23 de maio de 2020

Forte presença militar no Estado reflete fragilidade da democracia no Brasil

Na redemocratização, arranjo instável entre civis e Forças Armadas chegou ao auge com governo Bolsonaro, analisa professor

Jorge Zaverucha

Folha de S.Paulo


José Sarney tomou posse da Presidência de República em 15 de março de 1985. Apoiador destacado do regime militar nas duas décadas anteriores, encarregou-se de dar um fim ao mesmo. Oficialmente, inicia-se a transição para a democracia. Decorridos 35 anos, chegamos lá? Primeiro é preciso definir o conceito de democracia. Farei isso mais adiante.

Primeiro irei tratar de um tema nem sempre muito destacado pela ciência política e pela mídia: a grande presença militar no aparato de Estado brasileiro. Característica inexistente em países de democracias sólidas. Esta presença castrense não é causa, mas sim consequência da fragilidade das instituições e da falta de um ethos democrático por parte das elites civis.

A própria assunção de Sarney teve uma decisiva cunha castrense. Quem deveria assumir a Presidência era Ulysses Guimarães, mas foi vetado pelas Forças Armadas. Ulysses abriu mão da Presidência para evitar um retrocesso. Como ele, posteriormente, afirmou: “Eu não fui ‘bonzinho’ coisa nenhuma. Segui as instruções dos meus juristas. O meu ‘Pontes de Miranda’ estava lá fardado e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney”.

O “Pontes de Miranda” chamava-se general Leônidas Pires, que no governo Sarney seria ministro do Exército. O próprio Sarney relata que só teve certeza de que assumiria o posto de presidente na madrugada do dia da posse, quando Leônidas ligou para ele e o cumprimentou: “Boa noite, presidente”. Só aí foi dormir.

A presença marcante de Leônidas foi também sentida na redação da Constituição de 1988. Houve uma proposta para a extinção das Polícias Militares, que foi levada ao presidente da Câmara, Ulysses Guimarães. Ele abateu a ideia no seu nascedouro. Alegou que “já não podia mudar nada porque tinha um compromisso com o general Leônidas”.

O peso da espada de Dâmocles de Leônidas fez-se sentir na discussão sobre o que viria a ser o artigo 142 da Constituição. Este artigo diz que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Como é possível, contudo, se submeter e garantir algo simultaneamente? Segundo o italiano Giorgio Agamben, “o soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, coloca-se legalmente fora da lei”. Portanto, cabe às Forças Armadas brasileiras o poder soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se legalmente fora da lei. Numa democracia, as Forças Armadas não garantem nem os Poderes constituídos nem a lei e a ordem. Ocorre exatamente o reverso.

O artigo 142 é ambíguo. Pode ser interpretado de modos distintos, de acordo com os interesses dos atores envolvidos. A raiz do problema é saber quem define o que é ordem e que tipo de lei, ordinária ou constitucional, as Forças Armadas devem, supostamente, defender. O artigo permite o golpe de Estado constitucional. Por isso mesmo, nenhuma democracia que se preze o insculpiria em seu texto constitucional.

Ordem não é um conceito neutro, e sua definição operacional em todos os níveis do processo de tomada de decisão política engloba escolhas que refletem as estruturas políticas e ideológicas dominantes. Portanto, a noção de (des)ordem envolve julgamentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre a conduta (in)desejada de determinados indivíduos e/ou grupos.
Além do mais, tal artigo não especifica se a lei é constitucional ou ordinária, se a ordem é política, social ou moral, nem quem define quando é que a lei e a ordem foram violadas.

Os constituintes, em 1987, na primeira versão da Constituição, retiraram dos militares o tradicional papel de guardiães da lei e da ordem. Tal tentativa irritou o general Leônidas. Ele ameaçou zerar todo o processo constituinte, caso a decisão não fosse revista. Os constituintes então cederam em pontos secundários, mas mantiveram o papel de garantes das Forças Armadas.

Curiosidade: a ideia de garantes foi copiada pelas constituições pinochetistas e sandinistas. No Chile, todavia, findo o regime militar, o artigo foi abolido. No Brasil persiste até hoje, mesmo após 13 anos de governos de esquerda na Presidência.

No fundo, a luta pela manutenção do artigo 142 decorre do fato de que ele define quem estabelece o controle social do país em situação de crise. Um sinal de que nossa elite não possui um ethos democrático. Aposta em um governo democrático eleitoral, não em um regime democrático.

No Brasil, as Forças Armadas deixaram o governo, mas não o poder. A narrativa castrense é mantida até hoje. As Forças Armadas acreditam que defenderam a democracia brasileira em 1964, pois teriam impedido que o país se tornasse uma nova Cuba.

Os militares saíram com sua autoestima em alta. Portanto, aptos para reivindicar sua ampla presença no aparelho de Estado brasileiro. O grau dessa presença teria a ver com o fortalecimento, ou não, do poder civil.

De fato, a Constituição de 1988 inovou em várias áreas, porém deixou praticamente intacto o capítulo a respeito das Forças Armadas existente nas constituições de 1967 e 1969. As Polícias Militares, por exemplo, já mencionadas, continuaram a ser não apenas força reserva, mas também auxiliar. Nas democracias, somente em período de guerra é que as forças policiais se tornam forças auxiliares do Exército.

Em tempo de paz, o Exército é que atua como reserva da polícia, indo em sua ajuda quando esta não consegue debelar sérios distúrbios sociais. As democracias passam uma linha clara separando as funções da polícia das funções das Forças Armadas. Não no Brasil.

As Polícias Militares estão, todavia, submetidas aos governadores de estado e à Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão do Exército Brasileiro. Conforme ressaltou o sociólogo Charles Tilly, caso queira julgar se um Estado é democrático ou não, levando em conta uma única característica, um excelente guia é verificar se a polícia se reporta aos militares ou às autoridades civis”. As PMs se reportam a ambas as autoridades.

Não se pode descurar o fato de que a redação da Constituição de 1988 foi feita exclusivamente pelas autoridades civis. A enorme presença de enclaves autoritários na mesma deu-se via consentimento. Há, portanto, um arranjo político em que os civis se contentam com uma democracia eleitoral (semidemocracia) em troca da não volta do regime militar.

As transições latino-americanas procuraram desmilitarizar a política, tentando levar os militares a se concentraram em sua atividade primeira, ou seja, a defesa das fronteiras do Estado. Essa tentativa fracassou no Brasil.

O governo Bolsonaro conta com nove ministros militares, alguns deles da ativa, além do porta-voz presidencial. O vice-presidente é general do Exército. Estima-se que cerca de 3.000 militares ocupem cargos de confiança no segundo escalão. Bolsonaro montou um verdadeiro bunker militar em torno de si. Foi uma forma de repolitizar e cooptar as Forças Armadas como método de sustentação de um governo sem apoio congressual estável.

A militarização da segurança pública é um processo crescente que atinge seu pico no atual governo. Entenda-se por militarização o processo de adoção e uso de modelos, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal militares em atividades de natureza civil.

A militarização é crescente quando os valores da Exército se aproximam dos valores da sociedade. Consequentemente, quanto maior o grau de militarização, mais tais valores se superpõem. A retórica vigente é a de “guerra” às drogas e de “combate” aos delinquentes através do uso de “forças-tarefas”.

A grande maioria dos cientistas políticos e da mídia difundiu a errônea ideia de que o Brasil é uma democracia consolidada. A situação atual em que nos encontramos é a melhor prova de quão equivocada é essa interpretação.

As principais instituições não funcionam a contento. Vide o Congresso. A despeito de ter aprovado boas medidas recentemente, conta com 1/3 de seus parlamentares respondendo a processos na Justiça. São 160 deputados e 38 senadores acusados de corrupção, lavagem de dinheiro, estelionato e improbidade administrativa.

O STF é uma corte com tintura partidária, que nem sempre zela pela Constituição. Vide o recente caso em que um ministro rasgou a Carta Magna permitindo que a ex-presidente Dilma Rousseff mantivesse seus direitos políticos, mesmo após ser afastada do cargo.

E o que dizer do decano da Suprema Corte declarando que Bolsonaro não tem estatura para ser presidente da República, esquecendo de que sua função é tão somente julgar?

O propósito das Forças Armadas é defender a sociedade, não a definir. Sem a existência de instituições sólidas e de respeito aos valores democráticos, crises de governo ameaçam se transformar em crises institucionais. Ante tal possibilidade, os militares se fortalecem. E grupos civis disputam o apoio castrense. Incentiva-se o pretorianismo moderado em vez da neutralidade das Forças Armadas.

Mas, retomando a pergunta do início do texto, o que vem a ser uma democracia? Ela está em risco? A resposta depende da concepção metodológica utilizada. Os subminimalistas, inspirados no economista Joseph Schumpeter, diriam que não. Para eles, basta haver competição eleitoral livre e limpa —o que o Brasil possui desde 1990.

Essa concepção de democracia põe em relevo a escolha de governantes, não a forma como o poder é exercido. Tem a seu favor a operacionalização do conceito. Onde há eleições, existe democracia; onde não há, por conseguinte, instaura-se a não democracia (autoritarismo).

É um mundo binário, de consequências perniciosas, pois reduz a democracia a um mero método. Não leva em conta a lição de Tocqueville segundo a qual a democracia se justifica quando favorece o bem-estar do maior número de pessoas. E o Brasil é um belo caso de “irresponsabilidade social”.

Já os minimalistas diriam haver outros indicadores para julgar se um regime é democrático. Eleição seria apenas um deles, ao lado, por exemplo, da violência homicida e do controle civil sobre os militares federais e estaduais. Por razão de momento e espaço, analisemos este último indicador.

O controle civil sobre os miliares nunca houve, plenamente, desde a redemocratização em 1985. Sempre pairou uma zona cinzenta que poderíamos chamar de hibridismo institucional. Os ritos de uma democracia eleitoral formal convivem com enclaves e prerrogativas militares.

Esse pacto informal resulta em um equilíbrio instável, e o grau de acomodação entre civis e militares varia com as circunstâncias políticas. A novidade é que a Presidência passou a ser exercida por um militar eleito pelo voto popular, mas que considera o Exército a “âncora de seu governo”. A declaração confere muito peso político aos militares. Creio ser algo inédito na história republicana brasileira e, quiçá, mundial.

O autoritarismo puro não é a primeira preferência do presidente, do Congresso ou das Forças Armadas. Bolsonaro sabe que, em caso de um golpe clássico, perderia seu emprego, pois capitão não manda em general em um regime castrense. A não ser que houvesse um monumental racha dentro das Forças Armadas, e o levante fosse liderado por capas médias castrenses. Não há qualquer sinal de que isso venha a ocorrer.

Vários congressistas, por sua vez, não querem ver sua casa fechada, pois seus “negócios” seriam afetados. E as Forças Armadas parecem ter aprendido as lições de 1964. Além do mais, seus interesses institucionais vêm sendo atendidos, com generosidade, por governo e Congresso (salários, Previdência e orçamento). Sem precisar dar um tiro sequer.

Grupos civis subvertem uns aos outros, dissemina-se a desconfiança e, consequentemente, os compromissos não são respeitados. Como a crise decorrente da pandemia cresce a passos largos, o futuro dependerá, em muito, de em quem a população jogará a conta do número de mortos e da catástrofe econômica —bem como se a desordem se instalará nas ruas.

Caso a conta caia, majoritariamente, no colo de Bolsonaro, as Forças Armadas poderão abandoná-lo por concluir que o apoio, mesmo que indireto, estaria afetando sua imagem institucional. Caso Bolsonaro, contudo, saia fortalecido, abre-se uma nova possibilidade. Ele poderia se tornar um líder autocrata no estilo de Viktor Orbán, da Hungria, com apoio castrense.

Sobre o autor

Jorge Zaverucha, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é professor titular do departamento de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco. Autor do livro “FHC, Forças Armadas e Polícia - Entre o Autoritarismo e a Democracia” (2005, ed. Record).

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