20 de julho de 2021

A teoria do metabolismo de Marx na era da crise ecológica global

Kohei Saito

Historical Materialism


Tradução / Há quase cinquenta anos atrás, em 1971, István Mészáros iniciou a primeira palestra memorial do Prémio Deutscher, referindo-se ao aviso de Isaac Deutscher contra o perigo que "ameaça a nossa existência biológica", a perspetiva de uma guerra nuclear. Ele então prosseguiu alargando o aviso do Deutscher a uma outra crise existencial contemporânea para "toda a humanidade", que é a destruição ecológica sob o capitalismo (1). Esta asserção de Mészáros foi pioneira, uma vez que foi feita antes mesmo da publicação de The Limits to Growth pelo Clube de Roma em 1972. Apontou claramente para a natureza destrutiva do desenvolvimento capitalista:

"[A] contradição básica do sistema capitalista de controlo é que ele não pode separar ‘avanço’ de destruição, nem ‘progresso’ do desperdício - por mais catastróficos que sejam os resultados. Quanto mais desbloqueia os poderes da produtividade, mais deve desencadear os poderes de destruição; e quanto mais aumenta o volume de produção, mais deve enterrar tudo sob montanhas de resíduos asfixiantes" (2).

Hoje em dia, esta contradição fundamental do capitalismo manifesta-se mais agudamente como a rotura climática. O Alasca, a Califórnia, a Amazónia e a Austrália estão a arder. O gelo na Antártida e na Gronelândia está a derreter rapidamente. Os corais estão a morrer devido ao aumento da temperatura da água do mar. Supertufões e furacões destroem cidades. Todos estes fenómenos estão a acontecer como resultado de um “mero” aumento de 1,0° C na temperatura média do mundo desde a revolução industrial.

Como o estima o relatório do Painel Internacional para as Mudanças Climáticas (PIMC), se o atual ritmo de emissão de CO2 continuar, a temperatura média global subirá cerca de 4,0° C. Mas pode até subir mais, devido a vários mecanismos de retorno positivo que o relatório do PIMC não tem em conta. Em contrapartida, a fim de limitar o aumento das temperaturas globais até 2100 a 1,5°C (ao ritmo atual de emissão de CO2, 1,5° C será atingido dentro de 10 anos), é necessário reduzir a emissão de CO2 a cerca de metade até 2030 e a emissão líquida deve ser zero até 2050. Isto significa a redução imediata das emissões de CO2 em cerca de 7% por ano. Obviamente, isto não pode ser alcançado sem uma transformação radical de toda a sociedade e salienta a urgente "necessidade de controlo social" a uma escala sem precedentes.

O planeamento social da produção e a regulamentação severa das atividades de mercado são, no entanto, totalmente incompatível com a lógica do capitalismo neoliberal, que tem constituiu o paradigma do sistema global desde o colapso do sistema do socialismo realmente existente. Esta é, precisamente, a razão pela qual os políticos e as elites não são capazes de responder à crise climática de uma forma eficaz no quadro atual, que gira em torno da ONU. Mesmo que as promessas do Acordo de Paris sejam cumpridas, estima-se que a temperatura média global ainda suba cerca de 3,0° C. Esta incapacidade e ineficácia demonstram claramente que a produção capitalista não pode oferecer qualquer contramedida eficaz contra a crise climática, enquanto se basear fundamentalmente na confluência de um mercado não regulamentado em prol de um crescimento económico infinito. O que é necessário é precisamente uma cooperação global e uma coordenação em prol da sobrevivência coletiva neste planeta finito, sem um Plano B.

Como salienta Greta Thunberg, se for impossível encontrar uma solução dentro do sistema atual, é necessário alterar o próprio sistema. Não é, pois, de admirar, que “Mudança de sistema, não mudança climática!” se tenha tornado a palavra de ordem dos movimentos ambientalistas radicais. Quando a ordem existente não pode oferecer uma solução, a solução para a crise climática tem de vir da esquerda radical, e é precisamente esta a razão porque a ideia do ecossocialismo de Karl Marx é mais importante hoje do que nunca. Neste contexto, vale a pena rever não só o legado da teoria "do metabolismo social" de Mészáros e dos seus sucessores - que podem ser categorizados como constituindo a "escola da fratura metabólica", que inclui John Bellamy Foster, Paul Burkett e Brett Clark -, mas também a própria teoria do metabolismo de Marx. A fim de destacar a importância contemporânea da teoria do metabolismo de Marx, após a sua longa supressão no século XX, este ensaio visa classificar os três níveis diferentes do conceito de "fratura metabólica" de Marx, o que também implica clarificar três níveis diferentes de “mudança metabólica” como fundamento teórico para atualizar a teoria de Marx sobre o pós-capitalismo na era da crise ecológica global.

1. A supressão do ecossocialismo de Marx

Como é bem sabido, a Marx foi repetidamente atribuído um ingénuo "prometeanismo", que defenderia o crescimento ilimitado da produtividade e apoiaria sem qualquer crítica a tendência capitalista para desenvolver tecnologias. É bem conhecido que o Ted Benton criticou Marx pela sua "fuga" ao reconhecimento dos limites naturais (3). De acordo com os seus críticos, Marx teria assumido acriticamente que o desenvolvimento tecnológico sob o capitalismo permite a livre manipulação da natureza, o que funcionaria em última instância como a base material para a realização da emancipação humana na sociedade do futuro.

O mito do prometeanismo de Marx persiste ainda hoje. Axel Honneth aponta para as limitações do marxismo, na medida em que uma das ideias inerentes ao marxismo seria um “determinismo tecnológico", que pressupõe o progresso linear das forças produtivas em nome do “domínio sobre a natureza” (Naturbeherrschung) (4). Para além disso, Sven-Eric Liedman acredita que Marx não era uma "pessoa ecologicamente consciente" no sentido moderno, porque "imaginava que a sociedade que substituiria o capitalismo poderia também restabelecer o equilíbrio entre a humanidade e a natureza na agricultura" (5).

No entanto, a situação mudou decisivamente com o aprofundamento da crise ecológica. Quanto mais claramente a crise se manifesta como a consequência da guerra interminável do capital contra o planeta, mais forte será o interesse na crítica ecológica marxista do capitalismo, bem como na ideia de ecossocialismo como uma alternativa ao atual sistema económico irracional. Autores como John Bellamy Foster, Paul Burkett, James O'Connor, Joel Kovel e Michael Löwy têm demonstrado convincentemente, em publicações como a Monthly Review e Capitalism Nature Socialism, como uma abordagem marxista pode ser útil a uma análise crítica da degradação ambiental de hoje, bem como a uma visão de uma sociedade sustentável para além do capitalismo (6).

Uma vez reconhecida a existência da ecologia de Marx, ela parece tão óbvia que nos podemos perguntar porque foi negligenciada durante tanto tempo e porque razão algumas pessoas tão obstinadamente se recusaram a reconhecer a sua importância teórica como uma base para a crítica ecológica do capitalismo. Aqui podemos apontar para duas principais razões.

Primeiro, a negligência da ecologia de Marx tem a ver, em grande parte, com o carácter inacabado da sua crítica à economia política. Como é sabido, os volumes II e III de O Capital não foram publicadas durante a vida de Marx. Engels editou-os após a morte de Marx, baseando-se em vários manuscritos escritos em alturas diferentes. Os estudiosos marxistas tomaram simplesmente a edição de O Capital de Engels como sendo a versão definitiva. Não lhes ocorreu que Marx, especialmente nos seus últimos anos, tenha estudado intensivamente as ciências naturais e deixado para trás um grande número de cadernos compostos por vários excertos e comentários.

Tal como é discutido no meu livro Karl Marx’s Ecosocialism, Marx iniciou esta nova investigação após a publicação do Volume I de O Capital (7). Uma vez que ele mal publicou após 1868, incluindo os volumes II e III de O Capital, não podia em parte alguma elaborar sobre os resultados da sua nova investigação. Foi, nomeadamente, nestes cadernos de notas que os novos conhecimentos ecológicos de Marx ficaram documentados, mas simplesmente permaneceram despercebidos e inéditos ao longo do século XX. Ainda que estes cadernos de notas sobre as ciências naturais documentem do interesse de Marx no carácter destrutivo do capital no ambiente natural, e nos permitam rastrear o desenvolvimento da crítica ecológica de Marx sobre o capitalismo, ninguém estava realmente interessado no estudo destes cadernos. Por exemplo, David Riazanov, que foi o fundador do Instituto Marx-Engels em Moscovo e o editor chefe do primeiro Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA1), comentou negativamente sobre o envolvimento tardio de Marx com as ciências naturais, descartando a importância do cadernos de notas para compreender a sua crítica da economia política:

"Se em 1881-82 ele perdeu a sua capacidade de criação, no entanto nunca perdeu a capacidade de investigação. Por vezes, ao reconsiderar estes Cadernos de Notas, surge a questão: Porque desperdiçou ele tanto tempo neste resumo sistemático e fundamental, ou gastou tanto trabalho como gastou, num ano tão tardio como 1881, num livro básico sobre geologia, resumindo-o capítulo por capítulo. No 63.º ano da sua vida - isto é pedantice indesculpável" (8).

Consequentemente, a maioria dos cadernos de Marx sobre as ciências naturais não foi sequer publicada até 2019. Esta situação contribuiu indubitavelmente para a negligência generalizada a que foi votado o interesse de Marx pelas questões ecológicas, levando alguns ecossocialistas antimarxistas, como Engel-Di Mauro, a argumentar, ainda hoje, que o marxismo ecologista “extrapola o ecológico em Marx a partir de excursões suas breves e vagas, em textos que abordam outros temas que não a dinâmica ecológica” (9).

No entanto, há ainda mais um fator dentro do marxismo que marginalizou a crítica ecológica de Marx ao capitalismo no século XX. Foi porque o chamado “marxismo tradicional” sempre interpretou a teoria de Marx como um sistema fechado de materialismo histórico que nos permite, ostensivamente, compreender tudo no universo (10). O estabelecimento de um aparelho ideológico gigantesco foi necessário para a mobilização maciça dos trabalhadores para o marxismo. Assim, o seu sistema como uma "visão do mundo" deveria abranger a história do desenvolvimento dialéctico nas esferas tanto da sociedade como da natureza. Houve, no entanto, vários problemas. Como foi mencionado acima, os volumes II e III de O Capital apresentam muitas lacunas teóricas. Além disso, Marx não escreveu nenhum relato sistemático da dialética da natureza. Embora houvesse uma série de manuscritos e cadernos, os marxistas tradicionais não se atreveram a publicá-los e a examiná-los porque tinham medo que estes escritos inéditos pudessem revelar o carácter incompleto do sistema de Marx (11). Eles foram “suprimidos”.

O fundador do “marxismo tradicional”, Friedrich Engels, tem um importante papel nesta história. Ele sabia da existência dos cadernos de notas de Marx sobre as ciências, e tiveram conversas sobre questões ecológicas. No entanto, Engels nem sequer mencionou o sério compromisso de Marx com as ciências naturais no seu Anti-Dühring. Isto deveu-se, presumivelmente, a que Engels visava estabelecer o marxismo como uma visão do mundo para o movimento social e político da classe trabalhadora. Nesta linha, foi compelido a destacar o carácter sistemático de O Capital de Marx, em comparação com a influente obra de Eugen Dühring. Isto funcionou bem e Engels alcançou o seu objetivo, mas não sem custos. Por causa de Engels, as gerações seguintes da teoria tradicional marxista simplesmente tomaram por certo que existe uma divisão intelectual do trabalho entre Marx e Engels; que Marx não tinha muito a dizer sobre a natureza, precisamente porque tinha confiado a Engels o desenvolvimento futuro da dialética da natureza. Assim, A Dialética da Natureza e o Anti-Dühring de Engels tornaram-se pontos de referência chave na aplicação do materialismo dialético de Marx à esfera da natureza. No entanto, como argumenta Terrell Carver, existem diferenças teóricas significativas entre Marx e Engels (12). O tratamento das ciências naturais não é exceção. Uma vez que Engels lidou principalmente com a esfera da natureza a partir de uma perspetiva metafísica e enciclopédica, o interesse ecológico do próprio Marx nas ciências naturais não foi devidamente entendido em relação à sua crítica da economia política (13).

Escusado será dizer que houve outros marxistas que desafiaram esta visão do mundo do marxismo tradicional. Ao fazê-lo, recorreram a Hegel por forma a contrariar o materialismo bruto de um marxismo tradicional que afirma explicar tudo no universo. Esta corrente teórica chama-se "Marxismo Ocidental", o termo sendo por vezes ligado ao Merleau-Ponty (14). No entanto, enquanto rejeitaram, com razão, os entendimentos mecanicistas e positivistas do marxismo tradicional, os marxistas ocidentais assinalaram Engels como o fundador enganador desta problemática Weltanschauung filosófica. Como é bem sabido, foi György Lukács quem insistiu nisto, na sua obra História e Consciência de Classe:

"É da primeira importância perceber que o método está aqui limitado aos reinos da história e da sociedade. Os mal-entendidos que surgem da visão da dialética de Engels podem, no essencial, ser atribuído ao facto de que Engels - seguindo a pista errada de Hegel - estendeu o método para o aplicar também ao conhecimento da natureza. No entanto, os determinantes cruciais da dialética - a interação de sujeito e objeto, a unidade da teoria e da prática, as mudanças históricas na realidade subjacente às categorias como a causa raiz das mudanças no pensamento, etc. - estão ausentes do nosso conhecimento da natureza" (15).

Embora esta passagem estivesse escondida numa nota de rodapé, Lukács fundou o marxismo ocidental com esta reivindicação provocadora. O seu ponto de vista é claro. Engels aplicou erradamente a análise dialética de Marx da sociedade ao conhecimento da natureza. Em conformidade, quando os marxistas ocidentais expulsaram Engels e a sua dialética mecanicista da natureza da sua análise, ao mesmo tempo, excluíram completamente do marxismo a esfera da natureza e das ciências naturais. A natureza desaparece. Esta decisão era inevitável para eles, a fim de evitar que a teoria social de Marx descesse até ao materialismo cru do marxismo soviético, mas o preço que o marxismo ocidental teve de pagar por isso foi bastante elevado: O marxismo ocidental tornou-se incapaz de integrar o problema da ecologia na sua análise, porque a ecologia é a esfera em que a natureza deve voltar à investigação teórica. Uma vez que o problema da natureza já não pode ser suprimido, na era da crise ecológica, Alain Badiou perde o seu brilho habitual e nega histericamente a sua importância: "A ecologia é um novo ópio para as massas " (16). Badiou quer enfatizar a centralidade da luta de classes pelo comunismo. Concordo plenamente. No entanto, a lealdade a Marx não deve levar à subestimação das questões ecológicas para o projeto socialista – antes de mais porque o próprio Marx estava profundamente preocupado com as questões ecológicas!

Em qualquer caso, tanto o marxismo tradicional como o marxismo ocidental acabaram por ignorar a importância da investigação séria de Marx no domínio das ciências naturais durante o século XX. As novas obras completas de Marx e Engels, o Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA2), têm estado, pela primeira vez, embrenhadas no processo de publicação de materiais que documentam como Marx, nos seus anos finais, desenvolveu a sua crítica ecológica do capitalismo. Hoje, o marxismo ocidental já não pode mais justificar a omissão das contribuições da ciência natural para a teoria crítica marxista. No entanto, o novo MEGA também deixa claro que Marx, ao contrário de Engels e outros marxistas tradicionais, não pretendia expor as leis naturais de todo o universo. É necessário abrir uma terceira via para compreender a razão do envolvimento de Marx com as ciências naturais. O conceito chave aqui é "metabolismo".

2. A redescoberta da ecologia marxista

Neste contexto, a contribuição teórica de Mészáros para a renovação do marxismo, para além tanto do marxismo tradicional como do ocidental, é fundamental, por colocar em destaque o conceito de “metabolismo” (Stoffwechsel) cunhado por Marx. Em particular, a sua obra Beyond Capital mudou radicalmente toda a constelação discursiva em torno da crítica da economia política de Marx, prestando atenção a este conceito (17). Mészáros desenvolveu o conceito de “metabolismo social”, a fim de analisar o modo de produção capitalista como uma forma historicamente única de (re)organizar a interação metabólica entre o homem e a natureza. De acordo com ele, qualquer crítica ao modo de produção capitalista não pode limitar-se a observar o quotidiano, concentrando-se unicamente na exploração de trabalhadores pelo capitalista. Mészáros defendeu uma abordagem muito mais holística, que analisa a totalidade da interação metabólica entre o homem e a natureza sob o domínio do capital, ligando a sua abordagem a uma crise existencial muito mais vasta de degradação ecológica.

O que é o metabolismo? Marx escreveu em O Capital: “O trabalho é, antes de mais nada, um processo entre o homem e a natureza, um processo pelo qual o homem [...] medeia, regula e controla o metabolismo entre ele próprio e a natureza” (18). Este processo metabólico é, por um lado, um processo natural-ecológico, que é comum a qualquer etapa histórica, porque os seres humanos não podem viver sem agir sobre a natureza através do trabalho.

Por outras palavras, os humanos fazem parte da natureza e o seu processo é mediado pelo trabalho ao nível "primário", alterando constantemente as condições objetivas de reprodução produtiva. As condições mudam ao longo da história humana, mas esta condição material primária permanece e não pode ser abolida.

Por outro lado, é também um processo sócio-histórico, cujas formas concretas são mediadas pelas relações sociais existentes. Em particular, Mészáros sustentou, em Beyond Capital, que existem as “mediações de segunda ordem de sistemas reprodutivos sociais historicamente específicos” (19). Um conjunto particular de mediações de segunda ordem é único para cada sistema social. Por exemplo, a lógica do capital de busca da valorização máxima é única e própria do modo de produção capitalista, constituindo um conjunto único de mediações de segunda ordem, de tal forma que

"cada uma das formas primárias [de metabolismo entre os seres humanos e natureza] é alterada quase para além do reconhecimento, de modo a adequar-se às auto-expansivas necessidades de um sistema fetichista e alienante de controlo metabólico social, que deve subordinar absolutamente tudo ao imperativo da acumulação-capital" (20).

Todo o objetivo da análise de Marx sobre o capital é compreender estas mediações de segunda ordem do metabolismo humano com a natureza.

De acordo com Mészáros, a organização do metabolismo social feita pelo capital, com as suas mediações de segunda ordem, é incompatível com várias características materiais do metabolismo entre o ser humano e a natureza ao nível primário, levando à sua destruição. Ele afirmou que o capital deixa assim de ser produtivo, passando a ser destrutivo:

"os limites do capital já não podem ser conceptualizados como sendo meramente os obstáculos materiais a um maior aumento da produtividade e da riqueza social, e assim como um travão ao desenvolvimento, mas como o desafio direto à própria sobrevivência da humanidade. E num outro sentido, os limites do capital podem virar-se contra ele como o controlador dominante do metabolismo social [...] quando o capital já não é capaz de assegurar, por quaisquer meios, as condições da sua autorreprodução destrutiva, provocando assim a rotura do metabolismo social global" (21).

Além disso, Mészáros acrescentou que "o sistema do capital como um modo de reprodução metabólica social encontra-se na sua fase descendente de desenvolvimento histórico e, portanto, é apenas capitalisticamente avançado, mas em nenhum outro sentido, de todo, sendo assim capaz de se sustentar apenas de uma forma cada vez mais destrutiva e, portanto, em última análise, também autodestrutiva" (22).

O legado da teoria do metabolismo de Mészáros é retomado por John Bellamy Foster e Paul Burkett, que examinaram cuidadosamente o uso que Marx faz do conceito de metabolismo e desenvolveram o conceito de "fratura metabólica" a partir de passagens do Volume III de O Capital, a fim de se poder tematizar a irracionalidade do modo de produção capitalista existente (23). Hoje em dia, há várias tentativas para analisar as fraturas na interacção metabólica entre o ser humano e a natureza, tais como as que envolvem a ecologia marinha (Stephano Longo), as alterações climáticas (Naomi Klein, Brett Clark e Richard York), as perturbações do ciclo do azoto (Philip Mancus) e a erosão dos solos (Hannah Holleman). Estes excelentes exemplos confirmam a validade e a fecundidade da aplicação ecossocialista contemporânea da teoria de Marx sobre a fratura metabólica. Claramente, o meu trabalho Karl Marx’s Ecosocialism pode ser visto como pertencente a esta tradição.

Poder-se-á objetar que essa "ecologização" da crítica de Marx ao capitalismo é uma mera imposição das "nossas" preocupações ao texto de Marx, distorcendo-o e negligenciando a existência de falhas e limitações fatais na teoria de Marx (24). Em contraste, Marx reconheceu claramente o poder destrutivo do capital e argumentou que as perturbações no metabolismo universal da natureza minam inevitavelmente as condições materiais para um desenvolvimento humano livre e sustentável:

[Produção capitalista] perturba a interação metabólica entre o homem e a terra, ou seja, impede o retorno ao solo dos seus elementos constituintes consumidos pelo homem sob a forma de alimentos e vestuário; por conseguinte, dificulta o funcionamento da eterna condição natural para a fertilidade duradoura do solo. Assim, destrói ao mesmo tempo a saúde física do trabalhador urbano e a vida intelectual do trabalhador rural" (25).

O roubo inerente ao desenvolvimento capitalista das forças produtivas não traz consigo as progressões que levariam automaticamente a uma sociedade comunista. Em vez disso, Marx tentou analisar como a lógica do capital diverge do ciclo natural eterno e, em última análise, causa várias desarmonias na interação metabólica entre o ser humano e a natureza.

Marx analisou este ponto com referência à crítica de Justus von Liebig à moderna "agricultura de roubo", que retira o máximo de nutrição possível do solo sem a devolver. A agricultura de roubo é impulsionada pela necessidade de maximizar lucros a curto prazo, o que significa que as condições materiais do solo sob o capitalismo tornam-se simplesmente incompatíveis com a produção sustentável. Assim, surge um grave desfasamento entre a lógica da valorização do capital e a do metabolismo sustentável da natureza, que cria uma "fratura irreparável" na interação metabólica humana com o ambiente. No Volume III de O Capital Marx escreveu:

"Por outro lado, a grande propriedade fundiária reduz a população agrícola a um mínimo sempre decrescente, confrontando-a com uma população industrial crescente amontoada em grandes cidades; desta forma, produz as condições que provocam uma fratura irreparável no interdependente processo entre o metabolismo social e o metabolismo natural prescrito pelas leis naturais do solo. O resultado disto é um esbanjamento da vitalidade do solo, e o comércio leva esta devastação muito para além os limites de um único país (Liebig)" (26).

Marx acreditava que, enquanto o sistema capitalista persistir, existe uma inevitável tendência para a degradação das condições materiais de produção. Por outras palavras, o mercado não pode funcionar como um bom mediador para a produção sustentável pese embora a crença persistente de que o capitalismo verde fosse de alguma forma possível num futuro próximo. O problema fundamental é que o valor não fornece um mecanismo de retorno entre o mercado e a natureza. A inovação capitalista em ciência e tecnologia também não resolverá a crise ecológica, mas simplesmente a deslocará e aprofundará. A fim de compreender estes pontos, é necessário examinar o conceito de fratura metabólica de Marx com mais cuidado.

3. Três dimensões da fratura metabólica

Marx não desenvolveu em pormenor o conceito de "fratura metabólica". Como se viu acima, ele simplesmente utilizou o termo "fratura irreparável" numa passagem de O Capital. Em consequência, apesar da análise cuidadosa de Foster aos textos de Marx e da aplicação deste conceito a várias questões ecológicas contemporâneas, alguns críticos argumentam que "as implicações da tese de Foster para o pensamento contemporâneo são vagas e as conclusões atávicas" (27). Aqui seria uma boa oportunidade para responder aos críticos, clarificando o conceito de fratura metabólica de Marx com base na sua própria utilização do termo. Embora Marx não classificasse explicitamente o conceito, três dimensões de fratura metabólica são claramente discerníveis.

Em primeiro lugar e mais fundamentalmente, existe uma fratura na circulação material dentro do ciclo metabólico da natureza. O famoso exemplo de Marx é, como se viu acima, a perturbação na circulação dos nutrientes do solo. A agricultura capitalista moderna visa fazer com que as plantas absorvam a nutrição do solo o mais possível e o mais rapidamente possível, para que possam ser vendidas como mercadoria a clientes nas grandes cidades.

Como Liebig avisou no seu livro Química Agrícola, substâncias inorgânicas como o fósforo e o potássio são essenciais para permitir o crescimento suficiente das plantas, mas a sua disponibilidade é bastante limitada em termos da sua ocorrência quantitativa natural no solo, porque o processo de desagregação que dispersa estas substâncias inorgânicas, através das ações da atmosfera e da água da chuva, leva muito tempo (28). Assim, Liebig defendeu a "lei do reabastecimento" (Gesetz des Ersatzes) como o primeiro princípio da "agricultura racional", enfatizando a importância de devolver cuidadosamente uma quantidade suficiente de minerais absorvidos pelas plantas ao solo original, se se quiser manter a fertilidade do solo. No entanto, as culturas que são vendidas nas grandes cidades não regressam ao solo original depois de serem consumidas. Em vez disso, fluem diretamente para o rio como excremento através das águas residuais. Esta perturbação no ciclo natural do metabolismo entre o homem e a natureza mina as condições ecológicas naturais de sustentabilidade da agricultura, causando um esgotamento generalizado do solo na Europa e nos E.U.A. na altura. Liebig criticou duramente esta busca vesga da maximização do lucro a curto prazo como sendo uma “agricultura de roubo”. A sua perceção fundamental permanece válida hoje em dia, pois é exatamente isto que ainda está a acontecer, como a perturbação dos ciclos globais do azoto e do fósforo.

Este nível fundamental de fratura metabólica sob a forma de rotura de fluxo material não pode ocorrer sem ser complementado por duas outras dimensões. A segunda dimensão é a fratura espacial. Marx problematizou esta fratura exclusiva da organização capitalista do espaço como o "antagonismo entre a cidade e campo" (29). A agricultura de roubo não existe sem uma divisão social do trabalho, que se baseia na concentração da classe trabalhadora nas grandes cidades e na necessidade emergente de transporte constante dos seus alimentos a partir do campo. Esta é a separação espacial antagónica dentro de um país capitalista.

No entanto, é de notar que a expressão de Marx, na passagem acima citada, indica também uma hierarquização internacional através da fratura espacial. Nomeadamente, a fratura metabólica é externalizada à escala global através do comércio de longa distância. Daí advém que as consequências negativas da fratura, tais como a exaustão de recursos e a poluição, surgem desproporcionadamente nessas zonas periféricas das quais os recursos são constantemente extraídos e transportados para o centro. Esta chamada "troca ecologicamente desigual" é o modo como o centro acumula mais riqueza e se torna mais próspero.

A fim de compreender esta organização espacial antagónica produzida pelo capital, o livro de Andreas Malm Fossil Capital é um ponto de referência útil. Fossil Capital reconstrói a transição histórica dos moinhos de água para os motores a vapor alimentados a carvão. A água é abundante e disponível, sendo, portanto, uma fonte de energia perfeitamente sustentável e gratuita. Este é certamente um facto óbvio, mas um facto importante, tendo em conta a comum explicação "malthusiana" das tecnologias, segundo a qual a escassez crescente de recursos e o seu correspondente aumento de preço, num processo de crescimento económico, leva necessariamente à descoberta ou invenção de outros materiais de substituição, mais baratos. Malm argumenta que esta explicação não se aplica à substituição da água gratuita e abundante pela máquina a vapor, dependente da utilização de carvão caro e escasso.

De acordo com Malm, para explicar esta transição histórica, é necessário levar em conta a dimensão da mediação de segunda ordem do "capital". A utilização de combustível fóssil começou não simplesmente como um recurso energético, mas sim como capital fóssil. As características naturais do carvão - em contraste com as da água - como uma fonte de energia transportável e monopolizável, possuíam um significado social único para o desenvolvimento da produção capitalista. Graças ao carvão, o capital poderia deixar as zonas em torno dos rios, onde os trabalhadores eram mais resistentes, uma vez que a força de trabalho era escassa, deslocando as fábricas para grandes cidades, onde existia um grande número de trabalhadores a precisar muito de empregos. Foi basicamente assim que o equilíbrio de poder entre capital e trabalho mudou radicalmente com a invenção da máquina a vapor (30).

O combustível fóssil está intimamente ligado à forma exclusivamente capitalista de organizar uma divisão social do trabalho antagonística entre a cidade e o campo. A relação é antagónica precisamente porque as consequências negativas da fratura espacial são desproporcionalmente redistribuídas em favor das grandes cidades. Estas industrializam-se e acumulam capital, enquanto o campo continua apenas a transportar vários recursos naturais. Os recursos naturais no campo tornam-se cada vez mais escassos, degradando também o ambiente. Este intercâmbio ecologicamente desigual é claramente discernível ao nível global, pois que esta fratura espacial permite que o Norte Global externalize os custos económicos e ambientais para o Sul Global. Esta é, em última análise, a causa da "falácia da Holanda”, daqueles que pretendem que o desenvolvimento tecnológico resolva sozinho o problema da poluição ambiental (31). A falácia é um produto da ignorância da constante externalização espacial da fratura metabólica.

A terceira dimensão da fratura é a dimensão temporal. Como é óbvio se considerarmos a formação lenta dos nutrientes do solo e dos combustíveis fósseis, existe um fosso entre os tempos da natureza e os tempos do capital. Enquanto o capital tenta constantemente encurtar no tempo o seu ciclo de negócios e maximizar a valorização, este processo é inevitavelmente acompanhado pelo aumento do capital flutuante, sob a forma de matérias-primas e materiais auxiliares. Além disso, o capital revoluciona constantemente o processo de produção, aumentando as forças produtivas com uma velocidade sem precedentes. As forças produtivas podem duplicar ou triplicar com a introdução de novas tecnologias, mas a natureza não pode alterar os seus processos de formação de fósforo ou combustível fóssil. Em última análise, a natureza não consegue alcançar a velocidade do capital, e surge uma grave discrepância entre dois tipos de tempo, próprios da natureza e do capital. O exemplo avançado por Marx é a desflorestação excessiva sob o capitalismo, que ele comenta assim:

"O longo tempo de produção (que inclui uma quantidade relativamente pequena de tempo de trabalho), e a consequente grande extensão do seu ciclo faz da cultura florestal uma linha de negócio não adequada à produção privada e, portanto, capitalista, sendo esta última fundamentalmente uma operação privada, mesmo quando o capitalista associado toma o lugar do individual. O desenvolvimento da civilização e da indústria em geral sempre se mostraram tão ativos na destruição das florestas que tudo o que tem sido feito para a sua conservação e expansão é completamente insignificante em comparação" (32).

Há três dimensões de fratura metabólica. A teoria do metabolismo de Marx preocupa-se com a forma como o processo ecológico natural do metabolismo universal da natureza, como condição material fundamental para a reprodução, é reorganizado sob a mediação da segunda ordem do metabolismo social. Existe uma grave tensão entre o metabolismo social e o metabolismo natural, e ele advertiu contra as consequências negativas da sua perturbação. Marx, no entanto, não se satisfez com o reconhecimento da existência da fratura, mostrando-se muito mais interessado em saber como a fratura emerge na natureza e como é distribuída de forma desproporcionada, tanto espacial como temporalmente. Esta é a razão pela qual Marx, nos seus últimos anos, estudou intensivamente as ciências naturais enquanto tentava completar o seu grandioso projeto de economia política.

4. Três dimensões da mutação metabólica

A fenda metabólica aprofunda-se com o desenvolvimento do capitalismo. Em muitos casos, manifesta-se como o esgotamento dos recursos naturais, o seu aumento de preço e a correspondente queda da taxa de lucro. Assim, é bastante essencial para o capital assegurar o acesso a recursos baratos, energia e alimentos. Isto é o que leva o capital a construir "um sistema de exploração geral das qualidades naturais e humanas” e "um sistema de utilidade geral", como Marx argumentou em Grundrisse:

"Daí a exploração de toda a natureza a fim de descobrir novas qualidades úteis nas coisas; troca universal dos produtos de todas as terras e climas estranhos; nova preparação (artificial) de objetos naturais, pela qual são oferecidos novos valores de utilização. A exploração da Terra em todas as direções, para descobrir coisas novas utilizáveis, bem como novas qualidades úteis do antigo; por exemplo, novas qualidades dessas coisas como matérias-primas, etc." (33).

Esta exploração da Terra e a invenção de novas tecnologias pelo capital, no entanto, não reparam a fratura. Esta continua a ser "irreparável" no capitalismo. Em última análise, existe a necessidade de "deslocar" a fratura metabólica para outro lugar, não apenas por uma questão de ganhar tempo, mas também para minimizar a manifestação de contradições no centro (34). Aqui, correspondendo às três dimensões da fratura metabólica, há também três maneiras de a deslocar.

Em primeiro lugar, a fenda metabólica manifesta-se como o esgotamento dos recursos naturais, como a exaustão do solo. Embora Liebig tenha advertido contra o colapso da civilização europeia devido à agricultura de roubo, a sua previsão não chegou a concretizar-se. Isso deveu-se a que, em 1906, Fritz Haber e Carl Bosch inventaram o chamado processo Haber-Bosch, que permitiu a produção industrial de amoníaco e, portanto, de fertilizante químico.

No entanto, o processo Haber-Bosch não cicatrizou a fratura. A produção de amoníaco (NH3) utiliza uma quantidade maciça de gás natural como fonte de hidrogénio (H). Utiliza simplesmente outro recurso limitado para produzir amoníaco, mas é bastante intensiva em energia (utiliza 2% do consumo total de energia) e produz muito CO2 (1% do total das emissões de carbono). Além disso, a utilização excessiva de fertilizante químico causa eutrofização, como azoto e fósforo, bem como poluição da água, como resultado do seu vazamento para o ambiente. A ecologia do solo é perturbada pelo fertilizante químico, a capacidade de retenção de água do solo desce, e as plantas tornam-se mais suscetíveis a doenças. Consequentemente, torna-se necessário cada vez mais fertilizante, bem como agroquímicos e pesticida. Estes produtos químicos poluem também o ambiente e perturbam o funcionamento normal do ecossistema, aprofundando a crise ecológica.

Em suma, a mudança metabólica cria externalidade com a ajuda de novas tecnologias: A fertilidade do solo é mantida artificialmente e mesmo reforçada, enquanto que o capital não paga nada pela perturbação, poluição e destruição nos ecossistemas mais vastos. Ao mesmo tempo, o capital encontra novas oportunidades de negócio nestas perturbações, aproveitando a oportunidade para vender mais fertilizantes químicos, agroquímicos e pesticidas. É desta forma que a subsunção formal e real da natureza sob o capital prossegue através da mudança metabólica (35).

Em segundo lugar, há uma deslocação espacial da fratura metabólica. Mais uma vez, Marx discutiu esta questão em relação à exaustão do solo. Na costa do Peru, existiam pequenas ilhas constituídas pelos excrementos de aves marinhas que se tinham acumulado ao longo de muitos anos. Estas ilhas foram chamadas ilhas de guano. O guano é bastante rico em minerais que são úteis para induzir o crescimento das plantas. “Guano" originalmente significa fertilizante agrícola na língua indígena andina quechua. Os povos indígenas usavam-no tradicionalmente como esterco. Foi Alexander von Humboldt quem se deparou com o uso indígena do guano durante a sua viagem de investigação ao Peru, em 1802. Ele investigou a eficácia do guano e testou-a em solos europeus. O resultado foi positivo, pelo que a sua utilização se tornou depois bastante popular nas áreas da Europa onde a exaustão do solo era uma questão social importante.

A exaustão do solo era uma manifestação da fratura metabólica, mas a "solução” do guano não reparou a fratura, pois simplesmente deslocou o problema para o Sul Global. Como resultado, o guano era continuamente transportado da periferia para o centro do capitalismo, sustentando a fertilidade do solo na Europa e nos E.U.A., fornecendo assim alimentos aos trabalhadores urbanos. Por outro lado, a sua externalidade surgiu sob a forma de opressão brutal dos povos indígenas, severa exploração de milhares de coolies chineses, o rápido esgotamento dos stocks de guano e uma degradação ambiental mais geral. Em última análise, o esgotamento das reservas de guano levou à Guerra do Guano (1865-6) e à Guerra do Salitre (1879-84). Em suma, o antagonismo entre cidade e campo dentro de uma nação foi deslocado espacialmente e expandido para a fratura global através do guano. Como argumentam John Bellamy Foster e Brett Clark, uma tal solução a favor do Norte Global levou ao “imperialismo ecológico”. O roubo continuou. Embora o imperialismo ecológico desloque a fratura para as periferias, tornando-a invisível no centro, a fratura metabólica aprofunda-se (36).

Uma semelhante troca ecologicamente desigual persiste no capitalismo globalizado de hoje. Como solução para a crise climática, a energia solar é essencial, mas a tecnologia das baterias utiliza vários tipos de metais raros. Por exemplo, a maioria do lítio do mundo está localizada no planalto andino, pelo que o Chile se tornou o maior exportador de lítio. Salar de Atacama é o local onde todo o lítio do Chile é extraído. O lítio só existe em locais secos, tais como as grandes salinas, uma vez que só gradualmente é condensado em salmoura durante um longo período. A mineração do lítio é assim conduzida através da extração desta salmoura sob as salinas de Salar de Atacama e deixando a água evaporar, de modo a permitir a concentração de lítio.

Nesta situação, é bastante óbvio que a extração excessiva da salmoura torna a área ainda mais seca e também degrada o ecossistema. Põe em perigo o flamingo andino, que come camarão com salmoura. Além disso, provoca uma diminuição do lençol freático, reduzindo o acesso à água doce para as comunidades indígenas antacamenhas (37). A situação é exacerbada pela mineração de cobre que também extrai quantidades maciças de água doce no Salar. Por outras palavras, o esverdeamento do Norte Global não está a transformar o planeta de uma forma sustentável, mas sim a reforçar os processos de extração de lítio e cobre pela mineração de roubo. A fratura metabólica não pode ser reparada simplesmente por novas tecnologias. As soluções tecnológicas soam atraentes porque não nos obrigam a mudar o nosso corrente estilo de vida. No entanto, enquanto o modo de vida atual continuar, ele simplesmente desloca a fratura para outro lugar, aprofundando-a à escala global. Mészáros advertiu corretamente contra o otimismo tecnocrático, "E, finalmente, dizer que ‘a ciência e a tecnologia podem resolver todos os nossos problemas a longo prazo’ é muito pior do que acreditar em bruxaria” (38).

O terceiro tipo de desvio metabólico é o temporal. A discrepância entre o tempo da natureza e o tempo do capital não conduz imediatamente a uma situação ecológica de catástrofe. A natureza possui “elasticidade” (39). A crise climática é um caso representativo. As emissões maciças de CO2 devido à utilização excessiva de combustíveis fósseis são uma causa evidente das alterações climáticas. Mas os seus efeitos não se cristalizam imediatamente, pelo que o capital usa a oportunidade aberta pelo desfasamento temporal para obter lucros de investimentos anteriores em perfurações e oleodutos. O capital reflete a voz dos acionistas atuais, mas não a das gerações futuras. Os custos do roubo são transferidos para elas. Como resultado, as gerações futuras sofrerão por aquilo de que não são responsáveis. Marx caracterizava uma tal atitude do desenvolvimento capitalista com o slogan, 'Apès moi, le déluge!'

Há uma enorme expetativa pública investida na inovação tecnológica futura contra a crise climática. É verdade que a deslocação da fratura dá tempo para o desenvolvimento de novas tecnologias. No entanto, as novas tecnologias não se disseminam rapidamente, demorando anos até substituírem as antigas. Mutações temporais contínuas, contando com tecnologias futuras, irão inevitavelmente enfrentar um inesperado agravamento da crise, devido a mecanismos de "retorno positivo". O desfasamento temporal da introdução de novas tecnologias torna ainda mais difícil controlar a situação, anulando os resultados esperados dessas tecnologias.

5. A crise ecológica como a contradição do capitalismo

O poder do capital para deslocar a fratura metabólica é espantoso. Assim, é muito questionável que o aumento de preços devido ao "fim da Natureza Barata” conduza inevitavelmente à "crise epocal" do capitalismo, como argumenta Jason W. Moore (40). Bill McKibben descreve melhor a dinâmica histórica do capitalismo: “A diminuição da disponibilidade de combustível fóssil não é o único limite que enfrentamos. Na realidade, não é sequer o mais importante. Mesmo antes de ficarmos sem petróleo, estamos a ficar sem planeta” (41). Isto não se deve apenas ao facto de o capital poder encontrar novas oportunidades para uma “doutrina do choque das alterações climáticas" no meio da crise ecológica (42), mas também porque externaliza sempre as suas consequências negativas para o Sul Global.

Desta forma, o Sul Global sofre de consequências duplamente negativas. Depois de sofrer o roubo da natureza e dos seres humanos sob o imperialismo ecológico, enfrenta também o impacto real da crise ecológica, uma vez que já não seja possível mais adiá-lo. Como argumenta Stephan Lessenich, a palavra cde ordem do capital "Depois de nós, o dilúvio!" torna-se "Ao nosso lado, o dilúvio" (Neben uns, die Sintflut), na época de crise ecológica global, quando já não é mais possível ganhar tempo. Esta é a essência da "sociedade de externalização" (Externalisierungsgesellschaft) que é dominante no Norte Global (43).

A vida próspera no Norte Global está obviamente dependente de roubos de outras áreas, mas esta desigualdade estrutural e esta injustiça foram mantidas invisíveis durante muito tempo, através da mudança temporal, espacial e social e da externalização da fratura metabólica. Isto é aquilo que Ulrich Brand e Markus Wissen chamam de "modo imperial de viver" (imperiale Lebensweise). O seu argumento é que uma vida melhor para um certo grupo de pessoas de uma determinada região pressupõe a degradação das condições de vida para outro grupo de pessoas noutra região (44). O modo imperial de viver significa essencialmente uma relação de dominação e subordinação. A ordem atual da sociedade parece atraente e confortável para um certo grupo social no Norte Global, mas os seus custos reais são impostos a outros grupos sociais noutras áreas.

Evidentemente, o problema fundamental não é um "modo de vida", mas um "modo de produção", porque a tendência para o roubo do homem e da natureza e a mudança metabólica é inerente à lógica do capital. O modo imperial de produção é constantemente reproduzido e a sua violência torna-se invisível devido à mudança metabólica. Consequentemente, as pessoas que desfrutam da vida próspera no Norte Global são primeiro forçadas a ser “ignorantes” (Nicht-Wissen) sobre a desigualdade estrutural do modo de produção imperial, mas mais tarde, desde que este prometa uma vida próspera, começam a aceitá-lo como algo desejável e a internalizá-lo, desviando o olhar das consequências negativas. Eles não querem saber (Nicht-Wissen-Wollen). Consequentemente, o modo de produção imperial transforma-se num “modo de vida imperial”.

No entanto, é impossível deslocar infinitamente a fratura metabólica. É cada vez mais difícil ignorar as consequências negativas da fratura metabólica, uma vez que a competição pelo roubo se torna mais brutal com o rápido desenvolvimento da China, Brasil e Índia. À medida que o espaço para a externalização diminui, a fratura metabólica, outrora obscurecida, torna-se cada vez mais visível, à medida que a crise climática provoca ondas de calor e super-tufões, mesmo no Norte Global. Desde que o comunismo é "em última análise uma questão de justiça" (45), a justiça climática é uma componente essencial para o comunismo. É por isso que a ideia do comunismo de Marx deve ser radicalmente atualizada na era da crise ecológica global.

Notas:

(1) Deutscher 1967, p. 110.

(2) Mészáros 2014, pp. 49-50.

(3) Benton 1989.

(4) Honneth 2017, p. 45.

(5) Liedman 2018, p. 480. Parece-nos que esta crítica é bastante peculiar, uma vez que tornaria grande parte dos movimentos ambientais atuais não ecológicos, no sentido moderno. Não é claro que tipo de movimento ambiental pode ser considerado como "ecologicamente consciente" na definição de Liedman.

(6) O'Connor 1998; Burkett 1999; Foster 2000; Kovel 2007; Löwy 2015; Saito 2017. Existem disputas teóricas entre a Monthly Review e Capitalism Nature Socialism, e a minha própria abordagem está definitivamente mais próxima da primeira. No entanto, também me inspiro numa série de marxistas japoneses, tais como Shigeto Tsuru, Tomonaga Tairako e Ryuji Sasaki.

(7) Saito 2017.

(8) Citado em Anderson 2016, p. 249.

(9) Engel-Di Mauro 2014, p. 137.

(10) Heinrich 2012, pp. 24-5.

(11) Por exemplo, a publicação dos chamados Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844, em 1932, como parte do MEGA1, levou à crítica "humanista" do marxismo soviético. Mas é também digno de nota que os russos queriam tratar este pacote de texto como “manuscritos” e conferir um carácter sistemático à estrutura geral do texto, ainda que Marx não tenha tido qualquer plano real para o publicar. Como mostra Jürgen Rojahn, o texto era antes um resultado espontâneo no processo de estudo da Economia Política. Ver Rojahn 2002.

(12) Carver 1983.

(13) Para uma discussão mais detalhada sobre a diferença entre Marx e Engels em termos de ciências naturais, ver Saito 2019.

(14) Merleau-Ponty 1973, p. 59. Como Merleau-Ponty assinala, a expressão em si, no entanto, vem originalmente de Marxismus und Philosophie de Karl Korsch. Ver Korsch 1966, p. 63. O parágrafo relevante em Korsch não foi traduzido para inglês, sendo por isso, provavelmente, que Merleau-Ponty se tornou o ponto de referência.

(15) Lukács 1971, p. 24.

(16) Badiou 2008, p. 139.

(17) Mészáros 2000. Esta contribuição não foi tão bem apreciada no Japão, onde Mészáros continua a ser largamente desconhecido; outros estudiosos japoneses, tais como Shigeaki Shiina e Fumikazu Yoshida já tinham atendido a este conceito, aplicando-o à análise da poluição ambiental nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, em minha opinião, Mészáros captou mais adequadamente o núcleo teórico do argumento de Marx.

(18) Marx 1976, p. 283.

(19) Mészáros 2000, pp. 139-40.

(20) Mészáros 2000, p. 140.

(21) Mészáros 2000, p. 599.

(22) Mészáros 2012, p. 316.

(23) Ver Foster e Burkett 2016.

(24) Tanuro 2003.

(25) Marx 1976, p. 637.

(26) Marx 1991, p. 949; tradução modificada, seguindo Marx 1993, pp. 752-3.

(27) Loftus 2012, p. 31.

(28) Liebig 2018.

(29) Marx e Engels 1970, p. 69.

(30) Malm 2016.

(31) Ehrlich e Ehrlich 1990, p. 39.

(32) Marx 1992, pp. 321-2.

(33) Marx 1973, p. 409.

(34) Foster, Clark e York 2011, p. 74.

(35) Boyd, Prudham e Schurman 2001.

(36) Clark e Foster 2009.

(37) Aronoff, Battistoni, Cohen e Riofrancos 2019, pp. 148-9.

(38) Mészáros 2014, p. 29.

(39) Akashi 2016.

(40) Moore 2015, p. 27.

(41) McKibben 2007, p. 18.

(42) Klein 2019, p. 36.

(43) Lessenich 2018, p. 166.

(44) Brand e Wissen 2017, p. 61.

(45) Žižek 2017, p. 29.

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Sobre o autor

Kohei Saito formou-se em Filosofia na Universidade Humboldt, em Berlim, sendo atualmente professor associado de Economia Política na Escola Superior de Economia da Universidade de Osaka, no Japão. Tem participado nos trabalhos de edição das Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA). É autor de Karl Marx's Ecosocialism: Capital, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy (Monthly Review Press, 2017). Esta obra foi distinguida com o prestigioso Prémio Memorial Isaac e Tamara Deutscher de 2018. O presente ensaio constitui a comunicação do autor por ocasião da aceitação dessa distinção. Foi publicado originalmente na revista Historical Materialism N.º 28.2 (2020), pp. 3-24. A tradução aqui publicada é de Ângelo Novo. Este jovem autor não saiu do nada, sendo continuador de uma riquíssima tradição de pensamento marxista japonês, infelizmente quase totalmente desconhecida no ocidente. Leia-se, por exemplo, Gavin Walker, “Marxist Theory in Japan: A Critical Overview”, Historical Materialism.

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