14 de outubro de 2000

Quem tem medo da esquerda e da direita?

André Singer responde a resenha de Fábio Wanderley Reis

André Singer

Folha de S.Paulo

Em "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp), revelo que pesquisas realizadas entre 1989 e 1994 traziam uma novidade. A autolocalização do eleitor no espectro ideológico se mostrava relacionada ao voto nos pleitos presidenciais que conduziram Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Passo a sugerir, então, que o posicionamento do eleitor na esquerda, no centro ou na direita deveria ser levado em conta como um dos determinantes do voto no Brasil. Tratava-se, como foi escrito neste Jornal de Resenhas (9/9/2000) por Fábio Wanderley Reis, de um propósito "simples e claro", a meu ver sustentado por argumentação lógica. Mesmo tendo evidenciado pleno entendimento do propósito do trabalho, o resenhista optou por ignorar os argumentos, em lugar de combatê-los abertamente.

Alega três motivos para rejeitar a tese. Primeiro, coloca em dúvida a relação entre o autoposicionamento do eleitor no espectro ideológico e o voto. Segundo, critica a idéia de que os eleitores possam intuir sentidos políticos nas palavras "esquerda" e "direita", a ponto de saberem se posicionar no espectro ideológico, mesmo que não consigam verbalizar o significado de tais vocábulos. Por fim, afirma, contraditoriamente, que, se a premissa anterior for aceita, ela conduzirá a categorias irrelevantes para a compreensão do comportamento eleitoral. Acusa-me ainda de não estabelecer um "diálogo adequado" com estudos anteriores -"como os de minha própria autoria", esclarece o resenhista. Responderei pela ordem.

Será verdade que os dados apresentados no livro não sustentam a hipótese de um significativo vínculo entre a autolocalização do eleitor em uma escala de sete pontos (na qual "um" corresponde ao posicionamento mais à esquerda e "sete", mais à direita), com o voto nas eleições de 1989 e 1994? O núcleo da dúvida está no suposto "fato de que os eleitores entrevistados, que ignoram o significado das categorias e se colocam às cegas numa ou noutra, têm uma chance razoável de estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autocolocação na escala esquerda-direita" (grifo meu).

Relação não-casual

Ora, tal afirmação desconhece as inúmeras evidências, apresentadas no livro, de que tal relação não é casual. Ou será que o fato de 60% dos eleitores que se posicionaram à direita, pesquisados pelo Datafolha por meio de uma mostra nacional, terem votado em Collor no primeiro turno de 1989, contra 24% de votantes em Collor entre os que se posicionaram à esquerda, não quer dizer nada? Será que a decisão de votar em Lula por parte de 47% dos que se colocaram à esquerda, na mesma ocasião, contra apenas 16% dos que se colocaram à direita, não chama a atenção de um pesquisador experiente como Fábio Wanderley Reis? Por falta de espaço, deixo de mencionar muitos outros dados significativos que se encontram no livro sobre a eleição de 1989.

Na eleição de 1994, decidida com a vitória de Fernando Henrique logo no primeiro turno, os dados revelados pela Toledo e Associados, numa pesquisa feita no Estado de São Paulo, foram ainda mais reveladores. Dos eleitores paulistas que se posicionaram à direita, 85% preferiram FHC, enquanto esse número caía para 35% entre os que se colocaram à esquerda. Dos entrevistados que se posicionaram à esquerda, 64% optaram por Lula, apesar do apoio que havia, mesmo na esquerda, ao Plano Real. Em contrapartida, o número de eleitores de direita que escolheram Lula despenca para 14%.

Como é possível, diante desses dados, que um intelectual de primeira linha, como Fábio Wanderley Reis, sugira que os entrevistados acertaram por acaso? Cumpre mencionar que as relações citadas foram submetidas, sem exceção, a teste estatístico para verificar exatamente se as associações entre a autolocalização na escala e o voto estavam fora da margem de acaso. Os resultados dos testes, à disposição de todos no livro, foram inequívocos. Eles mostraram que as relações encontradas não eram casuais.

Para contornar a força das evidências apresentadas por mim, o resenhista recorreu a um artifício. Afirmou que os resultados poderiam decorrer do fato de eu não ter separado os eleitores que sabem explicar o que é esquerda e direita daqueles que não sabem fazê-lo. De acordo com o crítico, a minoria dos que sabem, ao votar de modo coerente, teria contaminado a aferição das associações. Caso fossem separados os que sabem dos que não sabem, ficaria demonstrado que a grande maioria, formada pelos que não sabem, revelaria absoluta falta de coerência. Pois bem, fiz o teste com dados da pesquisa Datafolha de março de 1990, e o resultado mostrou que a associação entre posicionamento e voto é fortemente significativa também entre os que não sabem verbalizar o que é esquerda e direita.

Mas como posso afirmar que essa associação revela algo sobre o voto se eu mesmo reconheço que a grande maioria não sabe o que quer dizer esquerda e direita? Eis a segunda crítica. Embora pareça uma observação dotada de bom senso, trata-se de outra recusa em apreciar os argumentos do livro. Definir esquerda e direita não é tarefa fácil. Qualquer observador medianamente informado da política sabe que há várias acepções possíveis para uma e outra. Tome-se, apenas a título de exemplo, o caso da direita no Brasil. Diante da pergunta o que é direita, um eleitor sofisticado poderia afirmar: direita é a corrente política que defende a liberdade. O analista talvez considerasse a resposta "correta", se imaginasse que o entrevistado estava a pensar na livre iniciativa. No entanto, dada a associação da direita brasileira com o regime militar recente, deveríamos também aceitar como certa uma resposta segundo a qual a direita seria a defensora da ordem, mesmo que a custo da liberdade. Portanto duas definições contraditórias do que seja direita revelam-se igualmente aceitáveis.

O conteúdo de esquerda e direita é relativamente variável e subjetivo. Como mostrou Giovanni Sartori -a quem eu teria lido mal, segundo o resenhista-, esquerda e direita são elementos tão usados na gramática política justamente por funcionarem como caixas vazias, nas quais é possível colocar sempre novos conteúdos. Mas, se são caixas vazias, qual é a sua utilidade, afinal?

Ocorre que esquerda e direita funcionam como sinalizadores de diferentes posicionamentos dos partidos e candidatos ao longo de um mesmo eixo. São úteis porque organizam, concentram e simplificam um feixe variável de conteúdos, muitas vezes percebidos vagamente pelo público de massa, que permitem aos candidatos, partidos e eleitores "conversarem" sobre as disputas democráticas. Por isso, de 80% a 90% dos eleitores reconhecem, de modo intuitivo, que há partidos e candidatos de esquerda, centro e direita. Mesmo que não consiga verbalizar com palavras próprias o significado dos termos, o eleitor percebe, por exemplo, que Lula estava à esquerda de Collor em 89 e de Fernando Henrique em 94.

O PT foi o primeiro partido abertamente de esquerda a disputar a Presidência com chances de vitória. Isso tornou a divisão ideológica mais explícita e difundida pelos meios de comunicação. Desse modo, não espanta que o eleitor intua quem está em que lugar na divisão espacial esquerda-direita. Os dados que apresento no livro a respeito são igualmente contundentes. As pesquisas que pedem ao eleitor que indique, na escala de um a sete, em que ponto se encontram os partidos brasileiros, mostram que os entrevistados tendem a reconhecer corretamente a posição relativa dos mesmos. Mas, quando questionada, grande parte dos entrevistados não sabe explicar o que é esquerda e direita.

Isso quer dizer que esquerda e direita são termos destituídos de conteúdo e, portanto, que a relação entre o autoposicionamento do eleitor e o voto, embora existente, seria irrelevante? Tal a terceira crítica.

Se o eleitor intui a divisão espacial que existe entre partidos e candidatos, se identifica com determinado ponto dentro da mesma escala e, finalmente, vota de modo coerente com o ponto em que se coloca no espectro ideológico, é evidente que a identificação ideológica configura um bom preditor do voto. Como insisto em meu livro, não se trata do único nem necessariamente do preditor mais importante. Todavia ele existe e, nas duas eleições que analisei, mostrou-se um dos melhores preditores do voto, mesmo quando, em 94, o Plano Real foi um importante determinante do sufrágio.

Devolvo, portanto, a pergunta ao meu crítico: mesmo aceitas as premissas acima -de que esquerda e direita estejam associadas a um conteúdo político frouxo, uma vez que os eleitores não sabem verbalizá-lo-, por que desconhecer a variável da identificação ideológica?

Não creio que o posicionamento à esquerda e à direita seja destituído de conteúdo para o eleitor. No último capítulo indico linhas de associação cujo aprofundamento, em novas pesquisas, poderia descobrir aspectos importantes dos sistemas de crença presentes no eleitorado brasileiro. Sugiro que o posicionamento à direita está vinculado, sobretudo nas camadas de baixa renda e escolaridade, a uma adesão à ordem, evidenciada pelo apoio a medidas repressivas contra manifestações oriundas da organização popular.

Por fim, longe de me furtar ao "diálogo adequado" com os estudos anteriores, deixo claro no livro que pretendo apenas aduzir uma peça ao quebra-cabeça do comportamento eleitoral no Brasil e não reinventar a roda. A menos que por "adequado" Reis entenda a mera repetição do que ele e sua geração descobriram com "argúcia e rigor", como está escrito no próprio volume resenhado. Por que tanto medo da esquerda e da direita?

André Singer é professor de ciência política na USP e repórter especial da Folha.

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