30 de junho de 2020

Escalando a pilhagem

Nos EUA, em meio ao desemprego crescente, perda do seguro saúde e aumento da pobreza, uma doação de US $ 4 trilhões para o capital, com o partido de Biden e Trump ombro a ombro. Robert Brenner analisa o resgate Covid-19 no contexto mais amplo de uma economia produtiva vacilante e crescente predação da elite.

Robert Brenner


NLR 123, May-June 2020

Tradução / Em 23 de março de 2020, o Federal Reserve fez o anúncio histórico de que, em resposta à crise econômica do coronavírus, forneceria empréstimos a empresas não financeiras na indústria e serviços pela primeira vez desde o início dos anos 1930.[1] Poucos dias antes, os ex-presidentes do Fed, Ben Bernanke e Janet Yellen, deram seu aval a esse passo que rompe precedentes.[2] O tamanho da cornucópia de grandes negócios que as autoridades tinham em mente logo ficaria claro. O Federal Reserve havia, por boa parte de um século, confinado seus empréstimos ao governo dos Estados Unidos, comprando títulos do Tesouro e títulos emitidos por Entidades Patrocinadas pelo Governo (GEEs) - Fannie Mae, Freddie Mac, Ginnie Mae. O Banco Central tradicionalmente resistia a estender suas compras de empréstimos além desses instrumentos, até porque a compra de dívidas de empresas específicas o deixaria sujeito a acusações de favoritismo. Na época da crise financeira global de 2007-08, no entanto - com a justificativa de que o colapso ameaçava o próprio funcionamento do setor financeiro - o presidente do Fed, Bernanke, jogou essas sutilezas na lata de lixo da história, mostrando no processo, acima de tudo, por que essas normas foram estabelecidas.[3]

Para dar uma pátina de legitimidade a seus movimentos não ortodoxos, Bernanke havia retirado a obscura Seção 13(3) do Federal Reserve Act de 1932, tentando assim justificar os duvidosos resgates ad hoc de instituições financeiras politicamente conectadas, particularmente as entidades "grandes demais falir" AIG, Bear Stearns, Citigroup e Bank of America.[4] O Fed de Bernanke, trabalhando com o Tesouro, estabeleceu um novo modelo para resgatar empresas em dificuldades em tempos de crise: não apenas lançando uma bonança de presentes para bancos e não bancos favorecidos, no valor da soma alucinante de US $ 7,7 trilhões, mas também certificando-se de que os benefícios do resgate não se estendessem ao grupo análogo de mutuários hipotecários proprietários de imóveis em perigo, aos quais as instituições financeiras resgatadas haviam emprestado. Isso apesar do fato de que seus homólogos da década de 1930 foram resgatados durante a Grande Depressão, quando a Home Owners 'Loan Corporation comprou mais de um milhão de suas hipotecas inadimplentes. O ex-vice-presidente do Federal Reserve, Alan Blinder, defendeu explicitamente seguir esse precedente, demonstrando por quão pouco muitos desses proprietários/detentores de hipotecas vulneráveis ​​poderiam ter sido resgatados. Mas ele estava, em suas palavras, "rindo fora do tribunal". Bernanke e a administração Obama ignoraram totalmente a alternativa de Blinder, abrindo caminho para uma onda massiva de execuções hipotecárias, levando à transformação em grande escala do que antes eram casas particulares em unidades de aluguel, um processo que rendeu uma fortuna a uma coleção de investidores abutres bilionários. O presidente do Fed, Jerome Powell, continuou de onde Bernanke e Yellen haviam parado.[5]

A declaração do Fed de 23 de março de que pretendia conceder empréstimos a empresas não financeiras foi decisiva para indicar que o Fed assumia a liderança do resgate corporativo do governo, sinalizando o que se esperava do Congresso e do Tesouro e especificando a forma pretendida e o nível de apoio para grandes negócios na crise econômica do coronavírus. No momento apropriado, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, e o líder da minoria no Senado, Chuck Schumer, anunciaram que o elemento central de seu projeto de lei recém-aprovado - que logo seria chamado de Coronavirus Aid, Relief and Economic Security Act [Lei de Auxílio, Socorro e Segurança Econômica do Coronavírus] ou CARES Act - era um enorme resgate de grandes empresas não financeiras, no valor de meio trilhão de dólares. Esses US$ 500 bilhões seriam reservados integralmente para empresas com pelo menos 10.000 funcionários e receita de pelo menos US$ 2,5 bilhões por ano. Ainda foram previstos US$ 46 bilhões a serem divididos entre companhias aéreas de transporte de passageiros (US$ 25 bilhões), companhias aéreas de carga (US$ 4 bilhões) e "empresas necessárias à segurança nacional", um codinome para a Boeing (US$ 17 bilhões), deixando US$ 454 bilhões a serem distribuídos aos felizes beneficiários empresariais a serem selecionados. No entanto, mesmo essa grande soma revelou-se apenas a ponta do iceberg. O verdadeiro “dia de pagamento” para as maiores empresas não financeiras do país seria de uma ordem de grandeza totalmente diferente.

A apropriação do Congresso do resgate corporativo, a ser pago pelos contribuintes e temporariamente atribuído ao Departamento do Tesouro, foi simplesmente o primeiro passo necessário para permitir que o Federal Reserve assumisse a administração real do resgate. Os US$ 454 bilhões restantes da dotação original do Congresso foram, assim, creditados na conta do Fed como um colchão para cobrir potenciais perdas, e isso abriu caminho para que o Fed assumisse a inteira responsabilidade de fazer adiantamentos às empresas e, em particular, de multiplicar por 10 a alocação original do Congresso - de US$ 454 bilhões para cerca de US$ 4,54 trilhões - "para empréstimos, garantias de empréstimos e outros investimentos". [6] Cerca de US$ 4,586 trilhões, aproximadamente 75% do total de US$ 6,286 trilhões derivados direta e indiretamente do dinheiro da CARES Act, iriam para o "care" [cuidado] das maiores e mais ricas empresas do país. Para efeito de comparação, mesmo com o aumento do desemprego, apenas US$ 603 bilhões foram destinados para pagamentos diretos em dinheiro a indivíduos e famílias (US$ 300 bilhões), seguro-desemprego extra (US$ 260 bilhões) e empréstimos estudantis (US$ 43 bilhões).

A escala do resgate que as autoridades políticas prepararam para os grandes negócios foi alucinante, mas sua falta de preocupação com o monitoramento de seu desembolso foi ainda mais notável. A CARES Act definiu um elaborado conjunto de condições formais relativas a quem se qualificava para a generosidade do Fed-Treasury, e o que se podia ou não fazer com os adiantamentos recebidos. Porém, a lei também deixou a porta aberta para que o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, inicialmente responsável pela administração da lei, ignorasse essas condições, graças à ambiguidade desta na linguagem, inconsistências, lacunas e restrições.[7] De todo modo, o fato de o Fed assumir a responsabilidade sobre a operação de resgate teve como resultado limitar o debate no Congresso acerca da questão das regras a serem adotadas e de como elas seriam efetivamente aplicadas. O Banco Central deixou claro não possuir grande interesse em impor condições aos destinatários, e a liderança do Partido Democrata concordou, professando não ter escolha.[8]

Para garantir que a superintendência séria das ações do Fed não ocorresse, os progenitores da CARES Act adotaram essencialmente a mesma estrutura de supervisão que havia sido usada para o resgate do setor financeiro de 2008. Como na ocasião do resgate anterior, a CARES Act criou cargos de fiscalização e vários conselhos de supervisão dos empréstimos. Porém, assim como antes, esses órgãos estavam autorizados apenas a denunciar abusos, não a evitá-los ou corrigi-los.[9] Isso tornou qualquer escrutínio público ainda mais difícil ao conceder ao Fed o direito de realizar suas reuniões em segredo e não divulgar as atas, imunizando-o pelo resto de 2020 contra requisições por meio da Lei de Liberdade de Informação. Bernanke havia procurado obter o mesmo tipo de cobertura para seu próprio resgate massivo recorrendo repetidamente aos tribunais em busca de proteção, mas acabou perdendo sua aposta pelo sigilo graças a um processo bem-sucedido de repórteres da Bloomberg. Desta vez, o Fed não deixaria reféns para se atordoar. [10] O equivalente a 2,5 vezes os lucros empresariais anuais dos EUA, cerca de 20% do PIB anual do país, teve autorização para ser despendido sem a devida supervisão.[11]

Um programa bipartidário

Não houve, e não haverá, nenhum desafio sério ao resgate corporativo porque o Partido Democrata, não menos que o Republicano, o apoia fortemente. A operação de resgate não deve ser particularmente associada ao governo Trump, embora o presidente tenha pressionado muito por sua aprovação. Os principais líderes de ambos os partidos políticos se associaram fortemente a esse auxílio, e a esmagadora maioria de seus seguidores no Congresso concordou com mais ou menos entusiasmo.

De acordo com a Constituição, as decisões envolvendo o orçamento devem ter origem na Câmara, onde o Partido Democrata atualmente tem maioria. No entanto, os Democratas cuidaram para que a análise do projeto de lei que se tornou a CARES Act passasse primeiro pelo Senado, onde os Republicanos detêm a maioria.[12] Neste, Schumer, em colaboração com o secretário do Tesouro de Trump, Mnuchin, assumiu a liderança na formulação da lei – nos termos dos Republicanos, como Schumer prontamente admitiu. The Senate Democratic conference ratified their leadership's profession of helplessness without a single dissenting vote, the Senate approving the bill 96-0. Tanto o chamado Democrats' Progressive Caucus [Bancada Progressista dos Democratas] quanto o Congressional Black Caucus [Bancada dos Negros no Congresso] silenciaram sobre o assunto; e embora Bernie Sanders e, em particular, Elizabeth Warren apresentassem objeções, seus protestos foram silenciados, na melhor das hipóteses.[13]

Quando o projeto saiu do Senado, os líderes Democratas no Congresso já o haviam aprovado de fato e a Câmara não poderia derrubá-lo facilmente - não que eles tivessem qualquer intenção de fazê-lo. Conforme explicado pelo presidente do Comitê de Meios e Recursos da Câmara, Richard Neal, que trabalhou em estreita colaboração com a Presidente da Câmara, Nancy Pelosi (bem como Mnuchin) no encaminhamento do projeto pela Câmara dos Representantes, foi um esforço bipartidário, contando como sempre com o conselho dos mesmos líderes da elite político-financeira que moldaram a sucessão de resgates implementados durante as administrações de Clinton, Bush e Obama. Como disse Neal:

Eu não fiz isso em um esforço noturno. Voltei para os indivíduos que têm uma longa carreira legislativa de sucesso e influência na compreensão dos parâmetros de uma questão dessa magnitude. Por isso, procurei imediatamente Robert Rubin, secretário do Tesouro de Bill Clinton... Janet Yellen, ex-presidente do Federal Reserve, Hank Paulson, que orientou o governo Bush após o colapso financeiro de 2008, Steve Rattner, que dirigia o resgate do setor automotivo... e Jack Lew [Secretário do Tesouro de Obama].[14]

The DP leadership was able to provide political cover for House Democrats in general, and the Party's left wing in particular, by relieving members from having to vote on it through use of the House's unanimous-consent "voice vote" procedure. Apenas uma Democrata, Alexandria Ocasio-Cortez - cujo distrito era o epicentro nacional da pandemia na época - se opôs publicamente ao projeto de lei, chamando-o de um dos "maiores resgates de empresas da história estadunidense".[15]

A estratégia dos principais líderes Democratas parece ter sido a de permitir que os Republicanos assumissem o crédito pelo resgate, ao mesmo tempo garantindo silenciosamente sua ratificação, já que se tratava também de uma das principais prioridades de seus apoiadores empresariais – além de ter o suporte da grande maioria dos membros eleitos do partido no Congresso. Aparentemente, eles esperavam que, com os ganhos espetaculares das empresas estampados nas manchetes, fosse possível obter dos Republicanos compensações para seus outros eleitores: seguro-desemprego, equipamento médico e assistência médica; e salários suplementares ou de substitutos, bem como apoio para pequenas empresas. Contudo, a falha crucial dessa abordagem foi que, ao permitir que o Senado Republicano elaborasse a legislação, os Democratas abriram mão de sua principal fonte de influência política: sua maioria na Câmara. Uma vez aprovada a CARES Act, Schumer e Pelosi foram obrigados a admitir implicitamente o seu fracasso, ao anunciar, imediatamente após sua ratificação, que solicitariam uma nova versão ampliada.[16]

Para tentar garantir o que não conseguiram obter por meio da CARES Act, os Democratas tinham um caminho óbvio a seguir: aprovar seu próprio projeto de lei na Câmara e deixar que os Republicanos tentassem alterá-lo no Senado. Teria sido bastante simples para os Democratas aprovarem uma legislação que atendesse às necessidades urgentes da população. Surpreendentemente, porém, a liderança Democrata no Congresso mais uma vez permitiu que o Senado Republicano tomasse a iniciativa de redigir o projeto de lei original, e sofreu outra derrota vergonhosa com a chamada COVID-19 Interim Emergency Funding Act [Lei de Financiamento Provisório de Emergência da COVID-19], já que praticamente todo o seu financiamento foi, de um modo ou de outro, para empresas.

A nova lei deveria complementar a alocação inicial para pequenas empresas, e a maior parte dos seus recursos era oficialmente para esse fim. Na realidade, porém, a maioria dos beneficiários ostensivamente de pequenas empresas era "pequena" apenas no sentido técnico: empresas valendo mais de um milhão de dólares, empresas de médio porte e até corporações tomaram parte na ação. O único item importante que os Democratas conseguiram emplacar foi para os hospitais; porém, não havia restrições à forma como esses fundos poderiam ser usados, o que significa que a maioria iria para administradores abastados que decidiriam como aqueles seriam gastos. Houve também uma pequena destinação de dinheiro para os testes de COVID-19. Por outro lado, Schumer e Pelosi não conseguiram nenhuma ajuda para os estados, que estavam em crise devido ao colapso de suas receitas fiscais e à impossibilidade de realizarem gastos que implicassem déficit. Além disso, não houve acréscimos para o vale-refeição, apesar de uma crise de fome que gerou longas filas de doação de alimentos; nem para aluguel, apesar de uma onda gigantesca de despejos iminentes. Ainda assim, a votação final na Câmara foi de 388 a favor e cinco contra, com Ocasio-Cortez sendo novamente a única Democrata da Câmara que se atreveu a votar "não", classificando o projeto de "ultrajante". Os eleitores ficaram com um ponto de interrogação sobre se, ou quanto, a liderança do DP realmente se importava em ir além do resgate das corporações e se a ala esquerda do Partido na Câmara algum dia se organizaria.[17]

Três semanas depois, Pelosi finalmente deu seu show ao tomar a iniciativa com o lançamento da Heroes Act [Lei dos Heróis], de US$ 3 bilhões, que ofereceu ao Partido Democrata a oportunidade de apresentar um programa completo com o qual eles poderiam seguir lutando. O projeto continha um conjunto robusto de demandas liberais em que os democratas poderiam ter feito campanha, mesmo que tivessem sido inicialmente parados no Congresso pela maioria republicana no Senado.[18] Mas Pelosi minou profundamente sua força política ao usá-lo para sinalizar aos principais doadores do partido que este os colocava em primeiro plano. Para reforçar o descrédito, Pelosi ainda procurou enfrentar a crise premente do sistema de saúde pedindo um novo financiamento para o seguro saúde por meio do COBRAplan, uma medida absurdamente cara que daria suporte às seguradoras, mas negligenciaria totalmente os milhões que perderam sua cobertura de saúde junto com seus empregos. Uma vez que a saúde é indiscutivelmente a questão em que os democratas têm sua maior vantagem política sobre os republicanos, isso foi quase suicida. Para piorar as coisas, o projeto de lei de Pelosi tornou os grupos de lobby empresarial da K-Street elegíveis para o Paycheck Protection Program [Programa de Proteção ao Salário], oferecendo financiamento a organizações cujo real propósito político era apoiar grandes empresas e se opor a iniciativas políticas como a Heroes Act. Não poderia haver ambiguidade sobre a principal prioridade da liderança do DP: sustentar a identidade dos democratas como "centristas" neoliberais pró-negócios.[19]

Enquanto essas escaramuças políticas se desenrolavam, o Federal Reserve prosseguia sem obstáculos com seu resgate histórico às grandes empresas. Como explicou o secretário do Tesouro Mnuchin, os negociadores "haviam discutido em termos bipartidários" a questão de saber se as empresas que recebiam o dinheiro do resgate poderiam usá-lo para pagar dividendos, recomprar suas ações e aumentar salários para os altos executivos, ou se deveriam manter os níveis de emprego e investimento. "Estávamos de acordo que os empréstimos diretos comportariam restrições", mas "as transações do mercado de capitais não teriam restrições".[20]

Com relação aos US$ 46 bilhões da CARES Act para companhias aéreas, empresas de carga aérea e a Boeing, isso significou, trocando em miúdos, que o Departamento do Tesouro administraria o resgate. Este assumiria a forma de empréstimos diretos e, a fim de serem elegíveis, os beneficiários teriam de aceitar certas restrições bastante rigorosas e claramente definidas. Eles não poderiam pagar dividendos; teriam limitadas as quantias permitidas para recompra de ações; e seriam obrigados a conservar 90% dos trabalhadores. Com relação ao resto do dinheiro do resgate empresarial, potencialmente no valor de dez vezes essa soma, os empréstimos se dariam através do Fed, por meio da compra de títulos emitidos pelas grandes empresas, e não estariam condicionados à forma como elas gastariam esse dinheiro ou a suas decisões econômicas em geral.[21] Mesmo em meio a uma das piores crises econômicas da história dos Estados Unidos, com os padrões de vida de grande parte da população profundamente ameaçados, os altos executivos e acionistas estariam livres para encher seus próprios bolsos por meio de recompra de ações, dividendos e aumentos salariais de executivos, ao mesmo tempo em que reduziam o emprego e o investimento - exatamente como vinham fazendo rotineiramente com os ganhos e empréstimos de suas empresas na década anterior.

Reflatando a bolha dos títulos corporativos

Como se viu, a concessão pelo Congresso, pelo Departamento do Tesouro e pelo Federal Reserve do titânico $ 4,5 trilhões de resgate sem compromisso para as corporações, por mais histórico que fosse, seria simplesmente o começo da história, seu capítulo de abertura, para falar. A subsequente implementação do resgate pelo Fed elevou o apoio do Estado às grandes empresas a um novo nível, afetando profundamente o mercado de títulos corporativos e, por sua vez, o relacionamento do Fed com as corporações. "Sem precedentes" é um clichê, especialmente surrado no caso da atual crise econômica do COVID-19; mas é um descritor preciso da reviravolta que ocorreu.

Em seu anúncio de 23 de março de 2020, o Fed declarou que "faria o que fosse preciso" para defender a economia corporativa e, nas semanas seguintes, efetivamente até 9 de abril de 2020, forneceu esclarecimentos completos sobre suas intenções. Durante esse intervalo, o Fed estabeleceu um conjunto de facilidades para adquirir dívida corporativa, direta ou indiretamente, destinadas a emprestar quantias virtualmente ilimitadas de dinheiro para quase todo tipo de empresa não financeira, independentemente do rating dessa dívida.[22] Isso incluiu fundos para dívida com grau de investimento, mais da metade dos quais até 2020 foi classificado no extremo mais baixo dessa categoria (com classificação bbb); para "Fallen Angels", ou seja, empresas cuja dívida foi classificada como grau de investimento até 22 de março, mas que posteriormente caiu abaixo desse nível; e, mais espetacularmente, fundos para dívidas de alto rendimento e alto risco ("junk bonds"), a serem adquiridos por meio da compra de fundos negociados em bolsa (ETFs). No momento em que essa explosão de atividade acabou, o Fed havia criado facilidades para apoiar quase todo o universo de tomadores de empréstimos e credores corporativos.

Assim que ficou evidente - e como o Fed entendeu desde o início - o mero anúncio desses programas foi interpretado pelos mercados de títulos como significando que o Fed estava comprometido em apoiá-los e produziu o mesmo efeito como se o Fed tivesse realmente comprado os títulos. A intenção foi tomada como equivalente à ação do Fed porque foi interpretada como um compromisso real de garantir os empréstimos das empresas - para sustentar seu valor, ou pelo menos evitar que caia além de um certo ponto - e assim reduzir radicalmente o risco para os credores que os compraram. Na verdade, o mero estabelecimento de suas facilidades de compra de títulos pelo Fed pode ter sido mais eficaz do que realmente colocá-las para funcionar, porque teve o efeito de colocar o peso do Fed por trás de todo o mercado de títulos, em vez de comprar a dívida de determinados empresas. Como explicou o presidente do Fed, Powell, em termos discretos: "Muitas empresas que teriam que vir para o Fed agora são capazes de se financiar privadamente... e isso é bom."[23] As iniciativas do Fed por si só galvanizaram os mercados, pois as taxas de juros caíram simplesmente com a notícia de que pretendia intervir.[24]

Nas semanas anteriores a 23 de março de 2020, o mercado de títulos corporativos praticamente secou diante de uma fuga frenética para a segurança dos títulos do Tesouro. Como resultado, os spreads de títulos corporativos - a diferença entre os rendimentos dos títulos corporativos e dos títulos do Tesouro - explodiram para cima, atingindo seu pico em 23 de março, o dia do anúncio do Fed.

Desde o início da crise, à medida que se registrava a evolução da pandemia de COVID-19, o Fed vinha intervindo em uma escala cada vez maior nos mercados de crédito, tentando obter mais dinheiro em condições mais favoráveis aos prestamistas do setor financeiro, com o objetivo de tornar lucrativa a concessão de empréstimos a empresas não financeiras. Ele reduziu para 0 a 0,25% o intervalo da meta dos fundos federais de referência, e, como "orientação", comprometeu-se a mantê-lo nesse patamar no futuro previsível; afrouxou regulamentações sobre os bancos, reduzindo as exigências de capital e liquidez, a fim de facilitar a concessão de empréstimos; fez compras maciças de títulos do Tesouro para ajudar as reservas bancárias; e, finalmente, declarou Quantitative Easing [Flexibilização Quantitativa (monetária)] ilimitada. No entanto, essas medidas tiveram pouco efeito em um momento no qual os bancos e os emprestadores não bancários, que poderiam se beneficiar da generosidade do Fed, não tinham interesse em fornecer crédito a tomadores não financeiros já endividados. Era evidente que isso seria muito arriscado. Se o Fed quisesse que os empréstimos a empresas não financeiras aumentassem, ele teria de desafiar os mercados e intervir.

É claro que foi isso que o Fed acabou fazendo com seu anúncio de 23 de março, que provou ser o ponto de virada. O economista-chefe do J. P. Morgan brincou dizendo que, ao dar esse passo, o Fed "basicamente se transformou em um banco comercial em vez de um banco central". O Fed teve que se tornar um banco comercial, mas continuar sendo um banco central, porque apenas um banco central - aquele que tem o poder de criar dinheiro, comprar títulos e adicioná-los ao seu balanço praticamente sem limites - estava em condições de assumir o risco de compra de obrigações de sociedades não financeiras nesse momento de extrema necessidade. Quando o Fed sinalizou sua intenção de apoiar o mercado de títulos de empresas [corporate-bond market], estabelecendo sua série de facilidades de empréstimo, ele repentinamente reduziu de modo qualitativo o risco de compra desses títulos por credores privados, dando-lhes confiança para retornar ao mercado. Foi isso que eles fizeram em massa, é claro, abrindo caminho para uma onda gigante de tomada de empréstimos por parte das grandes empresas não financeiras. A nova onda de compra dos credores, na verdade, representou uma continuação da anterior, que gerou empréstimos recordes e uma bolha no mercado de títulos de empresas que as notícias da disseminação global do coronavírus em fevereiro de 2020 ameaçaram estourar. Portanto, quando o Fed interveio para reavivar os empréstimos a grandes empresas não financeiras, declarando que compraria títulos em qualquer quantia necessária para sustentar seu valor, estava na verdade reiniciando e ampliando a bolha do mercado de títulos privados.

Embora o que tenha chegado às manchetes tenha sido o sucesso de diversas famosas empresas não financeiras em garantir a obtenção de empréstimos a preços artificialmente reduzidos, na realidade são os credores, os financistas, que se beneficiaram de forma decisiva - de duas maneiras. Primeiro, se os mercados de títulos tivessem permanecido congelados, muitas empresas não financeiras logo não teriam outra escolha a não ser declarar falência, pois estavam num beco sem saída entre a incapacidade de pagar suas dívidas correntes devido à perda de receita causada pela pandemia; e a incapacidade de refinanciar suas dívidas, exceto a taxas de juros demasiadamente altas. Os credores dessas empresas não financeiras, incluindo bancos comerciais, hedge funds, fundos de investimento, bancos de investimento, fundos de pensão e outras instituições de investimento que constituem o universo do shadow banking system [sistema bancário paralelo], teriam enfrentado perdas significativas no processo de falência. Em vez disso, ao evitar uma onda de falências, a reanimação do mercado de títulos pelo Fed salvou os credores e protegeu seus ativos.

Em segundo lugar, quando a economia começou a fechar, os investidores passaram a considerar os níveis recordes de dívida das empresas não financeiras, contraídas no período anterior à crise do coronavírus, como muito mais arriscados do que antes. Eles começaram a exigir taxas de juros mais altas para novas dívidas e a vender dívidas antigas. Com as grandes empresas não financeiras imobilizadas, pouca dívida nova poderia ser emitida e o valor da dívida antiga entrou em colapso, deixando os credores em uma situação adversa. Novamente, quando o Fed deu o estímulo inicial ao mercado de títulos, prometendo proteger o valor da dívida das empresas não financeiras, o valor dos títulos se recuperou e os investidores evitaram enormes perdas.

O Fed havia induzido com sucesso os credores privados a retornarem ao mercado de títulos, servindo como emprestador de última instância – ou melhor, como emprestador de primeira instância, socializando suas perdas potenciais e garantindo que eles poderiam privatizar seus ganhos potenciais. Ele permitia, assim, que as empresas não financeiras assumissem dívidas maiores do que seria possível de outra forma. Porém, o objetivo não era, de forma nenhuma, resolver as dificuldades iniciais que impeliram essas empresas a assumirem aquelas dívidas - mas empurrar seus problemas com a barriga, para onde eles poderiam se tornar ainda mais difíceis de serem solucionados. O Fed evitou um colapso naquele momento, mas provavelmente enfrentará uma crise ainda maior no futuro.[26]

Bonança bilionária do coronavírus

A partir desse ponto crítico, os spreads de títulos se inverteram e começaram a diminuir. O spread para empresas com classificação de risco BBB, que havia atingido o pico de 4,88% em 23 de março de 2020, caiu para 2,83% em 1º de maio. No mesmo intervalo, o spread de alto retorno (junk bond [títulos tóxicos/de alto risco]) caiu de 10,87% para 7,7%. O high-grade borrowing cost index da Bloomberg [índice de custo de empréstimo para grau alto], que havia disparado para 4,5%, caiu para 2,4% no início de junho de 2020, perto dos níveis mínimos do pré-pandemia, alcançados no início de março de 2020. As emissões de títulos com o grau de investimento dispararam, quebrando duas vezes o recorde mensal anterior. O volume de março de 2020, de US$ 262 bilhões, quebrou o recorde anterior de US$ 168 bilhões (maio de 2016) e, em seguida, o volume de abril de 2020, de US$ 285 bilhões, quebrou o recorde de março.

O impacto da declaração do Fed foi poderoso, conforme ficou evidente em um estudo realizado logo em seguida pela American Prospect em parceria com The Intercept. Eles localizaram relatórios de vendas de títulos publicados por 49 grandes empresas com valor de pelo menos US$ 190 bilhões. Muitos dos que aproveitaram a redução no custo dos empréstimos oferecida pelo Fed faziam parte da nata da "América industrial" - Oracle, Disney, Exxon, Apple, Coca-Cola, McDonald’s e assim por diante.[27] Eles podiam não estar desesperados por esse auxílio, mas não resistiram em lucrar com ele. Muito ilustrativo desse cenário, a Amazon conseguiu alguns dos custos de empréstimos mais baixos já garantidos no mercado de títulos de empresas dos EUA: levantou US$ 10 bilhões em títulos de três anos à taxa de 0,4%. Isso foi menos de 0,2 ponto percentual acima da taxa que os investidores cobraram do governo dos EUA quando este recentemente emitiu dívida com vencimento semelhante. Também se estabeleceram novos mínimos para os títulos de dívida da Amazon já existentes com vencimento em sete, dez e quarenta anos.[28]

Antes da declaração do Fed de 23 de março, não estava claro se algumas das maiores empresas com balanços fracos e/ou perspectivas nebulosas - entre elas Boeing, Southwest, Hyatt Hotels - seriam capazes de obter empréstimos no mercado de títulos. Porém, assim que o Fed anunciou suas intenções, muitas delas imediatamente ganharam acesso a financiamento. Recentes "anjos caídos" como Ford e Kraft Heinz, ambos com títulos negociados em níveis depreciados apenas algumas semanas antes, rapidamente concluíram ofertas bem-sucedidas. A oferta da Boeing em 30 de abril arrecadou US$ 25 bilhões e ficou bem abaixo da demanda. Seu sucesso permitiu que a empresa não fosse obrigada a aceitar o empréstimo oferecido pelo resgate de empresas, que, como mencionado, seria acompanhado de condições bastante rigorosas para a manutenção de funcionários, bem como de limitações na recompra de ações e pagamento de dividendos. A Boeing não deixou de explorar sua nova vantagem, anunciando imediatamente que cortaria 16.000 postos de trabalho. A GE Aviation, outra empresa qualificada para empréstimo sob a CARES Act, seguiu pelo mesmo caminho, lançando um empréstimo de US$ 6 bilhões no open market [mercado aberto] e demitindo 13.000 funcionários logo em seguida.[29]

Por fim, o mercado de ações seguiu o mesmo caminho do mercado de títulos de empresas, tranquilizado pelo sucesso instantâneo do refinanciamento de grande parte do setor não financeiro e pela promessa implícita do Fed de manter as taxas de juros baixas – sem se preocupar, como é há muito tempo, com os lucros baixos, sem falar na produtividade. O S&P 500 (um dos principais indicadores da bolsa de Nova York e da NASDAQ) atingiu o fundo do poço em 23 de março, com 2.237 pontos, depois do seu pico de 3.386 em 19 de fevereiro de 2020. Contudo, disparou depois para 3.139 em 4 de junho – um aumento de 40%, enquanto a economia real despencava, e representando o maior ganho do índice para um período de 50 dias desde o início dos registros comparáveis, em 1952. A capitalização de mercado atingiu seu mínimo, US$ 21,8 trilhões, ou 103% do PIB, em 23 de março. Contudo, em 30 de abril, ele estava de volta a US$ 28,9 trilhões, ou 136,3% do PIB. Não houve nenhuma outra boa notícia claramente relevante nesse ínterim, mas a relação preço/retorno do S&P 500, que havia caído enquanto a economia desabava, mais uma vez subiu quando os preços das ações decolaram, apesar da queda nos lucros.[30]

Em virtude apenas de suas promessas, o Fed foi capaz por colocar US$ 7,1 trilhões nas mãos de investidores em ações, em um momento em que a economia real teria gerado o resultado oposto. Quase no mesmo período, entre 18 de março e 4 de junho, a riqueza dos bilionários estadunidenses aumentou em US$ 565 bilhões, atingindo o patamar de US$ 3,5 trilhões, alta de 19%. Não é de surpreender que Jeff Bezos tenha liderado o caminho, aumentando em US$ 34,6 bilhões sua riqueza (impressionantes 31%), enquanto Mark Zuckerberg ganhou US$ 25 bilhões.[31]

Lucros por predação

O resultado dos esforços do Fed alterou o jogo. O mercado de títulos de empresas foi reconfigurado e a posição econômica das principais empresas não financeiras se transformou, pelo menos por enquanto. Ao mesmo tempo, nas palavras do CIO global da Guggenheim Investments, Scott Minerd:

O apoio oferecido à América corporativa durante este período de paralisação econômica arrisca a criação de uma nova obrigação moral para o governo dos EUA de manter os mercados funcionando e ajudar as empresas a acessar o crédito... Os mutuários corporativos provavelmente estão a caminho de se tornar algo semelhante a gses, cujos títulos eram de fato garantidos pelo Tesouro, como foi confirmado na época da crise financeira global... A diferença é que neste ciclo não é uma instituição específica, mas sim o mercado de títulos com grau de investimento que é grande demais para falir.[32]

Como Minerd conclui, o Fed e o Tesouro "têm essencialmente socializado o risco de crédito" e, no processo, têm "criado um novo risco moral" - "Os Estados Unidos nunca serão capazes de voltar à situação anterior". O presidente do Fed, Powell seguiu o caminho de Bernanke, mas o levou a novos patamares.

Não é preciso enfatizar novamente que, graças aos esforços conjuntos do Congresso, do Tesouro e do Fed, nós, empresas não financeiras, conseguimos alcançar essa incrível ampliação da riqueza de forma incondicional, sem ter que nos comprometer a fazer nada. com seu dinheiro ou adotar qualquer política econômica específica. Isso quer dizer que, ao providenciar a adoção, primeiro, do salvamento das corporações e, por sua vez, a série de intervenções subsequentes no mercado de títulos baseadas naquele salvamento, o establishment político-econômico bipartidário dos Estados Unidos foi incentivando explicitamente seus beneficiários, gerentes corporativos e acionistas, a enriquecerem ainda mais, ao mesmo tempo em que se recusa a exigir que as corporações façam qualquer coisa em troca, muito menos adotem políticas que possam nutrir a economia e melhorar as condições da população.

O que o establishment bipartidário estava fazendo era fornecer as condições, tanto quanto possível, para permitir que os executivos das empresas e acionistas buscassem seus próprios interesses da maneira que julgassem melhor, sem fazer perguntas. No primeiro plano de suas reflexões a esse respeito estava que promover o egoísmo econômico não mais significava necessariamente reforçar a capacidade dos comandantes das empresas de elevar o investimento ou o emprego com lucro, ou de maximizar os lucros com o mínimo de acumulação de capital por meio da pressão sobre os trabalhadores – ou mesmo simplesmente reproduzir e sustentar suas próprias empresas. Eles compreenderam o quanto a obtenção de dinheiro desvinculara-se da produção de lucro, especialmente em uma economia fraca. Foi por esse motivo que eles foram tão explícitos e insistentes em proteger a capacidade de proprietários e administradores de grandes empresas não financeiras de perseguir seus próprios interesses – comprando de volta suas ações, pagando dividendos, aumentando a remuneração dos executivos ou mesmo liquidando parte ou a totalidade da participação. Eles aceitaram, em particular, a disseminação de proprietários de grandes empresasse beneficiando às expensas de suas próprias empresas com um mínimo de risco, como é dramaticamente exemplificado pelo patrimônio privado; e a necessidade de garantir os meios de se fazer dinheiro desse modo, tornando os empréstimos mais baratos e seguros, às vezes como um meio indireto incontornável de estimular o investimento e o emprego reais-predação como pré-condição para a produção.

Como o democrata da Câmara Richard Neal explicou de forma branda e inconsciente, o resgate "foi descrito como um estímulo", mas é "mais precisamente" para "estabilidade e alívio".[34] É melhor entendido, isto é, como um instrumento para permitir que as empresas não financeiras e financeiras continuem no caminho que já vinham trilhando - na medida em que de fato desejassem - colocando dinheiro em suas mãos sem condições de como eles devem gastá-lo, em vez de sobrecarregados por condições destinadas a colocá-los em outro caminho. Com a economia dos EUA apresentando um desempenho tão ruim há tanto tempo, o establishment político bipartidário e seus principais formuladores de políticas chegaram à conclusão, consciente ou inconscientemente, de que o único modo de se garantir a reprodução das grandes empresas financeiras e não financeiras, seus principais dirigentes e acionistas – e, na verdade, os principais líderes dos maiores partidos, a eles ligados intimamente - é intervir politicamente nos mercados financeiros e em toda a economia, de modo a promover a redistribuição de riqueza para eles (portanto de baixo para cima) por meios diretamente políticos. Nenhum desses caminhos chegou a ser cogitado, apesar do precário estado da economia e da calamidade que afetou largas faixas da população.

A persistência de uma abordagem tão distante dos principais produtores e financiadores da economia por parte do establishment político-econômico bipartidário em um momento de crise tão profunda parece tão extrema que requer mais explicações. Como eles poderiam continuar com tais políticas, quando as necessidades da população são tão avassaladoras e o dinheiro para lidar com elas tão escasso em geral, mas transbordando os bolsos dos principais gerentes e acionistas corporativos? Ainda assim, tendo em vista a falta de controvérsia dentro de qualquer seção da elite bipartidária sobre essa abordagem, de quão difundida tem sido em toda a classe dominante e há quanto tempo não é contestada, a questão oposta é talvez ainda mais apropriada. Como eles poderiam romper com isso - ou, de fato, abster-se de estendê-lo e aprofundá-lo?

Surpreendentemente, mesmo enquanto o Fed estava fazendo uma enorme doação aos principais gerentes e acionistas por meio do resgate do mercado de títulos corporativos, o Congresso estava dando outro grande presente para praticamente as mesmas pessoas, inserindo US $ 174 bilhões em novos incentivos fiscais no cares Act, dirigida principalmente a grandes empresas e pessoas físicas ricas. Os mesmos incentivos fiscais foram considerados excessivos demais, mesmo para a bonança de corte de impostos de US $ 1,5 trilhão de Trump em 2017, mas agora foram adotados sob a cobertura da pandemia. Nas palavras do presidente do Comitê de Finanças do Senado, Charles Grassley, essas "disposições fiscais bipartidárias... lançaram uma tábua de salvação financeira muito necessária" para as empresas, "para dar-lhes a melhor chance de sobreviver".[35]

Com o desempenho tão ruim da economia americana, como tem acontecido por um período tão longo, o establishment político bipartidário e seus principais formuladores de políticas chegaram à conclusão absoluta, consciente ou inconscientemente, de que a única maneira de garantir a reprodução das sociedades não financeiras e financeiras, os seus dirigentes e accionistas de topo - e mesmo os dirigentes máximos dos grandes partidos, estreitamente ligados a eles - é intervir politicamente nos mercados de activos e em toda a economia, de modo a garantir a recuperação ascendente da distribuição de riqueza a eles por meios diretamente políticos. Isso é, de fato, o que o Congresso e o Fed conseguiram com seu resgate corporativo em larga escala e estendido diante da queda da produção, do emprego e dos lucros. A redistribuição ascendente da riqueza politicamente motivada para sustentar elementos centrais de uma classe capitalista dominante parcialmente transformada, como resposta a um processo aparentemente inexorável de deterioração econômica, tem estado no centro da evolução político-econômica que nos trouxe até este ponto. O que tivemos por um longo período é o agravamento do declínio econômico acompanhado pela intensificação da predação política. Situar essas tendências em seu contexto histórico e global e compreender suas origens é o objetivo da segunda parte desta análise.

Notas

[1] Sou grato a Aaron Brenner por sua leitura crítica perspicaz e orientação indispensável sobre as questões financeiras em jogo, bem como a Ryan Lee por sua excelente assistência em pesquisa.

[2] "Federal Reserve Announces Extensive New Measures to Support the Economy", Press Release, 23 March 2020; Pam Martens and Russ Martens, "For First Time in History, Fed to Make Billions in Loans to Big and Small Businesses", Wall Street on Parade, 23 March 2020. Veja também Ben Bernanke and Janet Yellen, "The Federal Reserve Must Reduce Long Term Damage from Coronavirus", Financial Times, 18 March 2020; Christopher Condon and Craig Torres, ‘"Rosengren Says Fed Should Consider a Wider Range of Assets", Bloomberg, 6 March 2020.

[3] Congressional Research Service, Federal Reserve: Emergency Lending, 27 March 2020, pp. 10-21.

[4] Essas medidas foram tão exageradas que o Congresso se moveu para limitá-las no futuro por meio da Lei Dodd-Frank, embora isso também tenha se mostrado insuficiente e desdentado, e foi entendido dessa forma na época da crise atual. Congressional Research Service, Federal Reserve: Emergency Lending, pp. 18-19ff.

[5] Francesca Mari, "The Housing Vultures", New York Review of Books, 11 June 2020.

[6] CARES Act, Section 4003 (a) (b); Pam Martens and Russ Martens, ‘Stimulus Bill: The Fed and Treasury’s Slush Fund is Actually $4 Trillion’, Wall Street on Parade, 25 March 2020; Jeanna Smialek, ‘How the Fed’s Magic Money Machine Will Turn $454 Billion Into $4 Trillion’, nyt , 26–27 March 2020.

[7] Zach Carter, ‘Democrats Are Handing Donald Trump the Keys to the Country’, Huffington Post, 25 March 2020.

[8] For detailed accounts, see Michael Grunwald, ‘The Corporate Bailout Doesn’t Include the Limits Democrats Promised’, Politico, 2 April 2020; Jeff Stein and Peter Whoriskey, ‘The us Plans to Lend $500 Billion to Large Companies. It Won’t Require them to Preserve Jobs or Limit Executive Pay’, Washington Post, 28 April 2020. For the Fed’s assumption of leadership, see Nick Timiraos, ‘After Fed Unleashes Fire Power, Washington Rearms Central Bank’, wsj , 29 March 2020; and Nick Timiraos, ‘The Fed Transformed: Jay Powell Leads Central Bank into Uncharted Waters’, wsj , 30 March 2020.

[9] Damon Silvers, ‘Repeating the Mistakes of the 2008 Bailout’, American Prospect, 24 March 2020; Matt Taibbi, ‘Resetting the Bomb: Interview with Neil Barofsky’, taibbi.substack.com, 6 April 2020; Alan Rappeport and Jeanna Smialek, ‘The Oversight Playbook from 2008 Returns as Bailout Swells’, nyt, 24 March 2020.

[10] CARES Act Section 4009 (a); us Code Title 5, Section 552; Pam Martens and Russ Martens, ‘Stimulus Bill Allows Federal Reserve to Conduct its Meetings in Secret’, Wall Street on Parade, 26 March 2020; Maggie Severns and Victoria Guida, ‘Recovery Law Allows Fed to Rope Off Public As It Spends Billions. A Little-Noticed Provision of the Senate Bill Exempts Board Members from a Wide Swath of the Federal Open-Meetings Law’, Politico, 9 April 2020; Lauren Feeney, ‘Uncovering Secret Fed Loans: Interview with Bloomberg Reporter Bob Ivry’, Moyers and Company, 20 January 2012.

[11] Tory Newmyer with Brent Griffiths, ‘The Finance 202: Most Corporate Coronavirus Relief Money Has No Strings Attached, Watchdog Warns’, PowerPost: Washington Post, 14 April 2020.

[12]The Senate assumed the initiative on the new bill by framing it as a substitute amendment to an existing House tax bill. See Saranac Hale Spencer, ‘Legislative History of cares Act’, Factcheck.org, 4 May 2020.


[13] CARES Act, H. R. 748, All Actions.

[14] ‘Getting to the Point with Congressman Richard Neal’, Edward Kennedy Institute for the us Senate, YouTube, 13 April 2020. See also Yalman Onaran and Sonali Basak, ‘Key 2008 Financial Crisis Players Are Back for Coronavirus’, Bloomberg, 3 April 2020.

[15] Lee Fang and Aída Chávez, ‘It’s a Scandal that We Don’t Know Who Supported the Coronavirus Bailout. Help Us Find Out’, Intercept, 9 April 2020. Fang and Chávez set out to identify the public position of every House Democrat on the bailout, successfully in most cases, but have so far not found a single open opponent of it except for aoc.

[16] Jacob Schlesinger and Joshua Jamerson, ‘After Three Coronavirus Stimulus Packages, Congress is Already Prepping Phase Four’, wsj , 29 March 2020.

[17] Robert Kuttner, ‘Kuttner on tap: The Democrats’ Loss of Nerve’, American Prospect, 22 April 2020; David Sirota, ‘Dems Give Unanimous Consent to Trump’, tmi , 22 April 2020; Lauren Egan, ‘House Gives Final Passage to $484 billion Coronavirus Relief Bill’, cnbc, 11 May 2020.

[18] Natalie Andrews and Andrew Duehren, ‘House Democrats Release $3 Trillion Bill to Respond to the Coronavirus’, wsj , 12 May 2020.

[19] Andrew Perez, ‘Dems Aim to Subsidize the Opponents of Progressive Change’, tmi , 20 May 2020; David Sirota, ‘Democrats Are Fuelling a Corporate Counter-Revolution against Progressives’, Guardian, 26 May 2020; Akela Lacy and Jon Walker, ‘Heroes Act Delivers a Win to the Health Insurance Industry’, Intercept, 12 May 2020.

[20]Stein and Whoriskey, ‘us Plans to Lend $500 Billion to Large Companies’.

[21] According to a spokesman for Schumer, the Democrats had gone through the motions of demanding restrictions on how companies benefiting from the Fed’s corporate-bond purchases could use those funds but had been summarily rebuffed by Mnuchin and the Administration. Schumer justified his capitulation by referring to supposed concessions on the question of oversight—which, as we know, turned out to be hollow. See Stein and Whoriskey, ‘us Plans to Lend $500 Billion to Large Companies’.

[22]The set included the Primary Market Corporate Credit Facility (pmccf), the Secondary Market Corporate Credit Facility (smccf) and the Term Asset-Backed Securities Loan Facility (tabslf).

[23]Scott Minerd, ‘Prepare for Era of Recrimination’, Global Chief Investment Officer Outlook, Guggenheim Investments, 26 April 2020; Powell quoted in David Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class without Spending a Cent’, American Prospect, 27 May 2020.

[24] ‘The Fed has yet to buy a single bond under its Primary and Secondary Market Credit Facilities. But the mere announcement of that programme has managed to tighten credit spreads and dramatically and greatly ease liquidity issues’: Scott Minerd, ‘We are All Government-Sponsored Enterprises Now’, Global Chief Investment Officer Outlook, Guggenheim Investments, 10 May 2020.

[25] Nick Timiraos, ‘Fed Unveils Major Expansion of Market Intervention’, wsj , 23 March 2020.

[26] Thanks to Aaron Brenner for his collaboration throughout the preceding section.

[27] Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class.’ See especially Table ‘The Corporate Bond Frenzy’, where those 49 corporations with the amount of their bond issues are listed, p. 15.

[28]Joe Bennison, Eric Platt and David Lee, ‘Amazon Secures Record Low Bargaining Costs’, ft , 1 June 2020; Molly Smith, ‘It’s a Borrower’s Bond Market as Amazon Gets Record Low Rates’, Bloomberg, 2 June 2020.

[29]Minerd, ‘We Are All Government-Sponsored Enterprises Now’; Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class’.

[30] YahooFinance.com; Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class’, p. 7.

[31] Matt Egan, ‘us Billionaires Have Become $565 Richer During the Pandemic’, cnn Business, 4 June 2020; ‘Update: Billionaire Wealth, us Job Losses, and Pandemic Profiteers’, Inequality.com, 4 June 2020.

[32] Minerd, ‘We Are All Government-Sponsored Enterprises Now’, p. 3.

[33] Minerd, ‘Prepare for an Era of Recrimination’, p. 5. For a similar conclusion, see the sum-up of Lev Menand, a former Treasury official who now teaches at Columbia University: ‘“This is a massive wealth transfer to owners of financial assets. The rules of the game are supposed to be that equities take the loss, high-yield debt holders take the loss.” Allowing them to instead bear no burden is a form of socialism for capitalists’: Dayen, ‘How the Fed Bailed Out the Investor Class’, p. 17.

[34] "Getting to the Point with Congressman Richard Neal".

[35] Jesse Drucker, ‘The Tax-Break Bonanza Inside the Economic Rescue Package’, nyt, 24 April 2020.

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