30 de junho de 2020

Neo-atraso no Brasil de Bolsonaro

O principal teórico cultural do Brasil considera paralelos entre a ascensão de Bolsonaro e o golpe militar de 1964. O capital está mais uma vez avançando em seu programa de modernização com o apoio dos elementos mais retrógrados do país? Paradoxos da política e da cultura, de Machado até o presente, via tropicalismo e Glauber Rocha.

Roberto Schwarz



Leitura a quente do início da ditadura militar, o ensaio “Cultura e Política, 1964-1969 – Alguns Esquemas”, de Roberto Schwarz, completa 50 anos como texto obrigatório nas reflexões sobre a produção cultural e o autoritarismo no Brasil. À época de sua publicação na revista francesa Les Temps Modernes, em julho de 1970, o crítico literário vivia exilado em Paris.

Um ano depois do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), baixado em 13 de dezembro de 1968, o ensaio repassava as tentativas fracassadas de modernização do país no governo João Goulart, apresentava as forças sociais revolvidas pelo golpe de 1964 e observava as feições e contradições políticas dos movimentos culturais florescidos naquele período.

Escrito entre 1969 e 1970, sendo mais tarde incorporado ao volume “O Pai de Família e Outros Estudos” (Companhia das Letras), de 1978, o texto acendeu polêmica com os tropicalistas e motivou debates culturais na imprensa e nas universidades.

Aos 81 anos, em entrevista por escrito, Roberto Schwarz analisa a ascensão da extrema direita no Brasil e a permanência de questões formuladas no final da década de 1960.

O governo civil-militar “era pró-americano e antipopular, mas moderno”, escreveu Schwarz no ensaio. “Levava a cabo a integração econômica e militar com os Estados Unidos, a concentração e a racionalização do capital.” O moderno, entretanto, se combinava com o atraso, a “ideologia burguesa mais antiga —e obsoleta— centrada no indivíduo, na unidade familiar e em suas tradições”.

Os espetáculos teatrais do Arena e do Oficina entraram no quadro dialético do crítico. Schwarz equilibrava a análise social e a crítica cultural, sem faltar ao exame da experiência dos tropicalistas. “Arriscando um pouco”, ele avaliou, “talvez se possa dizer que o efeito básico do tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil”.

Mestre em literatura comparada pela Universidade de Yale e doutor pela Universidade de Paris 3 (Sorbonne), considerado o crítico vivo mais influente do país, Schwarz é autor de dois estudos clássicos: “Ao Vencedor as Batatas”, de 1977, e “Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis”, de 1990.

No final de novembro, Schwarz lançará pela Editora 34 o livro “Seja como For: Entrevistas, Retratos e Documentos”, que percorre 50 anos de vida intelectual, reunindo 20 entrevistas inéditas em livro, documentos, ensaios e perfis de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Paul Singer e José Guilherme Merquior, entre outros. A obra incorpora um documento do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) sobre “Cultura e política”.Na entrevista a seguir, o professor aposentado da Unicamp reconhece semelhanças entre a virada de 1964 e o recente triunfo eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PSL), mas, nos 50 anos de “Cultura e Política”, ilumina as nuances e as diferenças entre os dois marcos históricos.

No ensaio “Cultura e Política, 1964-1969”, o senhor avalia que “o golpe [de 1964] apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado”. Numa eleição democrática, o atual presidente saiu vitorioso com um discurso de defesa da ditadura militar e hostil às políticas sociais e identitárias dos antecessores. Essa revanche histórica da extrema direita evidencia falhas políticas do PSDB e do PT, partidos centrais nas últimas duas décadas? 

Há bastante em comum entre a vitória eleitoral de Bolsonaro, em 2018, e o golpe de 1964. Nos dois casos, um programa francamente pró-capital mobilizou, para viabilizar-se, o fundo regressivo da sociedade brasileira, descontente com os rumos liberais da civilização. Ao dar protagonismo político, a título de compensação, aos sentimentos antimodernos de parte da população, os mentores do capital fizeram um cálculo cínico e arriscado, que não é novo.

O exemplo clássico foi a viravolta obscurantista na Alemanha dos anos 1930. Aceitando e estimulando o nazismo, a grande burguesia alemã deflagrou um processo incontrolável, ao fim do qual já não se sabia quem devorava quem. Não custa rever, a propósito, o filme “Os Deuses Malditos”, de Luchino Visconti. Pode ser que Bolsonaro não chegue lá, mas não terá sido por falta de vontade.

Em 1964 houve um golpe de força; em 2018, uma eleição. É duro admitir que a defesa da ditadura e o ataque a políticas sociais bem-sucedidas possam ganhar no voto —mas podem. Onde foi que PSDB e PT erraram, a ponto de abrir caminho para a extrema direita? Não faltam explicações, nas quais os adversários se culpam mutuamente.

Já o bolsonarismo considera a ambos farinha do mesmo saco: são exemplos temíveis de estatismo e marxismo cultural, ou seja, de comunismo. Obviamente a acusação é paranoica, mas ainda assim ela talvez ajude a entender alguma coisa. PSDB (então MDB) e PT cresceram no movimento histórico da redemocratização e tinham na reparação da “dívida social” da ditadura o seu programa. 

Caberia ao Estado incluir os excluídos, melhorar o salário mínimo vergonhoso e providenciar os serviços sociais indispensáveis, de modo a tornar decente e mais solidária a sociedade. Do ponto de vista eleitoral eram bandeiras imbatíveis, e estava na ordem das coisas que os dois partidos dominassem durante décadas. E não obstante...

Deixando de lado os erros que certamente os partidos cometeram, há uma hipótese mais pessimista para a virada à direita. A sequência de superações que durante algum tempo deu a sensação de que o país decolava rumo ao primeiro mundo pode ter chegado a seu limite, respeitadas as balizas da ordem atual. Esgotada a conjuntura internacional favorável, em especial a bonança das “commodities”, o dinheiro necessário a novos avanços desapareceu, interrompendo o processo de integração nacional e seu clima de otimismo.

A inversão da maré, ajudada por técnicas recém-inventadas de propaganda enganosa, transformou aprovação em rejeição num passe de mágica, aliás assustador. Na falta de organização política para aprofundar a democracia, ou melhor, a reflexão social coletiva, é possível imaginar que os novos insatisfeitos, os favorecidos pelas políticas esclarecidas anteriores, refaçam o seu cálculo e coloquem as fichas na aposta anti-ilustrada.

Num quadro de crescimento frustrado, procuram garantir a qualquer preço os ganhos já alcançados, e passam, quanto ao futuro, para o “salve-se quem puder”. Com sorte, a opção é reversível.

Em 1969/1970, seu ensaio observava “a combinação, em momentos de crise, do moderno e do mais antigo”. Há uma permanência disso no convívio entre as pautas moralizantes e militaristas do grupo de Bolsonaro e o apelo à modernização através de reformas liberais apoiadas por empresários e pelo mercado financeiro? 

As situações se repetem, mas não são iguais. Nos anos 1960, no contexto da teoria da dependência, falava-se muito em “reposição do atraso”, para designar uma constante de nossa história.

Nos momentos de crise aguda de modernização, quando parecia que o país, para adequar-se ao presente, iria superar a desigualdade abissal em suas relações de classe, aparecia uma solução modernista-passadista, que permitia ao capitalismo atualizar-se e à sociedade continuar gozando da sua desigualdade de sempre. Aí estava a nossa incapacidade (ou inapetência) para a autorreforma, a chamada “reposição do atraso”, ou “modernização conservadora”, muito bem captada pelo tropicalismo na época.

Pois bem, parece claro que hoje vivemos um novo capítulo dessa história, com o casamento de conveniência, além de esdrúxulo, entre a nova reforma liberal da economia e as pautas arcaizantes do bolsonarismo. Dito isso, os tempos são outros. Mal ou bem, em 1964 esquerda e direita prometiam a superação do subdesenvolvimento, horizonte com que hoje ninguém mais sonha.

Também quanto ao refluxo do atraso estamos pior. Cinquenta anos atrás, quem marchava com Deus, pela família e a propriedade, eram os preteridos pela modernização, representativos do Brasil antigo, que lutava para não desaparecer, mesmo sendo vencedor. É como se a vitória da direita, com seu baú de ideias obsoletas, não bastasse para desmentir a tendência favorável da história. Apesar da derrota do campo adiantado, continuava possível —assim parecia— apostar no trabalho do tempo e na existência do progresso e do futuro.

Ao passo que o neoatraso do bolsonarismo, igualmente escandaloso, é de outro tipo e está longe de ser dessueto. A deslaicização da política, a teologia da prosperidade, as armas de fogo na vida civil, o ataque aos radares nas estradas, o ódio aos trabalhadores organizados etc. não são velharias nem são de outro tempo.

São antissociais, mas nasceram no terreno da sociedade contemporânea, no vácuo deixado pela falência do Estado. É bem possível que estejam em nosso futuro, caso em que os ultrapassados seríamos nós, os esclarecidos. Sem esquecer que os faróis da modernidade mundial perderam muito de sua luz.

Como o senhor avalia o retorno de casos de censura estatal a peças, exposições, livros e filmes, sob motivação religiosa ou mera retaliação política? 

Até onde sei, no período Fernando Henrique, Lula e Dilma não se ouvia falar de censura, pela primeira vez em nossa história. Sob esse aspecto fazíamos parte do mundo civilizado.

Numa fração pequena, a cultura era governada segundo seus próprios critérios, auxiliada pelo Estado, ao passo que na parte dominante ela era comandada pelo mercado. Do ponto de vista da própria cultura, a proporção entre estas faixas era insatisfatória, mas, ainda assim, muito melhor que a intervenção autoritária e religiosa que se prepara agora.

Constatada a desgraça, não custa notar que nossa liberdade cultural sempre teve um caráter gritante de prerrogativa de classe. Salvo os grandes momentos de exceção, o seu foco estava mais na atualização com a moda dos países dominantes que no ajuste de contas com os abismos de classe em que vivemos.
Para enxergar um lado produtivo no retrocesso presente, digamos que o confronto forçado com as novas religiões, o novo autoritarismo, a nova meia-cultura não deixa de ser ocasião histórica para sair de nossa modernidade às vezes rasa e alcançar uma atualidade substantiva. Seria o momento, por exemplo, para que nosso agnosticismo saia do armário e conquiste seu direito de cidade.

Segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, o Brasil é o país democrático com a maior concentração de renda no 1% do topo da pirâmide. Entretanto, fortaleceu-se eleitoralmente uma maré conservadora em que o combate à desigualdade social não está no centro da agenda pública. Como explicar esse paradoxo?

Vou responder indiretamente, com a citação de um trecho de Luiz Felipe de Alencastro, que dá dimensão histórica e social ao problema. “A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada, a saúde” (1996). Para colocação mais ampla, leitura obrigatória, veja-se outra passagem do mesmo Alencastro, em “Encontros” (Azougue Editorial, pág. 37).

2

Ao longo de seu trabalho como crítico literário, Roberto Schwarz investigou as literaturas e culturas do Brasil sempre em diálogo com o contexto político e socioeconômico do país, bem como, ao mesmo tempo, tentando compreender a realidade local como parte do sistema desigual das relações internacionais impostas pela modernidade capitalista ocidental. A combinação do materialismo marxista com a leitura detalhada do New Criticisim e da Teoria Crítica levou-o a desenvolver uma prática analítica original, iluminando particularmente o contexto pós-colonial brasileiro. Em seu diagnóstico panorâmico das manifestações artísticas, uma preocupação recorrente esteve ligada às transformações do campo cultural brasileiro a partir das recomposições político-econômicas introduzidas sistematicamente na região na década de 1950 – restruturações inauguradas por uma série de regimes ditatoriais que geraram um colapso de alguns paradigmas da luta política e um salto para uma sensibilidade pós-nacional com a instalação do mercado como eixo articulador das lógicas estatais e sociais. O novo programa para o Brasil e para América Latina é agora ditado pelo neoliberalismo. E ainda que as Américas lusófona e hispanófona tenham percorrido vias paralelas nas últimas décadas, as reflexões conjuntas sobre essas transformações ainda são escassas, tomando como base a teoria produzida na própria região. Em este contexto, quisemos dialogar com Roberto Schwarz e com seu trabalho sobre as mudanças experimentadas no Brasil e nas Américas, apontando para avaliações críticas e interpretativas de nossos passados recentes e nossos possíveis futuros.

Bruna Della Torre (BDT) y Mónica González García (MGG): Como crítico literário, um dos autores que você estudou com mais detalhe e originalidade é o romancista Machado de Assis. Sobre ele você diz que às vezes surgem certas obras que conseguem caracterizar e sintetizar a história de um país que ainda não tem uma história cultural consistente e própria, e que então se nutre de modelos estrangeiros como os que provém da Europa. Esse foi o caso do Brasil durante um período extenso após a Independência, mas também o caso das repúblicas latino-americanas que, depois de se livrar da Espanha, continuaram a olhar para a Europa em busca de modelos de arte, cultura e pensamento. Neste sentido, você acha que podemos ler a literatura de Machado não só como uma “alegoria do Brasil” mas também das aspirações das elites latino-americanas, aspirações sempre questionadas por um entorno dependente, subdesenvolvido, periférico, neocolonial – para usar só alguns dos conceitos que nas últimas décadas procuraram descrever e explorar os paradoxos regionais?

Roberto Schwarz (RS): A obra de Machado de Assis sempre foi um problema para a nossa crítica. Durante muito tempo ela foi vista como um corpo estranho na literatura brasileira. Fugindo à voga do romantismo patriótico e pitoresco, posterior à Independência, ela pareceu pouco nacional a muitos leitores, para não dizer estrangeirada e sem sangue nas veias. Também o seu gosto pela análise, em prejuízo da aventura, apontava nessa direção. Já aos contemporâneos naturalistas, fixados nas fatalidades de raça e clima, ela parecia alheia ao novo espírito científico. Para eles, um romance brasileiro não seria moderno sem os ingredientes apimentados da mestiçagem e do trópico. Ainda assim, por razões difíceis de explicar, Machado era reconhecido como o maior escritor do país e o único com estatura universal. Uma síntese desse paradoxo se encontra num ensaio injusto e agudo de Mário de Andrade, que não incluía nenhum de seus romances entre os dez melhores de nossa ficção (!), embora se orgulhasse do compatriota genial, que o mundo ainda iria reconhecer como um dos grandes. Hoje há certo consenso quanto à extraordinária acuidade social e nacional de seus contos e romances, sem falar em seu alcance crítico e modernidade estética.

A viravolta se deu devagar e passo a passo. Em 1935 Augusto Meyer publicou um conjunto de pequenos artigos que mudavam o quadro. Em lugar do mestre da língua e do decoro, um tanto engravatado e insosso, que merecia o aplauso do establishment, entrava um Machado perverso, um moderníssimo “monstro cerebral”, próximo de Dostoievski, Nietzsche e Proust. O prosador arqui-correto, amigo dos clássicos, a quem nunca faltava uma citação de Aristóteles, Santo Agostinho, Erasmo, Pascal, Schopenhauer etc. etc., na verdade escondia um escritor de ponta, dos mais irreverentes. Meyer arrancava Machado à companhia dos literatos oficiais e convencionais e o aproximava dos grandes espíritos do tempo, o que ajudava muito a perceber a sua genialidade, mas tornava mais difícil ainda entender a sua relação com o acanhamento da cultura nacional.
O problema seria solucionado por Antonio Candido, num capítulo de síntese sobre a nossa ficção romântica. A tese do Machado universalista, influenciado pelos grandes da literatura ocidental, mas indiferente às letras e realidades locais, era posta em xeque. Ao contrário da voz corrente, Candido observava que o romancista havia estudado e aproveitado em detalhe a obra de seus predecessores brasileiros, figuras secundárias, muito menores do que ele, mas cuja contribuição foi substantiva (436-437). Este ponto é central.

Sob o signo da cor local e de sua magia, a ficção romântica havia cumprido um programa de incorporação literária das regiões, dos costumes e das realidades sociais do país, recentemente emancipado. Tratava-se de um programa patriótico e quase sociográfico, o qual em pouco tempo produziu uma pequena tradição de romances mais ou menos estimáveis, que satisfaziam o gosto de um público pouco exigente embora sequioso de identidade nacional (Candido 432-434). Pois bem, com memorável tino crítico Machado soube enxergar nesses livros provincianos um substrato de outra ordem, com possibilidades diferentes, de grande literatura, o qual iria explorar. Algo como um negativo da modernidade, à qual eles aludiam por contraste e, bem pesadas as palavras, por ingenuidade e pelo que deixavam a desejar, projetando um avesso insuspeitado. Por inesperado que isso fosse, a trivialidade amável do localismo romântico trazia latente um fundo poderoso, o complexo tão brasileiro do liberal-escravismo clientelista, com seu labirinto próprio, sem nada de ameno. Este fazia ver – desde que os óculos fossem machadianos – uma inserção diferenciada no presente do mundo. Em suma, as relações sociais não burguesas da ex-colônia (escravidão, dependência pessoal direta, pseudo ordem burguesa), bem como a sua elaboração pela prosa romântica, forneceram a Machado uma argamassa histórica densa, de imprevista repercussão contemporânea, que lhe permitiu a aventura de sua obra moderníssima. Difícil e profundamente dialética, essa conexão é um dos segredos da literatura machadiana. O prosador erudito, impregnado de clássicos e cosmopolitismo elegante, que havia monopolizado até então as atenções da crítica, não desaparecia, mas era sobredeterminado, com infinita ironia, pelo conjunto das relações sociais locais em que banhava, que eram tudo menos requintadas. Nesta dissonância surpreendente, a estreiteza provinciana adquiria um relevo e uma profundidade notáveis, que eram uma qualidade nova, de alto humorismo, além de exata socialmente. Encasacado em seu repertório culto e europeizante, evoluindo numa situação retardatária, marcadamente de segunda classe, a que não faltava o elemento bárbaro, o narrador machadiano transformava-se em personagem emblemática e problemática, na verdade um grande achado realista. Reconfigurado pelo contexto, encenava uma comédia ideológica original, característica da vida na periferia da ordem burguesa, ou melhor, nas sociedades em processo de descolonização.

Assim, voltando a suas perguntas, Machado não começava do zero. Quando escreveu as Memórias Póstumas de Brás Cubas, seu primeiro grande livro, em 1880, ele dava continuidade a quarenta anos de tentativas ficcionais anteriores – resta ver, é claro, que tipo de continuidade. Com mais e menos talento, os seus antecessores haviam escolhido e fixado um acervo de paisagens, situações características, tipos sociais interessantes, conflitos de classe, timbres de prosa e humor, pontos de vista narrativos, modelos estrangeiros etc. Tomadas em si mesmas, essas opções iam do desastrado ao divertido, do banal ao curioso, do conformista ao irreverente, mal ou bem colocando em perspectiva e formalizando algum aspecto da realidade local. O conjunto é modesto e representa o esforço de auto-conhecimento e auto-figuração de uma sociedade nacional incipiente, que procurava a si mesma por meio da imaginação romanesca. Talvez não seja injusto dizer que a atenção que esses livros ainda hoje merecem do leitor exigente se deve a seu papel na preparação da obra machadiana – preparação naturalmente involuntária.

Com efeito, Machado não só levou em conta esses romances medianos, como enfiou neles a “faca do raciocínio” – expressão sua –, para lhes testar a substância, tanto social como artística, e tirar as consequências do caso, como escritor que não aceitava ser iludido. Com perspicácia absolutamente fora do comum, que até hoje deixa boquiaberto, ele pôs à prova da realidade e da consistência interna o trabalho literário de seus confrades, o qual retificava. Entusiasmo patriótico, santidade das famílias, ordem social, normalidade psíquica, soluções de linguagem e forma, importação de modas literárias, ideias correntes, certezas do progresso, tudo foi examinado criticamente, estabelecendo um patamar de consciência inédito no país (embora não reconhecido) e raro em qualquer parte. Digamos então que a continuidade refletida com uma tradição de segunda linha lhe permitiu dar um passo extraordinário, uma superação crítica em grande estilo, paradoxalmente moderna, que talvez seja a sua maior lição como artista pós-colonial.

Ainda em relação à sua pergunta, o salto qualitativo de que falamos tem vários ensinamentos contra-intuitivos. 1) A força negadora e superadora da grande literatura pode ter uma dívida importante com as limitações do universo artístico a que ela se opõe. 2) Em países periféricos, a invenção formal não nasce da recusa dos modelos metropolitanos, mas de sua verificação crítica pela experiência local, a qual se transcende e universaliza através desse confronto. 3) Talvez seja verdade que a produção artística de países na periferia tenda a adquirir uma dimensão suplementar de alegoria nacional, já que a experiência de incompletude e inferioridade relativa é um fato ubíquo da vida nesses países, experiência inescapável, que tinge os seus esforços de superação e neste sentido os alegoriza. Entretanto, em romances de tipo mais ou menos realista, a substância do trabalho artístico está na incorporação e transfiguração de relações reais, que lhes dão o peso representativo, que só secundariamente participa do convencionalismo da abstração alegórica. 4) De fato, o narrador machadiano passeia o seu refinamento cosmopolita pelo ambiente pitoresco da ex-colônia, entre relações atrasadas e bisonhas, sem proporção com a envergadura e a complexidade dele próprio, o que pode ser visto como um emblema das elites latino-americanas, que nalguma medida compartilham essa situação. Mas por quê “alegoria”? Ele não é a figura convencionada de uma entidade abstrata – suponhamos a Justiça, a Indústria, a Finança, o Brasil – e sim a síntese de uma condição histórica real, apreendida num lance de gênio. Dito isso, esta apreensão é apenas a metade da proeza. A outra metade, maliciosa ao extremo, está na transformação desse narrador – uma personagem decididamente criticável – em princípio formal, em gerador da invenção literária e em organizador da ficção.

BDT y MGG: Você afirma, no seu livro Martinha versus Lucrecia, que tanto o Tropicalismo quanto a Antropofagia de Oswald de Andrade eram programas estéticos do Terceiro Mundo. O que você quis dizer com isso? Poderia explicar melhor? Por outro lado, mas também nesse contexto, você não acha que é um pouco injusto com Oswald de Andrade ao aproximá-lo tanto do Tropicalismo? Afinal, a Antropofagia dele vestiu-se de vermelho e O rei da Vela, apesar do que se fez depois, era uma peça de crítica da burguesia e de sua aliança com o capital estrangeiro. Será que não há uma “performance de identidade” em grau muito mais elevado na estética tropicalista do que no modernismo de Oswald?

RS: A poesia antropófaga de Oswald de Andrade, que é piadista desde o título, tem uma fórmula simples e genial no seu minimalismo. Trata-se da contraposição a seco, em espírito de montagem vanguardista, de imagens representativas do Brasil moderno e arcaico, escolhidas a dedo pela vivacidade do contraste. Muito dissonante, com algo de blague e disparate, o resultado é visto como alegoria humorística do país, captado em seu afã comovente de superar o atraso. Como o procedimento artístico é de ponta, impregnado da irreverência da revolução literária europeia, o conjunto respira otimismo e leveza, e como que promete uma colaboração feliz, para não dizer utópica, de seus três tempos desencontrados – pré-moderno, moderno e revolucionário – que convivem dentro do poema.

Em 1967, quarenta anos depois, também o Tropicalismo acopla o ultrapassado e o ultramoderno, a data vencida e o dernier cri, ou melhor, justapõe imagens tomadas ao antigo Brasil patriarcal e técnicas do Pop internacional mais recente. O ar de família com a antropofagia oswaldiana é evidente, com uma diferença. Enquanto em Oswald o entrechoque dos tempos é a promessa de um futuro nacional alegre, em que passado e modernidade se integram sob o signo da invenção e da surpresa, no Tropicalismo ele é a encarnação do absurdo e do desconjuntamento nacionais, de nossa irremediável incapacidade de integração social, enfim, do fracasso histórico que seria a nossa essência. Como diz o próprio Caetano Veloso, a propósito de seu momento mais radical, nunca a canção popular no país havia chegado a tal grau de pessimismo. Em perspectiva histórica, tratava-se – a meu ver – de uma formalização poderosa e sarcástica da experiência social-política de 1964, quando a contrarrevolução conjugou a modernização capitalista à reiteração deliberada das iniquidades sociais de sempre, as quais reconfirmava. A imagem-tipo do Tropicalismo encapsulava a experiência tão desconcertante, e latino-americana, do progresso que repõe o atraso em lugar de superá-lo. Poesia em pílulas, como em Oswald, mas cuja substância era uma espécie de reincidência no erro, contemplado com repulsa e fascinação – o famoso Absurdo Brasil.

Assim, Antropofagia e Tropicalismo são programas estéticos do Terceiro Mundo, que respondem às questões da modernização retardatária. Oswald com certa euforia, no início do processo desenvolvimentista, e Caetano com desencanto estridente, quando as perspectivas do nacional-desenvolvimentismo parecem se fechar. A captação da energia histórica é vigorosa nos dois casos – vestida de vermelho ou não –, que por isso mesmo são momentos incontornáveis de nosso debate cultural. Como observa Enzensberger, é mais fácil transformar o subdesenvolvimento em arte do que superá-lo (196). A observação é interessante, mas, como notou Vinicius Dantas, também a crise do Primeiro Mundo é mais fácil de transformar em arte que de superar.

BDT y MGG: Talvez possamos utilizar a descrição da literatura de Machado de Assis como capaz de “caracterizar e sintetizar o momento histórico de um país”, para pensar o filme Terra em Transe estreado por Glauber Rocha em 1967. Muitos críticos literários e culturais da esquerda coincidem em qualificá-lo de profético quanto ao que viria a acontecer no Brasil após o AI-5, mas também na América Latina com o assassinato de Che Guevara no mesmo ano de 1967 e o início das ditaduras militares no Cone Sul – metafórica e sinistramente ‘irmanadas’ pelo voo do condor. O Glauber inspirou-se em Che Guevara para imaginar a personagem de Paulo Martins e inclusive teve a ideia de fazer outro filme sobre os últimos anos do guerrilheiro argentino em conjunto com Cuba.

RS: Até onde vejo, o foco de Terra em transe está na crise de 1964, quando o vasto processo da democratização brasileira foi derrotado pela direita civil-militar, com apoio americano. O filme está vivo até hoje graças à coragem e à exaltação operística com que enfrenta os impasses da esquerda. O auto-exame se faz através da figura de Paulo Martins, um poeta-jornalista sequioso de absoluto, criado entre as benesses da oligarquia e convertido à causa popular e à estratégia do Partido Comunista. Deliberada e impiedosamente problemática, a personagem se debate entre os chamados do erotismo, da revolução, do privilégio, da disciplina partidária e da morte, a cujo encontro vai na cena final, de metralhadora na mão. Entre esperanças, lutas, discussões políticas violentas, contradições, traições e recuos, o conjunto encena um percurso intelectual em direção à luta armada. A caminhada com certeza é representativa daquele momento, mas o achado que torna profundo e enigmático o filme depende de mais outra dimensão. Desde o começo, há um baixo-contínuo popular que destoa da ação, composto por tambores, cantos e danças rituais, pela massa mestiça e miserável, subalterna, alheia à discussão política entre os brancos, vivendo outro tempo. É o aspecto tropicalista de Terra em transe, em que os procedimentos vanguardistas do filme, bem como a sua intriga moderna, se contrapõem com incongruência ostensiva ao substrato de relações coloniais que continua vivo no país. É um descompasso de alcance histórico-político incalculável, codificado na realidade brasileira e também continental, na estética tropicalista e, de outro modo, na ficção de Machado de Assis. Quanto à semelhança entre Paulo Martins e Guevara, posso estar enganado, mas não me convence.

BDT y MGG: Falando do crítico literário ou cultural como um “meta-pensador”, como você o definiu em uma oportunidade, a nossa região apresenta desafios e problemáticas diversas das examinadas por Antonio Candido em um texto como “Literatura e subdesenvolvimento” ou por você em “Cultura e política, 1964-1969”, mas são desafios e problemáticas herdados daquele intenso momento histórico que vocês analisam nessas reflexões. Você gostaria de comentar?

RS: “Literatura e subdesenvolvimento” faz pela literatura o que os outros clássicos da teoria do subdesenvolvimento fizeram para a economia e a sociologia. É um ensaio para ler e reler. É dessas raras reflexões que organizam a experiência cultural de um país e de um continente. No essencial estuda a superação da velha e acomodada “consciência amena do atraso”, que vinha da Independência e do Romantismo e para a qual o progresso era algo que chegaria naturalmente, mera questão de tempo. No polo oposto a esse otimismo provinciano e quase infantil, de ex-colônia, irá surgir a “consciência agônica” desse mesmo atraso, visto como catástrofe contra a qual é preciso lutar com urgência. Noutras palavras, o sentimento autocomplacente do “país novo”, cheio de promessas mas conservador no fundo, cede o passo à consciência realista do “país subdesenvolvido”, com adversários externos e internos e para o qual o futuro é um problema. A inflexão começa por volta de 1930 e se aprofunda nos anos de 1950. No Brasil a sua primeira manifestação foi o romance do Nordeste, que trouxe a miséria e o atraso da região ao debate nacional. No decênio de 50 o problema ganhou dimensão conceitual na teoria do subdesenvolvimento, com desdobramentos em todos os planos da vida, que de repente se descobria subdesenvolvida de A a Z. Como começava a ensinar Celso Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa transitória, que precede o desenvolvimento pleno, mas um estágio e um modo de viver que tendem a se reproduzir ou agravar caso nada seja feito. Na esfera da cultura, por exemplo, o sonho dorminhoco e regressivo da originalidade nacional absoluta, que no limite exigia a “supressão de contatos e influências”, tem de ser substituído pela constatação sóbria mas polêmica da dependência e, no melhor dos casos, da interdependência generalizada, que leva ao questionamento estético-político em toda a linha. É claro que o abandono das ilusões iniciais de autarquia tem algo de progresso crítico, apontando para um horizonte menos iludido, ou mais relacional, em que a originalidade almejada resulta da influência recíproca e livre entre as nações. Por outro lado, é claro também que este horizonte é ilusório por sua vez, pois as realidades do Imperialismo e de nossas estruturas sociais inaceitáveis, postas em evidência pela teoria do subdesenvolvimento, fazem da reciprocidade universal um voto pio. No passo seguinte, o enfrentamento continuado com a iniquidade das estruturas e do Imperialismo tende a criar o intelectual revolucionário, cuja figura assinala um novo patamar.

Por sua vez, “Cultura e política, 1964-1969” recapitula a movimentação intelectual e artística do primeiro período da ditadura em seguida ao golpe da direita. Dentro de muita diversidade, a franja avançada das artes –arquitetura, cinema, teatro, canção, artistas plásticos – bem como do movimento estudantil e da própria discussão política havia reagido com valentia ao truncamento do processo democrático que apontava para o socialismo. Em todas estas esferas a interrupção antidemocrática foi recebida como um acinte, uma volta a formas de vida mesquinhas e superadas, que seria grotesco tolerar. A indignação correspondente esteve na base das posições artísticas do período, e também da passagem duma fração dos estudantes à luta armada, sem falar noutros setores dispostos a enfrentar algum grau de ilegalidade. Nesta linha, refletindo sobre as razões da derrota de 1964, uma parte da esquerda responsabilizou pelo desastre a política de conciliação de classes recomendada pelo Partido Comunista, que havia naufragado sem luta, a despeito da amplitude do movimento. Muito convincente até segunda ordem, a crítica de esquerda empurrava à radicalização em todos os campos, seja estéticos, seja políticos, desembocando na alternativa ainda não testada, a oposição pelas armas. A opção parecia uma vitória da consequência sobre a acomodação e prometia abrir horizontes históricos novos – que em seguida provariam ilusórios por seu turno, com a vitória brutal mas relativamente fácil da ditadura, que triunfava sobre a esquerda pela segunda vez. À derrota da conciliação seguia-se a derrota da radicalização, deixando por terra o socialismo e anunciando o que talvez seja o horizonte contemporâneo, de capitalismo sem alternativa à vista.

Tanto “Literatura e subdesenvolvimento” como “Cultura e política” tinham a possibilidade da revolução como uma de suas coordenadas. Os dois ensaios foram publicados em 1970, inicialmente no estrangeiro, pouco depois de decretado o AI-5, que conferiu à ditadura a sua feição mais tenebrosa. Na esfera política, talvez se possa dizer que a luta armada se bateu por um imenso campo popular, rural e urbano, desassistido e em boa parte analfabeto (50% à época), o qual contudo não tomou muito conhecimento do que se passava. A implantação rarefeita, para não dizer mínima, que tornava improvável o apoio social à luta, se traduziu também na qualidade intelectual de seus escritos ou panfletos, que lidos hoje dão uma impressão terrivelmente irreal. Não assim no âmbito da cultura, onde a despeito da derrota política os resultados foram excelentes e duradouros. Aqui, o mesmo desejo revolucionário de ruptura vanguardista e inclusão popular teve eco profundo, de outra densidade. A revolução consistia em forçar a estreiteza da cultura burguesa, em reinventar as formas culturais e artísticas com vista na massa dos excluídos e semi-excluídos, a saber, segundo a circunstância, os estudantes pobres, os trabalhadores urbanos e mesmo o povo rural. Esta aspiração convergia com o espírito meia-oito internacional, com tendências profundas do Modernismo brasileiro, que a seu modo havia visado algo parecido na década de 1920, além de responder à realidade social do país, à qual dava visibilidade, com resultado artístico muito bom. Sem prejuízo da derrota política, o movimento cultural do período, com as suas ousadias formais e temáticas, tornava presente o valor da radicalidade estética e extra-estética. A vitória da direita não impediu que as posições da esquerda daquele período alimentassem o melhor da cultura brasileira de então até hoje, cinquenta anos depois. Dito isso, é claro que o atual aprofundamento da mercantilização e o enquadramento consumista-miserabilista dos antigos excluídos são adversários quase invencíveis, que requerem respostas novas.

BDT y MGG: Agradecemos o diálogo e esperamos, com ele, estimular a reflexão crítica e conjunta sobre a nossa região.

Notas:

1. ‘Culture and Politics in Brazil, 1964–1969’, collected in Schwarz, Misplaced Ideas: Essays on Brazilian Culture, London and New York 1992, trans. John Gledson. The first part of the present text is translated from an interview given to Claudio Leal, ‘Neoatraso bolsonarista repete clima de 1964, diz Roberto Schwarz’, Folha de S. Paulo, 15 November 2019. The second part is drawn from an interview with Bruna Della Torre and Mónica González García, ‘Cultura e política, ontem e hoje’, Meridional: Revista Chilena de Estudios Latinoamericanos, no. 11, October 2018–March 2019. Both are reprinted with kind permission. Some of the questions have been shortened and, in the second section, re-ordered. Translation and notes by Max Stein.

2. Tropicalismo: a counter-cultural movement that emerged in Brazil under the 1964–85 dictatorship, above all in popular music, combining carnivalesque and bossa nova elements with borrowings from psychedelia and the Anglo-American pop industry; a collective album, Tropicália, or Bread and Circuses, featuring Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa and others appeared in 1968.

3. Luiz Felipe de Alencastro, Revista Veja, 15 May 1996.

4. See Schwarz, ‘Political Iridescence: The Changing Hues of Caetano Veloso’, nlr 75, May–June 2012, p. 110; the essay is a consideration of Caetano Veloso’s autobiography, Verdade Tropical (1997); in English, Tropical Truth (2002). A slightly longer version was published under the title ‘Verdade Tropical: Um percurso de nosso tempo’ in Roberto Schwarz, Martinha versus Lucrétia: Ensaios e entrevistas, São Paulo 2012.

5. Oswald de Andrade (1890–1954): outstanding practitioner of the 1920s Brazilian avant-garde, whose Manifesto Antropófago (1928) exalts Brazil’s ‘cannibalization’ of other cultures, including that of its own colonizers. See also the discussion of the antropofagos in Schwarz, ‘Brazilian Culture: Nationalism by Elimination’, nlr i/167, Jan–Feb 1988, pp. 83–4.

6. Joaquim Maria Machado de Assis (1839–1908): author of some two hundred short stories and nine novels, including The Posthumous Memories of Brás Cubas (1880), sometimes translated as Epitaph of a Small Winner, Dom Casmurro (1900) and Esau and Jacob (1904).

7. Mário de Andrade, ‘Machado de Assis’ [1939], Aspectos da Literatura Brasileira, São Paulo 1943.

8. Augusto Meyer, ‘Machado de Assis’ [1935], Machado de Assis 1935–1958, Rio de Janeiro 1958.

9. Antonio Candido, ‘Temas e expressão’, Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, 1750–1880, Rio de Janeiro 2017, pp. 436–7.

10. Antonio Candido, ‘Literature and Underdevelopment’ [1970] in Howard Becker, ed., Antonio Candido: On Literature and Society, Princeton 1995. See also Schwarz, ‘Antonio Candido, 1918–2017’, nlr 107, Sept–Oct 2017.

11. See Celso Furtado, A Pre-Revoluçao Brasileira, Rio de Janeiro 1962.

Escalando a pilhagem

Nos EUA, em meio ao desemprego crescente, perda do seguro saúde e aumento da pobreza, uma doação de US $ 4 trilhões para o capital, com o partido de Biden e Trump ombro a ombro. Robert Brenner analisa o resgate Covid-19 no contexto mais amplo de uma economia produtiva vacilante e crescente predação da elite.

Robert Brenner


NLR 123, May-June 2020

Tradução / Em 23 de março de 2020, o Federal Reserve fez o anúncio histórico de que, em resposta à crise econômica do coronavírus, forneceria empréstimos a empresas não financeiras na indústria e serviços pela primeira vez desde o início dos anos 1930.[1] Poucos dias antes, os ex-presidentes do Fed, Ben Bernanke e Janet Yellen, deram seu aval a esse passo que rompe precedentes.[2] O tamanho da cornucópia de grandes negócios que as autoridades tinham em mente logo ficaria claro. O Federal Reserve havia, por boa parte de um século, confinado seus empréstimos ao governo dos Estados Unidos, comprando títulos do Tesouro e títulos emitidos por Entidades Patrocinadas pelo Governo (GEEs) - Fannie Mae, Freddie Mac, Ginnie Mae. O Banco Central tradicionalmente resistia a estender suas compras de empréstimos além desses instrumentos, até porque a compra de dívidas de empresas específicas o deixaria sujeito a acusações de favoritismo. Na época da crise financeira global de 2007-08, no entanto - com a justificativa de que o colapso ameaçava o próprio funcionamento do setor financeiro - o presidente do Fed, Bernanke, jogou essas sutilezas na lata de lixo da história, mostrando no processo, acima de tudo, por que essas normas foram estabelecidas.[3]

Para dar uma pátina de legitimidade a seus movimentos não ortodoxos, Bernanke havia retirado a obscura Seção 13(3) do Federal Reserve Act de 1932, tentando assim justificar os duvidosos resgates ad hoc de instituições financeiras politicamente conectadas, particularmente as entidades "grandes demais falir" AIG, Bear Stearns, Citigroup e Bank of America.[4] O Fed de Bernanke, trabalhando com o Tesouro, estabeleceu um novo modelo para resgatar empresas em dificuldades em tempos de crise: não apenas lançando uma bonança de presentes para bancos e não bancos favorecidos, no valor da soma alucinante de US $ 7,7 trilhões, mas também certificando-se de que os benefícios do resgate não se estendessem ao grupo análogo de mutuários hipotecários proprietários de imóveis em perigo, aos quais as instituições financeiras resgatadas haviam emprestado. Isso apesar do fato de que seus homólogos da década de 1930 foram resgatados durante a Grande Depressão, quando a Home Owners 'Loan Corporation comprou mais de um milhão de suas hipotecas inadimplentes. O ex-vice-presidente do Federal Reserve, Alan Blinder, defendeu explicitamente seguir esse precedente, demonstrando por quão pouco muitos desses proprietários/detentores de hipotecas vulneráveis ​​poderiam ter sido resgatados. Mas ele estava, em suas palavras, "rindo fora do tribunal". Bernanke e a administração Obama ignoraram totalmente a alternativa de Blinder, abrindo caminho para uma onda massiva de execuções hipotecárias, levando à transformação em grande escala do que antes eram casas particulares em unidades de aluguel, um processo que rendeu uma fortuna a uma coleção de investidores abutres bilionários. O presidente do Fed, Jerome Powell, continuou de onde Bernanke e Yellen haviam parado.[5]

A declaração do Fed de 23 de março de que pretendia conceder empréstimos a empresas não financeiras foi decisiva para indicar que o Fed assumia a liderança do resgate corporativo do governo, sinalizando o que se esperava do Congresso e do Tesouro e especificando a forma pretendida e o nível de apoio para grandes negócios na crise econômica do coronavírus. No momento apropriado, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, e o líder da minoria no Senado, Chuck Schumer, anunciaram que o elemento central de seu projeto de lei recém-aprovado - que logo seria chamado de Coronavirus Aid, Relief and Economic Security Act [Lei de Auxílio, Socorro e Segurança Econômica do Coronavírus] ou CARES Act - era um enorme resgate de grandes empresas não financeiras, no valor de meio trilhão de dólares. Esses US$ 500 bilhões seriam reservados integralmente para empresas com pelo menos 10.000 funcionários e receita de pelo menos US$ 2,5 bilhões por ano. Ainda foram previstos US$ 46 bilhões a serem divididos entre companhias aéreas de transporte de passageiros (US$ 25 bilhões), companhias aéreas de carga (US$ 4 bilhões) e "empresas necessárias à segurança nacional", um codinome para a Boeing (US$ 17 bilhões), deixando US$ 454 bilhões a serem distribuídos aos felizes beneficiários empresariais a serem selecionados. No entanto, mesmo essa grande soma revelou-se apenas a ponta do iceberg. O verdadeiro “dia de pagamento” para as maiores empresas não financeiras do país seria de uma ordem de grandeza totalmente diferente.

A apropriação do Congresso do resgate corporativo, a ser pago pelos contribuintes e temporariamente atribuído ao Departamento do Tesouro, foi simplesmente o primeiro passo necessário para permitir que o Federal Reserve assumisse a administração real do resgate. Os US$ 454 bilhões restantes da dotação original do Congresso foram, assim, creditados na conta do Fed como um colchão para cobrir potenciais perdas, e isso abriu caminho para que o Fed assumisse a inteira responsabilidade de fazer adiantamentos às empresas e, em particular, de multiplicar por 10 a alocação original do Congresso - de US$ 454 bilhões para cerca de US$ 4,54 trilhões - "para empréstimos, garantias de empréstimos e outros investimentos". [6] Cerca de US$ 4,586 trilhões, aproximadamente 75% do total de US$ 6,286 trilhões derivados direta e indiretamente do dinheiro da CARES Act, iriam para o "care" [cuidado] das maiores e mais ricas empresas do país. Para efeito de comparação, mesmo com o aumento do desemprego, apenas US$ 603 bilhões foram destinados para pagamentos diretos em dinheiro a indivíduos e famílias (US$ 300 bilhões), seguro-desemprego extra (US$ 260 bilhões) e empréstimos estudantis (US$ 43 bilhões).

A escala do resgate que as autoridades políticas prepararam para os grandes negócios foi alucinante, mas sua falta de preocupação com o monitoramento de seu desembolso foi ainda mais notável. A CARES Act definiu um elaborado conjunto de condições formais relativas a quem se qualificava para a generosidade do Fed-Treasury, e o que se podia ou não fazer com os adiantamentos recebidos. Porém, a lei também deixou a porta aberta para que o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, inicialmente responsável pela administração da lei, ignorasse essas condições, graças à ambiguidade desta na linguagem, inconsistências, lacunas e restrições.[7] De todo modo, o fato de o Fed assumir a responsabilidade sobre a operação de resgate teve como resultado limitar o debate no Congresso acerca da questão das regras a serem adotadas e de como elas seriam efetivamente aplicadas. O Banco Central deixou claro não possuir grande interesse em impor condições aos destinatários, e a liderança do Partido Democrata concordou, professando não ter escolha.[8]

Para garantir que a superintendência séria das ações do Fed não ocorresse, os progenitores da CARES Act adotaram essencialmente a mesma estrutura de supervisão que havia sido usada para o resgate do setor financeiro de 2008. Como na ocasião do resgate anterior, a CARES Act criou cargos de fiscalização e vários conselhos de supervisão dos empréstimos. Porém, assim como antes, esses órgãos estavam autorizados apenas a denunciar abusos, não a evitá-los ou corrigi-los.[9] Isso tornou qualquer escrutínio público ainda mais difícil ao conceder ao Fed o direito de realizar suas reuniões em segredo e não divulgar as atas, imunizando-o pelo resto de 2020 contra requisições por meio da Lei de Liberdade de Informação. Bernanke havia procurado obter o mesmo tipo de cobertura para seu próprio resgate massivo recorrendo repetidamente aos tribunais em busca de proteção, mas acabou perdendo sua aposta pelo sigilo graças a um processo bem-sucedido de repórteres da Bloomberg. Desta vez, o Fed não deixaria reféns para se atordoar. [10] O equivalente a 2,5 vezes os lucros empresariais anuais dos EUA, cerca de 20% do PIB anual do país, teve autorização para ser despendido sem a devida supervisão.[11]

Um programa bipartidário

Não houve, e não haverá, nenhum desafio sério ao resgate corporativo porque o Partido Democrata, não menos que o Republicano, o apoia fortemente. A operação de resgate não deve ser particularmente associada ao governo Trump, embora o presidente tenha pressionado muito por sua aprovação. Os principais líderes de ambos os partidos políticos se associaram fortemente a esse auxílio, e a esmagadora maioria de seus seguidores no Congresso concordou com mais ou menos entusiasmo.

De acordo com a Constituição, as decisões envolvendo o orçamento devem ter origem na Câmara, onde o Partido Democrata atualmente tem maioria. No entanto, os Democratas cuidaram para que a análise do projeto de lei que se tornou a CARES Act passasse primeiro pelo Senado, onde os Republicanos detêm a maioria.[12] Neste, Schumer, em colaboração com o secretário do Tesouro de Trump, Mnuchin, assumiu a liderança na formulação da lei – nos termos dos Republicanos, como Schumer prontamente admitiu. The Senate Democratic conference ratified their leadership's profession of helplessness without a single dissenting vote, the Senate approving the bill 96-0. Tanto o chamado Democrats' Progressive Caucus [Bancada Progressista dos Democratas] quanto o Congressional Black Caucus [Bancada dos Negros no Congresso] silenciaram sobre o assunto; e embora Bernie Sanders e, em particular, Elizabeth Warren apresentassem objeções, seus protestos foram silenciados, na melhor das hipóteses.[13]

Quando o projeto saiu do Senado, os líderes Democratas no Congresso já o haviam aprovado de fato e a Câmara não poderia derrubá-lo facilmente - não que eles tivessem qualquer intenção de fazê-lo. Conforme explicado pelo presidente do Comitê de Meios e Recursos da Câmara, Richard Neal, que trabalhou em estreita colaboração com a Presidente da Câmara, Nancy Pelosi (bem como Mnuchin) no encaminhamento do projeto pela Câmara dos Representantes, foi um esforço bipartidário, contando como sempre com o conselho dos mesmos líderes da elite político-financeira que moldaram a sucessão de resgates implementados durante as administrações de Clinton, Bush e Obama. Como disse Neal:

Eu não fiz isso em um esforço noturno. Voltei para os indivíduos que têm uma longa carreira legislativa de sucesso e influência na compreensão dos parâmetros de uma questão dessa magnitude. Por isso, procurei imediatamente Robert Rubin, secretário do Tesouro de Bill Clinton... Janet Yellen, ex-presidente do Federal Reserve, Hank Paulson, que orientou o governo Bush após o colapso financeiro de 2008, Steve Rattner, que dirigia o resgate do setor automotivo... e Jack Lew [Secretário do Tesouro de Obama].[14]

The DP leadership was able to provide political cover for House Democrats in general, and the Party's left wing in particular, by relieving members from having to vote on it through use of the House's unanimous-consent "voice vote" procedure. Apenas uma Democrata, Alexandria Ocasio-Cortez - cujo distrito era o epicentro nacional da pandemia na época - se opôs publicamente ao projeto de lei, chamando-o de um dos "maiores resgates de empresas da história estadunidense".[15]

A estratégia dos principais líderes Democratas parece ter sido a de permitir que os Republicanos assumissem o crédito pelo resgate, ao mesmo tempo garantindo silenciosamente sua ratificação, já que se tratava também de uma das principais prioridades de seus apoiadores empresariais – além de ter o suporte da grande maioria dos membros eleitos do partido no Congresso. Aparentemente, eles esperavam que, com os ganhos espetaculares das empresas estampados nas manchetes, fosse possível obter dos Republicanos compensações para seus outros eleitores: seguro-desemprego, equipamento médico e assistência médica; e salários suplementares ou de substitutos, bem como apoio para pequenas empresas. Contudo, a falha crucial dessa abordagem foi que, ao permitir que o Senado Republicano elaborasse a legislação, os Democratas abriram mão de sua principal fonte de influência política: sua maioria na Câmara. Uma vez aprovada a CARES Act, Schumer e Pelosi foram obrigados a admitir implicitamente o seu fracasso, ao anunciar, imediatamente após sua ratificação, que solicitariam uma nova versão ampliada.[16]

Para tentar garantir o que não conseguiram obter por meio da CARES Act, os Democratas tinham um caminho óbvio a seguir: aprovar seu próprio projeto de lei na Câmara e deixar que os Republicanos tentassem alterá-lo no Senado. Teria sido bastante simples para os Democratas aprovarem uma legislação que atendesse às necessidades urgentes da população. Surpreendentemente, porém, a liderança Democrata no Congresso mais uma vez permitiu que o Senado Republicano tomasse a iniciativa de redigir o projeto de lei original, e sofreu outra derrota vergonhosa com a chamada COVID-19 Interim Emergency Funding Act [Lei de Financiamento Provisório de Emergência da COVID-19], já que praticamente todo o seu financiamento foi, de um modo ou de outro, para empresas.

A nova lei deveria complementar a alocação inicial para pequenas empresas, e a maior parte dos seus recursos era oficialmente para esse fim. Na realidade, porém, a maioria dos beneficiários ostensivamente de pequenas empresas era "pequena" apenas no sentido técnico: empresas valendo mais de um milhão de dólares, empresas de médio porte e até corporações tomaram parte na ação. O único item importante que os Democratas conseguiram emplacar foi para os hospitais; porém, não havia restrições à forma como esses fundos poderiam ser usados, o que significa que a maioria iria para administradores abastados que decidiriam como aqueles seriam gastos. Houve também uma pequena destinação de dinheiro para os testes de COVID-19. Por outro lado, Schumer e Pelosi não conseguiram nenhuma ajuda para os estados, que estavam em crise devido ao colapso de suas receitas fiscais e à impossibilidade de realizarem gastos que implicassem déficit. Além disso, não houve acréscimos para o vale-refeição, apesar de uma crise de fome que gerou longas filas de doação de alimentos; nem para aluguel, apesar de uma onda gigantesca de despejos iminentes. Ainda assim, a votação final na Câmara foi de 388 a favor e cinco contra, com Ocasio-Cortez sendo novamente a única Democrata da Câmara que se atreveu a votar "não", classificando o projeto de "ultrajante". Os eleitores ficaram com um ponto de interrogação sobre se, ou quanto, a liderança do DP realmente se importava em ir além do resgate das corporações e se a ala esquerda do Partido na Câmara algum dia se organizaria.[17]

Três semanas depois, Pelosi finalmente deu seu show ao tomar a iniciativa com o lançamento da Heroes Act [Lei dos Heróis], de US$ 3 bilhões, que ofereceu ao Partido Democrata a oportunidade de apresentar um programa completo com o qual eles poderiam seguir lutando. O projeto continha um conjunto robusto de demandas liberais em que os democratas poderiam ter feito campanha, mesmo que tivessem sido inicialmente parados no Congresso pela maioria republicana no Senado.[18] Mas Pelosi minou profundamente sua força política ao usá-lo para sinalizar aos principais doadores do partido que este os colocava em primeiro plano. Para reforçar o descrédito, Pelosi ainda procurou enfrentar a crise premente do sistema de saúde pedindo um novo financiamento para o seguro saúde por meio do COBRAplan, uma medida absurdamente cara que daria suporte às seguradoras, mas negligenciaria totalmente os milhões que perderam sua cobertura de saúde junto com seus empregos. Uma vez que a saúde é indiscutivelmente a questão em que os democratas têm sua maior vantagem política sobre os republicanos, isso foi quase suicida. Para piorar as coisas, o projeto de lei de Pelosi tornou os grupos de lobby empresarial da K-Street elegíveis para o Paycheck Protection Program [Programa de Proteção ao Salário], oferecendo financiamento a organizações cujo real propósito político era apoiar grandes empresas e se opor a iniciativas políticas como a Heroes Act. Não poderia haver ambiguidade sobre a principal prioridade da liderança do DP: sustentar a identidade dos democratas como "centristas" neoliberais pró-negócios.[19]

Enquanto essas escaramuças políticas se desenrolavam, o Federal Reserve prosseguia sem obstáculos com seu resgate histórico às grandes empresas. Como explicou o secretário do Tesouro Mnuchin, os negociadores "haviam discutido em termos bipartidários" a questão de saber se as empresas que recebiam o dinheiro do resgate poderiam usá-lo para pagar dividendos, recomprar suas ações e aumentar salários para os altos executivos, ou se deveriam manter os níveis de emprego e investimento. "Estávamos de acordo que os empréstimos diretos comportariam restrições", mas "as transações do mercado de capitais não teriam restrições".[20]

Com relação aos US$ 46 bilhões da CARES Act para companhias aéreas, empresas de carga aérea e a Boeing, isso significou, trocando em miúdos, que o Departamento do Tesouro administraria o resgate. Este assumiria a forma de empréstimos diretos e, a fim de serem elegíveis, os beneficiários teriam de aceitar certas restrições bastante rigorosas e claramente definidas. Eles não poderiam pagar dividendos; teriam limitadas as quantias permitidas para recompra de ações; e seriam obrigados a conservar 90% dos trabalhadores. Com relação ao resto do dinheiro do resgate empresarial, potencialmente no valor de dez vezes essa soma, os empréstimos se dariam através do Fed, por meio da compra de títulos emitidos pelas grandes empresas, e não estariam condicionados à forma como elas gastariam esse dinheiro ou a suas decisões econômicas em geral.[21] Mesmo em meio a uma das piores crises econômicas da história dos Estados Unidos, com os padrões de vida de grande parte da população profundamente ameaçados, os altos executivos e acionistas estariam livres para encher seus próprios bolsos por meio de recompra de ações, dividendos e aumentos salariais de executivos, ao mesmo tempo em que reduziam o emprego e o investimento - exatamente como vinham fazendo rotineiramente com os ganhos e empréstimos de suas empresas na década anterior.

Reflatando a bolha dos títulos corporativos

Como se viu, a concessão pelo Congresso, pelo Departamento do Tesouro e pelo Federal Reserve do titânico $ 4,5 trilhões de resgate sem compromisso para as corporações, por mais histórico que fosse, seria simplesmente o começo da história, seu capítulo de abertura, para falar. A subsequente implementação do resgate pelo Fed elevou o apoio do Estado às grandes empresas a um novo nível, afetando profundamente o mercado de títulos corporativos e, por sua vez, o relacionamento do Fed com as corporações. "Sem precedentes" é um clichê, especialmente surrado no caso da atual crise econômica do COVID-19; mas é um descritor preciso da reviravolta que ocorreu.

Em seu anúncio de 23 de março de 2020, o Fed declarou que "faria o que fosse preciso" para defender a economia corporativa e, nas semanas seguintes, efetivamente até 9 de abril de 2020, forneceu esclarecimentos completos sobre suas intenções. Durante esse intervalo, o Fed estabeleceu um conjunto de facilidades para adquirir dívida corporativa, direta ou indiretamente, destinadas a emprestar quantias virtualmente ilimitadas de dinheiro para quase todo tipo de empresa não financeira, independentemente do rating dessa dívida.[22] Isso incluiu fundos para dívida com grau de investimento, mais da metade dos quais até 2020 foi classificado no extremo mais baixo dessa categoria (com classificação bbb); para "Fallen Angels", ou seja, empresas cuja dívida foi classificada como grau de investimento até 22 de março, mas que posteriormente caiu abaixo desse nível; e, mais espetacularmente, fundos para dívidas de alto rendimento e alto risco ("junk bonds"), a serem adquiridos por meio da compra de fundos negociados em bolsa (ETFs). No momento em que essa explosão de atividade acabou, o Fed havia criado facilidades para apoiar quase todo o universo de tomadores de empréstimos e credores corporativos.

Assim que ficou evidente - e como o Fed entendeu desde o início - o mero anúncio desses programas foi interpretado pelos mercados de títulos como significando que o Fed estava comprometido em apoiá-los e produziu o mesmo efeito como se o Fed tivesse realmente comprado os títulos. A intenção foi tomada como equivalente à ação do Fed porque foi interpretada como um compromisso real de garantir os empréstimos das empresas - para sustentar seu valor, ou pelo menos evitar que caia além de um certo ponto - e assim reduzir radicalmente o risco para os credores que os compraram. Na verdade, o mero estabelecimento de suas facilidades de compra de títulos pelo Fed pode ter sido mais eficaz do que realmente colocá-las para funcionar, porque teve o efeito de colocar o peso do Fed por trás de todo o mercado de títulos, em vez de comprar a dívida de determinados empresas. Como explicou o presidente do Fed, Powell, em termos discretos: "Muitas empresas que teriam que vir para o Fed agora são capazes de se financiar privadamente... e isso é bom."[23] As iniciativas do Fed por si só galvanizaram os mercados, pois as taxas de juros caíram simplesmente com a notícia de que pretendia intervir.[24]

Nas semanas anteriores a 23 de março de 2020, o mercado de títulos corporativos praticamente secou diante de uma fuga frenética para a segurança dos títulos do Tesouro. Como resultado, os spreads de títulos corporativos - a diferença entre os rendimentos dos títulos corporativos e dos títulos do Tesouro - explodiram para cima, atingindo seu pico em 23 de março, o dia do anúncio do Fed.

Desde o início da crise, à medida que se registrava a evolução da pandemia de COVID-19, o Fed vinha intervindo em uma escala cada vez maior nos mercados de crédito, tentando obter mais dinheiro em condições mais favoráveis aos prestamistas do setor financeiro, com o objetivo de tornar lucrativa a concessão de empréstimos a empresas não financeiras. Ele reduziu para 0 a 0,25% o intervalo da meta dos fundos federais de referência, e, como "orientação", comprometeu-se a mantê-lo nesse patamar no futuro previsível; afrouxou regulamentações sobre os bancos, reduzindo as exigências de capital e liquidez, a fim de facilitar a concessão de empréstimos; fez compras maciças de títulos do Tesouro para ajudar as reservas bancárias; e, finalmente, declarou Quantitative Easing [Flexibilização Quantitativa (monetária)] ilimitada. No entanto, essas medidas tiveram pouco efeito em um momento no qual os bancos e os emprestadores não bancários, que poderiam se beneficiar da generosidade do Fed, não tinham interesse em fornecer crédito a tomadores não financeiros já endividados. Era evidente que isso seria muito arriscado. Se o Fed quisesse que os empréstimos a empresas não financeiras aumentassem, ele teria de desafiar os mercados e intervir.

É claro que foi isso que o Fed acabou fazendo com seu anúncio de 23 de março, que provou ser o ponto de virada. O economista-chefe do J. P. Morgan brincou dizendo que, ao dar esse passo, o Fed "basicamente se transformou em um banco comercial em vez de um banco central". O Fed teve que se tornar um banco comercial, mas continuar sendo um banco central, porque apenas um banco central - aquele que tem o poder de criar dinheiro, comprar títulos e adicioná-los ao seu balanço praticamente sem limites - estava em condições de assumir o risco de compra de obrigações de sociedades não financeiras nesse momento de extrema necessidade. Quando o Fed sinalizou sua intenção de apoiar o mercado de títulos de empresas [corporate-bond market], estabelecendo sua série de facilidades de empréstimo, ele repentinamente reduziu de modo qualitativo o risco de compra desses títulos por credores privados, dando-lhes confiança para retornar ao mercado. Foi isso que eles fizeram em massa, é claro, abrindo caminho para uma onda gigante de tomada de empréstimos por parte das grandes empresas não financeiras. A nova onda de compra dos credores, na verdade, representou uma continuação da anterior, que gerou empréstimos recordes e uma bolha no mercado de títulos de empresas que as notícias da disseminação global do coronavírus em fevereiro de 2020 ameaçaram estourar. Portanto, quando o Fed interveio para reavivar os empréstimos a grandes empresas não financeiras, declarando que compraria títulos em qualquer quantia necessária para sustentar seu valor, estava na verdade reiniciando e ampliando a bolha do mercado de títulos privados.

Embora o que tenha chegado às manchetes tenha sido o sucesso de diversas famosas empresas não financeiras em garantir a obtenção de empréstimos a preços artificialmente reduzidos, na realidade são os credores, os financistas, que se beneficiaram de forma decisiva - de duas maneiras. Primeiro, se os mercados de títulos tivessem permanecido congelados, muitas empresas não financeiras logo não teriam outra escolha a não ser declarar falência, pois estavam num beco sem saída entre a incapacidade de pagar suas dívidas correntes devido à perda de receita causada pela pandemia; e a incapacidade de refinanciar suas dívidas, exceto a taxas de juros demasiadamente altas. Os credores dessas empresas não financeiras, incluindo bancos comerciais, hedge funds, fundos de investimento, bancos de investimento, fundos de pensão e outras instituições de investimento que constituem o universo do shadow banking system [sistema bancário paralelo], teriam enfrentado perdas significativas no processo de falência. Em vez disso, ao evitar uma onda de falências, a reanimação do mercado de títulos pelo Fed salvou os credores e protegeu seus ativos.

Em segundo lugar, quando a economia começou a fechar, os investidores passaram a considerar os níveis recordes de dívida das empresas não financeiras, contraídas no período anterior à crise do coronavírus, como muito mais arriscados do que antes. Eles começaram a exigir taxas de juros mais altas para novas dívidas e a vender dívidas antigas. Com as grandes empresas não financeiras imobilizadas, pouca dívida nova poderia ser emitida e o valor da dívida antiga entrou em colapso, deixando os credores em uma situação adversa. Novamente, quando o Fed deu o estímulo inicial ao mercado de títulos, prometendo proteger o valor da dívida das empresas não financeiras, o valor dos títulos se recuperou e os investidores evitaram enormes perdas.

O Fed havia induzido com sucesso os credores privados a retornarem ao mercado de títulos, servindo como emprestador de última instância – ou melhor, como emprestador de primeira instância, socializando suas perdas potenciais e garantindo que eles poderiam privatizar seus ganhos potenciais. Ele permitia, assim, que as empresas não financeiras assumissem dívidas maiores do que seria possível de outra forma. Porém, o objetivo não era, de forma nenhuma, resolver as dificuldades iniciais que impeliram essas empresas a assumirem aquelas dívidas - mas empurrar seus problemas com a barriga, para onde eles poderiam se tornar ainda mais difíceis de serem solucionados. O Fed evitou um colapso naquele momento, mas provavelmente enfrentará uma crise ainda maior no futuro.[26]

Bonança bilionária do coronavírus

A partir desse ponto crítico, os spreads de títulos se inverteram e começaram a diminuir. O spread para empresas com classificação de risco BBB, que havia atingido o pico de 4,88% em 23 de março de 2020, caiu para 2,83% em 1º de maio. No mesmo intervalo, o spread de alto retorno (junk bond [títulos tóxicos/de alto risco]) caiu de 10,87% para 7,7%. O high-grade borrowing cost index da Bloomberg [índice de custo de empréstimo para grau alto], que havia disparado para 4,5%, caiu para 2,4% no início de junho de 2020, perto dos níveis mínimos do pré-pandemia, alcançados no início de março de 2020. As emissões de títulos com o grau de investimento dispararam, quebrando duas vezes o recorde mensal anterior. O volume de março de 2020, de US$ 262 bilhões, quebrou o recorde anterior de US$ 168 bilhões (maio de 2016) e, em seguida, o volume de abril de 2020, de US$ 285 bilhões, quebrou o recorde de março.

O impacto da declaração do Fed foi poderoso, conforme ficou evidente em um estudo realizado logo em seguida pela American Prospect em parceria com The Intercept. Eles localizaram relatórios de vendas de títulos publicados por 49 grandes empresas com valor de pelo menos US$ 190 bilhões. Muitos dos que aproveitaram a redução no custo dos empréstimos oferecida pelo Fed faziam parte da nata da "América industrial" - Oracle, Disney, Exxon, Apple, Coca-Cola, McDonald’s e assim por diante.[27] Eles podiam não estar desesperados por esse auxílio, mas não resistiram em lucrar com ele. Muito ilustrativo desse cenário, a Amazon conseguiu alguns dos custos de empréstimos mais baixos já garantidos no mercado de títulos de empresas dos EUA: levantou US$ 10 bilhões em títulos de três anos à taxa de 0,4%. Isso foi menos de 0,2 ponto percentual acima da taxa que os investidores cobraram do governo dos EUA quando este recentemente emitiu dívida com vencimento semelhante. Também se estabeleceram novos mínimos para os títulos de dívida da Amazon já existentes com vencimento em sete, dez e quarenta anos.[28]

Antes da declaração do Fed de 23 de março, não estava claro se algumas das maiores empresas com balanços fracos e/ou perspectivas nebulosas - entre elas Boeing, Southwest, Hyatt Hotels - seriam capazes de obter empréstimos no mercado de títulos. Porém, assim que o Fed anunciou suas intenções, muitas delas imediatamente ganharam acesso a financiamento. Recentes "anjos caídos" como Ford e Kraft Heinz, ambos com títulos negociados em níveis depreciados apenas algumas semanas antes, rapidamente concluíram ofertas bem-sucedidas. A oferta da Boeing em 30 de abril arrecadou US$ 25 bilhões e ficou bem abaixo da demanda. Seu sucesso permitiu que a empresa não fosse obrigada a aceitar o empréstimo oferecido pelo resgate de empresas, que, como mencionado, seria acompanhado de condições bastante rigorosas para a manutenção de funcionários, bem como de limitações na recompra de ações e pagamento de dividendos. A Boeing não deixou de explorar sua nova vantagem, anunciando imediatamente que cortaria 16.000 postos de trabalho. A GE Aviation, outra empresa qualificada para empréstimo sob a CARES Act, seguiu pelo mesmo caminho, lançando um empréstimo de US$ 6 bilhões no open market [mercado aberto] e demitindo 13.000 funcionários logo em seguida.[29]

Por fim, o mercado de ações seguiu o mesmo caminho do mercado de títulos de empresas, tranquilizado pelo sucesso instantâneo do refinanciamento de grande parte do setor não financeiro e pela promessa implícita do Fed de manter as taxas de juros baixas – sem se preocupar, como é há muito tempo, com os lucros baixos, sem falar na produtividade. O S&P 500 (um dos principais indicadores da bolsa de Nova York e da NASDAQ) atingiu o fundo do poço em 23 de março, com 2.237 pontos, depois do seu pico de 3.386 em 19 de fevereiro de 2020. Contudo, disparou depois para 3.139 em 4 de junho – um aumento de 40%, enquanto a economia real despencava, e representando o maior ganho do índice para um período de 50 dias desde o início dos registros comparáveis, em 1952. A capitalização de mercado atingiu seu mínimo, US$ 21,8 trilhões, ou 103% do PIB, em 23 de março. Contudo, em 30 de abril, ele estava de volta a US$ 28,9 trilhões, ou 136,3% do PIB. Não houve nenhuma outra boa notícia claramente relevante nesse ínterim, mas a relação preço/retorno do S&P 500, que havia caído enquanto a economia desabava, mais uma vez subiu quando os preços das ações decolaram, apesar da queda nos lucros.[30]

Em virtude apenas de suas promessas, o Fed foi capaz por colocar US$ 7,1 trilhões nas mãos de investidores em ações, em um momento em que a economia real teria gerado o resultado oposto. Quase no mesmo período, entre 18 de março e 4 de junho, a riqueza dos bilionários estadunidenses aumentou em US$ 565 bilhões, atingindo o patamar de US$ 3,5 trilhões, alta de 19%. Não é de surpreender que Jeff Bezos tenha liderado o caminho, aumentando em US$ 34,6 bilhões sua riqueza (impressionantes 31%), enquanto Mark Zuckerberg ganhou US$ 25 bilhões.[31]

Lucros por predação

O resultado dos esforços do Fed alterou o jogo. O mercado de títulos de empresas foi reconfigurado e a posição econômica das principais empresas não financeiras se transformou, pelo menos por enquanto. Ao mesmo tempo, nas palavras do CIO global da Guggenheim Investments, Scott Minerd:

O apoio oferecido à América corporativa durante este período de paralisação econômica arrisca a criação de uma nova obrigação moral para o governo dos EUA de manter os mercados funcionando e ajudar as empresas a acessar o crédito... Os mutuários corporativos provavelmente estão a caminho de se tornar algo semelhante a gses, cujos títulos eram de fato garantidos pelo Tesouro, como foi confirmado na época da crise financeira global... A diferença é que neste ciclo não é uma instituição específica, mas sim o mercado de títulos com grau de investimento que é grande demais para falir.[32]

Como Minerd conclui, o Fed e o Tesouro "têm essencialmente socializado o risco de crédito" e, no processo, têm "criado um novo risco moral" - "Os Estados Unidos nunca serão capazes de voltar à situação anterior". O presidente do Fed, Powell seguiu o caminho de Bernanke, mas o levou a novos patamares.

Não é preciso enfatizar novamente que, graças aos esforços conjuntos do Congresso, do Tesouro e do Fed, nós, empresas não financeiras, conseguimos alcançar essa incrível ampliação da riqueza de forma incondicional, sem ter que nos comprometer a fazer nada. com seu dinheiro ou adotar qualquer política econômica específica. Isso quer dizer que, ao providenciar a adoção, primeiro, do salvamento das corporações e, por sua vez, a série de intervenções subsequentes no mercado de títulos baseadas naquele salvamento, o establishment político-econômico bipartidário dos Estados Unidos foi incentivando explicitamente seus beneficiários, gerentes corporativos e acionistas, a enriquecerem ainda mais, ao mesmo tempo em que se recusa a exigir que as corporações façam qualquer coisa em troca, muito menos adotem políticas que possam nutrir a economia e melhorar as condições da população.

O que o establishment bipartidário estava fazendo era fornecer as condições, tanto quanto possível, para permitir que os executivos das empresas e acionistas buscassem seus próprios interesses da maneira que julgassem melhor, sem fazer perguntas. No primeiro plano de suas reflexões a esse respeito estava que promover o egoísmo econômico não mais significava necessariamente reforçar a capacidade dos comandantes das empresas de elevar o investimento ou o emprego com lucro, ou de maximizar os lucros com o mínimo de acumulação de capital por meio da pressão sobre os trabalhadores – ou mesmo simplesmente reproduzir e sustentar suas próprias empresas. Eles compreenderam o quanto a obtenção de dinheiro desvinculara-se da produção de lucro, especialmente em uma economia fraca. Foi por esse motivo que eles foram tão explícitos e insistentes em proteger a capacidade de proprietários e administradores de grandes empresas não financeiras de perseguir seus próprios interesses – comprando de volta suas ações, pagando dividendos, aumentando a remuneração dos executivos ou mesmo liquidando parte ou a totalidade da participação. Eles aceitaram, em particular, a disseminação de proprietários de grandes empresasse beneficiando às expensas de suas próprias empresas com um mínimo de risco, como é dramaticamente exemplificado pelo patrimônio privado; e a necessidade de garantir os meios de se fazer dinheiro desse modo, tornando os empréstimos mais baratos e seguros, às vezes como um meio indireto incontornável de estimular o investimento e o emprego reais-predação como pré-condição para a produção.

Como o democrata da Câmara Richard Neal explicou de forma branda e inconsciente, o resgate "foi descrito como um estímulo", mas é "mais precisamente" para "estabilidade e alívio".[34] É melhor entendido, isto é, como um instrumento para permitir que as empresas não financeiras e financeiras continuem no caminho que já vinham trilhando - na medida em que de fato desejassem - colocando dinheiro em suas mãos sem condições de como eles devem gastá-lo, em vez de sobrecarregados por condições destinadas a colocá-los em outro caminho. Com a economia dos EUA apresentando um desempenho tão ruim há tanto tempo, o establishment político bipartidário e seus principais formuladores de políticas chegaram à conclusão, consciente ou inconscientemente, de que o único modo de se garantir a reprodução das grandes empresas financeiras e não financeiras, seus principais dirigentes e acionistas – e, na verdade, os principais líderes dos maiores partidos, a eles ligados intimamente - é intervir politicamente nos mercados financeiros e em toda a economia, de modo a promover a redistribuição de riqueza para eles (portanto de baixo para cima) por meios diretamente políticos. Nenhum desses caminhos chegou a ser cogitado, apesar do precário estado da economia e da calamidade que afetou largas faixas da população.

A persistência de uma abordagem tão distante dos principais produtores e financiadores da economia por parte do establishment político-econômico bipartidário em um momento de crise tão profunda parece tão extrema que requer mais explicações. Como eles poderiam continuar com tais políticas, quando as necessidades da população são tão avassaladoras e o dinheiro para lidar com elas tão escasso em geral, mas transbordando os bolsos dos principais gerentes e acionistas corporativos? Ainda assim, tendo em vista a falta de controvérsia dentro de qualquer seção da elite bipartidária sobre essa abordagem, de quão difundida tem sido em toda a classe dominante e há quanto tempo não é contestada, a questão oposta é talvez ainda mais apropriada. Como eles poderiam romper com isso - ou, de fato, abster-se de estendê-lo e aprofundá-lo?

Surpreendentemente, mesmo enquanto o Fed estava fazendo uma enorme doação aos principais gerentes e acionistas por meio do resgate do mercado de títulos corporativos, o Congresso estava dando outro grande presente para praticamente as mesmas pessoas, inserindo US $ 174 bilhões em novos incentivos fiscais no cares Act, dirigida principalmente a grandes empresas e pessoas físicas ricas. Os mesmos incentivos fiscais foram considerados excessivos demais, mesmo para a bonança de corte de impostos de US $ 1,5 trilhão de Trump em 2017, mas agora foram adotados sob a cobertura da pandemia. Nas palavras do presidente do Comitê de Finanças do Senado, Charles Grassley, essas "disposições fiscais bipartidárias... lançaram uma tábua de salvação financeira muito necessária" para as empresas, "para dar-lhes a melhor chance de sobreviver".[35]

Com o desempenho tão ruim da economia americana, como tem acontecido por um período tão longo, o establishment político bipartidário e seus principais formuladores de políticas chegaram à conclusão absoluta, consciente ou inconscientemente, de que a única maneira de garantir a reprodução das sociedades não financeiras e financeiras, os seus dirigentes e accionistas de topo - e mesmo os dirigentes máximos dos grandes partidos, estreitamente ligados a eles - é intervir politicamente nos mercados de activos e em toda a economia, de modo a garantir a recuperação ascendente da distribuição de riqueza a eles por meios diretamente políticos. Isso é, de fato, o que o Congresso e o Fed conseguiram com seu resgate corporativo em larga escala e estendido diante da queda da produção, do emprego e dos lucros. A redistribuição ascendente da riqueza politicamente motivada para sustentar elementos centrais de uma classe capitalista dominante parcialmente transformada, como resposta a um processo aparentemente inexorável de deterioração econômica, tem estado no centro da evolução político-econômica que nos trouxe até este ponto. O que tivemos por um longo período é o agravamento do declínio econômico acompanhado pela intensificação da predação política. Situar essas tendências em seu contexto histórico e global e compreender suas origens é o objetivo da segunda parte desta análise.

Notas

[1] Sou grato a Aaron Brenner por sua leitura crítica perspicaz e orientação indispensável sobre as questões financeiras em jogo, bem como a Ryan Lee por sua excelente assistência em pesquisa.

[2] "Federal Reserve Announces Extensive New Measures to Support the Economy", Press Release, 23 March 2020; Pam Martens and Russ Martens, "For First Time in History, Fed to Make Billions in Loans to Big and Small Businesses", Wall Street on Parade, 23 March 2020. Veja também Ben Bernanke and Janet Yellen, "The Federal Reserve Must Reduce Long Term Damage from Coronavirus", Financial Times, 18 March 2020; Christopher Condon and Craig Torres, ‘"Rosengren Says Fed Should Consider a Wider Range of Assets", Bloomberg, 6 March 2020.

[3] Congressional Research Service, Federal Reserve: Emergency Lending, 27 March 2020, pp. 10-21.

[4] Essas medidas foram tão exageradas que o Congresso se moveu para limitá-las no futuro por meio da Lei Dodd-Frank, embora isso também tenha se mostrado insuficiente e desdentado, e foi entendido dessa forma na época da crise atual. Congressional Research Service, Federal Reserve: Emergency Lending, pp. 18-19ff.

[5] Francesca Mari, "The Housing Vultures", New York Review of Books, 11 June 2020.

[6] CARES Act, Section 4003 (a) (b); Pam Martens and Russ Martens, ‘Stimulus Bill: The Fed and Treasury’s Slush Fund is Actually $4 Trillion’, Wall Street on Parade, 25 March 2020; Jeanna Smialek, ‘How the Fed’s Magic Money Machine Will Turn $454 Billion Into $4 Trillion’, nyt , 26–27 March 2020.

[7] Zach Carter, ‘Democrats Are Handing Donald Trump the Keys to the Country’, Huffington Post, 25 March 2020.

[8] For detailed accounts, see Michael Grunwald, ‘The Corporate Bailout Doesn’t Include the Limits Democrats Promised’, Politico, 2 April 2020; Jeff Stein and Peter Whoriskey, ‘The us Plans to Lend $500 Billion to Large Companies. It Won’t Require them to Preserve Jobs or Limit Executive Pay’, Washington Post, 28 April 2020. For the Fed’s assumption of leadership, see Nick Timiraos, ‘After Fed Unleashes Fire Power, Washington Rearms Central Bank’, wsj , 29 March 2020; and Nick Timiraos, ‘The Fed Transformed: Jay Powell Leads Central Bank into Uncharted Waters’, wsj , 30 March 2020.

[9] Damon Silvers, ‘Repeating the Mistakes of the 2008 Bailout’, American Prospect, 24 March 2020; Matt Taibbi, ‘Resetting the Bomb: Interview with Neil Barofsky’, taibbi.substack.com, 6 April 2020; Alan Rappeport and Jeanna Smialek, ‘The Oversight Playbook from 2008 Returns as Bailout Swells’, nyt, 24 March 2020.

[10] CARES Act Section 4009 (a); us Code Title 5, Section 552; Pam Martens and Russ Martens, ‘Stimulus Bill Allows Federal Reserve to Conduct its Meetings in Secret’, Wall Street on Parade, 26 March 2020; Maggie Severns and Victoria Guida, ‘Recovery Law Allows Fed to Rope Off Public As It Spends Billions. A Little-Noticed Provision of the Senate Bill Exempts Board Members from a Wide Swath of the Federal Open-Meetings Law’, Politico, 9 April 2020; Lauren Feeney, ‘Uncovering Secret Fed Loans: Interview with Bloomberg Reporter Bob Ivry’, Moyers and Company, 20 January 2012.

[11] Tory Newmyer with Brent Griffiths, ‘The Finance 202: Most Corporate Coronavirus Relief Money Has No Strings Attached, Watchdog Warns’, PowerPost: Washington Post, 14 April 2020.

[12]The Senate assumed the initiative on the new bill by framing it as a substitute amendment to an existing House tax bill. See Saranac Hale Spencer, ‘Legislative History of cares Act’, Factcheck.org, 4 May 2020.


[13] CARES Act, H. R. 748, All Actions.

[14] ‘Getting to the Point with Congressman Richard Neal’, Edward Kennedy Institute for the us Senate, YouTube, 13 April 2020. See also Yalman Onaran and Sonali Basak, ‘Key 2008 Financial Crisis Players Are Back for Coronavirus’, Bloomberg, 3 April 2020.

[15] Lee Fang and Aída Chávez, ‘It’s a Scandal that We Don’t Know Who Supported the Coronavirus Bailout. Help Us Find Out’, Intercept, 9 April 2020. Fang and Chávez set out to identify the public position of every House Democrat on the bailout, successfully in most cases, but have so far not found a single open opponent of it except for aoc.

[16] Jacob Schlesinger and Joshua Jamerson, ‘After Three Coronavirus Stimulus Packages, Congress is Already Prepping Phase Four’, wsj , 29 March 2020.

[17] Robert Kuttner, ‘Kuttner on tap: The Democrats’ Loss of Nerve’, American Prospect, 22 April 2020; David Sirota, ‘Dems Give Unanimous Consent to Trump’, tmi , 22 April 2020; Lauren Egan, ‘House Gives Final Passage to $484 billion Coronavirus Relief Bill’, cnbc, 11 May 2020.

[18] Natalie Andrews and Andrew Duehren, ‘House Democrats Release $3 Trillion Bill to Respond to the Coronavirus’, wsj , 12 May 2020.

[19] Andrew Perez, ‘Dems Aim to Subsidize the Opponents of Progressive Change’, tmi , 20 May 2020; David Sirota, ‘Democrats Are Fuelling a Corporate Counter-Revolution against Progressives’, Guardian, 26 May 2020; Akela Lacy and Jon Walker, ‘Heroes Act Delivers a Win to the Health Insurance Industry’, Intercept, 12 May 2020.

[20]Stein and Whoriskey, ‘us Plans to Lend $500 Billion to Large Companies’.

[21] According to a spokesman for Schumer, the Democrats had gone through the motions of demanding restrictions on how companies benefiting from the Fed’s corporate-bond purchases could use those funds but had been summarily rebuffed by Mnuchin and the Administration. Schumer justified his capitulation by referring to supposed concessions on the question of oversight—which, as we know, turned out to be hollow. See Stein and Whoriskey, ‘us Plans to Lend $500 Billion to Large Companies’.

[22]The set included the Primary Market Corporate Credit Facility (pmccf), the Secondary Market Corporate Credit Facility (smccf) and the Term Asset-Backed Securities Loan Facility (tabslf).

[23]Scott Minerd, ‘Prepare for Era of Recrimination’, Global Chief Investment Officer Outlook, Guggenheim Investments, 26 April 2020; Powell quoted in David Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class without Spending a Cent’, American Prospect, 27 May 2020.

[24] ‘The Fed has yet to buy a single bond under its Primary and Secondary Market Credit Facilities. But the mere announcement of that programme has managed to tighten credit spreads and dramatically and greatly ease liquidity issues’: Scott Minerd, ‘We are All Government-Sponsored Enterprises Now’, Global Chief Investment Officer Outlook, Guggenheim Investments, 10 May 2020.

[25] Nick Timiraos, ‘Fed Unveils Major Expansion of Market Intervention’, wsj , 23 March 2020.

[26] Thanks to Aaron Brenner for his collaboration throughout the preceding section.

[27] Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class.’ See especially Table ‘The Corporate Bond Frenzy’, where those 49 corporations with the amount of their bond issues are listed, p. 15.

[28]Joe Bennison, Eric Platt and David Lee, ‘Amazon Secures Record Low Bargaining Costs’, ft , 1 June 2020; Molly Smith, ‘It’s a Borrower’s Bond Market as Amazon Gets Record Low Rates’, Bloomberg, 2 June 2020.

[29]Minerd, ‘We Are All Government-Sponsored Enterprises Now’; Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class’.

[30] YahooFinance.com; Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class’, p. 7.

[31] Matt Egan, ‘us Billionaires Have Become $565 Richer During the Pandemic’, cnn Business, 4 June 2020; ‘Update: Billionaire Wealth, us Job Losses, and Pandemic Profiteers’, Inequality.com, 4 June 2020.

[32] Minerd, ‘We Are All Government-Sponsored Enterprises Now’, p. 3.

[33] Minerd, ‘Prepare for an Era of Recrimination’, p. 5. For a similar conclusion, see the sum-up of Lev Menand, a former Treasury official who now teaches at Columbia University: ‘“This is a massive wealth transfer to owners of financial assets. The rules of the game are supposed to be that equities take the loss, high-yield debt holders take the loss.” Allowing them to instead bear no burden is a form of socialism for capitalists’: Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class’, p. 17.

[34] "Getting to the Point with Congressman Richard Neal".

[35] Jesse Drucker, ‘The Tax-Break Bonanza Inside the Economic Rescue Package’, nyt, 24 April 2020.

29 de junho de 2020

Quando o comunismo encontrou o anticolonialismo negro na França entre guerras

Na Paris pós-Primeira Guerra Mundial, o veterano senegalês ferido Lamine Senghor usou sua experiência para denunciar os males do imperialismo. Militante do Partido Comunista Francês, ele casou a política da classe trabalhadora com um consistente antirracismo - colocando a unidade dos povos colonizados no centro da luta contra a opressão e a injustiça.

David Murphy


Lamine Senghor (o homem alto na frente e no centro), participando da reunião inaugural da Liga contra o Imperialismo em Bruxelas, Bélgica, em 1927. Foto: Archives de l'IFAN, Dakar Senegal

Tradução / Na noite de 11 de fevereiro de 1927, a figura alta e magra de Lamine Senghor subiu ao palanque na reunião inaugural da Liga contra o Imperialismo (LAI na sigla original). A LAI foi uma das principais tentativas do movimento comunista entreguerras de forjar uma frente anticolonial unificada de nacionalistas, comunistas e socialistas, unindo europeus brancos e súditos coloniais de todo o mundo. No entanto, como outras iniciativas desse tipo, teve vida curta.

Senghor era um condecorado veterano senegalês da Primeira Guerra Mundial, que ganhou destaque em meados da década de 1920 como uma figura de destaque no emergente movimento anticolonial de inspiração comunista na França. Em seu discurso empolgante na reunião da LAI em Bruxelas, ele denunciou o imperialismo como uma forma moderna de escravidão e convocou os trabalhadores do mundo a se unirem e derrubarem todo o sistema capitalista-imperialista. Seu apelo por um mundo de “não mais escravos” aplicava-se igualmente aos explorados das colônias e à classe trabalhadora das nações industriais.

Ele reservou um desprezo especial para o tratamento da França de seus soldados coloniais durante e após a guerra - um fator central em sua própria radicalização. Suas opiniões sobre o sofrimento sofrido pelos soldados coloniais tinham autoridade extra devido ao seu próprio status de “inválido de guerra”, a autodescrição que ele costumava usar nos documentos públicos oficiais produzidos pelos movimentos aos quais pertencia. Em abril de 1917, seu batalhão de tirailleurs senegaleses [soldados de infantaria da África Ocidental]¹ foi gaseado perto de Verdun, e Senghor perdeu um de seus pulmões – uma lesão da qual ele nunca se recuperou totalmente.

Ao que tudo indica, o discurso de Bruxelas foi recebido com entusiasmo pelos delegados reunidos no Château d’Egmont. Em muitas fotos do Congresso, Senghor é claramente o centro das atenções: outros delegados colocam os braços em volta de seus ombros, largos sorrisos estampados em seus rostos. Ele foi uma das estrelas do show. Uma fotografia posada de Senghor de perfil, punhos cerrados, em pé em um púlpito, foi reproduzida nos anais oficiais e usada para ilustrar vários artigos ao longo dos próximos meses, incluindo peças na Crise e na The Survey (este último escrito por Roger Nash Baldwin, fundador da ACLU).

Lamine Senghor, portanto, parecia prestes a se tornar uma figura de liderança do nascente movimento anticolonial. Em uma linha do tempo alternativa, a fotografia encenada de Bruxelas poderia ter alcançado o nível de elegância dos retratos românticos de Che Guevara que adornariam as paredes de tantos dormitórios em um período posterior. Mas antes que 1927 terminasse, Senghor estava morto, pois os terríveis ferimentos que sofrera durante a guerra finalmente o alcançaram. No entanto, sua atividade política em seus últimos três anos continua cheia de lições. Sua vida como militante ilustra as formas complexas em que questões de raça, classe e anticolonialismo foram entrelaçadas nesta época – um estudo de caso revelador das oportunidades e perigos da cooperação intercolonial para grupos negros no período entreguerras.

Recrutado para o abate

Senghor chamou a atenção do público pela primeira vez quando apareceu como testemunha de defesa em um julgamento por difamação que se concentrou na contribuição das tropas africanas para o esforço de guerra francês. Em outubro de 1924, um jornal negro de Paris, Les Continents, publicou um artigo no qual Blaise Diagne, deputado pelas quatro comunas da colônia francesa no Senegal, foi acusado pelo célebre romancista caribenho francês René Maran de ter recebido “uma certa comissão para cada soldado recrutado” para participar da guerra. No final do conflito, Diagne foi enviada para a África Ocidental pelo primeiro-ministro Georges Clemenceau para recrutar mais tropas africanas. O objetivo velado de sua missão era tentar finalmente acabar com a guerra, limitando a perda de soldados brancos franceses.

O sucesso de Diagne em recrutar oitenta mil soldados fez dele um herói tanto na França quanto em suas colônias africanas, onde os moradores mal podiam acreditar em seus olhos que um negro africano estava sendo recebido com a pompa e cerimônia normalmente reservadas aos dignitários brancos. Mas na época do julgamento por difamação, um número crescente de vozes na esquerda e na comunidade negra estava começando a questionar o que eles percebiam como o relacionamento acolhedor de Diagne com o establishment colonial.

A mídia parisiense ficou entusiasmada com o cheiro de escândalo que se agarrou ao caso. Mas, mais significativamente, o julgamento colocou a política das populações coloniais negras da França na vanguarda do debate público – em particular, a questão da participação das tropas coloniais no esforço de guerra. O depoimento de Lamine Senghor perante o tribunal apresentou o soldado de infantaria colonial africano – o tirailleur senegalês – como um homem radicalizado por suas experiências que agora se dedicaria a denunciar a injustiça colonial. Logo após o julgamento, Senghor escreveu que:

Em vez de tentar provar com precisão quanto o grande traficante de escravos [Diagne] recebeu por cada senegalês que ele recrutou, eles deveriam ter trazido diante dele toda uma procissão de cegos e mutilados na guerra... Todas essas vítimas teriam cuspido em seu rosto a infâmia da missão que ele empreendeu.

Um refrão constante nos discursos e escritos de Senghor era a iniquidade e a duplicidade de padrões envolvidos no tratamento dos veteranos coloniais e, em particular, de suas pensões militares. Como ele declarou em seu discurso em Bruxelas:

Todos vocês viram que, durante a guerra, tantos negros quanto possível foram recrutados e levados para serem massacrados... A juventude negra agora tem uma visão mais clara. Sabemos e estamos profundamente conscientes de que, quando somos necessários, para dar a vida ou fazer trabalhos forçados, então somos franceses; mas quando se trata de nos dar direitos, não somos mais franceses, somos negros.

A posição de Senghor como um “inválido de guerra” abriu um espaço na França dos anos 1920 no qual idéias radicais poderiam ser ouvidas. Poderia um homem que tinha servido lealmente a França, sacrificando sua saúde, ser tão prontamente descartado como um inimigo do Estado?

Anticolonialismo comunista

Senghor havia sido pressionado a comparecer como testemunha no julgamento pelo comitê da União Intercolonial (UIC), um grupo ao qual ele havia se juntado recentemente. Os arquivos coloniais revelam, com não pouca ironia, que ele havia sido inicialmente pressionado a se registrar como membro da UIC pela polícia secreta do Ministério das Colônias (o infame CAI). Parece que o recrutaram como informante em meados de 1924, depois que sua esposa branca francesa escreveu ao Ministério em busca de ajuda financeira em meio ao agravamento do estado de saúde de Senghor. No entanto, em poucos meses, essa jogada saiu pela culatra espetacularmente, pois os eventos que cercaram o julgamento precipitaram uma radicalização genuína de suas crenças políticas.

A UIC era ostensivamente um grupo independente dirigido por e para representantes dos povos colonizados. Na realidade, era controlado pelo Comitê de Estudos Coloniais do Partido Comunista Francês (PCF), e foi lançado poucos meses após a separação histórica deste partido dos socialistas no Congresso de Tours no final de 1920. Nguyen ai Quoc, o futuro Ho Chi Minh, foi a única voz colonizada ouvida nos debates em Tours, e ele se tornaria um dos membros mais ativos da UIC em seus estágios iniciais. No entanto, embora a UIC tenha sido projetada para demonstrar o compromisso do PCF com a agenda anticolonial da Internacional Comunista, o apoio do PCF à UIC e à causa anticolonial foi inconsistente, para dizer o mínimo. Em 1923, um frustrado Nguyen ai Quoc partiu para Moscou e, de meados ao final da década de 1920, a UIC começou a se dividir em movimentos nacionais, regionais e étnicos separados pela independência que muitas vezes procuravam manter o PCF à distância.

No entanto, no final de 1924, a UIC ainda estava tentando ampliar seu apelo a grupos mais colonizados na França, e a ascensão de Lamine Senghor proporcionou uma oportunidade de alcançar a crescente comunidade da África subsaariana. Ao mesmo tempo, o PCF estava ansioso para garantir que todos os líderes da UIC recebessem uma educação política “apropriada”. Em 1925, o PCF abriu assim uma “Escola Colonial” para seu crescente grupo de ativistas colonizados da UIC, destinada a aprimorar seus conhecimentos sobre a ideologia marxista. Pouquíssimos ativistas assistiram às aulas, e a “escola” fechou depois de alguns meses, mas enquanto suas portas estavam abertas, Senghor era um dos alunos mais assíduos. Sua redação para o jornal Le Paria [“o pária”] da UIC traz a marca dessa formação ideológica.

A campanha de 1924-25 contra a guerra colonial da França nas montanhas Rif, no Marrocos, foi a arena na qual Senghor aprimoraria suas famosas habilidades como orador. Esse experimento de curta duração, mas fascinante – no qual os membros da UIC desempenharam um papel central – viu o comunismo francês finalmente tentar provar suas credenciais internacionalistas e anticoloniais para um Comintern cada vez mais impaciente, que repreendia regularmente o PCF por não enfrentar o imperialismo francês. Estudiosos argumentaram com razão que a hierarquia do PCF não estava totalmente comprometida com a campanha do Rif, que em grande parte percebia como uma forma de política gestual que poderia apaziguar o Comintern. Havia, no entanto, pessoas importantes dentro da campanha - como Jacques Doriot, chefe da Comissão Colonial do PCF, e Paul Vaillant-Couturier, editor do jornal do PCF L’Humanité - que pareciam comprometidos com a causa anticolonial.

Da mesma forma, seria enganoso sugerir que a campanha interessava apenas a algumas figuras na hierarquia do PCF. Pois a mensagem de que a luta dos colonizados era também a luta do proletariado poderia reunir números significativos dentro do amplo movimento operário. Os socialistas franceses e a Liga pelos Direitos do Homem falaram muitas vezes sobre questões relacionadas ao racismo e à necessidade de “reformar” o sistema colonial, mas não ofereciam o mesmo espaço político que o PCF estava abrindo aqui, mesmo que apenas temporariamente, por uma causa explicitamente anticolonial. Dois comícios comunistas no Luna Park, nos subúrbios de Paris, em maio e novembro de 1925, atraíram multidões de mais de quinze mil, enquanto em agosto do mesmo ano, sessenta mil participaram de um grande comício antiguerra no subúrbio parisiense de Clichy, no qual Senghor apareceu.

O comício de Clichy ilustra poderosamente, no entanto, os limites da visão do PCF de sua “parceria” com os sujeitos colonizados da UIC. A multidão foi abordada por Marcel Cachin e outros membros da hierarquia do PCF, mas Lamine Senghor ou outros membros da UIC não falaram. Conforme relatado pelo L’Humanité, Senghor apareceu diante da multidão reunida de braços dados com um “árabe” sem nome em uma exibição coreografada de unidade interracial de inspiração comunista. Mas o simbolismo da cena era muito aparente: embora Senghor e a UIC pudessem desempenhar um papel útil no teatro político da campanha, os mentores continuaram sendo a liderança branca e francesa do PCF.

Entre as figuras do PCF que pareciam mais comprometidas com a causa anticolonial, devemos destacar a contribuição de Paul Vaillant-Couturier e do romancista Henri Barbusse, que mais tarde faria o discurso de abertura no Congresso de Bruxelas da Liga contra o Imperialismo . Ambos lutaram na Primeira Guerra Mundial e gravitaram em direção ao comunismo por meio da Associação Republicana de Veteranos (ARAC na sigla original), uma organização de veteranos virulentamente antiguerra. É possível, embora não comprovado, que Senghor possa ter encontrado esses membros proeminentes do PCF através do ARAC; no mínimo, parece claro que sua experiência compartilhada como veteranos de guerra criou um vínculo entre eles.

Depois de servir lealmente ao PCF e à UIC durante toda a campanha do Rif, Senghor gradualmente passou a se ressentir do espaço limitado que o movimento comunista dedicava às questões negras em geral, bem como ao seu próprio status marginalizado. Foram poucas as vezes que ele pôde aceitar o papel de não falar ou ser solicitado a entregar a “saudação fraterna” de seus irmãos negros às reuniões do PCF. Aparentemente, a gota d’água veio quando o PCF foi convidado a enviar dois representantes ao Congresso dos Trabalhadores Negros em Chicago, em outubro de 1925. Eles selecionaram Senghor e o advogado antilhano Max Bloncourt, mas, no último minuto, informaram que teriam que pagar a viagem do seu próprio bolso. Quando Senghor se opôs, foi sugerido que ele trabalhasse pela sua passagem para os Estados Unidos ou se escondesse no vôo: ele recusou. Senghor decidiu que para promover os interesses dos negros era preciso criar organizações negras independentes e, no início de 1926, com a criação do Comitê de Defesa da Raça Negra (CDRN), foi exatamente o que ele fez.

Independência negra?

A decisão de Senghor de deixar a UIC parecia afirmar a primazia da raça sobre a classe. Tal como acontece com grande parte da carreira de Senghor como militante, no entanto, as aparências podem ser enganosas, com motivos genuínos e potencialmente contraditórios escondidos em uma teia emaranhada de tendências ideológicas, conexões pessoais, sentimentos viscerais e táticas políticas astutas. Houve tensões muito reais entre Senghor e o PCF, mas também há amplas razões para acreditar que qualquer ruptura com seus aliados comunistas foi em grande parte estratégica: não menos importante entre elas está o fato de Senghor ter anunciado a criação de seu novo movimento em um artigo chamado “Os negros despertaram” (com seus ecos conscientes, mas não reconhecidos, do discurso de Marcus Garvey) no Le Paria em abril de 1926. É difícil imaginar a UIC e seus condutores comunistas permitindo uma declaração de independência negra dentro de uma de suas próprias publicações por outras razões que não sejam estratégicas: afinal, o PCF de meados da década de 1920 não era conhecido por sua tolerância a vozes internas dissidentes.

Após a criação do CDRN no início de 1926, Senghor atravessou a França em uma campanha de recrutamento bem-sucedida buscando atrair membros de coletivos negros emergentes, muitas vezes construídos em bases étnicas ou regionais, em um único movimento negro. Visitando as cidades portuárias de Marselha, Bordeaux, Le Havre e a principal base militar colonial de Fréjus (onde oficiais africanos em formação eram o principal alvo de sua propaganda), ele havia, no final de 1926, recrutado - o CAI estimou - perto de novecentos membros, dentre uma população negra então contada em menos de vinte mil.

Indicativo da influência de Senghor foi seu encontro com Claude McKay, uma das figuras mais rebeldes do Renascimento do Harlem², que ele encontrou em Marselha durante sua viagem de recrutamento. Enquanto vários comentaristas descartaram Senghor como um comunista linha-dura, McKay reconheceu instantaneamente a natureza híbrida de sua política, a tentativa complexa e complicada de casar o pensamento de esquerda e o radicalismo negro: “Ele era um senegalês alto, magro e inteligente e suas ideias eram uma mistura de nacionalismo africano e comunismo internacional”, escreveu McKay com apreço em seu livro de memórias, A Long Way from Home.

Por sua vez, o CDRN foi uma igreja ampla na qual Senghor procurava reunir membros politicamente moderados e mais radicais da comunidade negra na França, ao mesmo tempo em que alcançou os sujeitos das colônias, principalmente através da circulação do jornal do movimento (normalmente enviado no exterior em pequenos pacotes com marinheiros simpatizantes). Ele utilizou a linguagem da tradição humanitária e abolicionista da França, misturada com a linguagem do orgulho negro que havia sido popularizada por Marcus Garvey.

No início de 1927, no entanto, a ampla coalizão que se formou dentro do CDRN já estava começando a se fragmentar. O primeiro número de seu jornal, La Voix des Nègres [a Voz dos Negros], proclamava com orgulho e insistência a unidade. Mas o CDRN estava de fato no meio de um longo e prolongado cisma que alguns meses depois levaria ao seu colapso, com Senghor e seus companheiros radicais desertando em massa para criar a Liga para a Defesa da Raça Negra (LDRN). A divisão na organização foi o resultado de questões pessoais, políticas e culturais complexas, mas parece ter dividido principalmente o CDRN em linhas ideológicas, com os membros mais assimilacionistas permanecendo dentro de um CDRN acovardado e os membros mais radicais, comunistas, partindo para o LDRN (isso parece ser, em parte, resultado das manobras do PCF para criar uma barreira entre esses campos).

Se, em seu discurso em Bruxelas, Senghor havia falado do colonialismo como uma forma moderna de escravidão, ele novamente explorou esse tema em seu único livro, La Violation d’un pays [O estupro de um país], publicado em junho de 1927 (seu prefácio é autoria de Vaillant-Couturier). Este volume fino e polêmico relata a sangrenta história da escravidão e do colonialismo, em um estilo profundamente híbrido que mistura a forma da fábula com uma abordagem altamente didática, utilizando a linguagem política do comunismo revolucionário: o texto também é acompanhado por cinco desenhos de linhas simples destinadas a reforçar a mensagem política. Conclui com a derrubada do regime colonial por uma revolução mundial que liberta não apenas as colônias, mas também o centro metropolitano do jugo do imperialismo capitalista. A resolução da história de Senghor funciona como uma forma de realização de desejo ideológico, a “performance” de um anticolonialismo internacional que imagina a derrubada do império através de uma parceria entre os colonizados “lá” e os trabalhadores “aqui” (como Jean -Paul Sartre escreveria décadas depois em Colonialism and Neocolonialism). Poucas semanas depois de sua publicação, no entanto, a saúde de Senghor vacilou, e ele faleceu poucos meses depois com o LDRN em turbulência, arruinado por discussões sobre finanças e orientação política.

Lembrando Senghor

Como, então, devemos nos lembrar de Lamine Senghor? Seria enganoso fazer grandes alegações a seu favor como teórico político. Ele era, antes, um brilhante comunicador de ideias, movido pela indignação moral com as injustiças do imperialismo capitalista. Em termos políticos, ele passou o período entre 1924 e 1927 explorando diferentes formas potenciais de reunir várias forças contra o império, reconhecendo a especificidade da opressão racial sofrida pelos negros.

A trajetória política de figuras anticoloniais como Senghor é muitas vezes apresentada como um movimento do nacionalismo para o comunismo ou, mais tipicamente, um reconhecimento de que o comunismo não tinha espaço para a experiência negra. No entanto, ao contrário de figuras como George Padmore ou Aimé Césaire, Senghor não foi obrigado a fazer uma escolha entre o pan-africanismo e o comunismo. A experiência de seu sucessor como líder do LDRN, Tiemoko Garan Kouyaté, constantemente em conflito com a hierarquia do PCF na próxima década, nos alerta que Senghor pode ter lutado para manter uma filiação tanto ao comunismo quanto ao internacionalismo negro. Mas, ao longo de sua breve carreira como ativista, Senghor acreditava que essas duas ideologias poderiam se complementar na busca pela libertação negra.

De fato, talvez a maneira mais produtiva de ver toda a carreira de Senghor como militante seja a de um ato de equilíbrio no qual ele oscilava entre radicalismo e reformismo, comunismo e internacionalismo negro. Ele sempre manteve seus amigos e seus inimigos adivinhando seus verdadeiros motivos e lealdades, enquanto procurava esculpir um discurso político no qual raça e classe pudessem ter o mesmo peso.

Colaborador

David Murphy é professor de francês e estudos pós-coloniais na Universidade de Strathclyde, na Escócia. Ele está atualmente escrevendo uma biografia de Lamine Senghor, que será publicada pela Verso.

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