31 de maio de 2020

A crise climática e o COVID-19 são inseparáveis

Os comentaristas gostam de apontar os “mercados úmidos” de Wuhan como a fonte da pandemia, mas o COVID-19 é o resultado de um fenômeno global muito maior de degradação ambiental. Combater os dois significa colocar a política de produção de alimentos e uso da terra no centro de nosso projeto socialista.

Drew Pendergrass e Troy Vettese

Sunaura Taylor, "Chicken Truck", Óleo sobre tela, 2008.

Tradução / No século XVIII, Edward Jenner, o inventor da primeira vacina, enfrentou uma crise semelhante à que enfrentamos hoje — um mundo destruído pela doença. Não era o coronavírus que ele estava estudando, mas a varíola, uma doença com uma taxa de mortalidade variando entre 20 e 60 por cento no Velho Mundo e ainda mais alta no Novo.

Observador astuto e ornitólogo talentoso, Jenner entendeu que as epidemias não são crises atemporais e inevitáveis, mas surgem do crescente envolvimento da civilização com a natureza. É devido às suas origens como doenças animais que patógenos como o SARS-CoV-2 são chamados de “zoonoses”. “O desvio do homem do estado em que foi originalmente colocado pela Natureza parece ter se mostrado uma fonte prolífica de doenças”, começa Jenner no tratado de 1798 sobre seus experimentos de vacinação. “Ele se familiarizou com um grande número de animais, o que pode não ter sido o plano original de seus companheiros.”

O reconhecimento de Jenner dos vínculos estreitos entre a saúde pública e a crise ambiental mais ampla não é, de forma alguma, compartilhado por muitos comentaristas hoje. Enquanto a direita recorre a táticas xenófobicas, como usar os mercados chineses como bodes expiatórios, a esquerda tende a enfatizar a falta de respostas do governo, a necessidade de saúde pública para todos [Medicare for All], ou talvez a rara crítica à pecuária industrial. Muitas vezes, no entanto, esses debates assumem que as zoonoses são eventos inevitáveis, cujas causas não precisam nos preocupar.

Embora haja de fato problemas urgentes que precisam ser resolvidos agora, um entendimento mais amplo da origem do SARS-CoV-2 também é necessário. Para entender isso, precisamos enfrentar a crise ambiental como um todo, porque cada faceta dela — da extinção à mudança climática — tem o potencial de produzir mais doenças. Apesar do uso em voga de conceitos como o “Antropoceno”, o envolvimento da esquerda com as ciências naturais permanece limitado. Essa disjunção é especialmente chocante considerando os laços estreitos entre cientistas e socialistas durante o final do século XIX e início do século XX. Se alguém seguisse os desenvolvimentos científicos agora, logo ficaria claro que a condição de deterioração da biosfera necessita de uma forma inteiramente nova de socialismo onde as políticas de alimentação e energia não são marginais, mas ao contrário, estão em seu cerne.

A Nova Idade da Pedra

Os epidemiologistas dividem a história das doenças infecciosas em três grandes épocas. A primeira começa há dez mil anos com o início da agricultura neolítica. Os rebanhos domesticados mantidos em contato próximo com os humanos criaram condições para que novas doenças se propagassem entre as espécies com uma frequência impossível nas sociedades de caçadores-coletores. A segunda é a breve era moderna de rápido progresso científico que vai dos anos 1850 aos anos 1970. O epidemiologista Rudolf Virchow, trabalhando na tradição científica iniciada por Jenner, cunhou o termo “zoonose” e defendeu que a saúde humana e veterinária deveriam ser estudadas juntas como uma medicina ou, como é chamada hoje, “medicina planetária” e “uma saúde”. Os avanços médicos no século XX levaram a novas vacinas e antibióticos milagrosos, os quais salvaram milhões de vidas. Mas a modernidade não durou. A terceira era zoonótica começou na década de 1980, a era das trevas em que definhamos atualmente, marcada pelo surgimento sem precedentes de novas doenças.

Não é mera coincidência que este último período coincida com as forças que definem a pós-modernidade: cadeias de commodities globalizadas, a ascensão do neoliberalismo, o esgotamento dos recursos naturais metropolitanos, o surgimento de empresas multinacionais monopolistas, a desindustrialização no Norte Global e o rápido, mas desigual, desenvolvimento no Sul.

O comércio de animais exóticos — seja em Wuhan ou na África Ocidental — não pode ser entendido isoladamente dessas tendências. O SARS-CoV-2 poderia ter sido originalmente uma doença do morcego ou do pangolim que passou para um animal intermediário, onde se recombinou e se tornou infeccioso para os humanos. O comércio de animais exóticos é central, pois coloca não só os humanos em contato próximo com os animais selvagens, mas também espécies variadas que nunca estariam próximas na natureza. Como isso aconteceu, visto que a China era famosa por suas práticas agrícolas sustentáveis milenares até recentemente, na década de 1970? Tudo começou a mudar na década de 1990, quando o país adotou um sistema alimentar industrial centrado na carne. Os pequenos agricultores não podiam competir com as fazendas industriais, então o governo os encorajou a entrarem no comércio de animais selvagens, embora isso tenha levado a surtos como o SRAG em 2003, um coronavírus que saltou de morcegos para civetas e humanos.

Histórias semelhantes acontecem em todo o mundo, onde os pobres são forçados a se sujeitarem a circunstâncias desesperadoras pelas forças do mercado e pela política estatal, levando à rápida desestabilização dos sistemas ecológicos locais. Quando os arrastões europeus invadiram as áreas de pesca ao largo da costa da África Ocidental, a população local recorreu à “carne de caça” para obter proteína barata. Esses sistemas alimentares transnacionais e desiguais têm contribuído não apenas para a extinção em massa, com espécies de vertebrados desaparecendo mais de mil vezes mais rápido do que o normal, mas também para novas zoonoses, como o Ebola e o HIV. As estradas construídas para expandir o alcance das empresas de mineração, petróleo e madeira permitem que os caçadores cheguem a regiões florestais antes inacessíveis, colocando os humanos em contato próximo com a vida selvagem. Só na Bacia do Congo, mais de meio bilhão de animais são capturados todos os anos, muitas vezes para alimentar os mineiros.

Obviamente, o comércio de animais selvagens também inclui o Norte Global. “Ecoturistas”, quando viajam, transmitem sarampo, poliomielite e tuberculose aos primatas. Vigilantes de zoológico e funcionários de laboratório têm uma probabilidade desproporcional de portar o vírus Símio Espumoso. O comércio de animais de estimação exóticos provavelmente deu passagem ao vírus do Nilo Ocidental para a América do Norte, onde este devastou espécies de pássaros nativos e matou mais de 2.300 pessoas.

Uma crítica limitada ao comércio de animais exóticos ignora como ele está vinculado ao destino do campesinato mundial, uma classe que foi devastada pela agricultura industrial. Mesmo um olhar superficial sobre a economia da carne de caça mostra que não podemos proteger a vida selvagem sem nos livrarmos das pecuárias industriais também, o que significa que não podemos mais comer carne barata.

Talvez a percepção mais importante que os socialistas podem extrair da saúde planetária seja que o desafio das novas zoonoses é inseparável da crise ambiental mais ampla. Ou seja, existe uma crise ambiental única e unificada. É uma falha de imaginação dividi-la artificialmente em problemas distintos como mudança climática, expansão urbana, extinção em massa, escoamento de fertilizantes, doenças não transmissíveis e epidemias.

A ciência por trás de cada um desses fenômenos é complicada, mas a mensagem geral é simples: quanto menos espaço a humanidade deixar para a natureza, mais problemas ambientais — incluindo novas zoonoses mortais — haverá. Fazer referência ao “Antropoceno” é uma forma de encapsular a escala do problema, mas é descritivo demais quando precisamos de conceitos analíticos para entender por que entramos em uma nova era geológica. Aqui está uma área em que a Esquerda pode intervir de forma útil, fornecendo aos cientistas e à sociedade em geral os conceitos capazes de enquadrar a crise ambiental unitária. Em vez de falar sobre o “Antropoceno”, podemos tirar o pó de um antigo debate marxista: a humanização da natureza.

O Espírito do Mundo e os Duendes do Bosque

A “humanização da natureza” é uma ideia originada em Hegel, que considerou a alienação da humanidade da natureza o ponto crucial da história mundial. O trabalho era entendido como o processo que reconciliava os dois, instilando a natureza com a consciência humana. Em vez de tirar nossa comida diretamente da natureza, como fazem os animais, os humanos usam ferramentas para guiar os fluxos naturais para a produção de plantio e de animais domésticos (reconhecidamente uma simplificação grosseira). Podemos expandir a lógica de Hegel para dizer que muito da humanização da natureza, então, é a história da “mudança no uso da terra”, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas poderia dizer.

Karl Marx fez uso do conceito de Hegel, reconhecendo o processo como uma expressão da natureza humana (ou seja, nosso “ser-espécie”). Ao contrário de Hegel, no entanto, Marx sentiu que a humanização da natureza havia sido distorcida sob o capitalismo devido ao divórcio entre a inconsciência do capital e a consciência humana. Para Marx, o capital buscava apenas a autoexpansão. O indivíduo capitalista era “o capital personificado”; embora “dotado de consciência e vontade”, argumentou ele, sua liberdade era limitada, voltada para atingir oobjetivo único de acumulação de capital. Vemos isso hoje: a CEO de uma empresa pode ser uma amante da natureza, mas não pode investir em tecnologia cara e ecologicamente correta sem que sua empresa seja destruída se ela não conseguir obter a taxa de lucro normal. O conceito de humanização da natureza, adaptado por Marx, explica porque a sociedade pode ter consciência de que está se aproximando do precipício e permanecer incapaz de mudar de curso, porque a extração planejada de combustíveis fósseis excede dramaticamente os limites do Acordo de Paris. Os políticos podem dizer uma coisa e até escrever em um tratado, mas “deixar os combustíveis fósseis no chão” é inconcebível em nosso sistema econômico atual.

Como um conceito, a “humanização da natureza” é útil — mais do que o “Antropoceno” — porque destaca que o capitalismo é fundamentalmente um projeto de reorganização da natureza que se distingue de outros períodos históricos, e que acabará por levar à catástrofe porque o capital é uma força insensata, inconsciente de estar destruindo a biosfera. Diante de tal processo, então, precisamos de controle consciente sobre a economia, ao mesmo tempo em que damos à natureza o espaço de que ela precisa para funcionar.

Como socialistas, não precisamos apenas resistir à capitalização da natureza sempre que possível, seja à queima da floresta amazônica por pecuaristas ou à instalação de novos oleodutos no Canadá para transportar petróleo não convencional. Também devemos ser cautelosos com uma humanização socialista da natureza: a vontade de dominar a natureza para fins de esquerda. A fantasia do controle prometeico mantém um forte domínio sobre a esquerda, especialmente entre os adeptos do “comunismo de luxo totalmente automatizado” (Aaron Bastani, que apóia a carne de laboratório e o reflorestamento, é uma exceção parcial dentro dessa corrente).

Os socialistas raramente aplicam suas alardeadas habilidades de crítica e inteligência científica à mesa de jantar. Certamente, Marx não era um ambientalista e, portanto, às vezes somos forçados a pensar contra ele para imaginar o que socialismo pode vir a ser. Marx pode estar certo ao dizer que a história começou com o nascimento da agricultura, mas ele negligenciou o surgimento de sua irmã gêmea — a epidemia.

O nascimento da tragédia e da tuberculose

Os cientistas pensam que a maioria, talvez todos, dos patógenos humanos são, em última análise, zoonoses, originadas não no início da espécie humana, mas em um passado relativamente recente. O sarampo provavelmente evoluiu da peste bovina há 7.000 anos. A gripe pode ter começado há cerca de 4.500 anos com a domesticação das aves aquáticas. A própria especialidade de Jenner, a varíola, provavelmente se originou há 4.000 anos na África oriental, quando um vírus do gerbil saltou para o camelo recém-domesticado e depois para os humanos. No Novo Mundo, a agricultura era amplamente praticada, mas poucos animais eram domesticados, razão pela qual os povos indígenas viviam relativamente livres de doenças. Com a colonização, no entanto, a criação de animais deu aos invasores europeus uma vantagem epidemiológica, e os indígenas foram rapidamente expostos ao sarampo, tifo, tuberculose e varíola. A população do Novo Mundo totalizava entre 50 e 100 milhões de pessoas em 1492, mas caiu 90% nos séculos seguintes, em grande parte por causa das zoonoses do Velho Mundo.

Por um tempo, parecia que as novas drogas acabariam por conter os patógenos, assim como o estado de bem-estar havia domesticado o capitalismo. Em 1972, os autores de um livro sobre doenças infecciosas acreditavam que “a previsão mais provável sobre o futuro das doenças infecciosas é que ele será muito entediante”. Em 1975, o reitor da faculdade de medicina de Yale previu que “não havia novas doenças a serem descobertas”.

Foi apenas um ano depois que o vírus do Ebola foi identificado. Pouco tempo depois, o editor do primeiro compêndio oficial sobre a nova zoonose advertiu: “Quanto maior a escala das mudanças ambientais causadas pelo homem, maior deve ser a probabilidade de surgimento de uma zoonose, velha ou nova.” O HIV tornou o problema ainda mais urgente. Na década de 1990, o campo das “doenças infecciosas emergentes” deixou de ser uma “mera curiosidade” para se tornar uma disciplina extensa. Após o susto da gripe aviária H5N1 em 2005, o governo dos Estados Unidos deu início ao programa PREDICT, que detectou quase mil novos vírus em uma década, incluindo novas cepas de Ebola e coronavírus. O governo Trump fechou o PREDICT no ano passado.

Qualquer faceta da humanização da natureza causará o que os cientistas chamam de “poluição patogênica”, a propagação de doenças entre diferentes espécies de animais. Doenças como a doença de Lyme e do Nilo Ocidental proliferaram porque o declínio da biodiversidade resultou no crescimento desequilibrado de algumas espécies portadoras, como camundongo-de-patas-brancas ou o tordo. O desmatamento e as mudanças climáticas expandem o habitat dos mosquitos, de modo que dengue, Zika, malária e outras doenças se tornam mais comuns. A atual erupção de novas doenças é um problema não só para os humanos, mas também para os animais. Novas doenças de corais estão ligadas à proliferação de algas e mudanças climáticas. Os gatos deram toxoplasmose a golfinhos-rotadores e belugas.

A pecuária industrializada tem feito muito para nos levar de volta à idade da pedra da saúde pública. Mesmo os pinguins imperadores da Antártida não estão isentos dessa mudança de época. Eles agora são afetados pela Doença Infecciosa Bursal, uma doença que surgiu na década de 1980 nas entranhas de grandes fábricas de aves na costa leste dos Estados Unidos. A extensão da indústria pecuária, cerca de 4 bilhões de hectares, abrange 40 por cento da superfície habitável do mundo, tornando-se a maior interface entre a humanidade e a natureza e, portanto, o principal portal para novas doenças.

A agricultura também mudou qualitativamente. O capital induz pressões inacreditáveis para aumentar a eficiência da produção de alimentos em detrimento da saúde. O próprio Marx criticou Robert Bakewell, um famoso criador [de animais] capitalista do século XVIII, por reduzir “o esqueleto das ovelhas ao mínimo necessário para sua existência”. De fato, Bakewell criava animais para terem menos ossos, de modo a aumentar seu volume de carne. Ao contrário de muitos de seus epígonos, Marx percebeu que não é necessária uma teoria separada para analisar os aspectos ambientais do capitalismo, pois o olhar cego do capital não via diferença entre animais e máquinas.

Os Bakewells atuais manipulam a genética animal para encorajar características como maior produção de ovos ou carne de peito, mesmo ao custo de sistemas imunológicos enfraquecidos. As empresas criam animais geneticamente semelhantes — até mesmo clones — em instalações superlotadas e vulneráveis a surtos. O uso generalizado de antibióticos pode ajudar a manter as doenças sob controle (e acelerar as taxas de crescimento dos animais), embora ao custo da criação de “superbactérias” como a SARM, uma bactéria comedora de carne que se tornou comum em hospitais em todo o mundo. Mesmo doenças bacterianas comuns, como infecções do trato urinário, estão cada vez mais resistentes a tratamentos que teriam funcionado apenas uma década atrás; a cada ano, cerca de 35.000 americanos morrem de infecções resistentes a antibióticos. Estima-se que 71% das costeletas de porco vendidas nos supermercados dos Estados Unidos contêm bactérias resistentes a antibióticos; a taxa para peru moído é ainda mais alta, de 79%.

O vírus Nipah, identificado pela primeira vez em uma cidade da Malásia em 1998, revela como as várias vertentes da crise ambiental convergem para criar epidemias. Para aumentar os lucros, os agricultores colocaram pomares de manga ao lado dos rebanhos de porcos para que o estrume pudesse ser facilmente aplicado nas árvores. O desmatamento por corte e queima expulsou os morcegos frugívoros de seu habitat natural, levando-os a fixar residência em árvores recém-plantadas, onde puderam transmitir a doença para os rebanhos de porcos e, em seguida, para as pessoas. Os morcegos também se tornaram mais vulneráveis ​​a doenças virulentas; à medida que suas populações se fragmentam, eles são apenas esporadicamente expostos ao reservatório de doenças. O que antes havia sido um vírus inofensivo em morcegos causou graves problemas neurológicos a porcos e humanos. O vírus matou cerca de um terço de suas vítimas na Malásia, mas sete décimos durante um surto posterior no sul da Ásia. Sua propagação só foi detida após quarentena estrita e o abate de um milhão de porcos; não foi por acaso que o surto começou na maior operação de suínos do país.

Libertar a lentilha

Os epidemiologistas que trabalham na tradição da saúde planetária têm clareza sobre o que precisa ser feito. Um emergente órgão de pesquisa sugere que a mudança no uso da terra é o “motor mais significativo da vida selvagem, dos animais domésticos e das DIEs [doenças infecciosas emergentes] em humanos”. Mais especificamente, a “crescente demanda por carne e produtos derivados da carne pela população humana tornou o contato humano com os animais sem precedentes”. Parte da solução deve ser “conservar áreas ricas em diversidade de vida selvagem, reduzindo a atividade antropogênica.”
A Associação de Saúde Pública Americana [American Public Health Association] pede uma moratória sobre a pecuária industrial. Na sequencia do surto de SARS de 2003, o jornal da associação publicou um editorial defendendo uma mudança na “forma como os humanos tratam os animais — basicamente, parando de comê-los ou, pelo menos, limitando radicalmente a quantidade deles que são comidos” como uma medida básica de saúde pública. “Tal mudança, se suficientemente adotada ou imposta, ainda pode reduzir as chances da tão temida epidemia de influenza.”

No momento, o mundo é relativamente afortunado, visto que as cadeias de suprimento de alimentos que sustentam a vida até então permaneceram intactas. Mas não há garantia de que os desastres naturais se espaçarão educadamente um após o outro, especialmente em uma era de mudanças climáticas. Imagine o surgimento simultâneo de uma doença zoonótica de veiculação hídrica durante uma grande inundação no sul da Ásia, enquanto as regiões do celeiro mundial sofrem secas simultaneamente. Um desastre dessa escala, qu e se torna mais provável com cada molécula de CO2 que entra na atmosfera, com cada micróbio que salta do animal para o humano, com cada milímetro de elevação do nível do mar, levaria a um sofrimento extraordinário.

Para limitar o impacto de futuras pandemias e, ao mesmo tempo, evitar a extinção em massa e mitigar as mudanças climáticas, devemos lutar para reestruturar nossos sistemas alimentares e deixar de lado a produção de carne. O relatório EAT-Lancet, escrito por trinta e sete estudiosos de saúde pública e cientistas ambientais em nome de uma importante revista médica, defende um aumento dramático no consumo de vegetais, frutas, grãos saudáveis e proteínas vegetais, e reduções drásticas na carne e laticínios.

Esses cortes ocorreriam predominantemente entre os ricos no mundo desenvolvido carnívoro, pois eles comem duas ou três vezes mais carne do que a média nos países pobres. Em algum momento, porém, nosso horizonte político deve imaginar dietas à base de plantas para quase todos. São as dietas insustentáveis que estão impulsionando o desmatamento para abrir espaço para mais pastagens em alguns dos lugares de maior biodiversidade do planeta, como a floresta amazônica. Se a maioria das sociedades fosse capaz de adotar a dieta Eat-Lancet, estima-se que 11 milhões de mortes por ano poderiam ser evitadas. A desnutrição seria evitada, minimizando as principais doenças não transmissíveis, como diabetes ou doenças cardíacas. Desistir da carne e restaurar vastas áreas da Terra — talvez até a metade, como sugere o polêmico conservacionista E. O. Wilson — deve fazer parte da agenda socialista.

Contar com vacinas, antibióticos e antivirais para lidar com epidemias futuras é como contar com a captura de carbono ou geoengenharia para salvar nossa sociedade baseada em carbono das mudanças climáticas. O PREDICT nunca pegaria todos os novos surtos, mesmo que não tivesse sido sabotado pela administração atual [administração de Trump]. O capitalismo não pode resolver os problemas que ele mesmo cria; A Big Pharma investe pouco em vacinas e antivirais porque os lucros suculentos estão nas doenças de afluência, como diabetes e disfunção erétil. No entanto, o que é mais preocupante é que os resultados podem ser elusivos, mesmo em campos bem financiados. A pandemia de HIV/AIDS, que matou 32 milhões de pessoas, mostra que nem todas as doenças podem ser resolvidas com uma vacina. Após o surto de SRAG em 2003, a Organização Mundial da Saúde declarou que “embora a ciência moderna tenha seu papel moderno, nenhuma das ferramentas técnicas mais modernas teve um papel importante no controle da SRAG... mais importantes no controle da SRAG foram as estratégias de saúde pública do século XIX de rastreamento de contato, quarentena e isolamento.” Como socialistas, devemos pensar estruturalmente e ser céticos em relação a “soluções” band-aid, “soluções” técnicas — especialmente porque a eficácia da medicina moderna parece estar diminuindo — e, em vez disso, ir diretamente à raiz do problema.

Deve ficar claro que a humanização da natureza não levou à reconciliação da humanidade com a natureza, mas antes à ruína de ambas. Devemos nos conscientizar dos limites da consciência humana — que nosso bem-estar está amarrado a sistemas naturais complexos que nunca compreenderemos completamente. Em vez da inconsciência do mercado dirigir a natureza e a sociedade, a esquerda deve se esforçar para administrar conscientemente os assuntos humanos, mas humildemente deixar muito da natureza auto-governada. Isso não é por causa de algum misticismo anti-científico, mas uma análise obstinada de como entramos nessa confusão.

Um novo socialismo construído em uma escala geológica ajudará os cientistas a alcançar o que eles não conseguem por conta própria. Para fazer isso, precisamos ver como as mesmas forças econômicas tóxicas estão no cerne das pandemias e das mudanças climáticas. Os socialistas não podem reconstruir o mundo antes de entenderem como ele foi desfeito. Essa compreensão surge não apenas do envolvimento com a ciência, mas também da crítica reflexiva. Como Jenner poderia ter observado, o “amor ao esplendor” e “as indulgências de luxo” da esquerda — seja carne, couro, animais de estimação ou produtos testados em animais — a impediram de ver sua cumplicidade na perigosa ruína da natureza.

Sobre o autor

Drew Pendergrass is a doctoral student in environmental engineering at Harvard University and the coauthor of Half-Earth Socialism, to be published by Verso in the spring of 2021.

Troy Vettese is an environmental historian and a William Lyon Mackenzie King postdoctoral fellow at Harvard University and the coauthor of Half-Earth Socialism, to be published by Verso in the spring of 2021.

30 de maio de 2020

O inimigo não é a China, mas sim o neoliberalismo

A resposta unida da China à Covid-19 é frequentemente pintada como um reflexo de "valores asiáticos" autoritários. Mas a mobilização coletiva contou com o apoio público real - uma trégua social temporária que hoje ameaça fraturar.

Isabella Weber, Hao Qi e Zhongjin Li


Pacientes com alta hospitalar da COVID-19 e profissionais médicos posam para fotos ao deixarem o hospital improvisado Wuchang Fang Cang, que é o mais recente hospital temporário fechado, em 10 de março de 2020 em Wuhan, província de Hubei, China.. Stringer / Getty

Tradução / Com base em tudo o que sabemos, a China tem sido relativamente bem-sucedida em conter a disseminação da Covid-19 no mercado interno além da província de Hubei. Muitos observadores atribuem isso ao seu autoritarismo: chega-se a proclamar que, devido à China, "um espectro está assombrando o Ocidente - o espectro do capitalismo autoritário". Sem barreiras de atuação colocadas por princípios democráticos ou direitos humanos, a China poderia, segundo o argumento, impor um bloqueio de estilo medieval por meio de vigilância cibernética; além de seu sistema político antidemocrático, a China se beneficiou dos valores asiáticos e de uma cultura coletivista.

Em uma palavra, trata-se de excepcionalismo chinês. Alega-se que a abordagem chinesa não seria possível nas sociedades democráticas ocidentais por causa de nossa preocupação com as liberdades individuais. O manejo da crise pela China é "desviado", assim como o próprio vírus foi inicialmente orientalizado como um "problema chinês". Sua experiência é, portanto, tornada irrelevante para aqueles que vivem nos Estados Unidos ou na Europa.

No entanto, esse foco em "autoritarismo" versus "democracia" ou "Leste" versus "Ocidente" perde o cerne da resposta Covid-19 da China. Alimenta a sinofobia, que vem aumentando drasticamente nos tempos da chamada Nova Guerra Fria. Em vez disso, para entender a forma como a China lidou com a crise da Covid-19, precisamos colocar sua resposta no contexto mais amplo da economia política.

Essa crise trouxe à tona a profunda integração da China ao capitalismo global, assim como sua fuga da neoliberalização via políticas de terapia de choque. Apesar de todos os seus limites, no centro da resposta da China à Covid-19 havia uma mobilização pública em larga escala para garantir suprimentos médicos e alimentos - semelhante à que alguns pediam nos Estados Unidos, invocando o exemplo da Segunda Guerra Mundial.

Fechando a oficina do mundo

Dada a profunda integração da China no capitalismo global, é surpreendente que o país tenha conseguido impor o que na época era considerado a maior quarentena da história, abrigando cerca de 760 milhões de pessoas. Essa paralisação inevitavelmente sacrificou o crescimento econômico, que o estado chinês enfatizou como a principal prioridade há décadas. A China teve sua indústria de exportação massiva interrompida quando todos os outros países continuavam suas atividades normalmente. Isso aconteceu no contexto da guerra comercial com os EUA, no qual grandes empresas multinacionais buscavam realocar suas cadeias de suprimentos para longe da China. A parada da Covid-19 arriscou acelerar esse processo.

Na China e em outros lugares, a concorrência caótica do mercado dominou na fase inicial do surto - dando lugar a especulação e escassez temporária semelhantes ao que pudemos observar em escala expandida nos Estados Unidos. A inflação dos preços dos alimentos já estava alta na China em janeiro por causa da gripe suína. Inicialmente, o bloqueio provocou compras movidas à pânico e a apreensão, como também foi observado nos Estados Unidos. A demanda súbita e urgente por máscaras e outros equipamentos de proteção individual (EPI) resultou em escassez, e alguns comerciantes particulares tentaram tirar proveito. A sociedade civil se esforçou para organizar doações de todo o país e do exterior.

O mercado competitivo falhou em fornecer os suprimentos médicos urgentemente necessários e garantir a distribuição de alimentos no estágio inicial da crise. Mais uma vez, observamos o mesmo nos Estados Unidos. A linha do tempo e o tratamento inicial do surto de Covid-19 pelas autoridades chinesas antes de 23 de janeiro são severamente contestados. Mas, uma vez que o governo central reconheceu a gravidade da situação, mudou para uma mobilização total. A China, pelo menos temporariamente, colocou as pessoas acima dos lucros - e passou para o modo conter desastres.

Recursos de todo o país foram atraídos para Wuhan, o epicentro do surto na China. Todo o tratamento com Covid-19 foi feito de graça. Como tem sido amplamente divulgado, hospitais de emergência foram criados em poucos dias. Mais de quarenta mil equipes médicas, a maioria proveniente de hospitais públicos de todo o país, chegaram para tratar pacientes com Covid-19. As pessoas em Wuhan experimentaram temporariamente um vislumbre de solidariedade que seguia uma lógica fundamentalmente distinta dos incentivos individuais e dos lucros privados.

O número total de leitos hospitalares na China mais que dobrou na última década, e o número médio de leitos por 1.000 habitantes na China (4,3) agora está próximo do nível médio da OCDE (4,71). Apesar do número de hospitais privados mais que triplicar desde 2009 e agora representam 26% de todos os leitos, hospitais públicos na China trataram mais de 95% dos pacientes com Covid-19 do país durante esta crise de saúde.

Nos últimos anos, a cobertura do seguro de saúde aumentou substancialmente para cerca de 95% da população da China. Mas os benefícios do seguro estão longe de serem iguais em tempos normais - e os custos tendem a ser altos. Nos primeiros dias do surto, essa falta de cobertura suficiente teve efeitos mais severos nas pessoas mais vulneráveis ​​que contraíram a Covid-19. Uma vez que o governo decidiu agir, a expansão do sistema público de saúde da última década, combinada com acesso temporariamente igual, facilitou o combate ao vírus.

A escassez de suprimentos médicos, de roupas de proteção, máscaras, kits de teste e termômetros infravermelho foi atenuada através de um esforço de produção essencialmente público. O sistema nacional de suprimentos médicos da China se mostrou fundamental: empresas estatais e controladas pelo estado assumiram a liderança na fabricação e distribuição de suprimentos médicos, e uma plataforma foi estabelecida para aprimorar o planejamento e coordenar compradores e vendedores em todo o país. Assim, a capacidade de produção de máscaras se multiplicou 5,5 vezes, de 20 milhões por dia para 110 milhões no mês de fevereiro. O primeiro kit de teste foi produzido em 24 de janeiro; até 11 de março, a China distribuiu 2,6 milhões de kits de teste diariamente. As agências comerciais do estado garantiram que as capacidades de produção privada fossem reunidas no esforço de mobilização. O governo prometeu agir como o comprador de último recurso para esses suprimentos médicos críticos, para aumentar o estoque nacional da China.

A China mobilizou seu sistema público de reservas, produção e distribuição de alimentos para poder aplicar a quarentena nacional. Os varejistas on-line foram em muitos lugares a interface com os consumidores. Porém, seus suprimentos foram apoiados por um programa estatal que determina que as cidades garantam acesso e segurança de alimentos que não sejam grãos, principalmente produtos frescos e carne. O sistema de reservas públicas em larga escala da China adquire grãos e outros alimentos básicos quando a oferta é alta e os preços baixos e libera estoques quando ocorrem escassez, como durante a crise da Covid-19. Uma rede de comitês de bairro que abrange todas as cidades organizou a entrega de alimentos, tentando garantir que todos os moradores fossem cobertos durante a quarentena.

Esses programas de provisão pública foram coordenados com big data, de tal forma que a maioria de nós se sente profundamente desconfortável e levanta sérias preocupações em relação à privacidade e às liberdades políticas. A tentativa de usar aplicativos para rastrear contatos e exposição à Covid-19 não é exclusiva da China, mas a abordagem da China se destaca por ser particularmente "difundida e invasiva".

Na China, como em outros lugares, a falta de medidas efetivas para conter a propagação do vírus provavelmente teria deixado os grupos mais vulneráveis ​​da sociedade a sofrer mais com a doença. Foi relatado que uma migrante rural infectada que ficou sem dinheiro para pagar pelo tratamento morreu nas primeiras semanas da crise. Sem a cobertura total de mobilização e assistência médica para os tratamentos com Covid-19, poderia haver centenas de milhares desses casos. Algumas estimativas sugerem que a China pode ter evitado 1,4 milhão de infecções e 56.000 mortes. Outros chegam ao ponto de afirmar que o estrito bloqueio da China salvou 10 milhões de vidas.

Integração da China nas cadeias globais de valor

No entanto, a mobilização total para lidar com a Covid-19 certamente não significa que a China passou a abrir mão de sua integração ao neoliberalismo global. De fato, no contexto de tensões internacionais elevadas, a posição subordinada da China nas cadeias de valor globais - implicando uma forte dependência de tecnologia estrangeira - mostrou brutalmente os limites de um esforço nacional. A divisão de trabalho EUA-China continua sendo em grande parte o que você pode ler nas costas de um iPhone: projetado na Califórnia, montado na China. Isso causou gargalos técnicos quando a China tentou mobilizar a produção de equipamentos médicos em larga escala. Na falta de componentes essenciais importados, a produção de ventiladores ficou aquém da demanda. Mesmo para máscaras cirúrgicas, a China depende das importações alemãs e japonesas de peças-chave para as máquinas que produzem tecidos fundidos por fusão, um material crucial para os filtros. Aumentar essa produção para atingir capacidade total exigiria coordenação internacional.

A maioria do trabalho de linha de frente na ação chinesa foi realizado por trabalhadores migrantes com baixos salários. Isso incluiu a célebre construção de novos hospitais, realizados por migrantes rurais mal pagos, presos na cidade de Wuhan durante o feriado do Ano Novo Lunar. No auge da mobilização da Covid-19, os trabalhadores de saneamento e entrega estavam trabalhando longas horas sob pressões extremas. As mulheres eram a maioria do corpo de trabalhadores da saúde na vanguarda da batalha da China contra a Covid-19.

É provável que o compartilhamento da custo da crise econômica resultante do novo coronavírus também reflita as desigualdades existentes, na China e em outros lugares. Embora a China seja um pouco menos desigual que os Estados Unidos, a desigualdade é um grande problema. Um relatório recente do Banco Popular da China mostra que 10% das famílias urbanas detêm metade de toda a riqueza familiar urbana. Sem dúvida, os mais de 200 milhões de trabalhadores migrantes da China são os que mais sofrem enquanto o país entra em sua própria crise de emprego de dimensões incertas. Muitos trabalhadores migrantes costumavam trabalhar no setor de exportação antes da pandemia. Com a economia global destruída, a China é desafiada a acelerar a reorientação de seu modelo econômico.

A crise da Covid-19 também atingiu milhões de trabalhadores com empregos na economia doméstica, como carona on-line e entrega de restaurantes. Uberizar o mercado de trabalho era uma maneira fácil de criar empregos, mas a precariedade desse emprego se deteriorou ainda mais na pandemia e agora representa um sério desafio.

O profundo choque da pandemia e a experiência de mobilização em massa, não incentivos individuais, reviveram a questão do futuro da reforma da China. Algumas vozes proeminentes da Nova Esquerda da China chegaram ao ponto de argumentar que a guerra do povo contra a Covid-19 forneceu um modelo para um futuro diferente. Isso parece prematuro. Antes, a necessidade de amplos ajustes econômicos que esta crise econômica global está exigindo está abrindo um vasto terreno para contestações. Os reformadores já se organizaram para pedir mais e mais profunda mercantilização da economia, para proteger a integração da China no neoliberalismo global.

Na China, como em todo o mundo, a pandemia está exigindo mudanças sociais e econômicas de longo alcance. A direção que isso tomará está sujeita a lutas ferozes; e o resultado também dependerá de nossa leitura de como as sociedades lidaram com o surto de Covid-19 e das lições que dele extraímos. Em vez de excepcionalizar e diferenciar a China, os progressistas em todo o mundo precisam enxergar além da lógica do nacionalismo e reconhecer a interconectividade de nossas lutas. O inimigo nesta pandemia não é a China, mas a desigualdade e a lógica do lucro sobre as pessoas.

Colaboradores

Isabella Weber é autora de How China Escaped Shock Therapy e professora assistente de economia na University of Massachusetts Amherst.

Hao Qi é professor associado da Escola de Economia da Renmin University of China.

Zhongjin Li é professor assistente de economia na University of Missouri Kansas City.

28 de maio de 2020

Como a Viena Vermelha revolucionou Sigmund Freud

Sigmund Freud frequentemente lamentava o fato de a maioria de seus pacientes pertencer às classes superiores. Mas quando os socialistas tornaram Viena "Vermelha" após a Primeira Guerra Mundial, os neuróticos ricos e pobres ganharam acesso a tratamento gratuito e novos métodos experimentais.

Phillip Henry


Sigmund Freud lamentava com frequência o fato de que a maioria dos seus pacientes pertencia às classes abastadas.

Tradução / Em setembro de 1918, nos últimos dias da Grande Guerra, Sigmund Freud estabeleceu uma nova missão para o movimento da psicanálise. Em sua fala ao primeiro congresso psicanalítico desde o começo da guerra, Freud reconheceu os impedimentos que restringiam seu trabalho terapêutico. Limitados pelas “necessidades de nossas existências” ao tratar as “classes abastadas”, os psicanalistas não podiam “fazer nada pelas camadas sociais mais amplas, que sofrem de neuroses extremamente graves”. No entanto, tais limitações precisavam ser superadas.

Freud argumentou que as neuroses eram uma ameaça à saúde da nação tanto quanto a tuberculose – e também pouco podiam ser deixadas “ao cuidado impotente de membros individuais da comunidade”. Voltando seu olhar para a situação iminente pós-guerra, Freud previu com segurança que a “consciência da sociedade vai despertar” para o direito do “homem pobre” a um tratamento para sua mente. Quando isso acontecesse, novas instituições, compostas por médicos analiticamente treinados, seriam fundadas, oferecendo tratamento gratuito às grandes massas. Por mais distante e “fantástica” que essa perspectiva parecesse em meio à devastação da guerra, Freud insistia que “mais dia menos dia… vamos chegar a este ponto”.

Nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, a terapia analítica e o privilégio burguês andavam de mãos dadas – cristalizando uma imagem que persiste até hoje da psicanálise como instrumento de preservação das classes alta e média alta. Em 1895, Freud observou que seus pacientes pertenciam a “uma classe social educada e letrada”, acrescentando uma década mais tarde que a terapia analítica era idealmente adequada para indivíduos “valiosos” que possuíam “um certo nível de educação e um caráter bastante confiável”.

Além disso, o progresso técnico pouco fez para alimentar as esperanças de sua aplicação mais ampla: quanto mais os princípios de sua prática eram refinados, mais árdua e demorada se tornava a terapia analítica. O resultado foi uma postura de aceitação resignada que beirava a capitulação. “Pobres e socialmente impotentes, e compelidos a ganhar nosso sustento com nossas atividades médicas”, escreveu Freud em 1917, “nem mesmo estamos em posição de estender nossos esforços a pessoas sem recursos... Nossa terapia consome muito tempo e é muito trabalhosa para que isso seja possível.”

No entanto, no congresso apenas um ano depois, Freud ressoou uma nota radicalmente diferente – colocando a psicanálise em um caminho de reinvenção experimental, agora a serviço da justiça social. “Nunca nos orgulhamos da integridade e finalidade de nosso conhecimento e capacidade”, ele insistiu; em vez disso, “[nós] estamos tão prontos agora quanto estávamos antes… [para] aprender coisas novas e alterar nossos métodos de quaisquer maneiras que possam melhorá-los.” Para os jovens analistas que se inspiraram nessas palavras, o desafio central e definidor do freudismo entre guerras seria criar uma psicanálise para as massas. De seus esforços para expandir as possibilidades da terapia analítica, um novo movimento psicanalítico emergiria – aquele cujo destino estava intimamente ligado ao da social-democracia.

Estados de bem-estar no pós-guerra

Freud estava longe de ser o único a imaginar um futuro mais progressista no final da guerra. Na Europa Central, a guerra total empurrou as sociedades combatentes à beira do colapso moral e físico. Os governos estavam se desintegrando sob pressão e a derrota militar minou fatalmente a legitimidade das monarquias estabelecidas. Mas com o colapso do antigo, também surgiram esforços notavelmente ousados para imaginar e criar o novo.

Em meio a uma onda democrática que iria estourar e quebrar nas revoluções do pós-guerra, varrendo as monarquias dos Habsburgo e Hohenzollern, muitos especialistas buscaram formas igualitárias de longo alcance de intervenção estatal para restaurar a estabilidade social. Em propostas de recuperação que serviram de modelo para uma nova ordem social, os social-democratas e seus aliados lançaram as bases imaginativas dos estados de bem-estar democráticos do pós-guerra.

As alianças políticas pessoais de Freud residiam no liberalismo (“Eu continuo sendo um liberal da velha escola”, ele escreveria em 1930). No entanto, seu discurso de 1918 alinhou a psicanálise com o espírito democratizante e igualitário da época. Tanto como programa econômico quanto político, o liberalismo emergiu da guerra profundamente desacreditado, seus valores tímidos substituídos por novos imaginários totalizantes e coletivistas. A convulsão social exacerbou a crise ideológica. À medida que as privações materiais reduziam seu padrão de vida e a inflação galopante consumia suas economias, muitos burgueses foram dominados pelo que o amigo e seguidor de Freud, Sándor Ferenczi, chamou de medo de “nossa proletarização iminente”.

“Toda a energia de uma pessoa”, Freud escreveu a seu discípulo Karl Abraham, “é dedicada a manter o seu nível econômico”. As bases da ideologia liberal desmoronaram com as bases da segurança material burguesa, forçando Freud a olhar além de sua própria classe para garantir a sobrevivência de sua profissão. A própria viabilidade da prática clínica parecia estar em questão. Como as novas repúblicas democráticas da Áustria e da Alemanha, o futuro da psicanálise parecia estar com as massas.

Mas a guerra também criou uma urgente necessidade de intervenção psicoterapêutica em massa. Desde o início, a guerra havia produzido uma verdadeira epidemia de distúrbios nervosos nos exércitos. À medida que o espectro do colapso total (militar e social) se tornava mais ameaçador no último ano da guerra, começaram a circular relatórios sobre a aplicação bem-sucedida de formas modificadas de psicanálise no tratamento das neuroses de guerra.

Para o psiquiatra alemão Ernst Simmel, uma técnica analítico-catártica simplificada, combinando hipnose com associações livres, lhe permitiu resolver os sintomas dos neuróticos de guerra em um simples punhado de sessões. Convidado a apresentar seu trabalho diante do congresso psicanalítico de 1918 – um evento patrocinado e assistido por autoridades civis e militares intensamente interessadas – Simmel afirmou que seu método resumido e combinado poderia um dia ser implementado no que ele chamou de “clínica mental do futuro”. Com a aplicação em massa da terapia analítica na guerra, um novo horizonte de possibilidades se abriu, um que falava diretamente às necessidades urgentes da sociedade em um momento de dissolução.

A “Viena Vermelha”

Seis semanas após o congresso, a guerra chegou ao fim. As terríveis condições levaram Freud a lamentar amargamente (e ironicamente) a Ferenczi que “aa psicanálise começar a interessar o mundo mais por causa das neuroses de guerra do que por causa do fim da guerra.” Na verdade, porém, a psicanálise estava prestes a experimentar uma expansão profunda, um renascimento dramático, à medida que uma geração mais jovem se infiltrava em suas fileiras no pós-guerra.

Para esses novos convertidos, escreve a historiadora Elizabeth Ann Danto, a psicanálise era um “desafio aos códigos políticos convencionais, uma missão social mais do que uma disciplina médica”. Enquanto os membros mais radicais dessa nova geração viam na psicanálise um programa para a emancipação da convenção burguesa, suas aspirações radicais – como mostra Danto e o historiador Eli Zaretsky – foram colocadas como pano de fundo de um amplo consenso social democrata que unia a profissão. Independentemente, todos os psicanalistas compartilhavam um profundo compromisso com a missão social que Freud delineou em 1918.

O espírito socialmente progressista da psicanálise no início da guerra foi capturado em dois experimentos educacionais notáveis que foram fundados nos arredores de Viena em 1919. No primeiro deles – um orfanato organizado pelo jovem socialista Siegfried Bernfeld para várias centenas de órfãos judeus refugiados – a psicanálise foi abraçada como uma base indispensável para a “nova educação” que ele e seus colegas professores buscavam realizar. “Se não tivéssemos encontrado um guia na teoria freudiana das pulsões, teríamos permanecido totalmente no escuro”, ele escreveu. Animados por um coletivismo antiburguês, as aspirações educacionais do orfanato contrastavam marcadamente com a outra experiência do pós-guerra na “pedagogia de massas” dirigida por August Aichhorn, um educador que, como Bernfeld, ingressou no treinamento psicanalítico depois da guerra.

O instituto de bem-estar educacional de Aichhorn para jovens delinquentes refletia sua sensibilidade política mais tradicional, que aspirava não transcender, mas sim restaurar a família nuclear. No entanto, como o experimento de Bernfeld, o de Aichhorn respirou o espírito progressista da nova era, tanto em seu etos anti-autoritário quanto em seu compromisso com o bem-estar social. Descrevendo a assistência psicopedagógica prestada por seu instituto financiado pelo Estado, Aichhorn argumentou que se antes, tal apoio “originou-se de uma sensibilidade caritativa e foi um ato voluntário”, hoje era “um dever, um reconhecimento do direito que a sociedade tem com o indivíduo”. Longe de serem definidos como contra o Estado, os direitos do indivíduo, para Aichhorn, eram inseparáveis de um maior grau da intervenção estatal.

O momento pós-guerra foi social-democrata, e o movimento psicanalítico foi levado junto com a corrente progressista da época. Em nenhum lugar o poder desta corrente era mais evidente na Europa Central do que em Viena, onde, em 1920, o Partido dos Trabalhadores Sociais-Democratas (SDAP) assumiu o controle da política municipal do conservador e antissemita Partido Social Cristão, a força dominante na política nacional.

A Viena Vermelha, como veio a ser conhecida, foi a peça central de uma estratégia política que visava a superação pacífica do capitalismo por meio da luta democrática e da elevação cultural das massas. Projetado como uma antecipação da futura utopia socialista, um município social democrata foi uma conquista ao mesmo tempo material e ideológica. Em seus enormes complexos de apartamentos alugados (“Palácios do Povo”), sua rede de clínicas de saúde e aconselhamento de baixo custo e suas incontáveis iniciativas educacionais progressistas, a Viena Vermelha combinou melhorias concretas na vida dos trabalhadores com o objetivo de produzir uma nova humanidade socializada e solidária.

A proximidade com essa cultura política da social-democracia teria um efeito notavelmente galvanizador para o movimento psicanalítico, ajudando a inspirar o que a analista Helene Deutsch chamou de “revolucionários” da segunda geração. No entanto, para alguns freudianos, Berlim proporcionou um ambiente mais agradável para combinar a psicanálise e a política radical. Para o analista socialista Otto Fenichel, que emigrou de Viena para Berlim em 1920, os analistas mais jovens eram “crianças travessas”, desafiando as críticas de seus colegas conservadores mais velhos. A distância de Freud e da velha guarda em Viena, escreveu seu amigo Wilhelm Reich, proporcionou uma atmosfera na qual analistas mais rebeldes sentiam que podiam “respirar mais livremente”.

Uma atração ainda maior, no entanto, foi a criação do primeiro programa de treinamento psicanalítico formalizado em Berlim, oferecendo o que o historiador George Makari chama de “a educação mais rigorosa e estruturada em psicanálise no mundo”. O Instituto Psicanalítico de Berlim foi fundado em 1920. A peça central tanto do programa de alcance social quanto para o programa de treinamento do novo instituto foi a primeira clínica psicanalítica ambulatorial a oferecer tratamentos gratuitos ou de baixo custo aos desprivilegiados.

A Policlínica de Berlim foi a primeira, mas outras sociedades foram rápidas em seguir seu exemplo. Entre as guerras, relata o escritor Christopher Turner, pelo menos uma dúzia de clínicas semelhantes seriam fundadas em todo o movimento psicanalítico internacional. Em 1922, com a assistência do SDAP, Viena abriu o seu próprio – o Ambulatorium. “Por fim”, escreve Danto, “todos os analistas trataram gratuitamente pelo menos um quinto de seus pacientes, um costume tácito compartilhado até pelos médicos mais talentosos de Viena”.

Imensamente popular entre o público em geral, as novas clínicas adotaram uma abordagem mais funcionalista ao tratamento – evidente, observa Danto, no contraste impressionante entre a simplicidade sem adornos dos consultórios policlínicos, projetados pelo arquiteto de Freud, filho de Ernst Simmel, e o ornamentalismo luxuoso do escritório do psicanalista na Berggasse nº 19. “Um posto avançado, sofisticado porém modesto, para uma campanha militar contra os distúrbios nervosos.” Para Turner, a Policlínica privilegiou o conhecimento prático e a eficiência na restauração do bem-estar mental.

Além da prática liberal

Por mais inovadoras e ambiciosas que fossem, as novas clínicas ambulatoriais lutaram para lidar com o influxo (“não sabíamos como lidar com isso”, relembrou Reich). Apesar dessas limitações, que deixaram Reich convencido da futilidade de tratar os problemas coletivos por meio da terapia individual, a luta para desenvolver uma “terapia para as massas” daria origem a uma nova psicanálise.

O próprio trabalho de Reich com pacientes indigentes no Ambulatorium de Viena é um dos testemunhos mais marcantes dessa transformação. Trabalhando com casos severos – psicóticos borderlines –, Reich diferenciaria os “bons sintomas burgueses” nos estudos de Freud antes da guerra de histéricos reprimidos e neuróticos obsessivos e os distúrbios mais profundos dos de “caráter impulsivo” que ele tratou. Em contraste com os sintomas “circunscritos” dos neuróticos burgueses, para Reich os “neuróticos do caráter” das classes baixas eram oprimidos por seus distúrbios.

Ecoando Aichhorn, Reich insistiu que a causa fundamental dos distúrbios caracterológicos que ele enfrentou foi a maior exposição infantil de seus pacientes à miséria material e a um ambiente social brutal. Com a ênfase deslocada para o ambiente, as neuroses assumiram uma nova roupagem. Tendo sido anteriormente consideradas expressões de individualidade única, com base na história de vida pessoal do paciente, elas passaram a figurar cada vez mais no pensamento psicanalítico como reflexos impessoais de patologias sociais e políticas mais amplas.

O trabalho de Simmel com neuróticos de guerra sinalizou o surgimento dessa nova perspectiva. Mas, à medida que mais analistas olhavam para além das margens protegidas da esfera familiar burguesa – na verdade, quando essa esfera começou a desmoronar – a importância etiológica das forças do ambiente passou a figurar de forma mais proeminente no pensamento psicanalítico. (O surgimento contemporâneo da teoria social psicanalítica atesta a mesma tentativa de lidar com uma sociedade volátil e ameaçadora.). O escopo da psicanálise estava se ampliando – e novos assuntos e tipos de sofrimento estavam cada vez mais excluindo a norma do burguês neurótico adulto (histérico ou obsessivo). As clínicas gratuitas foram um importante espaço para essa redefinição, mas em um momento de expansão e diversificação profissional, estavam longe de ser únicos.

O trabalho terapêutico e educacional de Anna Freud com crianças foi um desses momentos. Colaboradora próxima de Aichhorn e Bernfeld, Anna Freud desenvolveu uma abordagem distinta para o tratamento de distúrbios infantis de meados da década de 1920 em diante. Contra a escola mais conservadora de psicanálise infantil que floresceu em Londres em torno da figura de Melanie Klein, Freud e seus seguidores insistiram na importância dos fatores sociais na compreensão clínica e no tratamento das neuroses infantis.

Inspirada pelas reformas educacionais e de bem-estar social na Viena Vermelha, que se esforçou para estabelecer regimes mais racionais e empáticos de cuidado infantil e instrução primária, Anna Freud insistiu que o ambiente da criança era a solução, bem como a causa de seu sofrimento. “Facilitamos a tarefa de adaptação da criança”, escreveu, “à medida que nos esforçamos para ajustar o ambiente ao seu redor”. Como o trabalho experimental de Anna Freud com crianças indicou – junto com as inovações técnicas de Reich, Ferenczi e Simmel (este último diretor de uma clínica de internação para casos graves que durou pouco) – as políticas terapêuticas da psicanálise seguiam seu fluxo.

Projetada para um sujeito burguês independente, a terapia analítica clássica era uma prática liberal, que limitava a autoridade do analista a fim de preservar a autonomia e a individualidade do paciente. No entanto, foi liberal também nas exclusões que impôs. Destinada apenas a pacientes com um certo grau de interdependência pessoal, literatos e com segurança material, aqueles cujos distúrbios eram mais profundos e que careciam de recursos privilegiados estavam, com raras exceções, inteiramente fora de seu alcance.

No entanto, o entre guerras testemunhou uma série de tentativas ambiciosas de romper os limites construtivos impostos à terapia analítica por seus princípios liberais. Em seu discurso de 1918, Freud havia especulado que (por razões de eficiência) o “ouro puro da análise” poderia ter que ser suplementado pelo “cobre da sugestão direta” e até mesmo pela influência hipnótica nas novas clínicas gratuitas. Embora Freud rapidamente tenha recuado para a ortopraxia analítica (“provavelmente continuarei fazendo análises ‘clássicas”’, disse a um decepcionado Ferenczi), outros analistas seguiram em frente. Enquanto o imperativo de alcançar os estratos sociais mais amplos impeliu os freudianos a experimentar o desenvolvimento de métodos mais eficientes, as diferentes ordens de sofrimento e tipos de sujeito que eles encontraram exigiam um repensar dos meios e fins da terapia analítica.

“Se um neurótico adulto veio ao seu consultório para pedir um tratamento”, Anna Freud escreveu em 1927, “e um exame mais minucioso prova que é tão impulsivo, pouco desenvolvido intelectualmente e profundamente dependente de seu ambiente quanto os meus pacientes infantis, você provavelmente diria que ‘a análise freudiana é um método excelente, mas não foi projetada para essa pessoa”’. Concebidas (como as reformas na Viena Vermelha) para um assunto mais vulnerável e dependente do que a análise liberal clássica, as novas técnicas desenvolvidas ofereceram aos pacientes um maior grau de apoio emocional e orientação pedagógica.

Ainda assim, eles também eram, em muitos casos, abertamente normativos e disciplinares, voltados para o realinhamento de sujeitos desviados das normas sociais (muitas vezes por meio da reconstrução de um superego socialmente adaptado no modelo do próprio analista). A psicanálise clássica, ao contrário, objetivava apenas capacitar o paciente a escolher como resolver os conflitos subjacentes trazendo as forças em conflito à consciência. Os métodos pós-clássicos concebidos pelos reformadores, no entanto, visavam salvaguardar tanto o ego frágil de um ambiente social patogênico quanto a própria sociedade das forças poderosas da psique.

Como os críticos apontaram, havia um perigo nisso – o perigo de que (esquecendo as lições do inconsciente) a psicanálise pudesse se degenerar em um método pedagógico para adaptar os indivíduos à sociedade. Em um marcante contraste com seus críticos kleinianos e lacanianos, a psicanálise centro-europeia progressista que foi além dos limites da prática analítica liberal estava igualmente comprometida em alterar o ambiente social para atender às necessidades do indivíduo.

Em seu aspecto duplo, refletia os paradoxos da cultural política social democrata que emergiu na Viena Vermelha, onde o cultivo do apoio às vítimas da violência social se juntou ao paternalismo benevolente. Em um nível mais profundo, as revisões contemporâneas da psicanálise internalizaram o contrato social pós-liberal do estado de bem-estar social democrata, um contrato no qual os direitos ampliados do indivíduo eram baseados no poder ampliado do Estado sobre a sociedade.

Abertura em direção à liberdade

A psicanálise deu uma guinada para a esquerda no início da guerra, mas os freudianos nem sempre foram recebidos com um abraço de boas-vindas na Viena Vermelha. Enquanto um punhado de vínculos “promissores”, nas lembranças de Anna Freud, se desenvolveram entre o município socialista e o movimento psicanalítico, eles permaneceram apenas isso – “promissores”. A liderança socialista da Viena Vermelha estava dividida entre ver a psicanálise como um recurso valioso em sua luta para criar uma vida melhor para as pessoas e uma responsabilidade política por conta de sua ênfase perturbadora na sexualidade. (O famoso pessimismo cultural de Freud também reforçou o ceticismo de muitos socialistas.). Ao trabalharem nas instituições da Viena Vermelha, os social-democratas geralmente optavam por psicólogos individuais adlerianos – fornecedores de uma psicologia unidimensional e teimosamente otimista de conformidade social – preterindo seus rivais, os freudianos. O que a social-democracia falhou em fornecer em apoio material, entretanto, ela mais do que compensou no reino do espírito.

Com a destruição das democracias na Alemanha e na Áustria – e a proibição dos partidos social-democratas pelo nazismo e o austrofascismo no início dos anos 1930 – a cultura progressista da psicanálise do entre guerras também se desvaneceu. O fato de ter sido destruído pela irracionalidade da sociedade que pretendia tratar foi profundamente castigador e delusório. No início da Guerra Fria, uma psicanálise mais cautelosa e conservadora dominaria a Associação Psicanalítica Internacional.

No entanto, a luta para criar uma psicanálise para as massas foi um experimento com lições valiosas para o presente. Nutridos pela social-democracia, os psicanalistas começaram a pensar em seu trabalho prático e terapêutico além das limitações do liberalismo. Para olhar a questão de uma maneira um pouco diferente, eles começaram a ver no socialismo a única possibilidade de alcance dos direitos pessoais e da liberdade individual que o liberalismo ao mesmo tempo defendeu e excluiu.

Foi nas novas clínicas gratuitas, escreveu Simmel, que a pessoa sem privilégios desfrutou primeiro do “direito e da possibilidade de suportar a profundidade de sua vida mental inconsciente em uma conversa livre e descomplicada”. Uma demanda impossível mesmo dentro do horizonte progressista do período entre guerras, “o direito do homem pobre” ao tratamento de sua mente foi, no entanto, um portal para imaginar um futuro melhor.

Sobre o autor

Phillip Henry é pós-doutorando em Shenzhen, China. Atualmente, ele está escrevendo a história da psicanálise entre as guerras.

Controle de curva de juro


Ao empinar a curva, o mercado pode anular o efeito expansionista da queda da Selic

Nelson Barbosa


Em tempos normais, o Copom fixa a taxa de juro de curto prazo, e o mercado determina a taxa de juro de longo prazo.

Considerando os títulos do governo, a taxa de longo prazo é uma média ponderada das taxas de curto prazo esperadas para o cada período (um ano, dois anos etc.), mais um prêmio de risco.

A média é calculada em termos geométricos, mas podemos simplificar isso usando logaritmo (fique comigo mais algumas linhas).

Por exemplo, suponha que a Selic seja de 3% em log neste ano e a expectativa de mercado seja Selic de 2% em log para o próximo ano. Nesse caso, se o investidor não se importa com risco, a taxa de juro de dois anos deve ser de 2,5% em log.

Traduzindo do economês, ao analisar uma aplicação de dois anos, o retorno esperado de comprar e carregar um título de dois anos deve ser igual a comprar um título de um ano e reaplicar o dinheiro, dentro de 12 meses, em outro título de um ano.

Dado que a maioria dos agentes é avessa ao risco, o título de dois anos acaba pagando mais do que 2,5%, e nós, economistas, chamamos isso de prêmio de risco. A curva de juro é a relação entre taxa de juro e o prazo da aplicação.

Quando o BC reduz a Selic, a taxa curta cai, mas a taxa longa pode subir se o mercado achar que o BC terá que compensar o juro mais baixo de hoje com juro mais alto no futuro. A taxa longa também pode subir se o mercado achar que o futuro ficou mais incerto e, portanto, quiser mais prêmio de risco.

O que aconteceu no Brasil? O BC cortou a Selic e deve repetir a dose dentro de algumas semanas. Diante disso, a taxa de juro de curto prazo caiu, mas a resposta inicial do mercado foi elevar as taxas de juro de longo prazo.

Pode ser que o mercado ache que o BC voltará a subir a Selic dentro de um ano. Mas também pode ser que o risco-país tenha subido muito devido à incerteza política e fiscal associada ao governo Bolsonaro.

Seja qual for o motivo, o custo de crédito para empresas, famílias e governo é mais influenciado pela taxa longa do que pela taxa curta de juro. Assim, ao “empinar a curva”, o mercado pode anular o efeito expansionista da queda da Selic.

Para evitar volatilidade excessiva das taxas longas de juro, o BC pode intervir no mercado de títulos públicos, o que nós, economistas, chamamos de “controle de curva”.

No contexto atual, a ação seria de compra. O BC poderia fazer leilões de compra de títulos públicos de longo prazo, aumentando o seu preço e reduzindo a taxa de juro correspondente.

Intervenção nas taxas de juro de longo prazo é, sem dúvida, uma medida heterodoxa. Ela tende a ser adotada somente em condições excepcionais, como fizeram os EUA e o Japão após a crise de 2008.

Mais recentemente, o banco central da Austrália aderiu à heterodoxia e anunciou que manterá a taxa de juro de um dia a três anos em 0,25%. Em outras palavras, o BC australiano disse que “paga o que for” por títulos de renda fixa para segurar a taxa de juro de até três anos em 0,25%.

Como seria no Brasil? Assim como lá fora, podemos intervir nas taxas longas, sobretudo agora que a “PEC do Orçamento de Guerra” diminuiu a incerteza jurídica para o BC comprar e carregar títulos públicos até o vencimento. Se isso vai ou não acontecer, depende do mercado e do BC.

Por enquanto, as taxas de juro longo subiram, mas no horizonte de até cinco anos elas ainda estão mais baixas do que no fim de 2019. A expectativa de recessão é tão grave, e a de inflação, tão baixa, que isso mais do que compensou a elevação do risco fiscal e político nos próximos cinco anos.

Folha de S.Paulo

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

27 de maio de 2020

Quem dá a última palavra?

É preciso reafirmar: não existe intervenção militar constitucional

Fernando Neisser, Lenio Luiz Streck e Marco Aurélio de Carvalho

Folha de S.Paulo

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta e discursa para apoiadores em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília; parte dos manifestantes pedia intervenção militar e um "novo AI-5" - Pedro Ladeira - 19.abr.20/Folhapress

​Desde a captura por setores da extrema direita da indignação que foi às ruas em julho de 2013, ouve-se, aqui e ali, rumores de que a Constituição Federal oculta uma válvula de escape: a intervenção militar constitucional.

​A expressão é um oxímoro, um paradoxo. Assim como a “dor que desatina sem doer”, de Camões, ou as “mentiras sinceras”, de Cazuza, a contradição interna de um conceito, quando muito, tem valor apenas na fantasia. Ou no pesadelo.

​Não existe intervenção militar constitucional. É preciso reafirmar tantas vezes quanto necessário. E o motivo é simples, pois nossa Carta previu exatamente a quem cabe resolver conflitos sobre a interpretação das suas próprias regras: o Supremo Tribunal Federal.

​Em seu artigo 102, diz-se, com todas as letras, que é a principal tarefa do STF promover a guarda da Constituição. Como o ministro Marco Aurélio Mello diz com frequência, entendeu o constituinte por dar ao STF o poder de errar por último. Pode-se até pensar —e há liberdade para isso— que o STF erra ao aplicar essa ou aquela norma constitucional. Mas não se pode admitir que haja alguma autoridade, acima do STF, com poderes legítimos para dizer: não irei cumprir.

​Quem equivocadamente defende que as Forças Armadas pairam como juiz soberano, pronto a subjugar o STF se discordar da corte, costuma escorar-se no artigo 142 da Constituição Federal. Em seu trecho final, diz que cabe às Forças Armadas, a pedido de algum dos Poderes, garantir a lei e a ordem.

​É sabido e consabido na hermenêutica que não se interpreta por partes. Esse artigo 142 integra a Constituição, é parte dela, e deve ser interpretado em harmonia com os demais, que preveem, expressamente, que o poder emana do povo, que o exerce por seus representantes. Qualquer manual de direito constitucional mostra que isso está consubstanciado no que se chama de Unidade da Constituição. Nenhuma norma constitucional dá às Forças Armadas a missão de exercer um fictício "Poder Moderador".

​Mas então, para que serve o tão falado artigo 142?

​Simples, para dar suporte às funções atípicas das Forças Armadas. Originalmente pensadas para proteger o país contra incursões externas, podem também cumprir missões ligadas à segurança pública, interna, em determinadas situações.

​O tema é devidamente regulado pela lei complementar 97/99 e, nos últimos anos, habituamo-nos a ver as Forças Armadas nesse tipo de missão, chamadas de “Garantia da Lei e da Ordem”. O próprio Ministério da Defesa destaca exemplos desta atuação na Rio + 20, na Copa das Confederações, na Copa do Mundo e na Olimpíada do Rio de Janeiro. Nada mais do que isso. Não há atalho que permita descumprir as decisões soberanas do STF sobre as questões constitucionais.

​Mas de onde vem, então, a argumentação dos que defendem essa leitura do artigo 142?

​Sem dúvida, da tentativa de ganhar, no replay, uma briga jurídica perdida há décadas: aquela que se travou, na Alemanha do entreguerras, entre Carl Schmitt e Hans Kelsen. Resumidamente, o debate girava em torno de saber quem dava a última palavra na guarda da Constituição: uma corte constitucional ou o presidente.

Para Carl Schmitt, esse poder deveria ser do presidente, que representaria a vontade viva do povo em um certo momento histórico. E essa vontade não podia encontrar qualquer limitação.

​Kelsen, de outro lado, entendia a Constituição como um conjunto de regras representando um consenso obtido na fundação do Estado. Esse consenso mínimo haveria de ser preservado e protegido. As normas não poderiam obter legitimidade fora da Constituição.

A história deu razão a Kelsen. As ideias de Carl Schmitt deram amparo ao horror estabelecido na Alemanha nazista, enquanto a reconstrução europeia e mundial, em grande medida, valeu-se da proposta de Kelsen de estabelecer cortes constitucionais estabilizadoras dos sentidos das respectivas Constituições. Afinal, Kelsen fora o mentor-construtor do Tribunal Constitucional da Áustria, no qual, aliás, atuou.​

Também no Brasil esse debate se travou. Reportagem desta Folha expôs as discussões da constituinte em torno do artigo 142 e a tentativa de manter aberta uma porta ao autoritarismo.

​E ainda que não tenhamos adotado integralmente as sugestões de Kelsen quanto ao controle de constitucionalidade, vez que mantemos a possibilidade de controle difuso pelos demais juízes, é fora de dúvida que, neste ponto, prevaleceu sua visão: a guarda da nossa Constituição cabe ao STF, e não ao presidente da República ou às Forças Armadas.

Sobre os autores
Fernando Neisser

Doutor em direito pela USP, presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) e sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados

Lenio Luiz Streck

Doutor em Direito pela UFSC, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB e advogado sócio de Streck & Trindade Advogados Associados

Marco Aurélio de Carvalho

Advogado especializado em direito público e em direito notarial e de registro

26 de maio de 2020

"Espanque os fascistas onde quer que os encontre"

Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, o movimento fascista da Grã-Bretanha começou a se reconstruir novamente - um novo livro conta a história de como um grupo de jovens judeus se organizou para expulsá-los das ruas

Marcus Barnett

Jacobin


Tradução / Poucos períodos do passado recente da Grã-Bretanha escaparam da desmitificação com mais sucesso do que a época do pós-guerra. Quando discute os cinco anos anteriores a 1950, a maioria das pessoas de praticamente todas as tendências políticas concorda com a percepção geral sobre aqueles anos – uma Grã-Bretanha que era destemida e otimista; pobre, mas ascendente; austera, mas reformando-se para adequar a uma nova era, mais humana e ciente de suas responsabilidades morais, depois de ter sido a força política que interrompeu o massacre dos judeus europeus.

Mas a realidade daquele período era um pouco diferente. Na alta sociedade, figuras como a escritora do Grupo de Bloomsbury, Elizabeth Bowen, ainda se sentiam confortáveis para concordar com velhas teorias da conspiração sobre os judeus bolcheviques e avisava aos seus leitores que votar no Partido Trabalhista era votar para ser “governado por judeus e galeses”. Os graves desabastecimentos de combustíveis que ocorreram durante o governo trabalhista tiveram como bode expiatório Manny Shinwell, o político trabalhista judeu mais proeminente da época, e a crescente raiva por causa das mortes de soldados britânicos no Mandato Britânico da Palestina levou a violentos tumultos contra os judeus nas principais cidades em 1947.

Debaixo das pedras

Enquanto os exércitos dos Aliados acabaram com o Holocausto, a Grã-Bretanha estava presa na guerra e aprendendo as lições em um longo caminho de aprendizado. As condições para um novo fascismo estavam maduras. Ainda assim, o Ministério do Interior – mesmo um comandado por Clement Attlee, um homem que teve um batalhão das Brigadas Internacionais nomeado em sua honra – parecia mais preocupado com os direitos dos fascistas do que com as comunidades ameaçadas.

Nenhuma ação foi tomada para restringir as atividades daqueles que teriam governado uma Grã-Bretanha ocupada pelo nazismo; em 1946 o jornal pró-trabalhista Reynolds News denunciava amargamente que a Grã-Bretanha era “o único país na Europa fora Espanha ou Portugal em que alguém pode pregar o fascismo sem ressalvas e com completa proteção policial”.

Chuter Ede, o Secretário do Interior, acreditava que os fascistas deveriam ser deixados “para o senso de humor do povo britânico”. Mas essa bobagem não era nada engraçada para a comunidade judaica britânica, cujo humor, disse Jules Konopinski ao Tribune, era “muito, muito delicado”.

Nascido em uma família judia em Wroclaw, no então território alemão de Breslau, Konopinski e sua mãe fugiram para a Inglaterra em 1939 sem o seu pai, que foi detido pelos nazistas no final de 1938 (mas depois escapou). Ele perdeu nove tios e tias no Holocausto, e um tio que sobreviveu foi morar com eles em Londres. “Minha família aqui de repente percebeu que perdeu muita gente. Quando descobriram como perdemos eles, ficou ainda pior”.
Manifestação fascista com a participação de Oswald Mosley em Ridley Road, 1947.

Enquanto milhares de pessoas estavam de luto por entes queridos ou tentavam rastreá-los em campos de concentração espalhados pelo continente, fascistas impenitentes como Victor Burgess começaram a pregar uma “guerra contra os judeus” para “libertar o país do seu jugo”. Ameaçando começar uma campanha em Londres para “desalojar os elementos estranhos” e “dar suas casas para os ex-soldados britânicos”, os materiais impressos por Burgess ajudaram a inflamar a escrita de outros militantes da extrema direita como John Marston Gaster, cujas ideias não estariam deslocadas no Der Sturmer:

“Os judeus são seres inferiores – se um judeu anda na mesma calçada que você, derrube-o na sarjeta, que é onde ele merece estar… Os judeus vão contaminar você – se um judeu está no mesmo ônibus ou trem que você, jogue-o para fora… Os judeus são donos de muita coisa – boicote as suas lojas; se você trabalha em uma loja, não atenda os judeus”.

Depois de terem sido humilhados pelo nazismo durante a guerra, os fascistas que foram detidos viram sua chance de saírem de debaixo das pedras. Soldados judeus voltando da guerra contra Hitler retornavam para comunidades judias que estavam sob crescente ameaça de violentas gangues fascistas. Reuniões pedindo a retomada do Holocausto estavam se tornando comuns no coração de comunidades judaicas como Ridley Road em Dalston, e todo mundo sabia que os policias locais frequentemente eram antissemitas e não dava para confiar neles.

A partir desta necessidade de ação, o Grupo 43 foi criado no início de 1946. Apesar da organização ter se dissolvido há quase sete décadas, foi somente com o livro We Fight Fascists: The 43 Group and Their Forgotten Battle for Post-War Britain de Daniel Sonabend que uma descrição abrangente das atividades do Grupo 43 reapareceu.

Operando com um sistema baseado em discutir, decidir e executar, os objetivos do Grupo 43 eram bem diretos: acabar com a disseminação de propaganda por organizações fascistas e fazer campanha por uma proibição geral de todas elas. Seus fundadores incluíam Gerry Flamberg, condecorado veterano da batalha Arnhem; Alec Carson, do reverenciado Esquadrão Pathfinder; e Tommy Gould, que segurou no peito por quase uma hora uma bomba nazista de 75kg que não explodiu enquanto tentava desesperadamente removê-la do seu submarino torpedeado (e ganhou uma Cruz Vitória por seus esforços).

Através de algumas tentativas incrivelmente bem-sucedidas de acabar com manifestações públicas de fascistas, a fama do grupo aumentou e voluntários apareceram aos montes para ajudar os seus membros. O contato do próprio Daniel Sonabend com a história do Grupo 43 reflete esta situação: depois de ter ouvido sobre o grupo através de um amigo, ele aproveitou a oportunidade de levar seu avô para jantar na casa dos seus pais em uma sexta-feira para perguntá-lo se ele se lembrava daqueles dias.

“Vale a pena tentar, eu pensei”, contou ele ao Tribune, “então eu perguntei e ele respondeu: ‘você ouviu falar do Grupo 43? Eu estava lá!’”. Parece que quando seu avô John era um adolescente ele ia espionar reuniões fascistas abertas para o grupo, mas nunca mencionou seu envolvimento para o neto ou para outros familiares.

Rostos sempre machucados

Oavô de Sonabend era um dos muitos jovens que, mesmo não sendo velhos o suficiente para lutar contra o fascismo na guerra, se comprometeram a acabar com ele no lugar onde moravam.
Jimmy Cotter, voluntário do Grupo 43, disfarçado como segurança em uma reunião fascista.

Enquanto trabalhava como aprendiz de design de bolsas, Jules Konopinski ia regularmente a protestos antifascistas e logo se tornou um dos membros do Grupo 43. Hoje um aposentado de 90 anos caloroso e bem-humorado, Jules passou sua adolescência com o que ficou conhecido como o “grupo de comando” dentro do Grupo 43 – judeus jovens da classe trabalhadora que, em suas palavras, “não tinham medo de rasgarem suas roupas”.

Lembrando os seus “rostos sempre machucados”, Jules brincou ao contar ao Tribune sobre como além de derrubar os palcos dos fascistas, os membros do Grupo 43 iam para as estações de trem para garantir que os fascistas que estavam vindo para Londres não alcançassem seu destino.

“Eles eram persuadidos de uma maneira gentil e bem física a voltarem para casa: se eles aparecessem de novo, eles tomariam a maior surra”. Para Jules era simples: “Se você dissuadir os apoiadores deles, então um convence o outro. É uma bola de neve e se no final eles não tem apoiadores eles não vão para rua fazer manifestação”.

Ao ganhar uma reputação por não arredar o pé, o Grupo 43 cresceu em poucos anos até se tornar uma rede confiável de milhares de pessoas. Muitas manifestações da Liga de ex-soldados de Jeffrey Hamm e do Movimento União de Mosley foram interrompidas, incontáveis palcos de fascistas foram derrubados, e o grupo coletou uma boa quantidade de informações sobre grupelhos e organizações fascistas.

Uma complexa operação de inteligência liderada por Murray Podro levou a infiltração de vários espiões nas fileiras fascistas. Um espião subiu tanto na hierarquia fascista que se tornou o segurança do próprio Oswald Mosley. Podro se gabava mais tarde que, no auge das operações do Grupo 43, “se Mosley coçasse o nariz, eu saberia uma hora depois”.

Mais sorte do que decisão

We Fight Fascists, ao contrário da maioria dos trabalhos não acadêmicos sobre o antifascismo, ultrapassa a profundeza das emoções inerentes a qualquer movimento antifascista. Diferentemente do livro de Morris Beckman sobre o grupo – uma fantástica memória, mas saturada de um certo triunfalismo que desagradou muitos veteranos do Grupo 43 – Sonabend retrata com maestria os riscos, os momentos de derrota, desmoralização e as minúcias da política antifascista, onde as tarefas tediosas de organizar pacientemente e coletar informações a longo prazo eram tão valiosas quanto os flashes de confrontos diretos.

Sonabend contou que mais ou menos uma dúzia dos membros do Grupo 43 que foram entrevistados para o livro insistiram em destacar quão mundano era o seu trabalho: para cada ação bem-sucedida contra os fascistas, havia “horas e horas sem fim parado em uma esquina com um jornal observando a casa dos fascistas”.

Dito isto, o livro está cheio de histórias emocionantes sobre essas batalhas, particularmente quando os fascistas atormentados abandonavam qualquer pretensão de respeitabilidade e respondiam à determinação dos antifascistas com brutalidade. “As pessoas sempre perguntam, como ninguém nunca foi morto?” disse Konopinski. “Bem, foi mais por sorte do que por decisão”.

Nesse período Jules quebrou todas juntas das mãos. Ele foi violentamente agredido pela polícia local e seu camarada Jackie Myerovitch foi gravemente esfaqueado por um gangster maltês contratado por Mosley. Depois de um incidente quando o mesmo gangster atacou antifascistas com batatas recheadas com lâminas de barbear, ele começou a andar com uma lâmpada (“era a coisa mais inofensiva que você poderia ter – como uma pequena bomba”), mas admitiu que sua arma defensiva favorita era seu guarda-chuva: “A ponta era afiada. Se uma coisa daquelas fosse enfiada na orelha ou no traseiro de alguém, iria ser muito doloroso, e ainda era uma coisa perfeitamente normal de se ter”.

Apesar desses níveis de intensidade, foi ficando cada vez mais claro que o Grupo 43 estava quebrando o espírito do fascismo britânico e o número de pessoas em manifestações e reuniões fascistas estava esvaziando consideravelmente. No dia 4 de junho de 1950, a direção se sentiu suficientemente confortável para acabar com a organização, ainda que este tenha sido um movimento que Jules e muito dos seus camaradas mais jovens se opuseram, vendo-o como equivocado.

Não demorou muito para provar que eles estavam certos – em poucos anos Mosley escolheu a comunidade negra de Londres como o seu novo alvo principal, enquanto que em 1964, o militante neonazista Colin Jordan se sentiu confortável o suficiente para fazer uma manifestação em Trafalgar Square debaixo de uma bandeira de 25 metros de cumprimento e 2,5 metros de altura onde estava escrito “LIBERTE A GRÃ-BRETANHA DO CONTROLE JUDEU”. Isto levou a criação do Grupo 62, que pretendia continuar o trabalho do seu antecessor.

Cheio de histórias de heróicos veteranos de guerra, militantes comunistas, sionistas convictos e gangsters, We Fight Fascists é como uma biografia coletiva de uma certa parte de Londres que desapareceu há muito tempo. Pela primeira vez, as vidas e as façanhas dos antifascistas foram discutidas.

Isto inclui pessoas como Lennie Rolnick, um ativo comunista que estreitou a conexão entre o Grupo 43 e o movimento dos trabalhadores em geral; Ivor Arbiter, um adolescente entusiasmado que alcançou a fama mais tarde como o designer do “T” no bumbo de Ringo Starr; e Harry Bidney, um homem abertamente gay que iria se tornar um renomado dono de boates no Soho (“esse é um homem que merecia a Cruz Vitória por seu trabalho antifascista”, contou Konopinski ao Tribune. “Que cara”).

O livro também traz um importante argumento sobre a autodefesa como uma ferramenta efetiva para os antifascistas: como Sonabend disse ao Tribune, os inimigos do fascismo tendem a ser “os que permitem as cores da vida”, e que “há a necessidade de nós, que queremos uma sociedade mais civilizada e compassiva, reconhecermos que as vezes a violência é o único jeito de consegui-la”. Alternativamente, o comentário de Jules Konopinski em um recente evento sobre o livro foi menos florido, mas igualmente apropriado: “eles podem dizer o que quiserem, e eu posso socar a cara deles”.

De um modo interessante e fascinante, We Fight Fascists salvou adequadamente a história daqueles que, em uma era mais ameaçadora do que muitos gostariam de admitir, estavam dispostos a fazer coisas desagradáveis a pessoas desagradáveis. Nos próximos anos, nós não podemos nos dar ao luxo de esquecer as lições do Grupo 43.

Sobre o autor

Marcus Barnett é editor associado do Tribune.

24 de maio de 2020

Sim, o socialismo lidaria com a pandemia de coronavírus melhor que o capitalismo

Minha visão do socialismo democrático não seria utopia. Mas aqui está a questão: seria melhor do que o status quo durante os tempos normais e os tempos de crise.

Ben Burgis

Jacobin


As pessoas andam de metrô em 22 de maio de 2020 na cidade de Nova York, o epicentro da pandemia. (Spencer Platt/Getty Images)

Tradução / Houve muitas reações ao meu artigo sobre como seria um sistema socialista viável, então eu queria dar um seguimento. Obviamente, não devemos ir muito longe na direção que Karl Marx chamou de “escrever receitas para as cozinhas do futuro”. Tentar fornecer uma lista completa de quais setores seriam nacionalizados e quais se transformariam em cooperativas em um sistema socialista seria uma tarefa com pouca chance de sucesso.

Se tivermos a sorte o suficiente para superar o capitalismo, essas decisões resultarão de processos históricos confusos e contingentes – e não dos cidadãos das futuras sociedades socialistas consultando artigos antigos da Jacobin para ver o que devem fazer. Mas podemos fazer algumas previsões diretas. E quero explicar algumas dessas previsões, no contexto de uma pergunta que recebi sobre se um sistema socialista, de acordo com o que eu descrevi à Jacobin, lidaria melhor com a pandemia de coronavírus.

Parte da vantagem de expropriar a classe capitalista e, assim, eliminar a pressão constante dessa classe para estender os mercados a todas as esferas da vida, é que isso liberaria as pessoas das sociedades socialistas para tomar decisões coletivas sobre onde estariam dispostos a aceitar um pouco do caos de mercado, a fim de coordenar eficientemente a produção com as necessidades dos consumidores e quais setores precisariam ser totalmente retirados do mercado. Seria surpreendente se tal processo não levasse à estatização da indústria farmacêutica.

era óbvio, antes da crise atual, que o imperativo da Big Pharma (grande indústria farmacêutica) para o lucro a curto prazo leva a uma negligência relativa da pesquisa mais necessária para evitar catástrofes de saúde pública. O pesadelo em curso da COVID-19 é apenas o lembrete mais recente e mais dramático dessa desconexão.

As empresas farmacêuticas simplesmente não começaram a dedicar os recursos necessários para pesquisar doenças respiratórias após a SARS e a MERS. Isso é, essencialmente, resultante do caráter moral inadequado dos tomadores de decisão. Também não é óbvio que cooperativas farmacêuticas do setor privado se sairiam melhor nesse sentido, já que, em princípio, essas decisões não decorrem de antagonismos entre os interesses dos trabalhadores e dos proprietários. O problema é que essa decisão não teria muito retorno monetário a curto prazo. Uma indústria farmacêutica nacionalizada estaria muito melhor posicionada para aguentar esse impacto.

Da mesma forma, os EUA sem uma classe capitalista seriam capazes, não apenas de criar nosso próprio NHS (serviço de saúde do Reino Unido) ou SUS (serviço de saúde pública do Brasil), mas também de financiá-lo com muito mais grana do que o que já existe na Grã-Bretanha capitalista. Isso não significa que haveria necessariamente leitos e respiradores hospitalares suficientes para uma crise inesperada e sem precedentes como essa. A expansão seria, sem dúvida, ainda necessária em alguns casos. Mas não teríamos que começar assim tão longe de onde precisamos estar, se financiássemos nosso NHS da mesma maneira que atualmente o Pentágono é financiado – com o objetivo de estar preparado para todos os tipos de cenários improváveis.

Da mesma forma, a ampliação em si seria muito mais fácil em um país onde os altos comandos da economia já estivessem em mãos públicas – onde, por exemplo, a General Motors (GM) realmente fosse “Government Motors”. Tampouco qualquer problema não resolvido sobre a logística do planejamento seria um problema. Até o sistema soviético, longe de ser ágil, era muito bom em produzir tanques e armas em massa, e não há razão para pensar que os setores planejados seriam piores na produção em massa de respiradores.

Mesmo sob o sistema atual, a Casa Branca poderia usar a Lei de Produção de Defesa (DPA – Defense Production Act) para orientar a GM a começar a produzir respiradores sem parar, mas o mero fato de que a DPA enquadra essas decisões de planejamento estatal como desvios de norma – violações das prerrogativas normais do capital que só podem ser justificadas por emergências suficientemente extremas – provavelmente levaria, mesmo um executivo muito mais competente do que Donald Trump, a pensar duas vezes para tomar uma decisão dessas antes que a crise ficasse realmente séria.

Mas se a GM fosse a Government Motors, as autoridades eleitas, em suas funções em janeiro, quando a crise parecia estar confinada à China, poderiam simplesmente dizer que precisaremos de mais respiradores em breve e errar pelo lado da segurança. Afinal, ninguém pensa duas vezes quando o Pentágono pede um tanque que acaba não usando em uma guerra.

Como um setor privado socialista de mercado ajudaria
Há todas as razões para acreditar que um setor privado completamente dominado por cooperativas de trabalhadores prezaria muito mais a segurança dos trabalhadores do que um setor dominado pelas empresas com as hierarquias tradicionais. Os gerentes que precisam se preocupar em ser reeleitos teriam muito menos probabilidade de insistir em manter as empresas abertas em condições inseguras. (Isso seria duplamente verdadeiro se as cooperativas implementassem a política socialista tradicional, voltando à Comuna de Paris, de que qualquer funcionário público pudesse ser destituído por seus eleitores a qualquer momento.)

Obviamente, fazer a coisa certa e fechar empresas até ter segurança para retornar ao trabalho teria consequências econômicas em praticamente qualquer sistema imaginável. Existem conflitos de escolha reais e tenho certeza de que, mesmo em uma sociedade socialista, haveria algum debate sobre o momento que seria suficientemente seguro para reabrir. Mas esse debate não seria distorcido pela influência política de proprietários que não precisam assumir pessoalmente os riscos que exigem de seus funcionários.

Esse maior nível de cautela sobre a segurança do trabalhador também retornaria em benefício aos consumidores. Imagine que uma sociedade socialista democrática promulgasse ordens para permanecer em casa, estruturalmente idênticas às que existem agora. Os restaurantes cooperativos teriam permissão para permanecer em operação, mas apenas para entrega de comida. Certamente, uma política de licença médica que tivesse que ser aprovada pela força de trabalho de uma empresa ou por seus representantes eleitos seria muito mais generosa do que a formulada por gerentes nomeados por proprietários não eleitos – ou mesmo que resultasse de negociações entre esses proprietários e sindicatos que representam a força de trabalho. Isso, por sua vez, significaria que muito menos consumidores ficariam doentes porque um cozinheiro doente apareceu para trabalhar.

Além disso, uma sociedade desatravancada de uma classe capitalista teria muito mais probabilidade de prover a seus cidadãos uma generosa rede de segurança social. Tudo isso significa que, mesmo que algum trabalhador individual acabasse perdendo a votação, sobre se a empresa cooperativa em que trabalha deveria permanecer aberta, e em seu julgamento individual, fosse perigoso demais ir trabalhar, ela enfrentaria menos pressão financeira para aparecer para trabalhar.

Por fim, as perspectivas de cooperativas “não essenciais”, que fossem fechadas por causa de uma crise de saúde pública, poderiam abrir suas portas em uma data posterior e seriam melhores do que as perspectivas de reabertura enfrentadas por muitas pequenas empresas capitalistas na situação atual. O poder econômico concentrado, sempre e em toda parte, se traduz em poder político concentrado. Assim, não é de surpreender que grande parte do fundo de resgate para pequenas empresas – o Programa de Proteção de Salários – tenha realmente ido para empresas maiores e melhor conectadas politicamente. Uma sociedade livre de plutocratas teria uma probabilidade muito maior de socorrer bares, restaurantes, mercearias de esquina e assim por diante.

Essa visão do socialismo não seria perfeita. Certamente reproduziria pelo menos alguns dos problemas do sistema existente, e ainda precisaríamos de um forte Estado regulatório para supervisionar até mesmo um setor privado controlado por trabalhadores. Tal sistema representaria, no entanto, um enorme avanço civilizacional sobre o que temos agora – especialmente durante esse tipo de crise.

Sobre o autor

Ben Burgis é professor de filosofia e autor de Give Them An Argument: Logic for the Left. Ele faz um quadro semanal chamado "The Debunk", no The Michael Brooks Show.

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