1948. Os israelenses falam em “ceder” esses territórios. Mas eles foram tomados por conquista e, num sentido estrito, a oferta de Barak só significaria que eles estariam sendo devolvidos, de modo algum na sua totalidade.

Para começar, alguns fatos. Em 1948 Israel tomou a maior parte do que era a Palestina histórica ou sob mandato, destruindo e despovoando 531 vilarejos árabes no processo. Dois terços da população foram expulsos: eles são os quatro milhões de refugiados de hoje. A Cisjordânia e Gaza, no entanto, ficaram com a Jordânia e o Egito, respectivamente. Ambos foram posteriormente perdidos para Israel, em 1967, e permanecem sob o seu controle até hoje, exceto algumas áreas que funcionam sob uma “autonomia” palestina altamente limitada – o tamanho e os contornos dessas áreas foram decididos unilateralmente por Israel, conforme especifica o processo de Oslo. Poucos percebem que, mesmo nos termos dos acordos de Oslo, as áreas palestinas com esta autonomia ou auto-governo não gozam de soberania: ela só pode ser decidida como parte das Negociações da Situação Final. Em outras palavras, Israel pegou 78% da Palestina em 1948 e os 22% restantes em 1967. Só esses 22% estão em questão agora, e eles excluem Jerusalém Ocidental (dos 19 mil dunams, os judeus possuíam 4.830 e os árabes, 11.190, o resto era terra do Estado), tudo cedido antecipadamente por Arafat a Israel em Camp David.3

Qual terra, então, Israel já devolveu até agora? É impossível detalhar isso de qualquer maneira direta – propositalmente impossível. É parte do gênio maligno de Oslo que mesmo as “concessões” de Israel foram tão fortemente oneradas com condições, qualificações e vinculações – tal como uma das propriedades fisicamente inatingíveis e interminavelmente adiadas de um romance de Jane Austen – que os palestinos não conseguem sentir que gozam de qualquer aparência de auto-determinação. Por outro lado, elas podem ser classificadas como concessões, possibilitando a qualquer um (inclusive à liderança palestina) dizer que certas áreas de terra estavam agora (na maioria) sob controle palestino. É o mapa geográfico do processo de paz que mostra, da maneira mais dramática, as distorções que vêm se acumulando e foram sistematicamente disfarçadas pelo discurso calculado de paz e negociações bilaterais. Ironicamente, em nenhuma das dezenas de notícias publicadas ou veiculadas desde o começo da crise atual foi fornecido um mapa para ajudar a explicar porque o conflito atingiu tamanha intensidade.

A estratégia dos acordos de Oslo foi redividir e subdividir um território palestino já dividido em três subzonas, A, B e C, de formas inteiramente planejadas e controladas pelo lado israelense, pois, conforme venho sublinhando há vários anos, os palestinos não tinham nenhum mapa, até recentemente. Eles não tinham nenhum mapa detalhado em Oslo; inacreditavelmente, tampouco havia nenhum indivíduo na equipe de negociação com suficiente familiaridade com a geografia dos Territórios Ocupados para contestar decisões ou apresentar planos alternativos. Daí as bizarras providências para subdividir Hebron após o massacre de 29 palestinos em 1994, na mesquita de Horahimi, por Baruch Goldstein – medidas tomadas para “proteger” os colonos, não os palestinos. O Mapa Um mostra como o núcleo da cidade árabe (120 mil habitantes) – 20% dela, de fato – está sob o controle de mais ou menos 400 colonos judeus, cerca de 0,03% do total, protegido pelo Exército Israelense.

O Mapa Dois mostra o primeiro de uma série planejada de recuos israelenses feitos em áreas largamente separadas, ou seja, não contíguas. Gaza é separada de Jericó por quilômetros e quilômetros de terra controlada por israelenses, mas ambas pertencem à área autônoma A, que, na Cisjordânia, limitava-se a 1,1% do território. O componente de Gaza da área A é muito maior principalmente porque, com sua terra árida e superpovoada com massas rebeldes, Gaza sempre foi considerada um peso para a ocupação israelense, que se contentava em se livrar de toda a terra, menos a terra agrícola de primeira em seu coração, os vários assentamentos, retidos até agora por Israel juntamente com o porto, as fronteiras, entradas e saídas. Os Mapas Dois, Três e Quatro (o mapa quatro foi apresentado por Israel como um mapa ideal de retirada na cúpula de Camp David, embora anunciado antes) mostram o ritmo de passo de tartaruga em que se permitiu a desafortunada Autoridade Palestina assumir o controle dos grandes centros populacionais (Área A); na Área B, Israel deixou a Autoridade policiar as principais áreas de vilarejos, perto de onde os assentamentos estavam constantemente em construção. Apesar das patrulhas conjuntas de oficiais palestinos e israelenses, Israel mantinha em suas mãos toda a segurança real da Área B. Na Área C, manteve todo o território para si, 60% da Cisjordânia, para construir mais assentamentos, abrir mais estradas e estabelecer áreas militares, todas elas – nas palavras de Jeff Halper - destinadas a montar uma matriz de controle da qual os palestinos nunca se veriam livres.4

Uma olhada em qualquer um dos mapas revela, não apenas que as várias partes da Área A são separadas umas das outras, mas que são cercadas pela Área B e, mais importante, pela Área C. Em outras palavras, os bloqueios e cercos que transformaram as áreas palestinas em pontos sitiados no mapa vêm sendo planejados há muito tempo e, pior ainda, a Autoridade Palestina conspirou para isso: aprovou todos os documentos relevantes desde 1994. Em outubro, Amira Hass, correspondente do Ha’aretz nos territórios palestinos, escreveu que em 1993 os dois lados “acertaram um período de cinco anos para a conclusão do novo envio de tropas e as negociações num acordo final. A liderança palestina concordou, repetidamente, em prorrogar o seu período de experiência, diante da perspectiva dos ataques terroristas do Hamas e das eleições israelenses. A ‘estratégia de paz’ e a tática de gradualismo adotada pela liderança foi, a princípio, apoiada pela maioria do público palestino, que anseia por normalidade” – e, penso, pelo fim real da ocupação, que, vale repetir, não foi mencionado em nenhum dos documentos de Oslo.

Prossegue a correspondente: “a Fatah (a principal facção da OLP) era a espinha dorsal do apoio à idéia de liberação gradual do jugo da ocupação militar. Seus integrantes eram os que vigiavam a oposição palestina, detinham suspeitos cujos nomes eram dados a eles por Israel, prendiam os que assinavam manifestos afirmando que Israel não pretendia renunciar a sua dominação sobre a nação palestina. A vantagem pessoal obtida por alguns desses integrantes da Fatah não basta para explicar o seu apoio ao processo: por muito tempo, eles acreditavam real e verdadeiramente que este era o caminho para a independência”.

Quando escreve “vantagem” Hass quer dizer os privilégios VIP que mencionei antes. Mas, conforme a correspondente salienta, estes homens eram também membros da “nação palestina”, com esposas, filhos e parentes que sofriam as conseqüências da ocupação israelense, e estavam fadados, em algum momento, a se perguntar se o apoio ao processo de paz não significava também apoio à ocupação. Conclui Hass: 

“Passados mais de sete anos, Israel detém controle administrativo e da segurança de 61,2% da Cisjordânia e cerca de 20% da Faixa de Gaza (Área C), e controle da segurança de outros 26,8% da Cisjordânia (Área B).”

Este controle é o que permitiu a Israel dobrar o número de colonos em 10 anos, ampliar os assentamentos, continuar sua política discriminatória  de reduzir quotas de água para 3 milhões de palestinos, impedir o desenvolvimento palestino na maior parte da área da Cisjordânia, e isolar uma nação inteira em áreas restritas, presa numa rede de estradas de desvio reservadas apenas aos judeus. Durante estes dias de restrição interna rigorosa de movimentos na Cisjordânia, pode-se ver como cada estrada foi cuidadosamente planejada para 200 mil judeus terem liberdade de movimento e cerca de 3 milhões de palestinos ficarem trancados em seus bantustões até se submeterem às demandas israelenses.

Ao que se deve acrescentar, a título de esclarecimento, que as principais vias aqüíferas para o abastecimento de água de Israel ficam na Cisjordânia; que a “nação inteira” exclui os 4 milhões de refugiados a quem é categoricamente negado o direito de retorno, muito embora qualquer judeu de qualquer lugar ainda desfrute do direito absoluto de “retorno” a qualquer momento; que a restrição de movimento é tão severa em Gaza quanto na Cisjordânia; e que os 200 mil judeus em Gaza e na Cisjordânia que gozam de liberdade de movimento, citados pela correspondente Hass, não incluem os 150 mil novos habitantes israelenses-judeus que foram trazidos para “judaizar” Jerusalém Oriental.

A Autoridade Palestina está presa num mecanismo espantosamente engenhoso, se bem que infrutífero a longo prazo, de comitês de segurança compostos pelo Mossad, a CIA e os serviços de segurança palestinos. Ao mesmo tempo, Israel e os membros do alto escalão da Autoridade Palestina operam monopólios lucrativos em materiais de construção, tabaco, petróleo etc (os lucros são depositados em bancos israelenses). Não apenas os palestinos estão sujeitos à intimidação pelas tropas israelenses, mas seus próprios homens participam deste abuso de seus direitos, ao lado de odiadas agências não palestinas. Estes comitês de segurança, em grande parte secretos, também possuem um mandato para censurar qualquer coisa que possa ser interpretada como “incitação” contra Israel. É claro que os palestinos não possuem tal direito contra incitações americanas ou israelenses.

O ritmo lento desse processo em curso é justificado pelos Estados Unidos e Israel como salvaguarda da segurança do segundo; nada se fala sobre a segurança palestina. Claramente, devemos concluir, conforme sempre estipulado pelo discurso sionista, que a própria existência dos palestinos, não importa quão confinados ou destituídos de poder estejam, constitui uma ameaça racial e religiosa à segurança de Israel. O que é mais extraordinário é que, em meio a tanta surpreendente unanimidade, no auge da crise atual, Danny Rabinowitz, antropólogo israelense, falou corajosamente no Ha’aretz (17 de outubro) do “pecado original” de Israel ao destruir a Palestina em 1948, o que, com poucas exceções, os israelenses preferiram ou negar ou esquecer completamente.

Se a geografia da Cisjordânia foi alterada em proveito de Israel, a de Jerusalém foi mudada inteiramente. A anexação de Jerusalém Oriental, em 1967, acrescentou 70 quilômetros quadrados ao Estado de Israel; outros 54 quilômetros quadrados foram surrupiados da Cisjordânia e acrescentados à área metropolitana, administrada por muito tempo pelo prefeito Teddy Kollek, o preferido dos liberais ocidentais, que, com seu vice, Meron Benvenisti, foi responsável pela demolição de centenas de casas palestinas em Haret al-Maghariba, para dar lugar à imensa praça em frente ao Muro da Lamentação.5 Desde 1967, Jerusalém Oriental foi sistematicamente judaizada, suas fronteiras, inflacionadas, com a implantação de enormes projetos habitacionais e novas estradas e desvios construídos de modo a fazer com que o retorno seja virtual e inequivocamente impossível e, para a população árabe intimidada e declinante da cidade, transformada em tudo, menos habitável. Como disse o vice-prefeito Abraham Kehila em julho de 1993, “Eu quero que os palestinos abram os olhos para a realidade e compreendam que a unificação de Jerusalém sob a soberania de Israel é irreversível.” (Ver o Mapa Cinco.) Recentes disparos de armas leves contra o novo assentamento de Gilo, em Jerusalém, provenientes do vilarejo palestino vizinho de Beit Jala, teve cobertura total da mídia, mas ninguém mencionou que Gilo foi construída em terra confiscada de Beit Jala. Poucos palestinos esquecerão seu passado tão facilmente.

A cúpula de Camp David em julho fracassou porque Israel e os Estados Unidos apresentaram todas as medidas territoriais que vim discutindo aqui – apenas ligeiramente modificadas para devolver aos palestinos duas “áreas naturais”, eufemismo para deserto, de modo a aumentar a sua parte da área total – como a base para a solução final do conflito palestino-israelense. As reparações foram, com efeito, rejeitadas pelos israelenses, embora essa idéia não seja inteiramente estranha a muitos judeus. Não vi nenhuma menção na mídia ocidental de uma extensa matéria sobre Camp David escrita por Akram Haniyeh, chefe de redação do diário Al-Ayyam, de Ramallah, e um fiel seguidor da Fatah que, desde sua deportação pelos israelenses em 1987, tem estado próximo a Arafat. Haniyeh deixa claro que, do ponto de vista palestino, Clinton simplesmente reforçou a posição israelense, e que, para salvar sua carreira, Barak queria uma conclusão rápida para questões críticas, como os refugiados e Jerusalém, assim como uma declaração formal de Arafat de fim definitivo do conflito. (Desde então Barak convocou eleições antecipadas como meio de afastar uma derrota parlamentar total.) O relato envolvente de Haniyeh sobre o que aconteceu deve sair logo em tradução inglesa na revista Journal of Palestine Studies, de Washington. Mostra que a posição israelense “sem precedentes” sobre Jerusalém foi na verdade talhada para a direita israelense – em outras palavras, que Israel reteria soberania definitiva até sobre a mesquita al- Aqsa. “A posição israelense,” diz Haniyeh, “era ‘faturar’ tudo” – e não dar nada em troca. Israel teria a “assinatura de ouro” de Arafat, o reconhecimento final e “a preciosa promessa de ‘fim do conflito’”. Tudo isso sem uma devolução completa do território ocupado, um reconhecimento de soberania total ou um reconhecimento da questão dos refugiados.

Desde 1967 os Estados Unidos desembolsaram mais de US$ 200 bilhões de dólares em ajuda financeira e militar incondicional a Israel, enquanto ofereciam apoio político geral que permitia a Israel fazer o que quisesse. A Grã-Bretanha, cuja política externa é uma cópia carbono da de Washington, também fornece equipamentos militares que vão diretamente para Cisjordânia e Gaza, para facilitar o assassinato de palestinos. Nenhum Estado recebeu tanta ajuda externa quanto Israel e nenhum Estado (afora os próprios Estados Unidos) desafiou a comunidade internacional em tantas questões por tanto tempo. Se Al Gore se tornar presidente, essa política permaneceria inalterada.6 Gore é intransigentemente pró-Israel e um associado próximo de Martin Peretz, o principal defensor nos Estados Unidos da posição de Israel pela rejeição e com retórica anti-árabe, e dono da publicação New Republic. Pelo menos George W. Bush fez um esforço durante a campanha para tratar de preocupações árabe-americanas, mas, a exemplo da maioria dos ex-presidentes republicanos, ele seria apenas ligeiramente menos pró-Israel do que Gore.

Por sete anos, Arafat vinha assinando acordos do processo de paz com Israel. Pretendia-se obviamente que Camp David fosse o último. Ele rejeitou, sem dúvida, porque percebera a monstruosidade que já havia assinado (eu gostaria de pensar que seus pesadelos são feitos de viagens intermináveis pelos desvios da Área C); sem dúvida, também, porque estava ciente de quanta popularidade havia perdido. Esqueça a corrupção, o despotismo, o desemprego em disparada, agora de até 25%, a pobreza absoluta da maioria do seu povo: ele finalmente compreendeu que, tendo sido mantido vivo por Israel e pelos Estados Unidos, seria jogado de volta para seu povo sem Haram al-Sharif e sem um Estado verdadeiro, ou mesmo a perspectiva de um Estado viável. Os jovens palestinos se cansaram e, a despeito dos débeis esforços de Arafat de controlá-los, ocuparam as ruas para jogar pedras e usar estilingues contra os Merkavas e Cobras dos israelenses.

Os fatos de que Israel dependia no passado, a ignorância, cumplicidade ou preguiça de jornalistas fora de Israel, são agora contrabalançados pelo volume fantástico de informações alternativas disponíveis na Internet. Ciberativistas e hackers abriram um vasto e novo reservatório de material que qualquer um com um mínimo de instrução pode explorar. Há relatos não apenas de jornalistas da imprensa britânica (não existe nenhum equivalente na mídia do “sistema” dos Estados Unidos), mas também da imprensa israelense e árabe com sede na Europa; existem pesquisas realizadas por pesquisadores individuais e informações compiladas em arquivos, organizações internacionais e agências das Nações Unidas, assim como de coletivos de ONGs na Palestina, Israel, Europa, Austrália e América do Norte. Aqui, como em muitos outros casos, a informação confiável é o maior inimigo da opressão e da injustiça.

O aspecto mais desmoralizante do conflito sionista-palestino é a oposição quase total entre os pontos de vista israelense e palestino convencionais. Fomos despossuídos e desenraizados em 1948, eles pensam que conquistaram a independência e que os meios foram justos. Lembramos que a terra que deixamos e os territórios que tentamos liberar da ocupação militar fazem todos parte de nosso patrimônio nacional; eles pensam que é deles por decreto bíblico e filiação da diáspora. Hoje, por qualquer padrão concebível, somos as vítimas da violência; eles pensam que eles são as vítimas. Não há simplesmente nenhum terreno comum, nenhuma narrativa comum, nenhuma área possível para a reconciliação sincera. Nossas reivindicações são mutuamente exclusivas. Mesmo a noção de uma vida comum compartilhada no mesmo pedaço de terra é impensável. Cada um de nós pensa em separação, talvez em isolar e esquecer o outro.

A maior pressão moral para mudar é sobre os israelenses, cujas ações militares e imprudente estratégia de paz derivam de uma preponderância da força do seu lado, e uma falta de vontade de ver que estão acumulando anos de ressentimento e ódio por parte dos muçulmanos e árabes. Daqui a 10 anos haverá paridade demográfica entre árabes e judeus na Palestina histórica: o que acontecerá então? Os envios de tanques, os bloqueios de estradas e as demolições de casas poderão continuar como antes? Não faria sentido um grupo de historiadores e intelectuais respeitados, compostos igualmente de palestinos e israelenses, realizar uma série de encontros para tentar acordar um pouquinho de verdade sobre este conflito, para ver se as fontes conhecidas podem orientar os dois lados para concordar sobre um conjunto de fatos – quem tirou o que de quem, quem fez o que com quem, e assim por diante – que, por sua vez, podem apontar uma saída do impasse atual? Talvez seja muito cedo para uma Comissão de Verdade e Reconciliação, mas algo como um Comitê de Verdade Histórica e Justiça Política seria apropriado.

Está claro para todos que o velho esquema de Oslo, que tantos danos causou, não é mais viável (uma recente pesquisa de opinião pública, conduzida pela Universidade Bir Zeit, mostra que apenas 3% da população palestina quer voltar às velhas negociações) e que a equipe de negociação palestina liderada por Arafat não pode mais centralizar o poder, muito menos a nação. Todos sentem que estão fartos: a ocupação durou tempo demais, as conversações de paz se arrastaram com poucos resultados, a meta, se era a independência, não parece mais próxima (agradeça a Rabin, Peres e seus equivalentes palestinos por este fracasso), e o sofrimento do povo comum foi maior do que o suportável. Daí o arremesso de pedras nas ruas, mais outra atividade inútil, com suas próprias conseqüência trágicas. A única esperança é continuar tentando confiar numa idéia de coexistência entre dois povos numa mesma terra. No momento, no entanto, os palestinos estão precisando desesperadamente de orientação e, sobretudo, proteção física. O plano de Barak de punir, conter e sufocá-los já apresentou resultados calamitosos, mas não consegue submetê-los, como ele e seus mentores americanos supõem. Por que é que os israelenses não percebem - como alguns já perceberam - que uma política de brutalidade contra árabes numa parte do mundo contendo 300 milhões de árabes e 1,2 bilhão de muçulmanos não tornará o Estado judeu mais seguro?

Notas

2 Gostaria de agradecer a Shifra Stern, Ali Abunimah, Andrew Rubin, Mostapha Barghuti, Ibrahim Abu-Lughod, Linda Butler, Sara Roy, Raji Sourani, Noam Chomsky e Jeffrey Aronson pela ajuda neste
artigo. O livro Reflections on Exile (Reflexões sobre o Exílio) deve sair no ano que vem pela Granta, no Reino Unido, e pela Harvard, nos Estados Unidos

3 Estes dados foram extraídos do livro Salim Tamari (org.), Jerusalem 1948: The Arab neighbourhoods and their fate in the war, Institute of Jerusalem Studies, 1998.

4 Halper escreveu os estudos mais impressionantes sobre o planejamento territorial israelense durante o processo de Oslo; ver, por exemplo, seu estudo da rodovia trans-Israel “The road to apartheid”, News from Within, mai. 2000, e “The 94 per cent solution: a matrix of control”, Middle East Report, n. 216, 2000. O geógrafo holandês Jan de Jong, autor de dois dos mapas reproduzidos aqui, também fez um trabalho importante nessa área.

5 Um relato ponderado da era dourada de Kollek é o de Amir Cheshin, Bill Hutman e Avi Melamed. Separate and unequal: The inside story of Israeli rule in East Jerusalem, Nova York, Harvard, 1999.

9 de setembro de 2000

A razão do eleitor

Estudo pretende demonstrar peso da ideologia nas eleições brasileiras

Fábio Wanderley Reis


Este volume de André Singer, fruto de tese de doutorado apresentada ao departamento de ciência política da Universidade de São Paulo em 1998, é um estudo de natureza empírica, tendo seu cerne no exame de dados coletados por institutos como DataFolha e Ibope, por ocasião das eleições presidenciais de 1989 e 1994. A contribuição central que o livro pretende trazer é bem simples e clara.

As pesquisas acadêmicas do processo eleitoral até aqui desenvolvidas no Brasil tendiam ou a deixar de lado a variável correspondente ao contraste entre esquerda e direita ou a considerá-la em termos das posições adotadas pelos eleitores quanto a questões como intervencionismo estatal, nacionalismo e outras normalmente associadas a ela. Já o estudo de Singer usa dados sobre a maneira pela qual os próprios eleitores se situam em resposta a perguntas diretas sobre a sua posição na escala que vai da esquerda à direita. O resultado é que os dados mostram a existência de correlação entre a autocolocação como esquerdistas ou direitistas, por parte das pessoas entrevistadas, e seu voto nas eleições mencionadas.

Assim, os votos em Lula tendem a concentrar-se entre os que se definem como de esquerda, enquanto os votos em Collor e Fernando Henrique Cardoso se concentram entre os que se definem como de direita ou de centro.

Eleição e ideologia

A grande indagação é o significado ou alcance a atribuir a essa verificação. A leitura que faz o próprio Singer de seus dados vai na direção de destacar, como se resume na orelha do livro, que "a ideologia está muito mais presente na decisão eleitoral no Brasil do que é habitual imaginar". É admissível, por certo, a sugestão de alguma "ideologização" crescente que trazem outros aspectos dos dados, bem como a intensificação da nitidez do confronto esquerda-direita como consequência da afirmação do PT no nível da disputa presidencial e da introdução da polarização própria do segundo turno.

Matéria recente da Folha (de 16/8) mostrava também que a distribuição de votos entre "esquerda" e "direita", tal como os eleitores revelam percebê-las em pesquisas eleitorais, aproxima-se das proporções de deputados federais pertencentes aos partidos percebidos como situando-se em cada categoria. Contudo serão indícios como esse suficientes, em combinação com as constatações de Singer, para considerar "ideológico" o eleitorado brasileiro ou ver a presença forte da ideologia no condicionamento da decisão eleitoral?

Em pesquisas anteriores que trataram de utilizar a escala esquerda-direita, a razão para deixá-la de lado foi a constatação de que a enorme maioria dos eleitores brasileiros simplesmente não conhece o significado dessas categorias. Em projeto que eu mesmo coordenei, por exemplo, dados coletados em 1991/92 junto a uma amostra do eleitorado de Belo Horizonte e a trabalhadores paulistas e mineiros mostram níveis de desconhecimento que alcançam 90% ou mais.

Diante da importância atribuída por Singer à identificação com esquerda e direita, somos levados a pensar que seus dados neguem ou corrijam, de alguma forma, essa constatação. Ao contrário, eles a corroboram: Singer nos informa (com alguma demora: pág. 142), referindo-se a dados por ele utilizados, não só que mais de 60% dos entrevistados declaram diretamente não saber o que as categorias significam ou dão respostas inteiramente equivocadas à pergunta correspondente, mas também que outros 20% as assimilam a ser contra ou a favor do governo, resposta igualmente errada que ele, com leniência, decide tratar como correta.

Ora, um pouco de sensibilidade metodológica desperta a atenção para um problema evidente. Trata-se da possibilidade de que a correlação observada entre a decisão de voto e a opção por esquerda ou direita (que não é lá tão intensa, com os próprios dados de André Singer mostrando que a preferência ou identificação partidária é muito mais importante para o voto) não seja senão a combinação de duas coisas: o fato de que a minoria que sabe o significado das categorias e se identifica com uma ou outra vota de acordo com sua identificação, o que é banal; e o fato de que os eleitores entrevistados, que ignoram o significado das categorias e se colocam às cegas numa ou noutra, têm uma chance razoável de estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autocolocação na escala esquerda-direita.

Do ponto de vista da manipulação analítica a ser feita dos dados, daí resulta uma recomendação: a de tratar de observar a maneira como se comporta a correlação em questão, quando se controla ou mantém constante o conhecimento do eleitor sobre o significado de esquerda e direita. Naturalmente, cabe esperar que, se separarmos os que sabem o que essas categorias significam daqueles que não o sabem, a correlação inicial do voto com a identificação esquerda-direita se intensificará entre os que sabem, enquanto se reduzirá ou eventualmente desaparecerá entre os que não sabem.

Singer prescinde dessa operação simples, abrindo mão de assim esclarecer melhor, no plano do processamento dos próprios dados, o sentido da correlação encontrada (apesar de que o livro contém, na seção 3.5, tabulações e análises "trivariadas" ou tridimensionais a propósito de como se combinam o efeito da "ideologia" e o do apoio ao Plano Real sobre o voto de 1994).

"Sentimento" ideológico

Mas a operação seria crucial, já que o autor sustenta a posição sibilina segundo a qual a correlação entre o voto e a "ideologia", tomada esta última em termos de adesão à "esquerda" ou "direita" em circunstâncias em que a maior parte do eleitorado ignora o significado dessas categorias, indicaria a existência de um "sentimento" ideológico de natureza "intuitiva"... A clara implicação, não verificada e de plausibilidade duvidosa, é que, se excluída a minoria informada, a correlação não seria afetada de maneira relevante, continuando a ocorrer distribuição significativamente diferente da que resultaria da mera correspondência casual entre voto e identificação "ideológica".

De acordo com Singer, sua interpretação enigmática teria respaldo em certa perspectiva na literatura internacional relativamente recente sobre o comportamento eleitoral. Com efeito, encontra-se nessa literatura a idéia do papel de "imagens" mais ou menos difusas dos partidos na decisão dos eleitores, além da velha idéia de Anthony Downs segundo a qual a ideologia permite ao eleitor economizar na obtenção de informações (embora a idéia de Downs não remeta por força à concepção do eleitor cognitivamente rústico e ignorante, mas antes à daquele que se furta deliberadamente às complicações e aos vaivéns das conjunturas mutáveis).

Contudo, apesar das posições confusas de autores em que Singer encontra apoio mais direto (como T. Levitin e W. Miller em texto de 1979), os analistas mais sofisticados, como Giovanni Sartori, não deixam de apontar enfaticamente a conexão dessas "imagens" com elementos intelectuais e o caráter de síntese cognitiva da percepção de questões complexas que elas podem adquirir.

Sartori é mal lido por Singer, que o invoca para assimilar (pág. 37) "identificação ideológica" com imagem e esta com a idéia de um eleitorado "cognitivamente pouco estruturado".

Na própria passagem de Sartori citada por Singer a respeito, entretanto, a importância das imagens partidárias para o voto aparece condicionada a que a política "se desenvolva", o eleitor adquira "capacidade de abstração" e o sistema partidário seja estruturado de modo efetivo por partidos de massas.

Na verdade, a propósito da comparação das orientações partidário-eleitorais na América do Norte e na Europa, Sartori relaciona mesmo explicitamente a "capacidade" (note-se bem) de situar-se na escala esquerda-direita a "populações de elite", tais como os estudantes universitários (e o eleitorado europeu em geral), embora sustente que se pode atingir o ponto em que o simbolismo emocional das imagens ideológicas sobrepuje sua função cognitiva (vejam-se, por exemplo, as págs, 341 e 354, nota 55, de "Parties and Party Systems").

Naturalmente, uma perspectiva análoga à de Sartori será indispensável se quisermos ser fiéis à complexidade da idéia de ideologia que, além do componente emocional ou de identificação e antagonismo, esteve sempre associada com certa visão doutrinária estruturada de modo mais ou menos rico e sofisticado.

Sem falar de Marx e de coisas como o condicionamento do acesso à "consciência de classe" por fatores intelectuais ligados à transformação das condições objetivas, ou da conhecida "estruturação ideológica" de Philip Converse, seria possível lembrar, por exemplo, a cuidadosa revisão do tema da ideologia realizada por Robert Putnam muitos anos atrás ("Studying Elite Political Culture", 1971), na qual o núcleo da noção de "política ideológica" surge como remetendo ao papel das idéias na política, enquanto o "estilo ideológico" é caracterizado por traços como a tendência a raciocinar politicamente em termos abstratos e teóricos e a referência a ideologias específicas ou a utopias de algum grau de coerência. Nessa ótica, a posição de Singer acaba por sugerir o oxímoro de uma "ideologia não-ideológica", paradoxo, aliás, utilizado quase nesses termos em avaliação do trabalho de Levitin e Miller citada com aprovação tácita por ele (pág. 35).

Seja como for, o componente cognitivo da ideologia desaparece na perspectiva de André Singer. Daí que o eleitor que sua análise levaria a classificar como "ideológico" possa corresponder igualmente a qualquer dos dois casos seguintes: em primeiro lugar, o do eleitor sofisticado que, ao decidir como votar, traz seus valores à avaliação de como problemas diversos da conjuntura se articulam com um diagnóstico informado do próprio sistema sociopolítico geral em que vive e atua; em segundo lugar, o do eleitor tosco que ouviu cantar o galo de "esquerda" e "direita", teve sua simpatia por uma ou outra despertada por motivos espúrios e projeta sobre partidos ou candidatos os traços que sua desinformação lhe dita como cabíveis.

Nesse segundo caso, "esquerda" e "direita" não têm sequer a consistência e o interesse da contraposição singela entre "ricos" e "pobres", que estudos anteriores há muito nos mostram em operação no eleitorado popular brasileiro (que certamente "sabe" o que significa ser rico ou ser pobre) e da qual continua a valer-se o nosso velho populismo: haverá aí algo relevante para as verificações que Singer relata? Isso permite assinalar que o trabalho de Singer furta-se inteiramente ao diálogo adequado com estudos brasileiros anteriores em que, como nos de minha própria autoria, são perseguidos os matizes de identificações políticas diversas e estáveis que, justamente, "diferem" em sua articulação com os fatores de maior ou menor sofisticação intelectual e com a capacidade de apropriada compreensão de questões políticas específicas ("issues") de natureza variada.

O volume de André Singer traz contribuições interessantes em alguns aspectos, sobretudo com respeito às circunstâncias das eleições de 1989 e 1994. Em seu ponto central, no entanto, ele redunda em erigir simplismos conceituais e metodológicos em achado importante e em convidar-nos a esquecer nuances do jogo político-eleitoral brasileiro que há tempos, com esforço, chegamos a apreender.

Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro
André Singer
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4008)
204 págs., R$ 25,00

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor na Universidade Federal de Minas Gerais.

31 de agosto de 2000

Estados Unidos, "Estado-bandido"

Em junho passado, o Departamento de Estado em Washington excluiu o termo "estado-pária" de sua linguagem diplomática, em favor da categoria mais vaga de "estado sob preocupação", com o objetivo de ter maior flexibilidade em suas relações com os Estados assim designada. Reservada para sete países muito específicos (Coreia do Norte, Cuba, Iraque, Irã, Líbia, Sudão e Síria), a expressão "estado pária", que pode ser traduzida como Estado bandido, Estado fora da lei ou mesmo Estado pária, referia-se a países que Washington acreditavam que apoiavam o terrorismo e, portanto, estavam unilateralmente sujeitos a sanções.

Noam Chomsky



Tradução / O conceito de “Estado-bandido” [1] ou Estado fora-da-lei teve, nos últimos tempos, um papel primordial na análise e na estratégia política norte-americana. O exemplo mais conhecido [2] é a crise iraquiana, que dura exatamente há dez anos (a invasão do Kuait pelo Iraque data de 1o de agosto de 1990). Na época, Washington e Londres decretaram ser o Iraque um “Estado-bandido”, que constituía uma ameaça aos seus vizinhos e aos demais países; uma “nação fora-da-lei”, dirigida por uma reencarnação de Hitler, e que devia ser mantida em xeque pelos guardiães da ordem internacional: os Estados-Unidos e seu fiel escudeiro britânico.

A característica mais interessante deste debate sobre os “Estados-bandidos” é precisamente nunca ter ele acontecido. As discussões ficam circunscritas a limites que impedem a formulação de uma resposta evidente: que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha devem agir de acordo com suas leis e com os tratados internacionais que assinaram.

O enquadramento legal pertinente ao caso é baseado na Carta das Nações Unidas, fundamento do direito internacional, e, para os Estados Unidos, na Constituição norte-americana,. A Carta estipula que “uma vez constatada a existência de uma ameaça contra a paz, de uma ruptura da paz ou de um ato de agressão, o Conselho de Segurança pode decidir as medidas a serem tomadas que não impliquem no uso da força armada. Caso tais medidas se revelem inadequadas, o Conselho poderá empreender qualquer ação que julgue necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais”.

A única exceção admitida está no Artigo 51: “Nenhuma disposição da presente Carta causa prejuízo ao direito natural de legítima defesa, individual ou coletiva, caso um país membro das Nações Unidas seja objeto de uma agressão armada, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais.”

Existem, portanto, vias legítimas de recurso para fazer frente às diversas ameaças que pesam contra a paz mundial, e nenhum Estado tem autoridade para agir por sua própria conta, através de medidas unilaterais. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha não são exceções à regra, mesmo que tivessem as mãos limpas, o que está longe de ser o caso.

Os “Estados-bandidos” não aceitam tais condições: como o Iraque de Saddam Hussein, por exemplo, ou os Estados Unidos. Dessa forma, por ocasião do primeiro confronto com o Iraque, a atual secretária de Estado Madeleine Albright, que na época era embaixadora dos Estados Unidos junto à Organização das Nações Unidas (ONU), declarou sem constrangimento ao Conselho de Segurança: “Agiremos de forma multilateral, quando pudermos, e unilateralmente, quando julgarmos necessário”, pois “consideramos a área do Oriente Médio de vital importância para os interesses nacionais dos Estados Unidos.”

"Quando, onde e como eles decidem"

Essa posição foi reiterada pela secretária de Estado em fevereiro de 1998, quando o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, se encontrava numa missão diplomática em Bagdá: “Nós lhe desejamos boa sorte, e quando ele voltar veremos se o que ele traz é compatível com nossos interesses nacionais.” Quando Annan anunciou que fora alcançado um acordo com Sadam Hussein, o presidente William Clinton declarou, por sua vez, que se o Iraque não se conformasse — sendo Washington o único juiz da questão —, “todo o mundo compreenderia que os Estados Unidos e, assim espero, todos os nossos aliados, teríamos o direito unilateral de responder no momento, no lugar e da maneira da nossa escolha”.

O Conselho de Segurança da ONU endossou por unanimidade o acordo assinado por Annan, rejeitando a exigência de Londres e Washington de serem autorizados a utilizar a força, caso o acordo não fosse cumprido. Nessa hipótese, a resolução do Conselho indicava que o Iraque se exporia “às mais graves conseqüências”, sem maior precisão. O Conselho decidiu ainda permanecer no controle da situação. Nos termos da Carta das Nações Unidas, tratava-se exclusiva e tão-somente do Conselho de Segurança. [3]

Senhores da guerra

Washington fez uma leitura completamente diferente desse texto, que no entanto nada tem de ambíguo. Segundo o embaixador William Richardson, o acordo alcançado “não impedia o uso unilateral da força” e os Estados Unidos conservavam o direito legal de atacar Bagdá quando bem entendessem. Clinton, por sua vez, declarou que a resolução do Conselho de Segurança lhe “conferia autoridade para agir” — por meios militares, precisou seu assessor de imprensa — em caso de desrespeito por parte do Iraque dos compromissos assumidos.

No Congresso, certos eleitos consideraram que esta posição oficial ainda era por demais respeitosa do direito nacional e internacional. O republicano Trent Lott, por exemplo, líder da maioria no Senado, denunciou o governo de Clinton por ter “subcontratado” sua política externa “a outros” — quer dizer, ao Conselho de Segurança. Seu colega John Kerry, outrora “pomba da paz”, acrescentou que a invasão do Iraque pelos Estados Unidos seria “legítima”, caso Saddam Hussein “se obstinasse em violar as resoluções da ONU”.

Desprezo pelo direito internacional

O desprezo pela primazia do direito está profundamente enraizado na cultura intelectual e nas práticas norte-americanas. Basta recordar, entre outros exemplos, a reação de Washington à sua condenação pela Corte Internacional de Justiça de Haia, em 1986. Os Estados Unidos foram então condenados por “uso ilegal da força” contra a Nicarágua sandinista, intimados a por fim às suas atividades clandestinas a serviço dos “Contra” anti-sandinistas, e ainda a pagar indenizações ao governo legal de Manágua. [4]

Essa decisão da mais alta instância judiciária internacional provocou um furacão de protestos nos Estados Unidos. A Corte foi acusada de ter-se “desacreditado”, e seu parecer, julgado indigno de ser publicado, não foi absolutamente levado em conta. Muito pelo contrário: a maioria democrata no Congresso imediatamente autorizou a liberação de novos fundos para os terroristas do “Contra”. Numa declaração de abril de 1986, o secretário de Estado George Schultz havia formulado de maneira clara a doutrina norte-americana sobre a questão: “A palavra negociação é um eufemismo para capitulação, se a sobra do poder não se projeta sobre o campo de diálogo”, explicou, condenando os que defendiam “meios utópicos, legalistas, tais como a mediação por terceiros, a ONU e a Corte de Haia, sem considerar na equação o elemento poder.”

A "agressão interna"

O desprezo escancarado pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas é particularmente revelador. Tivemos um exemplo muito claro depois dos acordos de 1954 que puseram fim à primeira guerra da Indochina, conduzida pela França. Foram considerados um “desastre” por Washington, que logo se dedicou a sabotá-los: o Conselho Nacional de Segurança decidiu secretamente que “em caso de rebelião ou de subversão comunistas locais que não constituíssem ataque armado”, os Estados Unidos considerariam o uso da força, inclusive contra a China, identificada como “a fonte da subversão”. O mesmo documento preconizava a re-militarização do Japão e a transformação da Tailândia no “ponto focal das operações clandestinas e de guerra psicológica no Sudeste asiático”, [5] especialmente na Indochina, ou seja, Vietnã. [6] Posteriormente, o governo norte-americano iria dar a sua definição do conceito de agressão, incluindo o “combate político ou a subversão” — entenda-se: por parte de outros países, que não eles próprios. É o artifício utilizado pelo senador democrata Adlai Stevenson, que invocou uma “agressão interna” para justificar a escalada militar do presidente John Kennedy que iria levar a um ataque de grande envergadura no Sul da península e, conseqüentemente, à longa guerra do Vietnã.

Para justificar diante do Conselho de Segurança a invasão do Panamá por tropas norte-americanas em dezembro de 1989, o embaixador Thomas Pickering invocou o artigo 51 da ONU: tratava-se, segundo ele, de impedir que o território desse país “fosse utilizado como base para o tráfico de drogas destinadas aos Estados Unidos”. Entre a “opinião esclarecida” ninguém contradisse essa interpretação.

O direito à “legítima defesa”

Em junho de 1993, o presidente Clinton alcançou grande sucesso no Congresso e na imprensa quando ordenou um ataque de mísseis contra o Iraque, ataque que deixou grande número de vítimas civis. Os comentadores ficaram particularmente impressionados com o recurso de Albright ao famoso artigo 51: os bombardeios constituíam “um ato de legítima defesa contra um ataque armado”, disse ela, referindo-se a uma pretensa tentativa de assassinato contra o presidente George Bush, ocorrida dois meses antes! Responsáveis pela administração, expressando-se em anonimato, informaram os jornalistas que “esse julgamento sobre a culpabilidade do Iraque baseava-se em provas e análises circunstanciais, e não em informações concretas” — o que não impediu que a imprensa saudasse com unanimidade a utilização do famoso artigo 51. Na Câmara dos Comuns, na Grã-Bretanha, o secretário de Relações Exteriores, Douglas Hurd, também defendeu esse “exercício justificado e comedido do direito à legítima defesa”.

Um tal balanço parece dar razão a todos os que, mundo afora, se preocupam com a existência de “Estados-bandidos”, prontos a usar a força em nome de um “interesse nacional” definido somente pelos jogos de poder internos; e com a existência ainda mais inquietante de “Estados-bandidos” que se erigem em árbitros e carrascos em escala planetária (leia, nesta edição, o artigo de Eduardo Galeano).

Um “Gulag norte-americano”

O que viria, então, a ser um “Estado-bandido”? A idéia subjacente a essa formulação é que, embora terminada a guerra fria (1947-1989), os Estados Unidos conservam a responsabilidade de proteger o mundo. Mas proteger de quem? A “conspiração monolítica e impiedosa” de J. F. Kennedy e o “império do mal” tão caro a Ronald Reagan já se acabaram. É preciso encontrar novos inimigos. [7]

Dentro do país, o medo da criminalidade — e em particular da droga — foi estimulado por “uma série de fatores que pouco ou quase nada têm a ver com o crime propriamente dito”. Essa é a conclusão da Comissão Nacional de Justiça Criminal, que cita o comportamento dos meios de comunicação, além do “modo como o Estado e a indústria privada produzem medo nos cidadãos”, “explorando, com fins políticos, as tensões raciais latentes.” E ressalta o preconceito racial existente na polícia e na justiça, que arrasa comunidades negras e cria um “abismo racial”, colocando o país sob “o risco de uma catástrofe social”. Criminologistas descrevem o resultado como um “Gulag norte-americano”, um “novo apartheid”, com a população carcerária atingindo, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, cerca de dois milhões de detentos, em sua maioria (!) sendo afro-americanos. O índice de presidiários negros é sete vezes maior que o de brancos, sem qualquer relação com o índice de detenções, que por sua vez não tem relação alguma com os números reais de uso ou de tráfico de drogas. [8]

Teoria do louco

No exterior, os perigos seriam o “terrorismo internacional”, os “narcotraficantes hispânicos” e, o mais grave de todos, os “Estados-bandidos”. Um estudo secreto, datado de 1995, e tornado público recentemente graças à lei sobre liberdade de informação, delineava em linhas gerais a abordagem estratégica na aurora do novo milênio. Feito pelo Strategic Command, responsável pelo arsenal nuclear estratégico, e intitulado Essentials of Post-Cold War Deterrence (Princípios básicos de dissuasão no pós-guerra fria), o estudo mostra, segundo a agência Associated Press, “como os Estados Unidos modificaram sua estratégia de dissuasão, substituindo a União Soviética pelos Estados ditos ’bandidos’ ou ’fora-da-lei’: Iraque, Irã, Líbia, Síria, Cuba e Coréia do Norte”. Recomenda ainda que os Estados Unidos explorem seu potencial nuclear para projetar de si uma imagem “irracional” e “vingativa” no caso de ameaça aos seus interesses nacionais. “É prejudicial nos mostrarmos como pessoas razoáveis, racionais e de sangue-frio” e, pior ainda, como respeitadores de bobagens tais como o direito e os tratados internacionais. “Que alguns elementos” do governo federal “possam parecer potencialmente loucos, incontroláveis, pode contribuir para criar ou reforçar medos e apreensões nas mentes dos nossos adversários.”

Esse relatório ressuscitava a “teoria do louco” de Richard Nixon: os inimigos dos Estados Unidos devem compreender que estão diante de desequilibrados, de comportamento imprevisível, e que dispõem de uma enorme capacidade de destruição. O medo os conduziria, dessa forma, a se dobrarem às vontades norte-americanas. Esse conceito havia sido desenvolvido em Israel nos anos 50 pelo governo trabalhista, cujos dirigentes “pregavam atos de loucura”, como escreveu em seu diário pessoal o ex-primeiro ministro Moshe Sharett. O conceito dirigia-se então, até certo ponto, contra os Estados Unidos, que na época não eram considerados suficientemente confiáveis. Retomada pela única superpotência atual, que se considera acima da lei e sofre poucos constrangimentos por parte de suas próprias elites, temos de admitir que essa teoria coloca um sério problema ao resto do mundo.

Criando novos inimigos

Desde o começo do governo Reagan, em 1980, a Líbia foi designada como o “Estado-bandido” por excelência. Vulnerável e sem meios de se defender, esse país é de fato um saco-de-pancadas perfeito. Em 1986, por exemplo, o bombardeio de Trípoli terá sido o primeiro da história programado para transmissão por televisão, ao vivo e em tempo real, para que os escreventes dos discursos do “Grande Comunicador” Reagan pudessem mobilizar a opinião da multidão em favor dos ataques terroristas de Washington contra a Nicarágua. O pretexto? O “superterrorista” Khadafi tinha “enviado 400 milhões de dólares e todo um arsenal para Manágua, com o objetivo de levar a guerra para dentro dos Estados Unidos”, que exerciam seu direito de legítima defesa contra a agressão armada desse “Estado-bandido” que era a Nicarágua sandinista.

Imediatamente após a queda do muro de Berlim, em 1989, que pôs fim à ameaça soviética, o governo de George Bush submeteu ao Congresso seu pedido anual de um gigantesco orçamento para o Pentágono: “Nessa nova era que se anuncia (...) o emprego de nossas forças provavelmente não envolverá mais a União Soviética, e sim, talvez, o Terceiro-Mundo, onde será certamente necessária uma nova conduta e novos procedimentos.” Acrescentou que os Estados Unidos deveriam manter forças consideráveis de intervenção, especialmente destinadas ao Oriente Médio, onde “as ameaças contra os nossos interesses”, que exigem intervenções militares diretas, “não podem ser debitadas ao Kremlin”. Ao contrário, diga-se de passagem, de uma ladaínha sem fim de inverdades difundidas durante quarenta anos pela propaganda norte-americana, hoje em dia mortas e enterradas.

Onda de ira contra os EUA

Na época, as ameaças contra os interesses norte-americanos também não podiam mais ser debitadas ao Iraque, uma vez que Saddam Hussein — que fazia então a guerra contra o Irã do aiatolá Khomeini — era um amigo cortejado e parceiro comercial de Washington. Seu estatuto, porém, mudaria completamente poucos meses depois quando, em julho de 1990, interpretou mal o consentimento norte-americano para mudar à força suas fronteiras com o Kuait, entendendo-o como uma autorização para invadir todo o país. [9] Ou, na perspectiva do governo Bush, para repetir o que os Estados Unidos acabavam de fazer no Panamá, em dezembro de 1989.

Os paralelos históricos, no entanto, nunca são exatos. Quando Washington se retirou parcialmente do Panamá, após ter instalado ali um governo fantoche, uma onda de ira rebentou em todo o hemisfério, inclusive no Panamá. Uma onda de ira que chegou mesmo a fazer a volta ao mundo, obrigando Washington a opor seu veto a duas resoluções do Conselho de Segurança da ONU e a se pronunciar contra uma resolução da Assembléia Geral que condenava “a violação flagrante do direito internacional e da independência, da soberania e da integridade territorial dos Estados” exigindo a retirada “do corpo expedicionário norte-americano” do Panamá.

Uma terapia de choque

O que alimenta a reflexão de analistas políticos, como por exemplo Ronald Steel, que se questionava sobre o “enigma” com que se deparavam os Estados Unidos: “Como nação mais poderosa do mundo, vêem a sua liberdade de empregar a força submetida a mais constrangimentos do que qualquer outro país.” Daí o êxito (temporário) de Saddam Hussein no Kuait, em agosto de 1990, em comparação com a incapacidade de Washington de impor sua vontade no Panamá.

Antes do Iraque, Irã e Líbia lideravam a lista dos “Estados-bandidos”. Outros, no entanto, jamais figuraram nela. A Indonésia é um bom exemplo: transformou-se de inimigo em amigo quando o general Suharto tomou o poder em 1965, após um banho de sangue muito aplaudido no Ocidente. [10] Suharto iria rapidamente tornar-se “o nosso tipo de cara” (our kind of guy) por retomar uma fórmula do governo Clinton, enquanto cometia agressões mortais e atrocidades sem conta contra seu próprio povo. Somente nos anos 80, contam-se 10 mil indonésios mortos pelas forças da ordem, segundo o testemunho pessoal do ditador, que explica também que “deixamos os cadáveres espalhados, como uma espécie de terapia de choque.” [11]

Mas ainda em dezembro de 1975 o Conselho de Segurança da ONU havia intimado a Indonésia a retirar “com urgência” suas tropas, que haviam invadido o Timor-Leste, antiga colônia portuguesa, e pedido que “todos os Estados respeitassem a integridade do Timor-Leste, bem como o direito inalienável de seus habitantes à autodeterminação”. Os Estados Unidos iriam responder a essa decisão das Nações Unidas aumentando secretamente as remessas de armas aos agressores. O então embaixador da ONU, Daniel Patrick Moynihan, se diz orgulhoso, em suas memórias, por ter tornado as Nações Unidas “totalmente ineficazes, em quaisquer que fossem as medidas que tomassem” no que se referia à Indonésia. E isso, seguindo as instruções do Departamento de Estado, “que desejava que as coisas evoluíssem como evoluíram e trabalhou para tal”. Washington também aceitaria tranqüilamente o roubo do petróleo do Timor (com a participação de uma companhia norte-americana), apesar da transgressão da legalidade que isso representava e em detrimento de qualquer interpretação razoável dos acordos internacionais.

A analogia entre as situações do Timor-Leste e do Kuait é bastante próxima, mas há algumas diferenças. Para falar apenas da mais evidente: as atrocidades cometidas — com a benção norte-americana — pelo regime indonésio na ilha do Timor, ultrapassam em muito qualquer coisa atribuída ao Iraque no seu vizinho. [12] Isso, porém, não fez da Indonésia, na lista de premiados estabelecida por Washington, um “Estado-bandido”.

Um conceito muito flexível

Não foram os crimes cometidos por Saddam Hussein contra seu próprio povo, nem sobretudo a utilização — perfeitamente conhecida pelos serviços secretos norte-americanos — de armas químicas contra civis, que metamorfosearam o ditador em “monstro de Bagdá”. Antes da invasão do Kuait, os Estados Unidos haviam lhe manifestado um apoio tão indefectível que até deixaram passar o ataque da força aérea iraquiana contra o navio de guerra USS Stark (que fez 37 vítimas entre os marinheiros norte-americanos), um privilégio restrito até então a Israel (no caso de seu ataque “por engano” ao USS Liberty, em junho de 1967, que deixou 34 mortos). Eles haviam coordenado com Saddam Hussein a campanha diplomática, militar e econômica que levou, em 1989, à capitulação do Irã “diante de Bagdá e Washington”, como escreveu o historiador Dilip Hiro. Tinham até encomendado a Saddam Hussein os serviços habituais de Estado vassalo: por exemplo, treinar centenas de mercenários líbios recrutados por norte-americanos para derrubar o coronel Kadhafi, como revelou Howard Teicher, um ex-assessor de Reagan. [13]

Se Saddam Hussein caiu para o lado dos “Estados-bandidos”, foi porque saiu da linha e se mostrou desobediente, do mesmo modo que o criminoso de menor envergadura Manuel Noriega, do Panamá, cujos principais crimes foram cometidos enquanto estava a serviço — remunerado — de Washington. Cuba foi classificada na categoria por sua presumida implicação no “terrorismo internacional”, mas não os Estados Unidos, que, no entanto, durante quase 40 anos, fizeram múltiplos ataques terroristas à ilha caribenha e diversas tentativas de assassinar Fidel Castro. O Sudão foi também classificado como “Estado-bandido”, embora não os Estados Unidos, que em agosto de 1998 bombardearam ali uma suposta fábrica de armas químicas, que depois foi provado tratar-se de uma indústria farmacêutica, como afirmavam as autoridades de Cartum..

Como podemos ver, o conceito de “estado pária”, agora oficialmente abandonado, tem sido particularmente flexível. No final, os critérios eram perfeitamente claros: um “estado pária” não era simplesmente um estado criminoso, era um estado que não se submetia às ordens dos poderosos e, em particular, dos Estados Unidos, é claro, deles mesmos. a salvo dessa categorização infame.

Notas:

[1] A expressão “Estado-bandido” (rogue state, em inglês) perdeu sua razão de ser — declarou o porta-voz do departamento de Estado, Richard Boucher, — porque muitos desses países corrigiram suas condutas. Foi substituída por “Estado fonte de preocupação” (state of concern, em inglês) Esta modificação de terminologia, no entanto, não afeta as sanções contra os referidos Estados. Cf. Le Monde, 21 junho de 2000.

[2] Ler, de Alain Gresh, “Muette agonie em Irak”, Le Monde Diplomatique, julho de 1999.

[3] Ler, de Eric Rouleau, “Scénario contrarié dans le Golfe”, Le Monde Diplomatique, março de 1998.

[4] Sobre a atitude dos Estados Unidos frente aos sandinistas que estavam então no poder em Manágua, ler, de Ignacio Ramonet, “La longue guerre occulte contre le Nicaragua”, Le Monde Diplomatique, fevereiro de 1987.

[5] National Security Council 5429/2, Washington.

[6] Note-se que Robert Mcnamara, secretário da Defesa de 1961 a 1968, avaliou recentemente que os próprios Estados Unidos, por sua tendência a agir unilateralmente e “sem respeito para com as preocupações dos outros” tinham se tornado um “Estado-bandido”. Cf. Flora Lewis, “Some Learn Power’s Hard Lessons Better Than Others”, The International Herald Tribune, 26 de junho de 2000.

[7] Ler, de Philip Bowring, “Rogue States are Overrated”, International Herald Tribune, 26 de junho de 2000.

[8] Ler The Real War on Crime: the Report of the National Criminal Justice Commission (dirigido por Steve Donziger), ed. HarperCollins, Nova York, 1996.

[9] Ler, de Pierre Salinger e Eric Laurent, Guerre du Golfe, le dossier secret, ed. Olivier Orban, Paris, 1990.

[10] Ler “Timor-Oriental, l’horreur et l’amnésie”, Le Monde Diplomatique, outubro de 1999.

[11] Citado por Charles Grass, Prospect, Londres, 1998.

[12] Ler, de Roland-Pierre Paringaux, “Lourdes séquelles au Timor-Oriental”, Le Monde Diplomatique, maio de 2000.

[13] The New York Times, 26 de maio de 1993.

[14] Ler, de Alain Gresh, “Guerres saintes”, Le Monde Diplomatique, setembro de 1998.

Sobre o autor

Professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Boston, EUA. Autor em particular de Les Etats manqués. Abus de puissance et déficit démocratique, Fayard, Paris, 2007. A maioria dos textos de Noam Chomsky está disponível em seu site.

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