30 de abril de 2013

Como o subalterno fala?

Teoria pós-colonial desconsidera o valor duradouro do universalismo iluminista por sua própria conta e risco.

Joan Birch


Ilustração original por Auguste Raffet, gravura por Hébert.

Nas décadas recentes, a teoria pós-colonial amplamente substituiu o marxismo como perspectiva dominante entre intelectuais engajados no projeto de examinar criticamente a relação entre o mundo ocidental e o mundo não-ocidental. Originada nas ciências humanas, a teoria pós-colonial subsequentemente se tornou crescentemente influente na história, antropologia e ciências sociais. Sua rejeição do universalismo e meta-narrativas associadas com o pensamento Iluminista se concatenou com uma virada mais ampla da esquerda intelectual durante os anos de 1980 e 1990.

O novo livro de Vivek Chibber, A Teoria Pós-Colonial e o Espectro do Capital, representa um desafio de grande alcance aos princípios centrais da teoria pós-colonial. Focando particularmente na vertente da teoria pós-colonial conhecido como estudos subalternos, Chibber advoga vigorosamente que podemos – devemos – conceituar o mundo não-ocidental através das mesmas lentes analíticas que usamos para entender o desenrolar no ocidente. Ele oferece uma defesa sustentada de abordagens teóricas que enfatizam categorias universais como capitalismo e classe. Seu trabalho constitui uma argumentação da continuidade da relevância do marxismo em face de alguns de seus mais severos críticos.

Chibber foi entrevistado pela Jacobin por Jonah Birch, um estudante de pós-graduação em sociologia pela Universidade de Nova York.

Na base da teoria pós-colonial está a noção que as categorias ocidentais não podem ser aplicadas a sociedade pós-coloniais como a Índia. No que se baseia tal alegação?

Esse é provavelmente o argumento isolado mais importante dos estudos pós-coloniais, e é inclusive o que torna tão importante se defrontar com eles. Não houve nenhum conjunto realmente proeminente de ideias associadas à esquerda nos últimos 150 anos que tenha insistido em negar o ethos científico e a aplicabilidade de categorias provenientes do iluminismo liberal e do iluminismo radical – categorias como capital, democracia, liberalismo, racionalidade e objetividade. Houve filósofos que criticaram tais orientações, mas eles raramente conquistaram qualquer atração relevante sobre a esquerda. Os teóricos pós-coloniais são os primeiros a fazê-lo.

Tal discurso vem, na verdade, sobre uma premissa sociológica de fundo: para que as categorias da economia política e do iluminismo tenham qualquer utilidade, o capitalismo deve se espalhar pelo mundo todo. Isso é chamado de “universalização do capital”.

O argumento segue assim: as categorias universalizantes associadas com o pensamento iluminista são apenas tão legítimas quanto as tendências universalizantes do capital. E os teóricos pós-coloniais negam que o capital tenha de fato se universalizado – ou, mais importante, que sequer fosse possível sua universalização ao redor do globo. Uma vez que o capitalismo não se universalizou e nem pode fazê-lo, as categorias que pessoas como Marx desenvolveram para entender o capitalismo também não podem ser universalizadas.

O que isso significa para a teoria pós-colonial é que as partes do globo onde a universalização do capital falhou precisam geral suas próprias categorias locais. E mais importante, significa que teorias como o marxismo, que tenta utilizar as categorias da economia política, não estão apenas erradas, mas são eurocêntricas, e não apenas eurocêntricas, mas são parte do impulso colonial e imperial do ocidente. Estão, portanto, implicadas no imperialismo. Novamente, esse é um argumento bastante inovador para a esquerda.

O que te fez decidir focar nos estudos subalternos como um caminho para a crítica da teoria pós-colonial de maneira mais geral?

A teoria pós-colonial é um conjunto de ideias bem difuso. Na verdade, provém dos estudos literários e culturais, e teve neles sua influência inicial. Então se espalhou para outras áreas de estudo, a história e a antropologia. Espalhou-se para tais campos por causa da influência da cultura e da teoria cultural de 1980 em diante. Então, ao fim de 1980 e no começo de 1990, disciplinas tais como a história, a antropologia, os estudos do oriente médio e os estudos do sul asiático foram infundidos com um giro brusco em direção ao que agora conhecemos como teoria pós-colonial.

Para atingir a teoria se enfrentam alguns problemas básicos: porque é tão difusa, é difícil definir quais são suas proposições centrais, então antes de tudo é difícil saber exatamente o que criticar. Inclusive, seus defensores são capazes de facilmente refutar qualquer crítica apontando outros aspectos que você pode ter deixado passar na teoria, dizendo que você focou nos aspectos errados. Por conta disso, eu tive que encontrar alguns componentes centrais da teoria – algum fluxo de teorização no interior dos estudos pós-coloniais – que fossem consistentes, coerentes e altamente influentes.

Eu também queria focar naquelas dimensões da teoria centradas na história, desenvolvimento histórico e estruturas sociais, e não na crítica literária. Os estudos subalternos encaixaram em todos esses três moldes: têm sido extremamente influentes nos estudos da área; é, sendo justo, consistente internamente e se foca sobre a história e a estrutura social. Como uma vertente da teoria, têm sido bastante influente em parte por conta de sua consistência interna, mas também parcialmente por seus maiores proponentes virem de uma base marxista e estarem todos baseados na Índia ou em partes do Terceiro Mundo. Isso os deu uma grande legitimidade e credibilidade, tanto como críticos do marxismo como expoente de um novo modo de entender o Sul Global. É através dos estudos dos subalternistas que essas noções sobre a falha na universalização do capital e a necessidade de categorias nativas tornaram-se respeitáveis.

De acordo com os teóricos dos estudos subalternos, porque a tendência universalizante do capitalismo se rompeu no mundo pós-colonial? O que há nessas sociedades que impediu o progresso do capitalismo?

Os estudos subalternos oferecem dois argumentos distintos para como e quando a universalização impulsionada pelo capital foi bloqueada. Um argumento vem de Ranajit Guha. Guha localiza o impulso universalizante do capital na habilidade de um agente particular – nomeadamente, a burguesia, a classe capitalista – de derrubar a ordem feudal e construir uma coalização de classes que inclui não apenas capitalistas e comerciantes, mas inclusive trabalhadores e camponeses. A através da aliança pavimentada, o capital deveria erigir uma nova ordem política, que não é apenas pró-capitalista nos termos da defesa dos direitos de propriedade dos capitalistas, mas é também uma ordem liberal, abrangente e consensual.

Então, para que o impulso universalizante do capital seja real, diz Guha, ele deve se expressar na emergência de uma classe capitalista que construa uma ordem consensual e liberal. Essa ordem substituiu o antigo regime, e em tal universalização ela expressa os interesses dos capitalistas como interesses universais. O capital, como diz Guha, obtém a habilidade de falar por toda a sociedade: não apenas como classe dominante, mas também hegemônica que não precisa da coerção para manter seu poder.

Então Guha localiza esse impulso universalizante na construção de uma cultura política abrangente. O ponto fulcral para Guha é que a burguesia no Ocidente foi capaz de atingir tal ordem enquanto a burguesia no Oriente falhou em fazê-lo. Ao invés de derrubar o feudalismo, realizou algum tipo de acordo com as classes feudais; ao invés de tornar-se a força hegemônica com uma coalização ampla de diversas classes, tentou ao máximo evitar o envolvimento dos camponeses e da classe trabalhadora. Ao invés de erigir uma ordem política consensual e abrangente, pôs em pé ordens políticas altamente instáveis e francamente autoritárias. Manteve o fosso entre a cultura das classes subalternas e a das elites.

Então, para Guha, enquanto no Ocidente a burguesia foi capaz de falar por todas as diversas classes, no Oriente ela falhou em tal objetivo, fazendo-se dominante, mas não hegemônica. Isso faz com que a modernidade nas duas partes do mundo seja fundamentalmente diferente, gerando dinâmicas políticas distintas no Oriente e no Ocidente, e isso significa que o impulso universalizante do capital falhou.

Então o argumento consiste em uma alegação sobre o papel da burguesia no Oriente, e a falha de sua contraparte nas sociedades pós-coloniais?

Para Guha, absolutamente, e os grupos de estudos subalternos aceitam esses argumentos, em grande parte sem maiores debates. Eles descrevem a situação – a condição do Oriente – como uma condição na qual a burguesia domina, mas carece de hegemonia, enquanto no Ocidente há tanto domínio como hegemonia.

Agora, o problema com isso é, como você disse, que o cerne do argumento é uma determinada descrição das conquistas da burguesia Ocidental. O argumento, infelizmente, tem pouca base histórica. Houve um tempo, no século XIX, no começo do século XX, mesmo até os anos 50 em que muitos historiadores aceitaram esse quadro da ascensão da burguesia no Ocidente. Nos últimos 30 ou 40 anos, porém, ele foi amplamente rejeitado, mesmo entre marxistas.

O que é estranho é que o livro de Guha e seu artigo foram escritos como se a crítica dessa abordagem nunca tivesse sido feita. E o que é ainda mais estranho é que a profissão da história – na qual os estudos subalternos têm sido tão influentes – nunca questionou esse fundamento do projeto dos estudos subalternos, ainda que todos eles anunciem que esse é o fundamento. A burguesia no Ocidente nunca aspirou aos objetivos que Guha lhe atribui: nunca tentou trazer à tona uma cultura política consensual ou representar os interesses da classe trabalhadora. Em verdade, lutou com unhas e dentes contra ela por séculos após as chamadas revoluções burguesas. Quando essas liberdades foram finalmente atingidas, foi através de uma luta bastante intensa dos despossuídos assalariados contra os heróis da narrativa de Guha, a burguesia. Então a ironia é que Guha realmente trabalha com uma noção incrivelmente ingênua, mesmo ideológica da experiência Ocidental. Ele não vê que os capitalistas foram, em todos os lugares e sempre, hostis à extensão dos direitos políticos ao povo trabalhador.

Então esse é um dos argumentos sobre a especificidade radical do mundo colonial e pós-colonial. Mas você disse antes que há um outro?

Sim, o segundo argumento vem principalmente do trabalho de Dipesh Chakrabarty. Suas dúvidas sobre a universalização do capital são distintas das de Guha. Guha localiza a tendência à universaliação do capital em um agente particular: a burguesia. Chakrabarty a localiza na habilidade do capitalismo de transformar todas as relações sociais aonde quer que ele vá. E ele conclui que ele falhou em tal prova, porque lhe parece que há várias práticas culturais, sociais e políticas no Oriente que não se conformam ao seu modelo de como a cultura e sistema político capitalista deveriam parecer.

Então, em sua visão, o teste para uma universalização bem-sucedida do capital é que todas as práticas sociais devem ser imersas na lógica do capital. Ele nunca especifica claramente o que é a lógica do capital, mas há alguns parâmetros amplos que ele tem em mente.

Parece uma meta bastante alta.

Sim, esse é o ponto: é uma meta impossível. Então se você descobre que na Índia práticas matrimoniais ainda usam antigos rituais; se você descobre que na África as pessoas ainda tendem a rezar enquanto estão trabalhando – esse tipo de prática representa uma falha da universalização do capital.

O que eu digo em meu livro é que isso é meio bizarro: tudo o que a universalização do capital requer é que a lógica econômica do capitalismo seja implantada em várias partes do mundo e que ele se reproduza com sucesso ao longo do tempo. Isso irá, é claro, gerar certas mudança culturais e política também. De qualquer modo, não se requer que tudo, ou quase tudo, das práticas culturais de uma região sejam transformadas de acordo com algum tipo de linha capitalista identificável.

Esse é o argumento teórico que você defende em seu livro quanto à universalização capitalista não requerer que se apague toda divisão social.

Certo.Uma manobra típica dos teóricos pós-coloniais é dizer algo como: o marxismo se baseia em categorias abstratas, universalizantes. Mas para essas categorias terem aplicação, a realidade deveria parecer exatamente com as descrições abstratas do capital, dos trabalhadores, do estado, etc. Mas, dizem os teóricos pós-coloniais, a realidade é muito mais diversa. Trabalhadores vestem roupas tão coloridas: rezam enquanto trabalham, capitalistas consultam astrólogos – isso não parece nada com o que Marx descreve no Capital. Então isso deve significar que as categorias do capital não são realmente aplicáveis aqui. O argumento acaba sendo que qualquer desvio da realidade concreta das descrições abstratas da teoria é um problema da teoria. Mas isso é tolo, indo além das palavras: isso significa que você não pode ter uma teoria. Porque deveria importar se os capitalistas consultam astrólogos contanto que eles são movidos a acumular lucros? Similarmente, não importa se os trabalhadores rezam no chão de fábrica contanto que eles trabalhem. Isso é tudo o que a teoria requer. Isso não é dizer que diferenças culturais desaparecerão; é dizer que essas diferenças não importam para a disseminação do capitalismo, contanto que os agentes obedeçam a compulsão que lhe inscreve sua posição nas estruturas capitalistas. Eu vou a distâncias consideráveis para explicar isso no livro.

Muito do apelo da teoria pós-colonial reflete o desejo disseminado de evitar o eurocentrismo e entender a importância das especificidades locais e culturais quanto às categorias, formas, identidades, e que é preciso entender as pessoas como elas eram, ou são, não apenas como abstrações. Mas eu pondero se não há inclusive um perigo nesse raciocínio sobre a especificidade cultural das culturas não-Ocidentais, e se isso não é uma forma de essencialismo cultural.

Absolutamente, esse é o perigo. E não é apenas um perigo; é algo em que os estudos subalternos e a teoria pós-colonial constantemente incorrem. Você vê isso mais frequentemente em seus argumentos sobre ação social e resistência. Está perfeitamente bem que as pessoas carreguem suas culturas e práticas locais quando elas estão resistindo ao capitalismo, ou quando elas resistem a vários agentes do capital. Mas é uma coisa bastante distinta dizer que não há aí nenhuma aspiração universal, ou nenhum interesse universal, que as pessoas devam ter.

Em verdade, uma das coisas que eu mostro em meu livro é que quando os historiadores dos estudos subalternos fazem trabalhos empíricos sobre a resistência camponesa, eles exibem nitidamente que os camponeses [na Índia], quando sem engajam em ações coletivas, estão mais ou menos agindo sob as mesmas aspirações e os mesmos impulsos que moviam os camponeses ocidentais. O que os separava do Ocidente eram formas culturais nas quais essas aspirações eram expressas, mas as aspirações tendem elas próprias a ser bastante consistentes.

E quando pensamos sobre isso, é realmente estranho dizer que camponeses indianos estavam dispostos a defender seu bem-estar; que eles não gostam de ser passados para trás; que eles gostariam de ser capazes de encontrar-se em certas condições nutricionais básicas; que quando eles entregavam rendas para os donos de terras eles tentavam manter o quanto pudessem para si próprios porque não gostavam de dar suas colheitas? Através de todos os séculos XIV e XX, esse foi na verdade o motivo das lutas dos camponeses.

Quando os teóricos subalternos erguem esse gigantesco muro separando o Oriente do Ocidente, e quando insistem que os agentes Orientais não são movidos pelo mesmo tipo de preocupações que os agentes Ocidentais, o que eles estão fazendo é endossar o tipo de essencialismo que as autoridades coloniais usavam para justificar sua depredação no século XIX. É o mesmo tipo de essencialismo que os chauvinistas dos EUA utilizaram quando bombardearam o Vietnã ou quando eles atacam o Oriente Médio. Ninguém na Esquerda pode estar tranquilo com esse tipo de argumentos.

Mas não seria possível responder dizendo que você está endossando algum tipo de essencialismo ao atribuir uma racionalidade comum a atores em contextos bastante diferentes?

Bom, isso não é exatamente essencialismo, mas eu endosso essa visão de que há alguns interesses em comum e necessidades que as pessoas têm através das culturas. Há alguns aspectos da nossa natureza humana que não são culturalmente construídos: assumem uma forma culturalmente, mas não são criados por ela. Minha visão é de que mesmo que haja enormes diferenças entre as pessoas no Oriente e no Ocidente, também há um núcleo de preocupações que as pessoas têm em comum, quer tenham nascido no Egito, na Índia, em Manchester ou em Nova York. Não são muitas, mas podemos enumerar ao menos duas ou três delas: dizem respeito ao bem-estar físico; há provavelmente uma preocupação com o grau de autonomia e auto-determinação; há uma preocupação com aquelas práticas que diretamente pertencem ao seu bem-estar. Isso não é muito, mas vocês ficaria surpreso com o quão longe isso o leva na explicação de transformações históricas realmente importantes.

Por dois séculos, qualquer um que se chamasse progressista abraçava esse tipo de universalismo. Era simplesmente entendido que a razão pela qual os trabalhadores ou camponeses poderiam se unir através dos limites nacionais é porque eles compartilham certos interesses materiais. Isso está sendo posto em questão agora pelos estudos subalternos, e é realmente marcante que tantas pessoas na Esquerda tenham aceitado isso. É ainda mais marcante que é que isso seja ainda aceito depois dos últimos 15 ou 20 anos em que vimos movimentos globais através das culturas e fronteiras nacionais contra o neoliberalismo, contra o capitalismo. Ainda assim, na universidade, ousar dizer que as pessoas compartilham, preocupações comuns em todas as culturas é de alguma forma visto como ser eurocêntrico. Isso demonstra o quão longe a cultura política e intelectual caiu nos últimos vinte anos.

Se você argumenta que o capitalismo não requer liberalismo burguês, e que a burguesia não desempenhou um papel histórico na liderança dessa luta popular pela democracia no Ocidente, como você explica o fato de que foi atingido o liberalismo e a democracia no Ocidente, e não se atingiram tais desfechos da mesma forma em boa parte do mundo pós-colonial?

Essa é a grande questão. A coisa interessante é que quando Guha escreveu seu ensaio original anunciando a agenda dos estudos subalternos, ele atribuiu a falha do liberalismo no Oriente à falha da sua burguesia. Mas ele também sugere que havia outra possibilidade histórica, nomeadamente que o movimento independentista na Índia e em outros países coloniais pudesse ter sido liderado por classes populares, as quais poderiam ter empurrado as coisas em direção diferente e, talvez, criar uma tipo diferente e ordem política. Ele traz isso à tona e depois ele esquece, e isso nunca mais aparece em qualquer trabalho seu.

Se ele tivesse tomado esse caminho, e se ele tivesse tomado-o com mais seriedade, poderia tê-lo levado a um entendimento mais preciso do que aconteceu no Ocidente não apenas no Oriente. O fato é que no Ocidente, quando uma ordem consensual, democrática e abrangente finalmente emergiu lentamente no século XIX e no começo do XX, não foi presente oferecido pelos capitalistas. Foi de fato um produto de lutas muito longas e concentradas da parte dos trabalhadores, agricultores e camponeses. Em outras palavras, foi trazido à tona por lutas de baixo.

Guha e os subalternistas ignoram isso inteiramente, porque insistem que a ascensão da ordem liberal foi um feito dos capitalistas. Porque descrevem mal isso no Ocidente, diagnosticam equivocadamente a falha de tal ordem no Oriente. No Oriente eles erroneamente atribuem essa falha aos atalho da burguesia.

Agora, se você quer um projeto de pesquisa histórico de precisão, explicando a fragilidade das instituições democráticas no Oriente e sua guinada rumo ao autoritarismo, a resposta não tem a ver com os atalhos da burguesia, mas com a fraqueza do movimento operário das organizações camponesas, e com os partidos representantes dessas classes. A fraqueza dessas forças políticas na tentativa de trazer algum tipo de disciplina à classe capitalista é a resposta à questão colocado pelos estudos subalternos. Essa questão é: “Por que a cultura política do Sul Global é tão diferente daquela do Norte Global?”. É para isso que deviam olhar: para as dinâmicas das organizações populares e os partidos das organizações populares; não para alguma falha putativa da classe capitalista, que no Oriente não era nada mais oligárquica e autoritária do que já foi no Ocidente.

Você é obviamente muito crítico da teoria pós-colonial. Mas não há algo válido ou valioso nessa acusação da ordem pós-colonial?

É, há algumas coisas valiosas, especialmente se você olhar para o trabalho de Guha. Em todo o seu trabalho, especialmente em “Domínio sem hegemonia“, eu penso que há um criticismo bastante saudável e um desprezo geral voltados aos poderes estabelecidos em um país como a Índia. E essa é uma alternativa tremendamente positiva ao tipo de historiografia nacionalista que tem sido posta de pé por décadas em países como a Índia, nos quais os líderes do movimento independentista eram vistos como algo próximo a salvadores. A insistência de Guha não apenas no fato de tal liderança não ser salvadora, mas que ela é de fato responsável por muitos dos atalhos da ordem pós-colonial deve ser louvada e endossada.

O problema não é sua descrição da ordem pós-colonial: o problema é seu diagnóstico sobre o responsável por tais falhas e como devem ser consertadas. Eu estou totalmente a bordo da atitude geral de Guha quanto à elite indiana e seus capangas. O problema é que sua análise das causas disso vai tanto na direção errada que se põe no caminho de uma resposta e uma crítica apropriada dessa ordem.

E Partha Chatterjee? Seu trabalho não oferece uma crítica séria do estado pós-colonial na Índia?

Em alguns aspectos, sim. Em um nível puramente descritivo, o trabalho de Chatterjee sobre o nacionalismo, como o de Guha, demonstra a estreiteza das preocupações da liderança nacionalista, sua fidelidade aos interesses das elites e suas ressalvas quanto à mobilização popular. E isso deve ser elogiado.

O problema, novamente, é o diagnóstico. No caso de Chatterjee, a falha do movimento nacionalista indiano é imputada à sua liderança ter internalizado um ethos particular, e esse é o ethos é a orientação que vem da modernização e do modernismo. Então, para Chatterjee, o problema com Nehru é que ele adotou rapidamente um posicionamento modernizante quanto à economia política. Em outras palavras, ele deu grande valor a uma abordagem científica quanto à industrialização, o planejamento racional e organização – e esse é o cerne do porque, para Chatterjee, a Índia está presa em uma posição de “sujeição continuada” na ordem global.

É justo dizer que Nehru é sustentado por um estreito rol de interesses, mas localizar as fontes profundas de seu conservadorismo em sua adoção de uma visão de mundo modernizante e científica confunde seriamente qual seja o problema. Se o problema com a elite pós-colonial é que ela adotou uma visão de mundo científica e racional, a questão emerge: como os teóricos pós-coloniais pretendem se livrar da presente crise – não apenas econômica e política, mas inclusive ambiental – se eles estão dizendo que ciência, objetividade, evidência, preocupações com o desenvolvimento, devem ser descartados?

Chatterjee não tem uma saída para isso. Em minha visão, o problema com a liderança de Nehru, e com a liderança do Congresso Nacional Indiano, não é que eles eram científicos e modernizantes, mas que eles ligaram seu programa ao interesse das elites indianas – da classe capitalista indiana, e dos latifundiários indianos – e que abandonaram seu compromisso com a mobilização popular e tentaram manter as classes populares sob um controle bastante rígido.

A abordagem de Chatterjee, ainda que tenha o apelo de uma crítica radical, é na verdade bastante conservadora, porque localiza a ciência e a racionalidade no Ocidente, e ao fazê-lo descreve o Oriente mais ou menos como faziam as ideologias coloniais. É também conservadora porque nos deixa sem qualquer meio pelo qual deveríamos construir uma ordem mais humana e mais racional, porque não importa em que caminho você tente se mover – quer você tente se mover do capitalismo em direção ao socialismo, quer você tente humanizar o capitalismo através de algum tipo de social-democracia, quer você tente mitigar os desastres ambientais mediante um uso racional nos recursos – tudo isso vai requerer uma daquelas coisas que Chaterjee impugna: ciência, racionalidade e planejamento de algum tipo. Localizar essas como as fontes da marginalização do Oriente não é apenas equivocado, mas penso que essa crítica é bastante conservadora.

Mas não há qualquer fundamento na crítica que os teóricos pós-coloniais fazem ao marxismo, bem como a outras formas de pensamento Ocidental enraizadas no Iluminismo; que elas sejam eurocêntricas?

Bem, temos que distinguir entre duas formas de eurocentrismo: uma é neutra e benigna, que diz que uma teoria é eurocêntrica na medida em que sua base evidencial tenha vindo majoritariamente do estudo da Europa. Nesse sentido, é claro, todas as teorias Ocidentais que conhecemos desde meados do fim do século XIX amplamente extraíram suas evidências e informações da Europa, porque a escolaridade e a literatura histórica e antropológica no Oriente era bastante subdesenvolvida. Nesse sentido, elas eram eurocêntricas.

Eu penso que esse tipo de eurocentrismo é natural, ainda que carregue toda uma série de problemas, mas isso não pode realmente ser indicado. A forma mais perniciosa de eurocentrismo – a que os teóricos pós-coloniais perseguem – se dá quando o conhecimento baseado em fato particulares sobre o Ocidente é projetado sobre o Oriente e pode induzir ao erro. De fato, os teóricos pós-coloniais têm acusado os teóricos Ocidentais porque eles não apenas ilicitamente projetam sobre o Oriente conceitos e categorias que podem ser inaplicáveis; eles sistematicamente ignoram evidências que estão à disposição e podem gerar teorias melhores.

Se é esse segundo tipo de eurocentrismo do qual estamos falando, então há elementos na história do pensamento marxista que caem como uma luva nesse tipo de eurocentrismo. De todo modo, se você olha para a história atual do desenvolvimento desta teoria, esses casos têm sido bastante raros.

Desde o começo do século XX, eu acredito é que exato dizer que o marxismo é talvez a única teoria da mudança histórica vinda da Europa que sistematicamente se bateu com a especificidade do Oriente. Um dos fatos mais curiosos dos estudos subalternos e da teoria pós-colonial é que eles ignoram isso. A começar pela Revolução Russa de 1905 e a Revolução de 1917, depois a Revolução Chinesa, depois os movimentos africanos pela descolonização, depois os movimentos guerrilheiros na América Latina – toda essas efervescências sociais geraram tentativas de lidar com a especificidade do capitalismo em países fora da Europa.

Você pode encontrar diversas teorias específicas que se desdobraram do marxismo que não apenas se voltaram para as especificidades do Oriente, mas explicitamente negaram a teleologia e o determinismo que os estudos subalternos dizem ser centrais no marxismo: a teoria trotskista do desenvolvimento desigual e combinado, a teoria de Lenin sobre o imperialismo, a articulação de modos de produção, etc. Cada uma dessas teorias foi um reconhecimento de que as sociedades em desenvolvimento não parecem completamente com as sociedades europeias.

Então se você quer marcar pontos, é possível trazer à tona exemplos aqui e ali de algum tipo de reminiscência eurocêntrica no marxismo. Mas se você olhar para o balanço geral, não apenas o resultado do placar é, no fim das contas, bastante positivo, mas se você o compara com o orientalismo que os estudos subalternos reviveram, me parece que o enquadramento mais natural para entender a especificidade do Oriente vêm do marxismo e da tradição iluminista, não da teoria pós-colonial.

A contribuição duradoura da teoria pós-colonial – o que será conhecido dela, a meu ver, se ela ainda for lembrada daqui a 50 anos – será que ela reviveu o essencialismo cultural e agiu como um endosso do orientalismo, mais do que foi um antídoto para ele.

Tudo isso impõe a pergunta: por que a teoria pós-colonial ganhou tal proeminência nas últimas décadas? Na verdade, por que ela foi capaz de suplantar ideias como as que você defende em seu livro? Claramente, a teoria pós-colonial veio ocupar um espaço antes preenchido por várias formas de pensamento marxista e derivados, e influenciou especialmente amplas faixas da esquerda intelectual anglófona.

Na minha visão, essa proeminência se deve estritamente a razões sociais e históricas; não expressa o valor ou a utilidade da teoria, e é por isso que decidi escrever o livro. Eu penso que a teoria pós-colonial veio se tornou proeminente por dois motivos. Um é que após o declínio do movimento operário e o esmagamento da Esquerda nos anos 70, não haveria qualquer tipo de teoria proeminente na academia que focasse no capitalismo, na classe trabalhadora, ou na luta de classes. Muitas pessoas apontaram isso: nos quadros universitários, é irreal imaginar que qualquer crítica do capitalismo de uma perspectiva de classe vá ter muito lastro exceto em período de massiva turbulência ou convulsão social.

Então a questão interessante é porque há qualquer tipo de teoria que sequer se autodenomine radical, uma vez que não seja a teoria anticapitalista clássica. Creio que isso tem a ver com duas coisas: primeiro, com as mudanças nas universidades nos últimos 30 anos, após as quais elas não são mais as torres de marfim que já costumaram ser. São instituições de massas, e essas instituições se abriram a grupos que, historicamente, eram mantidos fora: minorias raciais, mulheres, imigrantes de países em desenvolvimento. Todas as pessoas experimentam diversos tipos de opressão, mas não necessariamente exploração de classe. Surge, então, uma base de massas para o que chamamos de estudos das opressões, os quais são um tipo de radicalismo – e isso é importante, e é real. De todo modo, não é uma base muito interessada em questões sobre a luta de classes ou formações de classe, e coisas como as que o marxismo costuma tratar.

Complementarmente, houve a trajetória da intelligentsia. A geração de 68 não se tornou convencional conforme envelheceu. Alguns queriam manter seus compromissos morais e éticos com o radicalismo. Mas, como todos os demais, também se afastaram do radicalismo classista. Então você teve um movimento de baixo, que foi como um tipo de demanda por teorias focando nas opressões, e um movimento de cima, entre professores que se ofereciam para suprir teorias focando nas opressões. O que os fez convergir não foi apenas um foco nas opressões, mas a remoção da opressão e da exploração de classe da história. E a teoria pós-colonial, por conta de sua própria remoção do capitalismo e das classes – porque ela minimiza e subestima a dinâmica da exploração – acaba estando na medida perfeita.

Qual sua previsão para a teoria pós-colonial? Você espera que ela seja eclipsada, no interior da academia e da esquerda, em breve?

Não, eu não espero. Eu não acho que a teoria pós-colonial está sob nenhum risco de ser substituída, não tão cedo, ao menos. Tendências acadêmicas vêem e vão, não baseadas na validade de suas teses ou no valor de suas proposições, mas por causa da sua relação com um ambiente político e social mais amplo. A desorganização geral do trabalho e da esquerda, que criou as condições para o florescimento da teoria pós-colonial, ainda está muito colocado. Além disso, a teoria pós-colonial tem agora pelo menos duas gerações de acadêmicos que empenharam todas suas carreiras nisso; eles tem meia dúzia de jornais dedicados a isso; há um exército de estudantes de pós-graduação desenvolvendo agendas de pesquisa que vão ao encontro disso. Seus interesses materiais estão atado diretamente com o sucesso da teoria.

Você pode criticar o quanto quiser, mas até que tenhamos movimentos do tipo que o marxismo pôs em movimento nos anos logo após a I Guerra Mundial, ou no augo dos anos 60 e no começo dos 70, você não verá uma mudança. Na verdade, o que você verá é uma reposta ágil e perniciosa a qualquer crítica que possa emergir. Meu triste, mas – eu acho – realista prognóstico é que isso vai estar por aí por um bom tempo.

25 de abril de 2013

"Um pouco de Feu de Joie"

Adam Shatz



Days of God: The Revolution in Iran and Its Consequences 
by James Buchan.
John Murray, 482 pp., £25, November 2012, 978 1 84854 066 8

Tradução / Ao final da II Guerra Mundial, um panfleto anônimo começou a circular nos seminários de Qom, bastião de estudos e de intelectuais muçulmanos xiitas. “Segredos Revelados” [orig. The Unveiling of Secrets] acusava a monarquia iraniana de traição: “Sob chapéus europeus, vocês flanam pelos boulevards, espiam meninas despidas e veem-se como gente finíssima, sem perceber que estrangeiros estão saqueando o patrimônio e os recursos do país”. O panfleto pregava que o Irã fosse governado por uma assembleia de juristas islâmicos, comandada por um sábio. Nesse novo Estado, não seriam necessárias eleições nem Parlamento, nem, sequer, seria necessário qualquer exército: uma milícia de religiosos (basij) garantiria o respeito à lei.

É pouco provável que alguém, fora de Qom, tenha lido “Segredos Revelados”; mesmo nos seminários, poucos teriam abraçado aquele programa. Mesmo assim, trinta anos depois, o autor do panfleto, Ruhollah Khomeini, ajudou a lançar uma revolução que derrubou a monarquia e estabeleceu-se como Líder Supremo do Irã, com poderes que o xá teria invejado. A paisagem política foi transformada: os xiitas do Irã, uma minoria na Casa do Islã, haviam re-escrito o roteiro da revolução no Oriente Médio.

“Dias de Deus” [orig. Days of God], de James Buchan, mostra o processo pelo qual um clericato radical assumiu o controle de um levante popular contra uma ditadura apoiada pelo Ocidente e implantou ali a primeira e até agora única República Islâmica do mundo. Buchan acompanha fielmente os fatos, mas “Dias de Deus” é também uma reflexão erudita sobre três importantes questões: por que houve uma revolução; por que foi revolução islamista; e qual o legado daquela revolução.

A Revolução Islâmica foi, argumenta Buchan, revolução contra uma modernização imposta pelo Ocidente que favorecia um suposto caminho rápido para a modernidade. Tinha um objetivo espiritual brotado diretamente da história do xiismo, com seus temas de martírio e redenção, mas a tentativa de impor a autoridade divina ao governo político acabou por expandir – e, de fato, por santificar – o estado autoritário que os clérigos herdaram do xá. “Na revolta contra o pahlavismo” – escreve Buchan –“a República Islâmica também é a continuação dele, em turbante e túnica”.

A dinastia Pahlavi começou em 1926, quando Reza Khan – soldado da Brigada Iraniana de Cossacos, que chegara ao poder cinco anos antes, por golpe apoiado pelos britânicos contra a monarquia Qajar – se autocoroou xá. Embora ele e seu filho Mohammed se apresentassem como herdeiros de Ciro, o Grande, a dinastia jamais passou de operação “de pai-para-filho”, dependente de patrocínio estrangeiro, contra o qual rugiam, mas do qual jamais se separaram. Reza foi modernizador autoritário do molde de Ataturk, que forçou nômades a se fixar; disciplinou minorias étnicas rebeldes; construiu rodovias e ferrovias; e criou exército e burocracias modernas. Mas seu projeto ocidentalizante, sobretudo os ataques ao véu, arregimentaram contra ele a oposição dos clérigos; além disso, Reza jamais conseguiu apagar da opinião pública a certeza de que não passava de lacaio dos britânicos. Na verdade, resistiu a interferências estrangeiras e tentou renegociar o famigerado acordo de 1919 com a empresa Anglo-Persian Oil Company, mas nada conseguiu. Afinal, depois de declarar o Irã neutro na 2ª Guerra Mundial, foi deposto por tropas soviéticas e britânicas, em setembro de 1941.

Mohammed, o filho mimado, frágil, tampouco gostava muito dos patrões ocidentais, mas rapidamente aprendeu a não os desafiar, sobretudo depois do golpe orquestrado pela CIA contra seu primeiro-ministro, Mossadegh, em 1953. Sedutor, fluente em francês e inglês, com a sofisticação mundana que adquiriu nos anos de estudo em colégios suíços, Mohammed era também nacionalista, mas cometeu o erro de supor que obteria apoio popular sem jamais cogitar de assegurar independência nacional. Depois do golpe de 1953, assinou melhor acordo com a British Petroleum, que garantia ao Irã 50% dos lucros. Embora ainda estivesse longe dos planos de nacionalização de Mossadegh, o acordo gerou um boom de progresso, com projetos grandiosos que seu pai muito teria admirado: barragens, hidrelétricas, uma imensa fábrica de aço financiada e construída pelos soviéticos – uma quase declaração de independência que lhe fez bem ao ego. A população do Irã cresceu, de 19 a 30 milhões; Teerã tornou-se metrópole moderna.

O crescimento econômico gerou elogios e aplausos do ocidente ao xá, mas não lhe valeu o amor do povo iraniano, que ele julgava merecer; e o povo acabou por virar-se contra a própria modernização. Os iranianos viram a modernização como uma modalidade de imperialismo, ameaça existencial às próprias tradições do Irã. Obcecado com conspirações contra o trono, o xá foi-se tornando cada vez mais dependente do Savak, seus serviços de inteligência, que a CIA, o Mossad e o MI6 britânico haviam treinado, especializados em vigilância e interrogatórios. Os que se opusessem à amizade entre o xá e EUA, Israel e a África do Sul do apartheid podiam escolher entre exílio em Berlim ou Paris e os cárceres do Savak.

O xá tentou cooptar a esquerda com sua “revolução branca”, ambicioso programa de reforma agrária lançado no início dos anos 1960s, mas cujo único feito foi destroçar a vida tradicional no interior do país e provocar um êxodo de migrantes, do interior para as favelas de Teerã, que cresceram e converteram-se em território da oposição.

Buchan testemunhou os efeitos deletérios da “revolução branca” no início dos anos 1970s, quando viveu como professor inglês em Isfahan, cidade de palácios que pareciam “tão leves que se podiam erguer do chão com um sopro”. O pahlavismo, aos olhos dele, foi como “serra cega, tentando cortar o núcleo mais duro da iraneidade”. Sugere que o xá foi derrubado tanto pelo “estilo Pahlavi de governar” quanto por suas políticas: o desavergonhado anseio de agradar ao Ocidente com sua “grande civilização”; a cruel indiferença à tragédia da migração interna provocada por suas políticas; o mal disfarçado desprezo pela fé xiita e pelo bazaar, que o xá via como sinais de atraso e ignorância.

Jalal Al-e Ahmad, um dos profetas intelectuais da Revolução reclamava que os iranianos já não sabiam quem eram, que haviam sucumbido a uma praga que ele chamava de gharbzadegi: “Ocidentite” ou “Ocidentose”. Em 1971, na celebração ostentatória, em Persépolis, em que o xá comemorou 2.500 anos da monarquia com 69 chefes de Estado e serviço importado diretamente do restaurante Maxim’s de Paris (“orgia de glutonaria bestial”, nas palavras de Khomeini), o xá praticamente empurrava o povo a derrubá-lo.

Mas, quando a revolução veio, não foi o levante comunista que o xá e seus patrões ocidentais tanto haviam temido, mas uma revolução islâmica que proibiu o álcool, obrigou as mulheres a cobrirem cabeça e corpo e deu todo o poder aos clérigos. A explicação usual para essa reviravolta é que o xá, ao envolver-se na derrubada de Mossadegh e reprimir a esquerda, criou um vácuo que o clericato conseguiu ocupar. Mas isso não explica como o clericato, que sempre vira a política como atividade suja, passou, de repente, a ver-se como ator político e movimentou-se para tomar o poder.

A desconfiança contra o poder do Estado tem raízes profundas na fé xiita. Para os xiitas, qualquer esforço para legislar ou governar, “no melhor dos casos, tem de ser atividade provisória; no pior, é usurpação”, até o retorno do 12º imã, desaparecido em Samarra em 874. Outra razão, mais secular, para que o clericato se mantivesse afastado do poder político é que esse afastamento interessava aos clérigos, no plano material.

Ao longo do século 19, os clérigos enriqueceram, graças à aliança com o bazaar, que canalizava os lucros – além de ¼ dos lucros do comércio do ópio – para as mesquitas e seminários. Embora o clericato se tivesse unido ao bazaar para oporem-se às concessões comerciais a estrangeiros e para pregar a discrição no trajar, em todos os demais assuntos viviam separados e distanciados.

O aiatolá Hossein Borujerdi, marja-e taqlid (“fonte de força e emulação”) sênior em Qom durante os anos 1940s e 1950s, proibira que os clérigos tivessem qualquer envolvimento na política. Mas o ciclo virtuoso de dinheiro-mesquitas construídas tinha de ser protegido contra a intrusão do Estado – sobretudo quando o xá pôs-se a falar de reforma agrária no interior do país, exatamente onde os clérigos eram mais fortes. Para que houvesse revolução islâmica, teria de haver, antes, uma revolução dentro do próprio Islã.

Durante a era Borujerdi, Khomeini foi figura marginal, que vivia quase em ostracismo em Qom, conhecido quase exclusivamente pelo estilo austero de vida e por seus conhecimentos de erfan (misticismo). Suas palestras atraíam bom público, mas também levantavam suspeitas de que fosse “infiel”, talvez, até, sunita. Cultivava linguagem erudita e um ar de superioridade que contagiava seus seguidores; e desdenhava colegas “mulás estúpidos e reacionários”, como dizia. Admirava homens de ação, sobretudo os que executavam membros do governo, por dever religioso. Borujerdi mantinha Khomeini à distância, temendo que seu radicalismo tornasse o seminário vulnerável à perseguição pelos serviços de segurança do xá. Mas depois da morte de Borujerdi, em 1961, Khomeini começou a erguer a voz contra o xá.

Seu primeiro alvo foi a “revolução branca”, que o xá levou a referendo popular em 1963. Khomeini acreditava que, por dar voto a “grande quantidade de mulheres ignorantes”, o referendo gerava grave ameaça de “extirpar o Islã”. Mas instruiu seus seguidores a não atacar o conteúdo do que estaria sendo votado, um pacote de algumas normas de reforma agrária e nacionalização de florestas, que muitos iranianos (principalmente a classe média urbana e nacionalista) apoiava. Em vez de atacar o conteúdo, atacou o próprio referendo, acusando o xá de violar a Constituição. Forças da monarquia atacaram o seminário de Faizieh e, nos confrontos, morreu um estudante. Khomeini e seus apoiadores converteram a cerimônia dos 40 dias de luto em manifestação política, exatamente como fariam depois, nos “dias de Deus” da Revolução. Em discurso furioso, Khomeini chamou o xá de “escombro sem valor”; disse que ele tratasse de “aprender a lição do destino de seu pai”. Quando Khomeini foi preso, explodiram levantes em todo o país; as forças do xá atiraram contra uma multidão de manifestantes que cantavam: “Khomeini ou morte!”.

“Por que não deixam a política para nós?”, perguntou a Khomeini o chefe do Savak, Hassan Pakravan, que convencera o xá a libertá-lo, “política é vilania, mentiras, hipocrisia. Não se deixe contaminar pela política”. Era conversa que talvez funcionasse com Borujerdi, mas Khomeini era homem de outro tipo. (Ao assumir o poder, Khomeini mandou executar Pakravan). O prestígio de Khomeini crescia enormemente. O establishment religioso em Qom já o promovera ao posto de marja-e taqlid, única via possível para tirá-lo da prisão.

Mas nem o novo título serviu de proteção quando, em 1964, Khomeini denunciou a imunidade diplomática que protegia, no Irã, todos os militares norte-americanos.

Se um norte-americano, digamos, um cozinheiro norte-americano, assassinar nosso marja no meio do bazaar, ou se esmagá-lo com o coturno, a polícia do Irã não o prenderá. Mas se um iraniano atropelar um cachorro que pertença a um militar norte-americano, será processado – trovejava Khomeini.

Uma semana depois disso, Khomeini foi expulso para a Turquia. Um ano depois, foi transferido para um seminário em Najaf, no Iraque. Ali se organizou uma rede de estudantes iranianos revolucionários, trabalhando em íntima associação com Abol Hassan Bani-Sadr, jovem e rico militante terceiro-mundista, que vivera em Paris e que viria a ser o primeiro presidente da República Islâmica.

Religioso, de hábitos severos, de turbante, Khomeini pouco tinha que o qualificasse como líder de estudantes. Mas valente oposição que fez contra o Xá e a aproximação que construiu entre o xiismo e a luta anti-imperialista ressoou entre os jovens leitores de Al-e Ahmad e Ali Shariati, os pais espirituais da Revolução Islâmica. Gharbzadegi de Al-e Ahmad e A Volta a Nós Mesmos [orig. Return to Ourselves] de Shariati ofereciam uma mistura hipnótica, encantatória de marxismo, misticismo xiita e [Frantz] Fanonismo. Falavam a um sentimento comum e disseminado, de que a cultura iraniana estava sob ameaça de ser atropelada, até destruída, pela cultura ocidental do consumismo.

O esquerdismo islamista de Al-e Ahmad e Shariati era, ele próprio, uma mistura complexa de ideias ocidentais e muçulmanas, que tinha de vital o que tinha de impreciso e indefinido, mas manifestava claramente uma ânsia por alguma modernidade alternativa, um estilo de vontade radical que era – ou pelo menos foi intensamente sentida como tal – autenticamente iraniana. A solução para os problemas do Irã, diziam eles, não será jamais encontrada em modelos ocidentais, mas no “verdadeiro” Islã de libertação nacional e justiça social, como o conceberam os velhos sábios de Qom. O Islã nunca foi um código fixo de regras e proibições, mas uma religião de liberdade, uma espécie de existencialismo persa, e vivia na consciência individual, nas mesquitas. “O Imã pelo qual todos nós esperamos já vive dentro de cada um de nós” – escreveu Al-e Ahmad.

Khomeini foi pressionado por Qom para que excomungasse Shariati como “desviante”, por causa de seus ataques à poligamia e ao véu. Mas mais uma vez “e não seria a última” – como escreve Buchan – “Khomeini provou ser homem sutil e paciente”. Pouco teria a ganhar com ataques ao ídolo dos estudantes; além disso, a crítica de Shariati contra o clericato fazia dele excelente aliado tático de Khomeini, em luta contra o establishment religioso conservador em Qom. Khomeini viu que a fusão que Shariati construíra, de motivos islâmicos e marxistas, poderia ser poderosa ferramenta de mobilização.

Os slogans dos khomeinistas durante a Revolução – “O Islã pertence aos oprimidos, não aos opressores” / “O Islã manifesta os que vivem em barracos, não os que vivem em palácios” – muito devem a Shariati, que morreu no exílio, na Inglaterra, em 1977. Milhares de seguidores de Shariati – especialmente os guerrilheiros da esquerda islâmica dos “Mujahedin do Povo”, que ajudaram a disparar a Revolução, mas depois romperam violentamente com a República Islâmica – acabariam prisioneiros nas prisões de Khomeini; mas naquele momento, como escreve Buchan, “a reconciliação com os Shariatistas teria de esperar.”

Enquanto Shariati falava de libertação, Khomeini cuidava do que aconteceria depois da libertação. A questão de quem governaria depois do xá era a única que realmente o ocupava. Em uma série de palestras que deu em Najaf em 1970, publicadas um ano depois como Islamic Government [Governo Islâmico], Khomeini dizia que a concepção corânica de velayat-e faqih, “o governo dos jurisconsultos/juristas (islâmicos)”, não se aplicava só a viúvas e órfãos (como muitos clérigos acreditavam e ensinavam), mas à sociedade como um todo: o estado islâmico deve ser governado por um grupo de clérigos; até mesmo “por um único homem”, mas não poderia ser jamais algum tipo de monarca, porque o islamismo é inerentemente hostil à monarquia. Deve ter soado como espantosa novidade para clérigos que haviam apoiado monarcas iranianos desde a fundação da dinastia safavida no século 16. Apesar do tom escritural da elocução, esse velayat-e faqih já soava, para muitos, como interpretação fantasiosa do Corão.

***

Quando jornalistas ocidentais o visitaram em Neauphle-le-Château, a vila nos arredores de Paris onde passou os últimos quatro meses de exílio, Khomeini não falou do governo dos jurisconsultos/juristas islâmicos. Sem saber do que ele dissera em Islamic Government, os ocidentais que se sentaram com ele sob aquela macieira, dos quais o mais famoso foi Michel Foucault, reproduziram o que Khomeini lhes dissera ali, que não tinha interesse pessoal pelo poder e que as mulheres seriam livres na República Islâmica. 

Poucos iranianos algum dia haviam ouvido falar de “governo dos jurisconsultos/juristas (islâmicos)”; para muitos, a simplicidade e a sobriedade de Khomeini encarnavam não só a oposição ao xá, mas a própria honra nacional do Irã. O espetáculo de Khomeini na França, escreve Buchan, “reforçou nos iranianos a noção de que eles próprios eram também vulneráveis e preciosos”. Até os comunistas exilados do Partido Tudeh alinharam-se a Khomeini. (Em 1983, o líder do Tudeh pediu desculpas, transmitidas por televisão e extraídas sob tortura, por ter “traído” a Revolução). Mas, apesar de sua serena indiferença ao que pensasse ou dissesse o Ocidente, Khomeini já se deixara contaminar pela gharbzadegi, a “Ocidentite”, ou “Ocidentose”, dos Pahlavis, que Al-e Ahmad definira tão claramente.

A fagulha que desencadeou os primeiros embates da Revolução Iraniana foi um ataque a Khomeini, publicado sob pseudônimo, num jornal iraniano, três dias depois da visita de Jimmy Carter a Teerã, no Ano Novo de 1978. Mas o xá e seus patrões continuavam a supor que a ameaça real viria da esquerda. A CIA diagnosticara, ainda em agosto daquele ano, que o Irã “não estava em situação revolucionária nem de pré-revolução”.

Mas depois que um incêndio, dia 19 de agosto, no Rex Cinema, na cidade petroleira de Abadan, matou mais de 400 pessoas, já se sabia, sem sombra de dúvida, que os dias do xá estavam contados. Não porque o governo do xá tenha tido algo a ver com o incêndio; mas porque nenhum iraniano acreditaria que não tivera.

Depois da Revolução, um ex-traficante de drogas confessou que iniciara o incêndio no cinema, com um grupo de ativistas islamistas. Disse esperar que o incêndio atraísse apoio para “o pessoal que estava fazendo a Revolução”. Khomeini era conhecido por dizer que cinemas eram “ninhos de iniquidade”, mas, ali, ele viu de onde extrair boa vantagem estratégica. Declarou que o incêndio “contrariava todas as leis do Islã” e, portanto, tinha sido, obviamente, serviço dos homens do xá.

Em setembro, aconteceria o massacre dos manifestantes da Praça Zhaleh, que ficaria conhecido como o massacre da Sexta-feira Negra. Em outubro e novembro, houve ataques selvagens à refinaria de Abadan e bancos foram incendiados. A terceira esposa do xá, Farah Diba, descreveu esses eventos como “um pequeno feu de joie [fr. no orig., “tiros para o ar”] popular. O xá dissolveu o estado de partido único e introduziu o que chamou de “democracia responsável”, o que só conseguiu fazê-lo aparecer como ainda mais fraco. Multidões desarmadas clamavam, nas ruas, pelo fim da monarquia, e o xá, diferente do pai, não manifestou qualquer vontade de resistir. Em dezembro, foi Khomeini, não o xá, quem convenceu petroleiros em greve a refinar petróleo suficiente para o consumo do país. Em meados de janeiro 1979, o xá fugiu do Irã, com a rainha, levando na bagagem uma caixinha com terra do Irã.

Nas duas semanas entre a partida do xá e a volta de Khomeini, não se sabia com certeza quem governava. O primeiro-ministro Shapour Bakhtiar, funcionário da era Mossadegh e ex-prisioneiro do xá, dissolveu o Savak, libertou prisioneiros políticos, proibiu por lei a venda de petróleo para Israel e a África do Sul e pôs fim à censura à imprensa. As reformas de Bakhtiar podem ter agradado muitos iranianos – mas antes de desembarcar em Teerã, Khomeini exigiu que renunciasse. O governo americano estava dividido entre os que insistiam em um golpe militar e os que, como William Sullivan, embaixador dos EUA em Teerã, viam Khomeini como figura assemelhada a Gandhi e aliado potencial na luta contra o comunismo.

Os soviéticos assumiram que o que os americanos perdessem seria ganho para os soviéticos, e que os gritos de “Deus é grande!” e o mar de turbantes e chadors que tomava as ruas de Teerã não passava de fachada para uma revolução socialista. Mas o slogan de Khomeini era “nem Leste nem Oeste”, e significava que os iranianos haviam feito sua revolução para romper com a história da interferência estrangeira, não para trocar de superpotência patroa – muito menos uma nova encarnação da Rússia Imperial, sua velha inimiga. “Esse não é governo igual a todos” – disse Khomeini em Teerã, dia 5/2/1979, quatro dias depois que milhões de iranianos saíram às ruas para recebê-lo de volta. Menos de uma semana depois disso, civis invadiam instalações militares, soldados desertavam, e Bakhtiar, disfarçado como empresário francês, fugiu para a França.

Um mês depois, em referendo, avassaladora maioria aprovou uma República Islâmica. O primeiro-ministro de Khomeini, Mehdi Bazargan, nacionalista liberal cauteloso, que comandara a indústria do petróleo sob Mossadegh, preferiria que os iranianos tivessem escolhido uma “República Islâmica Democrática”, mas Khomeini vetou a fórmula: “O Islã dispensa adjetivos do tipo “democrático”. Para nós, nenhum adjetivo acrescenta qualidades ao Islã, que é perfeito”. Mas conformou-se ante alguns ocidentalismos que detestava, inclusive um parlamento eleito e direito de voto assegurado às mulheres. O estado que resultou disso, apoiado por Khomeini, seria um híbrido de governo dos jurisconsultos (juristas) islâmicos (velayat-e faqih) e da república à francesa. Mas a Assembleia dos Especialistas, de 73 membros, todos homens, dominada por seguidores de Khomeini, a maioria dos quais clérigos, controlava tudo. E acima de todos ficava o próprio Líder Supremo, o próprio Khomeini, com mandato vitalício. Khomeini implantou também um shadow government [lit. governo nas sombras], pelo qual consolidou o próprio poder sobre o Estado, composto do Corpo de Guardas Revolucionários, do Partido da República Islâmica e da milícia IRP, à qual foram entregues os campi universitários, em violenta “revolução cultural” contra a esquerda, antigos aliados de Khomeini. Monarquistas e outros suspeitos de “semear a corrupção sobre a terra” logo se viram objetos de julgamentos em tribunais revolucionários, nos quais Sadegh Khalkhali, clérigo sem expressão nacional, que Khomeini nomeou para a Corte Suprema, supervisionou milhares de execuções. O objetivo aí não era apenas punir, mas, nas palavras do locutor da rádio estatal, “injetar sangue novo nas veias da Revolução”.

A decisão de Khomeini de apoiar os “Seguidores da Linha do Imã” [orig. Followers of the Line of the Imam] – os estudantes que invadiram a Embaixada dos EUA em novembro de 1979, pouco depois de o xá ter chegado ao New York Hospital para tratar-se de um câncer – foi tomada com objetivo semelhante. O alvo real nem era tanto os EUA quanto os nacionalistas moderados que o ajudaram a chegar ao poder: homens como Bazargan, cujas formação universitária e esperança de que o Irã re-estabelecesse relações com o ocidente convertiam em perigosos suspeitos de “liberalismo”. Os “Seguidores da Linha do Imã” diziam que tratavam de impedir que se repetisse o golpe de 1953, mas os americanos, agora, tentavam uma reaproximação – e Khomeini sabia perfeitamente disso.

Quando os estudantes escalavam os muros da embaixada [momento que se vê com precisão fotográfica em Argo, o filme, do qual contudo se apagam todas as pistas que permitiriam considerar o contexto em que aconteceu a operação (NTs)], Bazargan, com a aprovação de Khomeini, estava reunido em Argel com o principal Assessor de Segurança Nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski. Bazargan denunciou os estudantes pela violação da lei internacional e das regras da diplomacia, mas o Supremo Líder apoiou-os, colhendo a oportunidade de pintar qualquer oposição à invasão da Embaixada como covarde rendição ao Grande Satã. Bazargan demitiu-se. Quando afinal os reféns foram soltos, em janeiro de 1981, o líder espiritual dos que os haviam sequestrado, Mohammad Khoeiniha, declarou que “a árvore da revolução cresceu e ganhou força”.

Na verdade, a árvore da revolução perdera parte considerável de sua força: a República Islâmica recebeu apenas $2,88 bilhões, dos $12 bilhões do patrimônio iraniano que lhe era devido e foi congelado; praticamente todo o restante foi consumido para pagar o serviço das dívidas do xá. Para Buchan, “não se pode dizer com certeza quem era refém de quem”. Mas as perdas financeiras foram mais do que recompensadas pela derrota imposta aos “liberais” e pela vitória psicológica sobre os norte-americanos e também, o que não significava pouco, sobre os aliados pré-revolucionários. Numa das mais fantasmáticas imagens da Revolução, jovens cujas avós haviam “tecidos tapetes nos anos 1920s”, agora se dedicavam a colar fragmentos de documentos recolhidos no “ninho dos espiões” [imagem que se vê no filme Argo, das poucas informações realmente interessantes, do ponto de vista histórico, do filme (NTs)]. Com o Irã no pleno controle, afinal, do próprio destino, o isolamento internacional, a dívida e as sanções pareciam pequeno preço a pagar. E a República Islâmica podia assumir a própria rota de desafio, porque o petróleo iraniano estava, afinal, sob comando dos iranianos.

A crise dos reféns reforçou o radicalismo da revolução de Khomeini; a guerra contra o Iraque deu resiliência e legitimidade popular à sua República. Começou em setembro de 1980, quando o Iraque atacou de surpresa, na esperança de redelimitar a fronteira no rio Shatt al-Arab. Os americanos e os franceses apoiaram o Iraque, e até os soviéticos tenderam na direção de Saddam. Os únicos apoiadores do Irã na região foram a Síria e, por pouco tempo, os israelenses, que esperavam que Khomeini viesse a aliar-se a eles, como o xá se alinhara. Em julho de 1982, o Irã expulsara o exército do Iraque do sudoeste do país. Khomeini deixou a vitória escapar-lhe entre os dedos, ao rejeitar a proposta de armistício de Saddam. Os israelenses acabavam de invadir o Líbano, e Saddam sugeriu a Khomeini que seus países pusessem de lado as diferenças, para combater “o inimigo sionista”. Mas Khomeini suspeitava que a invasão israelense fosse uma armadilha, construída pelo ocidente, para proteger o Iraque contra um castigo a ser-lhe imposto pelo Irã, que descobrira um “pulmão” no leste árabe: a organização guerrilheira xiita “Hezbollah”, organizada pelo Corpo de Guardas Revolucionários no Vale do Bekaa, no verão de 1982, que é hoje o mais importante e precioso aliado da República Islâmica na região, um escudo contra qualquer ataque israelense às suas instalações nucleares.

A continuação da guerra contra o Iraque condenou o Irã a mais seis anos de imenso sofrimento, incluindo os ataques com armas químicas que lhe foram impostos por Saddam. Adolescentes iranianos, mal chegados à puberdade, recebiam “uma rama e vinte balas e eram mandados combater uma posição de artilharia”, informados de que combatiam contra soldados israelenses. Então, o objetivo da guerra já era derrubar o regime do Partido Baath e expandir a Revolução Islâmica. Bem mais de 100 mil soldados iranianos morreram antes que, no final de 1988, Khomeini afinal aceitasse um acordo de cessar-fogo da ONU. Aceitou beber “do cálice envenenado”, como disse, depois que o porta-aviões norte-americano USS Vincennes derrubou um avião carregado de civis iranianos, confundido com um F-14.

Quase 300 passageiros e a tripulação morreram, em ação que, para Khomeini, foi ataque deliberado: uma mensagem dos EUA, para que o Irã entendesse que jamais, em caso algum, lhe concederiam vencer aquela guerra. Khomeini interpretou corretamente as intenções dos EUA. E a derrota ante a maior potência bélica do planeta garantiu-lhe saída honrosa. A redenção pelo martírio dos iranianos viria 14 anos depois, quando o Iraque caiu no colo do Irã, cortesia dos militares norte-americanos.

Terminada aquela guerra, Khomeini começou a preocupar-se com o futuro de sua revolução; e lançou nova onda de expurgos. Começou por executar quase 3.000 membros dos Mujahedin do Povo, que haviam lutado nas tropas de Saddam. A seguir, na fila, vieram os condenados por “guerrear contra Deus”: entre as vítimas, uma filha de 13 anos de um clérigo aliado, o aiatolá Hossein-Ali Montazeri, protegido de Khomeini e cogitado para sucedê-lo. Montazeri escreveu a Khomeini para protestar contra “esse ato de vingança e desprezo” e para lembrá-lo da crença muçulmana no perdão; Khomeini ignorou-o. No 10º aniversário da Revolução, Montazeri escreveu novamente a Khomeini, denunciando as restrições à liberdade. Dessa vez, Khomeini respondeu. Disse-lhe que jamais seria Líder Supremo; e avisou-o de que, se não calasse a boca “Serei obrigado a tomar alguma providência contra você. E você sabe que jamais descuido do meu dever”. Montazeri refugiou-se em Qom. Khomeini convocou uma assembleia constitucional especial, de membros que, praticamente todos, haviam sido nomeados por ele, e reformaram a Constituição, que deixou de exigir que o Supremo Líder tivesse ocupado a posição de marja-e-taqlid.

Assim se abriu ostensivamente o caminho para que Ali Hosseini Khamenei, que não era marja, mas sempre foi renomado khomeinista, substituísse o líder depois de sua morte. Bastou esse movimento de mão do próprio autor, para que o fundamento escolástico do governo dos jurisconsultos/juristas (islâmicos) [velayat-e faqih] fosse abolido.

***

Todos os esforços para democratizar a República Islâmica na era Khamenei deram em nada. O presidente reformista Mohammed Khatami, ex-discípulo e aluno de Montazeri, foi minado por dentro do próprio governo por clérigos linha-dura, e por fora pelo governo Bush, que agradeceu ao Irã por sua ajuda no Afeganistão depois de 2001, pondo fim às aberturas pró-paz e incluindo o Irã, com Coreia do Norte e Iraque, no mesmo “eixo do mal”.

As manifestações em 2009 do “Movimento Verde”, reação a uma suposta fraude nas eleições presidenciais, foram reprimidas por milícias basij, com as bênçãos de Khamenei. O aparato de estado já estava constituído de clérigos linha-dura liderados por Khamenei e islamistas anticlericais no Corpo de Guardas Revolucionários; os dois grupos detestavam-se entre eles, mas estavam unidos contra os reformadores.

O Islã ainda assegura à República fonte mais local e profunda de legitimidade do que o comunismo assegurou à União Soviética, mas número crescente de clérigos vêm-se unindo à oposição ou recolhem-se ao quietismo da geração anterior. A intelligentsia iraniana apenas tolera, quando não despreza, a República Islâmica.

Seja como for, os iranianos não anseiam por outra revolução, nem aceitarão “mudança de regime” que lhes venha do exterior. Há uma diferença crucial entre a tirania da dinastia Pahlavi e a República Islâmica: a República Islâmica é produto de revolução local e tem raízes mais profundas. Ridicularizados pelos monarcas Pahlavi, como atrasistas e supersticiosos, Khomeini e os clérigos seus aliados acabaram por realizar o sonho que Reza Shah e seu filho nunca conseguiram realizar: criar um Irã moderno e independente, com status e prestígio de potência regional, cujo alcance já chegou ao Líbano, Afeganistão, Iraque, Síria e Palestina. A grande baixa da Revolução foi a visão de liberdade que Al-e Ahmad e Shariati trouxeram à tona, a mesma que Khomeini tanto elogiou, só da boca para fora, em Neauphle-le-Château.

Desde o colapso da reforma de Khatami, o estado tornou-se mais autoritário, mais paranoico e mais brutal no tratamento aos dissidentes. A juventude, atingida pela ferocidade da repressão pelos basij, já descrê da possibilidade de qualquer reforma e deu as costas à política. Sua principal preocupação é conseguir pagar as contas no fim do mês, em tempos de sanções punitivas.

As sanções visam oficialmente a impedir que o Irã continue a trabalhar em seu programa nuclear, que o país insiste que só tem finalidades pacíficas. Mas as sanções dificilmente funcionarão. O Irã tem inimigos armados com bombas atômicas e memória recente de ter sido atacado com armas químicas, enquanto o mundo dava-lhe as costas e fingia que não estava vendo. E, seja como for, a decisão de jamais ceder ante qualquer pressão externa é um dos princípios basilares da República Islâmica. Por mais que anseie pelo reconhecimento internacional, o país já sobreviveu ao isolamento e, em vários sentidos, o isolamento não assusta os iranianos. (Nisso, o Irã não é diferente de Israel, estado que também diz representar uma minoria perseguida e justifica a atitude de desafio contra tudo e contra todos, inclusive o desacato à lei internacional, com retórica de nacionalismo religioso fundamentalista e arrogante vitimismo). O isolamento fez aumentar a autoconfiança e estimulou o sacrifício, e o sacrifício é visto como prova de virtude.

A tenacidade da República Islâmica durante a guerra contra o Iraque fortalece a crença de que ela também resistirá às sanções – como já resiste ao assassinato, por Israel, de seus cientistas nucleares.

O programa nuclear goza de alta popularidade na opinião pública, que o vê como fator de contenção e absolutamente não entende por que Israel, Paquistão e Índia são autorizados a ter arsenal atômico, mas não o Irã. A resistência a pressões que lhe vieram do Ocidente já define o nacionalismo iraniano há mais de um século, e ainda é das poucas cartas com que um regime, pouco popular sob inúmeros outros critérios, ainda pode jogar, a seu favor.

Buchan conclui seu estudo, com a esperança de que o Irã se mostre menos intransigente do que em 1953, quando Mossadegh foi derrubado por ter nacionalizado a Anglo-Iranian Oil Company. Mas Khamenei e seus clérigos podem extrair outra lição, diferente, dos eventos de 1953, sobretudo hoje, se compararem o destino de Gaddafi, que extinguiu seu programa nuclear nacional, e o destino do regime da Coreia do Norte, que não o fez. Eles são xiitas, sim, mas isso não implica que desejem ser mártires.  

Thatcher pode ter sumido, mas lembre-se: sua influência cruel continua no Partido Trabalhista

Quando Ed Miliband prestou homenagem a Thatcher como uma heroína feminista "corajosa" cujas conquistas ele pessoalmente "honrou", você sabia que ela não havia morrido.

John Pilger

New Statesman

Após o desaparecimento de Thatcher, recordo suas vítimas. A filha de Patrick Warby, Marie, foi uma delas. Marie, com cinco anos, sofria de uma deformidade do intestino e precisava de uma dieta especial. Sem ela, o sofrimento era aflitivo. Seu pai era um mineiro de Durham e gastara todas as suas poupanças. Era o Inverno de 1985, a Grande Greve tinha quase um ano e a família estava empobrecida. Embora a necessidade de operação não fosse contestada, o Departamento de Segurança Social recusou ajuda a Marie. Posteriormente, obtive registos do caso mostrando que Marie fora recusada porque o seu pai era "influenciado por uma disputa sindical".

A corrupção e desumanidade sob Thatcher não conheciam fronteiras. Quando chegou ao poder em 1979, Thatcher pediu uma proibição total de exportações de leite para o Vietnã. A invasão americana havia deixado um terço das crianças vietnamitas desnutridas.

Testemunhei muitas visões penosas, incluindo crianças ficando cegas devido à falta de vitaminas. "Não posso tolerar isto", disse um médico angustiado num hospital pediátrico de Saigón, quando olhávamos para um rapaz morrendo. A Oxfam e a Save the Children havido deixado claro para o governo britânico a gravidade da emergência. Um embargo conduzido pelos EUA havia forçado o preço local do litro de leite a subir para dez vezes o do quilo de carne. Muitas crianças podiam ter sido recuperadas com leite. A proibição de Thatcher impediu.

No vizinho Camboja, Thatcher deixou um rastro de sangue, secretamente. Em 1980, ela exigiu que o defunto regime Pol Pot – o assassino de 1,7 milhão de pessoas – retivesse o seu "direito" a representar suas vítimas na ONU. A sua política era de vingança do libertador do Camboja, o Vietnã. O representante britânico foi instruído a votar com Pol Pot na Organização Mundial de Saúde, impedindo-a dessa forma de proporcionar ajuda para o lugar onde era mais necessária do que qualquer outro na terra.

Para esconder esta infâmia, os EUA, a Grã-Bretanha e a China, os principais apoiadores de Pol Pot, inventaram uma "coligação de resistência" dominada pelas forças do Khmer Rouge de Pol Pot e abastecida pela CIA em bases ao longo da fronteira tailandesa. Havia uma dificuldade. Na sequência da derrocada do Irangate, armas-por-réfens, o Congresso dos EUA proibira aventuras clandestinas no estrangeiro. "Num daqueles acordos que ambos gostavam de fazer", contou um alto responsável do Whitehall [1] ao Sunday Telegraph, "o presidente Reagan sugeriu a Thatcher que o SAS [2] deveria assumir o comando do show do Camboja. Ela prontamente concordou".

Em 1983, Thatcher enviou o SAS para treinar a "coligação" na sua própria e diferente marca de terrorismo. Sete equipes de homens do SAS chegaram de Hong Kong e soldados britânicos começaram a treinar "combatentes da resistência" em estender campos de minas num país devastado pelo genocídio e a mais alta taxa de mortes e mutilações do mundo devido a campos de minas.

Noticiei isto na altura e mais de 16 mil pessoas escreveram a Thatcher para protestar. "Confirmo", respondeu ela ao líder da oposição Neil Kinnock, "que não há envolvimento do governo britânico de qualquer espécie no treino, equipamento ou cooperação com o Khmer Rouge ou aliados dele". A mentira era de cortar o fôlego. Em 1991, o governo de John Major admitiu no parlamento que o SAS havia na verdade treinado a "coligação". "Nós gostamos dos britânicos", disse-me mais tarde um combatente do Khmer Rouge. "Eles foram muito bons ensinando-nos a montar armadilhas explosivas (booby traps). Pessoas confiantes, como crianças em campos de arroz, foram as vítimas principais".

Quando os jornalistas e produtores do memorável documentário "Death on the Rock", da ITV, revelaram como o SAS havia dirigido outros esquadrões da morte de Thatcher na Irlanda e em Gibraltar, foram perseguidos pelos "jornalistas" de Rupert Murdoch, então acovardados em Wapping [3] atrás do arame farpado. Embora absolvida, a Thames TV perdeu sua concessão da ITV.

Em 1982, o cruzador argentino General Belgrano navegava fora da zona de exclusão das Falklands [4]. O navio não constituía ameaça, mas Thatcher deu ordens para que fosse afundado. Suas vítimas foram 323 marinheiros, incluindo adolescentes alistados. O crime tinha uma certa lógica. Dentre os mais próximos aliados de Thatcher estavam assassinos em massa – Pinochet no Chile, Suharto na Indonésia, responsáveis por "muito mais do que um milhão de mortes" (Anistia Internacional). Embora desde há muito o estado britânico armasse as principais tiranias do mundo, foi Thatcher que com um zelo de cruzado procurou tais acordos, conversando empolgada acerca das mais refinadas características de motores de aviões de combate, negociando arduamente com príncipes sauditas que pediam subornos. Filmei-os numa feira de armas, a acariciarem um míssil reluzente. "Terei um daqueles!", disse ela.

No seu inquérito das armas-para-o-Iraque, Lorde Richard Scott ouviu evidências de que toda uma camada do governo Thatcher, desde altos funcionários civis até ministros, mentira e infringira a lei na venda de armas a Saddam Hussein. Eram os seus "rapazes". Se folhear números antigos do Baghdad Observer encontrará na primeira página fotos dos seus rapazes, principalmente ministros do gabinete, sentados com Saddam na sua famosa poltrona branca. Ali está Douglas Hurd e um sorridente David Mellor, também do Foreign Office, na época em que o seu hospedeiro ordenava o gaseamento de 5000 curdos. A seguir a esta atrocidade, o governo Thatcher duplicou créditos comerciais para Saddam.

Talvez seja demasiado fácil dançar sobre a sua sepultura. O seu funeral foi uma proeza de propaganda, adequada a um ditador: uma mostra absurda de militarismo, como se se houvesse verificado um golpe. E foi. "O seu triunfo real", disse outro dos seus rapazes, Geoffrey Howe, ministro da Thatcher, "foi ter transformado não apenas um partido mas dois, de modo que quando o Labour finalmente retornou, a maior parte do thatcherismo era aceito como irreversível".

Em 1997, Thatcher foi o primeiro antigo primeiro-ministro a visitar Tony Blair depois de ele ter entrado na Downing Street [5]. Há uma foto deles, juntos num rito: o criminoso de guerra em embrião com a sua mentora. Quando Ed Milliband, na sua untuosa "homenagem", travestiu Thatcher como "corajosa" heroína feminista cujas façanhas pessoalmente "admira", fica-se sabendo que a velha assassina não morreu de todo.

Sobre o autor

John Pilger, renowned investigative journalist and documentary film-maker, is one of only two to have twice won British journalism’s top award; his documentaries have won academy awards in both the UK and the US. In a New Statesman survey of the 50 heroes of our time, Pilger came fourth behind Aung San Suu Kyi and Nelson Mandela. “John Pilger,” wrote Harold Pinter, “unearths, with steely attention facts, the filthy truth. I salute him.”

18 de abril de 2013

A invenção da Terra de Israel

Neste segundo volume de sua trilogia de estudos judaicos, Sand explora como a "Terra de Israel" foi inventada, e desmascara a mitologia nacionalista popular.

Donald Sassoon

The Guardian

Em 2009, Shlomo Sand publicou “A Invenção do Povo Judeu", no qual afirmou que os judeus têm pouco em comum uns com os outros. Não existe uma linhagem étnica comum em virtude do elevado índice de conversão na antiguidade. Também não têm uma linguagem comum, pois o hebraico era unicamente utilizado para efeitos litúrgicos e não era nem falado no tempo de Jesus. O ídiche era somente utilizado pelos judeus asquenazes. O que resta para os unir? Religião? Mas religião não cria um povo – vejamos o caso dos muçulmanos e dos católicos. Além de que muitos dos judeus não são religiosos. Sionismo? Não passa de uma opção política: alguém pode ser escocês e não ser partidário do nacionalismo escocês. Além de que muitos judeus, incluindo sionistas, não têm a mínima intenção de “retornar” à Terra Santa preferindo permanecer em Londres, Brooklyn ou onde seja. Por outras palavras, a designação de “Povo Judeu” é uma construção política, uma invenção. Agora, Sand diz-nos neste segundo volume, daquilo que será uma trilogia, que mesmo a ideia de “Terra de Israel” foi inventada. O terceiro volume da trilogia será “A Invenção dos Judeus Seculares”.

A “Terra de Israel” quase não é mencionada no Antigo Testamento; a expressão mais frequente é Terra de Canaã. Quando é mencionada, não inclui Jerusalém, Hebron ou Belém. “Israel” bíblica é somente Israel Norte (Samaria) e jamais existiu um reino único e unido que incluísse a antiga Judeia e Samaria. 

Mesmo que tal reino alguma vez tenha existido, não é um argumento válido para reivindicar um estado após mais de 2000 anos. É uma ironia da História que tantos sionistas, muitos deles seculares e socialistas usem argumentos religiosos para sustentar as suas teses. Além disso, o relato bíblico deixa bem claro que os judeus, liderados por Moisés e depois por Josué, foram colonizadores e ordenados por Deus para exterminar “tudo o que respire”. “Destrói-os completamente – Hititas, Amoritas, Cananeus, Ferezeus, Hivitas e Jebuseus - como o Senhor vos ordenou”. Imaginem se os Amoritas voltassem para reclamar a sua antiga terra. Se o fizessem, isto é o que Deuteronómio 20 tem a dizer: “Passem pela espada todos os homens... Quanto às mulheres, crianças, gado e tudo o mais... podem tomá-los para vós como pilhagem”. Hoje em dia, uma injunção deste tipo iria levá-lo diretamente para o Tribunal Penal Internacional.

A incerteza quanto ao que constitui exatamente a “Terra de Israel” perdura até hoje. Existe um estado de Israel reconhecido internacionalmente com fronteiras claramente definidas (A Linha Verde de 1967 resultou da expansão que se seguiu à guerra de 1948) e existe a “Terra de Israel” cujas fronteiras dependem de quem está falando; para alguns isso inclui toda a Cisjordânia, para outros toda a Jordânia. Para muitos, inclui parte da Turquia, Síria e Iraque, pois Deus prometeu a Abraão e aos seus descendentes “esta terra, desde o rio do Egito até ao Eufrates”.

No judaísmo tradicional não existe qualquer determinação de “regresso” à “Terra de Israel”. O ritual “próximo ano em Jerusalém”, que faz parte da oração do Sêder de Pessach, nunca foi uma chamada para reivindicar ou reconstituir um estado.

No século XIX, aqueles que defendiam o “regresso” dos judeus à Terra Santa eram mais cristãos sionistas que judeus. Lord Shaftesbury, um Tory compassivo que contribuiu para a melhoria das condições de loucos em asilos e crianças nas fábricas (The Ten Hours Act, 1833), lutou incessantemente para promover uma presença judaica na Palestina. Shlomo Sand descreve-o como um Theodor Herzl antes de Herzl, e com razão pois parece que foi Shaftesbury quem criou a famosa frase “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. Claro que ele tinha a esperança que os judeus se convertessem ao cristianismo. Lord Palmerston, do lado liberal, também se entusiasmou com a ideia, não por se importar com os judeus (ou cristãos), mas porque pensava que se os judeus britânicos colonizassem uma parte do Império Otomano, isso aumentaria a influência britânica.

Nessa altura, poucos judeus eram sionistas. Quando perseguidos, como aconteceu no Império Russo, preferiam fugir para as novas terras de emigração, como a Argentina ou os Estados Unidos, do que para a Terra Prometida. O que fez o "Estado de Israel" possível não foi a promessa de Deus, mas sim o Holocausto e a relutância ocidental de providenciar refúgio aos sobreviventes.

Grande parte do que Shlomo Sand revela é conhecido pelos especialistas. O seu feito consiste em desmascarar a mitologia nacionalista que reina em grande parte da opinião popular. Também normaliza os judeus, uma vez que desafia a crença no excepcionalismo. O Holocausto foi um evento único, mas a ladainha nacionalista é basicamente semelhante em todas as nações – quase um gênero literário em si – pois está dividida entre um sentido lacrimoso de vitimização e autopiedade e uma narrativa presunçosa de feitos heroicos. "We", so goes the story, have been around for centuries (1066, famously, in Britain; 966 in Poland; since antiquity in Italy and in Greece). Eventually, after centuries, we achieved our freedom, our independence, our happiness, and we, who are unlike everyone else, can finally be like everyone else: members and possessors of a country and a nation.

Demystifying what the French call le roman national seems to be today one of the major tasks of historians (once they used to write it). This can be an uphill struggle, yet it is to the credit of the Israeli book-reading public that Sand's previous book, The Invention of the Jewish People became a bestseller. Truth-telling may be painful but necessary.

Sobre o autor

Donald Sassoon é professor de História Comparada da Europa na Faculdade Queen Mary da Universidade de Londres.

2 de abril de 2013

Quem são os donos da Escócia?

Peter Geoghegan


Tradução / A Scottish Land and Estates, que representa os proprietários de terras na Escócia, realizou recentemente um vídeo promocional para juntar à sua resposta ao apelo do grupo governamental para a preparação de uma reforma agrária (Land Reform Review Group). Os dez minutos de filme abrem com a garantia dada por Luke Borwick, o secretário do grupo, de que os proprietários de terras escoceses não são plutocratas: “A grande maioria dos nossos membros são pequenos ou médios proprietários com posse e uso”. Como ele diz, o filme reduz-se a imagens de um casal passeando junto a um enorme monte e a um jantar de bêbados. Trata-se de Roshven House. São 50 acres perto de Fort William, Roshven está avaliado em valor de locação (por 11,000 Libras por semana).

Contrariamente ao que é costume num vídeo de relações públicas, o que os vários representantes engravatados dizem é muitas vezes tão interessante como o que não dizem. John Glen, o diretor executivo de Buccleuch Estates diz que os membros da Scottish and Land Estates “gerem um razoável volume de recursos naturais”. E tem razão: entre eles, os 2.500 membros devem ser proprietários de três quartos do território escocês. (A Buccleuch, sozinha, controla cerca de 250,000 acres). No “clip” seguinte, Glen insurge-se contra o desemprego jovem (“o maior desafio que enfrentamos hoje”). Uma série de hipóteses de empregos aparecem na tela: “Mecânico”, “Pastor”, “Guarda-caça” e, em grandes letras no centro da tela, “Assistente Financeiro”.

Andrew Bradford, da Kinkardine Estate, tem em pouca conta a eficiência dos proprietários privados para encontrar soluções de habitação para a população rural. Os proprietários “podem integrar a manutenção dos alojamentos” com outros trabalhos tais como a agricultura e a silvicultura, diz ele, “de forma a que o sujeito que está ali a reparar uma casa hoje, possa amanhã estar envolvido na reparação de uma cerca”. Em quase oito minutos, Borwick sugere ao espetador que esqueça “os acontecimentos históricos, particularmente nas Highlands” (as Clearences, provavelmente) . “O que importa agora é o futuro do setor rural na Escócia”.

O futuro do setor rural é, em parte, o objetivo do Land Reform Review Group. Alex Salmond anunciou no Verão passado, após um encontro do gabinete Governamental Escocês em Skye, a criação de um painel de três membros para estudar a reforma agrária. Até agora surgiram mais de 500 propostas, mas o Governo Escocês não quer fazer nenhuma declaração pública até o relatório final ser publicado no próximo ano.

A Escócia tem “um modelo particularmente concentrado de propriedade rural”, segundo Andy Wightman, um ativista da reforma agrária e autor de The Poor Had No Lawyers: Who Owns Scotland (And How They Got It). “A Escócia parece-se com a Irlanda antes de 1880”. O Land Reform Review Group provavelmente não poderá alterar isto em grande escala. O grupo inclui vozes importantes, de há muito favoráveis à reforma agrária (em especial o historiador das Highlands, professor James Hunter), mas o seu relatório só deve aparecer em abril próximo, altura em que provavelmente será reduzido a um curto texto, contaminado pelo debate do referendo.

Para o fim do vídeo, Borwick acrescenta um “estudo independente” em apoio da manutenção do status quo. Realizado em 2010, esse estudo encontrou, entre outras coisas, “uma generalizada falta de conhecimento e de informação sobre propriedades por parte do público escocês”. O que é em grande parte uma verdade: a propriedade rural raramente é mencionada no dia a dia da vida escocesa. Não existe um movimento significativo pró-reforma agrária. Ninguém na Scottish Land and Estates diz isso em frente da câmera, mas todos esperam que as coisas fiquem como estão.

1 de abril de 2013

Novo modelo

Marina dos Santos

Nos últimos anos, tornaram-se corriqueiras as análises de que a questão agrária no Brasil está resolvida. Essas análises desconhecem ou ignoram os graves problemas que a sociedade brasileira enfrenta no meio rural. Há cerca de 150 mil famílias de trabalhadores sem terra vivendo em acampamentos rurais. Há 4 milhões de famílias pobres do campo que estão recebendo o Bolsa Família para não passar fome.

Há uma absurda concentração fundiária que se estende à riqueza produzida na agricultura. De acordo com o último censo agropecuário, 3,8 milhões de estabelecimentos rurais — 72,9% do total — respondem por apenas 4% do Valor Total da Produção Declarada (VTPD).

São famílias desassistidas de créditos e políticas públicas, sem perspectiva de progredir economicamente na agricultura. Só lhes é dada uma alternativa: permanecer o maior tempo possível no campo e depois migrar para as favelas dos grandes centros urbanos.

No outro extremo, 51,3% do VTPD estão concentrados nas mãos de 0,4% de proprietários rurais. Ou seja, o modelo do agronegócio, centrado na agroexportação, beneficia cerca de 22 mil proprietários rurais, de um universo de 5 milhões de estabelecimentos agrícolas.

Sobre a produção de alimentos, basta prestar atenção aos frequentes alertas da inflação causada pela escassez de alimentos. É inaceitável que o Brasil, com seu tamanho, tenha uma baixa oferta de alimentos.

Por isso, defendemos um modelo de agricultura que, além de promover a democratização do acesso à terra, por meio de um programa de reforma agrária, produza alimentos saudáveis, assegure a preservação ambiental e garanta a soberania alimentar do país.

Há no Nordeste mais de 200 mil hectares em projetos de irrigação, com recursos públicos, que serão destinados, preferencialmente, a capitalistas sulistas. Uma área suficiente para assentar 100 mil famílias em propriedades de dois hectares irrigados. Junto à distribuição de terras, é necessária uma política agrícola associada à implantação de agroindústrias nas áreas da reforma agrária; universalização de ensino público no meio rural; assistência técnica centrada na agroecologia, na cooperação agrícola, na preservação e no reflorestamento ambiental; e uma política de comercialização, que assegure renda aos camponeses.

Aos que sempre argumentam que esse programa custaria muito caro aos cofres públicos, ao menos tenham a honestidade de reconhecer que a agricultura do agronegócio, para favorecer uma minoria de proprietários rurais, custa uma quantia muito superior a qualquer programa de reforma agrária.

Marina dos Santos é membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...