31 de março de 2022

Crítica da razão tecno-feudal

Contrariando as alegações atuais de que o capitalismo digital está surgindo em uma era "neofeudal", enquanto os barões rentistas do Vale do Silício e de Wall Street extraem fortunas improdutivas de seus usuários e devedores, Evgeny Morozov retorna aos debates clássicos sobre a transição para o capitalismo para questionar a relação entre o econômico e o político.

Evgeny Morozov

New Left Review

NLR 133/134 • JAN/APR 2022

Tradução / Primeiro as boas notícias. A interdição temporária de imaginar o fim do capitalismo, apresentada na década de 1990 por Fredric Jameson, finalmente expirou. A recessão de décadas da imaginação progressista acabou. Aparentemente, a tarefa de vislumbrar alternativas sistêmicas tornou-se muito mais fácil, pois podemos trabalhar agora com distopias – eis que o aparentemente tão esperado fim do capitalismo poderia ser apenas o começo de algo muito pior. O capitalismo tardio certamente é bem ruim, com seu coquetel explosivo de mudanças climáticas, desigualdade, brutalidade policial e a pandemia mortal. Mas, havendo a distopia se tornado importante novamente, alguns da esquerda se moveram silenciosamente para revisar o adagio de Jameson: segundo suas palavras, hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo tal como o conhecemos.

A notícia não tão boa é que, ao empreender esse exercício especulativo de construção de cenários apocalípticos, a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita. De fato, os dois polos ideológicos praticamente convergiram para uma descrição compartilhada da nova realidade. Para muitos, em ambos os campos, o fim do capitalismo realmente existente não significa mais o advento de um dia melhor, seja este o socialismo democrático, o anarco-sindicalismo ou, talvez, o liberalismo clássico “puro”. Em vez disso, o consenso emergente é que o novo regime é nada menos que uma espécie nova de feudalismo – às vezes, como bem se sabe, um “ismo” tem muitos amigos poucos respeitáveis. É verdade que o neofeudalismo de hoje chega com slogans cativantes, com aplicativos móveis elegantes e até com a promessa de felicidade virtual eterna no domínio sem fronteiras do metaverso de Zuckerberg. Seus vassalos trocaram seus trajes medievais pelas elegantes camisetas de Brunello Cucinelli e pelos tênis de Golden Goose. Muitos adeptos da tese do neofeudalismo afirmam que sua ascensão é concomitante à do Vale do Silício. Assim, termos como “tecno-feudalismo”, “feudalismo digital” e “feudalismo da informação” são frequentemente usados.[1] O “feudalismo inteligente” ainda não ganhou muita força na mídia, mas isto pode não estar longe.

À direita, o proponente mais vocal da tese do “retorno ao feudalismo” foi o teórico conservador Joel Kotkin, que visou o poder dos tecno-oligarcas “ligados” em The Coming of Neo-Feudalism (2020). Enquanto Kotkin optou por “neo”, Glen Weyl e Eric Posner, pensadores mais jovens de cunho mais neoliberal, optaram pelo prefixo “techno” em seu tão discutido Radical Markets (2018). O “tecno-feudalismo”, escrevem eles, “atrapalha o desenvolvimento pessoal, assim como o antigo feudalismo atrasava a aquisição de educação ou o investimento na melhoria da terra”.[2] Para os liberais clássicos, é claro, o capitalismo, corroído pela política intervencionista, está sempre à beira de recair no feudalismo. No entanto, alguns da direita radical veem o neofeudalismo como um projeto a ser adotado politicamente. Sob rótulos como “neo-reação” ou “iluminação das trevas”, muitos direitistas estão próximos do investidor bilionário Peter Thiel. Entre eles está o tecnólogo e intelectual neo-reacionário, Curtis Yarvin, que levantou a hipótese de um mecanismo de busca neofeudal, que ele carinhosamente chamou de Feudl, já em 2010.[3]

À esquerda, a lista de pessoas que flertaram com conceitos “feudalistas” é longa e crescente: Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Jodi Dean, Robert Kuttner, Wolfgang Streeck, Michael Hudson e, ironicamente, até Robert Brenner (o nome principal do Debate Brenner sobre a transição do feudalismo para o capitalismo).[4] Para crédito deles, nenhum chega a afirmar que o capitalismo está completamente extinto ou que estamos de volta à Idade Média. Os mais cuidadosos dentre eles, como Brenner, sugerem que as características do atual sistema capitalista – estagnação prolongada, redistribuição de riqueza politicamente impulsionada, consumo ostensivo pelas elites combinado com crescente empobrecimento das massas – lembram aspectos do modo de produção antecedente, o feudalismo, mesmo que seja o capitalismo aquele que governa o dia a dia. No entanto, apesar de todos esses avisos, muitos da esquerda descobriram que chamar o Vale do Silício ou Wall Street de “feudal” é simplesmente irresistível, assim como muitos especialistas não conseguem resistir em chamar Donald Trump ou Victor Orbán de “fascistas”. A conexão real com o fascismo histórico ou, de outro modo, com o feudalismo pode ser tênue, mas a aposta consiste em imaginar que há um valor de choque suficiente grande nesse tipo de proclamação, pois ela visa sobretudo despertar o soporífero público em sua complacência cotidiana. Além disso, dá bons memes. As multidões famintas no Reddit e no Twitter adoram: um vídeo do YouTube que apresenta uma discussão sobre tecno-feudalismo de Varoufakis e Slavoj Žižek obteve mais de 300.000 visualizações em apenas três semanas.[5]

No caso de figuras bem conhecidas, como Varoufakis e Mazzucato, atormentarem os seus públicos com invocações com base no glamour do feudalismo pode fornecer uma maneira amigável de reciclar argumentos que eles haviam sustentado anteriormente na mídia. No caso de Varoufakis, o tecno-feudalismo parece versar principalmente sobre os efeitos macroeconômicos perversos da flexibilização quantitativa. Para Mazzucato, o “feudalismo digital” refere-se à renda imerecida gerada pelas plataformas de tecnologia. O neofeudalismo é frequentemente proposto como uma forma de trazer clareza conceitual sobre as características dos setores mais avançados da economia digital. Entretanto, nesse caminho, as mentes mais brilhantes da esquerda ainda se encontram muito no escuro. O Google e a Amazon são capitalistas? São empresas rentistas, tal como sugere Brett Christophers em Rentier Capitalism?[6] E o Uber? É apenas um intermediário, uma plataforma de cobrança de serviço que se inseriu entre motoristas e passageiros? Ou está produzindo e vendendo um serviço de transporte? Essas questões não são isentas de consequências para a forma como pensamos o próprio capitalismo contemporâneo, fortemente dominado por empresas de tecnologia.

A ideia de que o feudalismo está voltando também é coerente com os críticos de esquerda que condenam o capitalismo como extrativista. Se os capitalistas de hoje são meros rentistas ociosos que nada contribuem para o processo de produção, eles não merecem ser rebaixados à condição de senhores feudais? Essa adoção de imagens do feudalismo por figuras da intelligentsia de esquerda, amigas da mídia e dos memes, não dá sinais de cessar. Em última análise, porém, a popularidade da linguagem feudal é uma prova de fraqueza intelectual, em e não sinal de conhecimento. É como se o arcabouço teórico da esquerda não pudesse mais dar sentido ao capitalismo sem mobilizar a linguagem moral da corrupção e da perversão. No que se segue, aprofundo alguns debates marcantes sobre as características distintivas que diferenciam o capitalismo das formas econômicas anteriores – e aquelas que definem as operações político-econômicas na nova economia digital – na esperança de que uma crítica da razão tecno-feudal possa lançar uma nova luz sobre o mundo em que ainda estamos vivendo.

A lógica do feudalismo

À parte os neorreacionários, praticamente todo mundo que usa o termo acha o neofeudalismo deplorável, um retrocesso em direção a um passado opressivo. Mas o que exatamente há de errado nisso? Aqui, como nas famílias tristes de Tolstoi, os infelizes com o neofeudalismo são todos infelizes à sua maneira. As diferenças derivam em parte da natureza contestada do próprio termo “feudalismo”. Trata-se de um sistema econômico a ser avaliado em termos de ­produtividade e abertura à inovação? Ou é um sistema sócio-político, a ser avaliado em termos de quem exerce o poder dentro dele, como e sobre quem? Este dificilmente é um debate novo – tanto os medievalistas quanto os marxistas o conhecem bem – mas essas ambiguidades de definição cruzaram com as discussões nascentes sobre neofeudalismo e sobre o tecno-feudalismo.

Para os marxistas, o termo “feudalismo” refere-se, antes de tudo, a um modo de produção. O conceito define, assim, uma lógica econômica pela qual o excedente produzido pelos camponeses – o pivô da economia feudal – é apropriado pelos latifundiários.[8] É claro que ver o feudalismo como um modo de produção não significa que os fatores políticos e culturais não tenham importância. Nem todos os camponeses, latifundiários e suas terras eram iguais; todos os tipos de hierarquias multiníveis e de distinções intrincadas – enraizadas na proveniência, tradição, status, força – moldaram as interações não apenas entre as classes, mas também dentro delas. As próprias condições de possibilidade do feudalismo eram tão complexas quanto as dos regimes capitalistas que o sucederam. Por exemplo, a natureza peculiar da soberania sob o feudalismo — como enfatizou Perry Anderson, era “parcelada” entre os proprietários de terras, em vez de concentrada ­no topo. E isso – assinalou – deixou uma marca importante. No entanto, apesar de todas essas nuances, importantes vertentes da tradição marxista concentraram seus esforços em decifrar a lógica econômica do feudalismo, como chave para elucidar a de seu regime sucessor, o capitalismo.

Em sua versão mais simples, a lógica econômica feudal era mais ou menos assim. Os camponeses possuíam seus próprios meios de produção – ferramentas e gado; acesso à terra comum – e assim gozavam de alguma autonomia em relação aos proprietários na produção de sua subsistência. Os senhores feudais, com poucos incentivos para aumentar a produtividade dos camponeses, intervieram pouco no processo produtivo. O excedente produzido pelos camponeses era abertamente apropriado pelos latifundiários, mais comumente por apelo à tradição ou à lei, imposta pelo senhor por meio da ameaça – e muitas vezes por meio do uso efetivo da violência. Não havia confusão sobre a natureza dessa extração de excedentes: os camponeses não tinham ilusões sobre a sua liberdade. Sua autonomia em matéria de produção pode ter sido considerável; sua autonomia em geral, porém, era estritamente circunscrita.

Como resultado, muitos marxistas - podemos ignorar as disputas internas nesta fase - sustentaram que, sob o feudalismo, os meios de extração de excedentes são extraeconômicos, ou seja, eram amplamente de natureza política; bens são expropriados sob ameaça de violência. Sob o capitalismo, em contraste, os meios de extração de excedentes são inteiramente econômicos: agentes nominalmente livres são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver em uma economia monetária, na qual eles não possuem mais os meios de subsistência – ainda assim, a natureza altamente exploradora deste contrato de trabalho “voluntário” permanece em grande parte invisível. Assim, à medida que passamos do feudalismo para o capitalismo, a expropriação politicamente assegurada dá lugar à exploração economicamente viável. A distinção entre o extraeconômico e o econômico — uma das muitas dessas dicotomias — sugere que, como categoria no pensamento marxista, o “feudalismo” é inteligível apenas quando examinado pelo prisma do capitalismo, comumente imaginado como sua forma mais progressiva, racional e sucessor favorável à inovação. E é inovador: ­contando apenas com meios econômicos de extração de excedentes, não precisa sujar as mãos mais do que o estritamente necessário; o “leviatã invisível” do sistema capitalista faz o resto.[9]

Para a maioria dos historiadores não marxistas, em contraste, o feudalismo não era um modo de produção atrasado, mas um sistema sociopolítico atrasado, marcado por surtos de violência arbitrária e proliferação de dependências pessoais e de laços de fidelidade, comumente justificados por meio de tênues crenças religiosas, assim como de fundamentos culturais.[10] Era um sistema no qual poderes privados incontestáveis governavam supremos. Como resultado, é costume dentro dessa tradição intelectual bastante diversa contrastar o feudalismo não com o capitalismo, mas com o estado burguês que respeita e faz cumprir a lei. Ser um súdito feudal é viver uma vida precária com medo do poder privado arbitrário; é tremer diante de regras que não se teve nenhum papel em criar; é não ter ­possibilidade de recorrer de seu veredicto de culpado. Para os marxistas, o oposto do sujeito feudal, o camponês, é o trabalhador totalmente proletarizado da empresa capitalista; para os não marxistas, é o cidadão do estado burguês moderno, desfrutando de uma infinidade de direitos democráticos garantidos.

Independentemente do paradigma considerado, em teoria, deveria ser possível identificar as principais características do sistema feudal para depois passar a examinar se elas podem reaparecer atualmente. Por exemplo, se tratarmos o feudalismo como um sistema econômico, uma dessas características poderia ser a existência parasitária da classe dominante, que consegue desfrutar de um estilo de vida luxuoso às custas e miséria da classe (ou classes) que domina. Se tratarmos o feudalismo, porém, como um sistema sócio-político, o ponto central é a privatização do poder anteriormente exercido pelo Estado, assim como a sua dispersão por meio de instituições opacas e não responsabilizáveis.[11] Em outras palavras, se conseguirmos associar o feudalismo a uma certa dinâmica e, ademais, se pudermos observar a recorrência dessa dinâmica em nosso próprio presente pós-feudal, deveríamos pelo menos poder falar da “refeudalização” da sociedade, mesmo que um “neofeudalismo” completo não esteja no horizonte. É uma afirmação mais fraca, mas carrega maior clareza analítica.

Precursores

Some sixty years ago, Habermas did pioneering work in this field in The Transformation of the Public Sphere (1962). On his—not undisputed—account, the early-bourgeois public sphere could be seen in London’s coffee houses, important locales for the development of emancipatory discourse. Tamed by capitalists, its imperatives were then tied to those of the culture industry and its advertising complex. As a result, pre-modern, private power structures and hierarchies reemerged in what he termed the ‘re-feudalization of the public sphere’, indicating the zigzag dynamics of modernity. While Habermas eventually distanced himself from the concept of ‘refeudalization’, preferring ‘colonization of the lifeworld’ instead, some in Germany have recently recovered it.

In the past decade, the Hamburg-based sociologist Sighard Neckel has produced an impressive body of work documenting how the roll-out of neoliberalism—that great lubricant of modernity—has led to the reemergence of pre-modern social forms such as the pauperization of work, the skewed distribution of wealth and the emergence of new oligarchs.[12] Although Neckel frequently cites Thomas Piketty’s warnings about the return of ‘patrimonial capitalism’—a concept that sails close to the ‘neo-feudal’ imaginary—it is the Habermasian notion of ‘refeudalization’ that allows Neckel to draw these diverse strands together. Creatively fusing Marxist and non-Marxist perspectives, Neckel argues that we may be witnessing the emergence of ‘a modern capitalism without bourgeois structures’, and that their very absence might be ‘a cultural precondition for the triumphal march of capitalism in the 21st century.’ Neoliberal modernization is thus to be read as neither progressive nor regressive, but rather as paradoxical. For Neckel, refeudalization does not lead back to the past, but refers instead to ‘a social dynamic of the present, in which modernization takes the form of a rejection of the maxims of a bourgeois social order.’ In this, Neckel joins ranks with other prominent German sociologists—Wolfgang Knöbl and Hans Joas come to mind—in questioning teleologically inspired accounts of modernization.[13]

An intriguing use of ‘refeudalization’ can be seen in the work of the French legal theorist Alain Supiot. In his Homo Juridicus (2005) and Governance by Numbers (2015), Supiot presents neoliberalization and digitization as two leading drivers of ‘refeudalization’.footnote14 The ambition here is not to shock but to complicate our bland existing accounts of social change. Although the world is not returning to the Middle Ages, Supiot writes, ‘the legal concepts of feudalism provide excellent tools for analysing the vast institutional upheavals occurring under the acritical notion of “globalization”.’footnote15 Key to Supiot’s legal philosophy is the distinction between government by men—typical of the feudal period, with its personal allegiances and ties of dependence—and government by law—the achievement of the bourgeois state, which establishes itself as the objective third-party guarantor of rights and enforcer of rules. Because the state declared certain areas off-limits for private contracting—leaving them impervious to calculations of utility—a modicum of dignity could be enjoyed by all citizens, in the workplace and beyond it, regardless of their power and wealth differentials. In subjecting the state to utility- and efficiency-maximizing imperatives, neoliberalism once again opens it up to private contracting.

For Supiot, digitization also accelerates the process of ‘refeudalization’ by linking people into networks in which their power and autonomy depend on their positions vis-à-vis other nodes. The citizens of the bourgeois state are in principle entitled to all its rights, regardless of what communities they belong to. But is this still the case for citizens of the network society, whose online reputations and digital scores shape their interactions with institutions in ways they may not even be aware of? Amidst all the hype over neo-feudalism, Neckel and Supiot’s carefully argued earlier critiques stand out—even if they remain mostly unknown to those jumping on the neo-feudalist bandwagon today. Current debates generally ignore the finer theoretical points they raise about the contradictory dynamics of neoliberal modernization. The young Habermas is occasionally cited—if Habermas says it is feudalism, who could disagree?—but without much serious engagement.

Brenner ou Wallerstein?

Mas que pressupostos intelectuais de fundo, no rico corpo do pensamento de esquerda de hoje, tornam algo como “neofeudalismo” pensável? Afinal, fazer o estranho argumento de que o capitalismo está de alguma forma se movendo ao contrário requer uma compreensão muito particular não apenas de sua dinâmica, mas também de atividades e processos que são propriamente “capitalistas” – bem como daqueles que definitivamente não o são. Quais são essas suposições?

Aqui podemos retornar às disputas acima mencionadas sobre a natureza da transição do feudalismo para o capitalismo dentro da tradição marxista. Existem duas maneiras mutuamente exclusivas de pensar sobre isso. Vê-se o sistema capitalista como impulsionado apenas por sua dinâmica interna de competição e exploração, com a expropriação política situada firmemente fora de seus limites. Nesta leitura, a acumulação de capital é impulsionada apenas por meios econômicos “limpos” de extração de excedentes. A existência de processos estranhos que possibilitam a expropriação – violência, racismo, expropriação, carbonização – não é negada, mas eles devem ser analiticamente classificados como extraordinários, ou seja, como não capitalistas; podem ter auxiliado determinados capitalistas em seus esforços individuais para apropriar-se da mais-valor, mas permanecem fora do processo de acumulação capitalista enquanto tal. Não há “leis de movimento” do capital que possam ser aí encontradas. Nessa visão, mesmo que “a força coercitiva da esfera ‘política’ seja, em última análise, necessária para sustentar a propriedade privada e o poder de apropriação, a necessidade “econômica” fornece a compulsão imediata que força o trabalhador a transferir o trabalho excedente para o capitalista”. [16]

A outra opção, analiticamente mais confusa, mas intuitivamente convincente, é reconhecer que o capitalismo – pelo menos o capitalismo histórico que conhecemos, não o capitalismo purista de modelos abstratos – é impensável ­sem todos esses processos aparentemente estranhos. Não é preciso negar a centralidade da exploração no sistema capitalista para ver como o racismo ou o patriarcado ajudaram a criar as condições de sua possibilidade. Teria o sistema capitalista do Norte Global se desenvolvido como se desenvolveu se os recursos baratos não tivessem sido metodicamente expropriados do Sul Global? Ao contrário do caso da exploração do trabalho, essas dinâmicas históricas – e as compensações nelas presentes – não podem ser reduzidas a uma fórmula simples que, nos próprios escritos de Marx, descreveria a decisão de uma empresa de automatizar sua força de trabalho. Mas tal confusão não torna essas dinâmicas menos reais ou menos constitutivas do capitalismo histórico.

As diferenças entre essas abordagens surgiram em dois debates marcantes e definidores de paradigmas sobre as origens do capitalismo e a natureza da transição do feudalismo para o capitalismo. Primeiro, o Debate Dobb-Sweezy dos anos 1950 e depois o Debate Brenner de 1974-82, os quais colocaram historiadores marxistas e não marxistas uns contra os outros em combinações variadas­, debatendo a importância relativa do sistema mundial de comércio em rápida expansão versus as relações de classe e propriedade em constante mudança, inicialmente na Inglaterra, como os principais responsáveis pelo surgimento do capitalismo.11 Essas discussões apresentavam muitos ângulos fascinantes. Uma em particular é crucial para decifrar os fundamentos teóricos das formulações mais sérias da tese tecno-feudal: a centralidade da “acumulação primitiva” nas origens, bem como nos desenvolvimentos subsequentes­, do capitalismo.

Em alguns relatos marxistas, incluindo o de Immanuel Wallerstein, “acumulação primitiva” refere-se ao uso de ­meios políticos e extraeconômicos para capturar e transferir o excedente, sob o rótulo de “troca desigual”, das terras mais pobres para as mais ricas – ou, como disse Wallerstein, da periferia para o centro.12 As origens do capitalismo não poderiam ser compreendidas sem levar em conta essa capacidade do núcleo de se ­apropriar do excedente de toda a economia global. Isso é o que explica por que o capitalismo surgiu e floresceu onde aconteceu. A exploração do trabalho assalariado (nunca totalmente proletarizado) certamente aumentou as fortunas dos capitalistas no centro, mas isso foi apenas parte da história. Assim, focar exclusivamente na exploração e ignorar o fato de que as dinâmicas centro-periferia de “troca desigual” e “acumulação primitiva” ainda estão presentes hoje é não entender a natureza do capitalismo.

Brenner acusou a análise de Wallerstein de determinismo tecnológico, minimizando as relações de classe e o papel do “trabalho excedente relativo”, ou seja, produtividade crescente, como uma característica sistêmica do capitalismo. Os relatos de Wallerstein, argumentou Brenner, eram um elemento básico do marxismo neo-smithiano, ignorando o que Marx realmente quis dizer com o conceito de “acumulação primitiva”. Devia ser entendido, nas palavras de Marx, como o processo de “divórcio do produtor dos meios de produção”, que abriu as portas para o trabalho assalariado e a exploração e veio substituir a expropriação ­de bens prontos pelo semiacabado. O divórcio em questão aconteceu como resultado de reconfigurações nas relações de classe e mudanças nos direitos de propriedade; tinha pouco a ver com a troca desigual ou o comércio mundial.13 Como Brenner afirmou em um ensaio posterior, o estágio conhecido como “acumulação primitiva” nada mais era do que o “trazer à existência as relações de propriedade social constitutivas do capital”. Isso certamente incluiu muita força e violência. Mas o papel da acumulação primitiva era muito limitado; sua dinâmica não devia ser confundida com a da acumulação capitalista propriamente não primitiva.

Qual era esse papel limitado? De acordo com Brenner, a “acumulação primitiva­” serviu apenas para quebrar a “fusão” politicamente instituída de terra, trabalho e tecnologia que caracterizou o sistema feudal e impediu que esses três fatores essenciais de produção fossem colocados em uso mais produtivo – algo que poderia ser corrigido, uma vez inseridos na lógica capitalista do lucro.14 Colocado sem rodeios, a análise de Brenner sobre o feudalismo propunha que ele dava a todos incentivos para relaxar na atividade produtiva. Na ausência de pressões competitivas de mercado, não havia necessidade de se preocupar com a racionalização do processo produtivo. A acumulação primitiva pôs fim a essa utopia mais preguiçosa, introduzindo a ­”vontade de melhorar” movida pela competição, tão característica do capitalismo.

Uma olhada superficial em O Capital, Livro I, no entanto, revela mais ambiguidade sobre o assunto da acumulação primitiva do que Brenner deixou transparecer inicialmente. O capítulo 26 do Livro I, onde Marx criticou a concepção um tanto ingênua de Adam Smith sobre a ­”acumulação anterior”, certamente corrobora as afirmações de Brenner (ele a usou, com muita eloquência, ao atacar Wallerstein). Mas então, no capítulo 31, Marx diz algo muito mais congruente com a própria linha de análise de Wallerstein, escrevendo que:

A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, escravização e sepultamento em minas da população aborígine, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um labirinto para a caça comercial de negros, sinalizou o alvorecer rosado da era da produção capitalista. Esses procedimentos idílicos são os momentos principais da acumulação primitiva.[21]

The chapter leaves no doubt about the intricate connection between violence waged in the name of forced transfer and the origins of capitalism. Marx couldn’t be more explicit here: ‘the veiled slavery of the wage workers in Europe needed, for its pedestal, slavery pure and simple in the new world.’ It is hard to see how to fit this account of ‘primitive accumulation’ into the Brennerian story of the ‘divorce’ between the producers and their means of production in the English countryside. There are similar ambiguities in Marx’s discussion of whether these violent practices of ‘conquest and looting’ stopped at the stage of primitive accumulation, or whether they—and thus, also, primitive accumulation—continued alongside capitalist accumulation proper, based on exploitation; or indeed whether, even if ‘primitive accumulation’ itself is a thing of the past, there is nonetheless an ongoing process of expropriation or dispossession that exists alongside exploitation. Even on relatively straightforward issues—should ‘slavery’ and ‘unfree labour’ be seen as part of capitalism?—there are hazy areas in Marx which feed many of the current debates.

For Brenner—and for the school of Political Marxism that formed around him and Ellen Meiksins Wood in later years—there was no such ambiguity. Capitalism emerged and expanded at such a tremendous pace because a number of historical processes converged in such a way as to force capitalists to ‘accumulate via innovation’.footnote22 The Brennerian project of understanding the logic of capitalism thus became about spelling out the dynamics—codified in such terms as the ‘rules of reproduction’ and ‘laws of motion’—through which the systemic pressures exerted on capitalists led to accumulation via innovation. It was an elegant and consistent model, which posited that rising productivity was the consequence of innovation, which, in turn, was the consequence of capitalists competing in the market, employing free wage-labour, and trying everything they could to reduce costs. There was no need in this model for any discussion of violence, expropriation or dispossession; while their existence was not denied, they had little to contribute to rising productivity and were not part of the capitalist-accumulation process.

3. "Acumulação por desapropriação"?

Not everyone was convinced by Brenner’s arguments. In the past decade, there have been many intriguing attempts to advance the argument that exploitation and expropriation have been—and still are—mutually constitutive. Two stand out in particular: the German sociologist Klaus Dörre’s theorization of the capitalist ‘land grab’, drawing on Rosa Luxemburg’s Landnahme and Nancy Fraser’s related work on the deep-rooted structural connection between exploitation and expropriation, with the latter creating—and constantly recreating—conditions of possibility for the existence of the former.footnote23 Many of the methodological discussions unfolding on the left today—about the best ways to narrate capitalism in relation to climate or race or colonialism—still reflect the unresolved isues of the Brenner–Wallerstein debate.

A lot of this recent work builds on David Harvey’s influential concept of ‘accumulation by dispossession’, introduced in his 2003 book The New Imperialism. Harvey coined this term as he was unsatisfied with the qualifier ‘primitive’; he, as many others before him, saw accumulation as ongoing. Summarizing some of the recent scholarship on the issue in The New Imperialism, Harvey noted that ‘primitive accumulation, in short, entails expropriation and co-optation of pre-existing cultural and social achievements as well as confrontation and supersession.’ This was hardly the Brennerian account of ‘primitive accumulation’ as the process of breaking up the feudal ‘merger’ between the factors of production; Brenner’s capitalists were not ‘co-opting’ anything—they were ridding themselves, with some systemic help, of unproductive social practices and relations.

Alas, Harvey’s account of ‘accumulation by dispossession’, while promising so much, delivered very little: in the end, it became even more ambiguous than Marx’s account of ‘primitive accumulation’. If Harvey’s initial formulation was to be believed, the poor capitalists of the early 2000s could barely make money at all without dispossessing someone of something: Ponzi schemes, the collapse of Enron, raiding pension funds, the rise of biopiracy, the commodification of nature, the privatization of state assets, the destruction of the welfare state, the exploitation of creativity by the music industry—these are just some of the examples used to illustrate the concept in The New Imperialism. Seeing it everywhere, Harvey unsurprisingly concluded that ‘accumulation by dispossession’ had become the ‘dominant’ form of accumulation in the new era. How could it be otherwise, when every activity that did not directly involve the exploitation of labour—and even some that did—seemed to be automatically included in this category?

In 2006, Brenner wrote a mixed review of The New Imperialism, chiding Harvey for his ‘extraordinarily expansive (and counterproductive) definition of accumulation by dispossession’, inflating the concept to an extent where it was no longer useful.footnote24 He confessed that he found Harvey’s conclusion about the dominance of dispossession over capitalist accumulation ‘incomprehensible’. But was it? It would indeed be ‘incomprehensible’ if one assumed that we were still living in capitalism, which, at least to the Brenner of 2006, seemed unquestionable. But, if capitalism really was over and some other feudalism-like system was upon us, that statement would make more sense.

In later works, Harvey muddied the waters some more, making ‘accumulation by dispossession’ the main driver of neoliberalism, which he defined as a political project, redistributive rather than generative in outlook, that aimed to transfer wealth and income from the rest of the population to the upper classes within nations or from the poor countries to richer ones internationally. Here, there was no space for the Brenner-friendly interpretation of ‘accumulation by dispossession’ as something aimed at creating conditions for innovation—hence production and generation—at all. Without stating so explicitly, Harvey quietly joined the other side of the debate, while adding a host of other mechanisms of surplus transfer—rent extraction around intellectual property, for example—to those initially described by Wallerstein. Anyone steeped in the orthodox, Brennerian take on ‘primitive accumulation’ would immediately take issue with Harvey’s basic chronology of events; even for Wallerstein and his followers, trade-based primitive accumulation preceded and accompanied capitalist accumulation, it did not replace or overtake it.footnote25

Since Harvey’s initial formulation of the concept in the early 2000s, ‘accumulation by dispossession’ has been embraced by many scholars, not least those in the Global South, who use it to theorize new forms of rentier extractivism whereby corporations flex their political muscles to acquire land and mineral resources.footnote26 There’s a certain logic to all of this: first dispossession, via extra-economic means; then rentierization, by leveraging property rights—including those over intellectual products—which shifts the operation back into the economic realm. Being in that realm, however, is no guarantee that we are in normal capitalism. Save for mining and agriculture, where some productive or at least extractive activities do need to be organized, the capitalist class appears to be simply reaping rents and enjoying a life of luxury, much like the landlords of the feudal era. ‘If everyone tries to live off rents and nobody invests in making anything,’ wrote Harvey in 2014, ‘then plainly capitalism is headed towards a crisis.’footnote27 But what kind of crisis? Harvey himself doesn’t flirt with neo-feudalist imagery—at least he hasn’t yet—but his analysis of contemporary capitalism makes it easy to draw the obvious conclusion: this is capitalism in name only; its actual economic logic is much closer to the feudal one. What other lesson could one draw from Harvey’s claim, as early as 2003, that redistributive dispossession had overtaken generative exploitation?

Multidões cognitivas

A similar message could be found in the work of those Italian and French theorists who prophesize the emergence of ‘cognitive capitalism’—yet another capitalism in name only.footnote28 Inspired by the work of Toni Negri and other Italian operaistas, these thinkers—Carlo Vercellone and Yann Moulier-Boutang are among the best known—insist that the multitude, the successor to the working class, armed with the latest information technologies, is finally capable of autonomous existence. On this account, capital can’t—and doesn’t want to—control production, much of which now happens in a highly intellectualized manner beyond the gates of the Taylorist factory, which itself is no more (at least in Italy and France).footnote29 Today’s capitalists simply establish control over intellectual property rights, while trying to limit what the unruly multitude can do with its newfound communicative freedoms. These are not the innovation-obsessed capitalists of the Fordist era; these are lazy rentiers, entirely parasitic on the creativity of the masses. Working from these premises, it’s easy to think that some kind of techno-feudalism is already upon us: if the members of the multitude are truly the ones doing all the work and are even using their own means of production, in the sense of computers and open-source software, then to speak of capitalism seems like a cruel joke.

One aspect of the ‘cognitive capitalism’ perspective has a particular bearing on contemporary debates about the logic—feudal or capitalist?—of today’s digital economy. Drawing on the Italian workerist tradition, Vercellone and his co-thinkers have hypothesized the obsolescence of the managerial class, supposedly defeated by the creativity of the multitude. Bosses may have had a role under Fordism, but modern cognitive workers need them no more. This is taken as a sign that the move from formal to real subsumption—i.e. from the mere incorporation of labour into capitalist relations to its structural transformation according to capitalist imperatives—has now been reversed, with capitalism moving backwards. Feudalism becomes visible, even if these theorists hope that communism will arrive first.

As George Caffentzis has pointed out in a perceptive critique, the possible irrelevance of managers to the organization of the productive process is in itself no proof that the revenues booked by capitalist enterprises come in the form of rent, rather than profit.footnote30 After all, there are plenty of capitalist firms that are almost fully automated, with neither managers nor workers. Should they therefore be seen as rentiers? The answer of the cognitive-capitalism theorists seems to be ‘yes’: such firms must be parasitic on something, perhaps squeezing a patent portfolio, a real-estate holding or the General Intellect of humanity as such. Take, for example, an automated car wash.footnote31 Is there a reason to believe that it is not capitalist simply because it does not employ anyone, and thus generates no surplus value? Or because, in order to automate the car wash, a few algorithms—undoubtedly using dead labour and congealed knowledge of previous generations, and maybe even a patent or two—were used?

Probably not. In line with Marx’s own writings on the equalization of profits across differently automated firms and industries, the car wash is simply absorbing the surplus value generated elsewhere in the economy. To present these automated firms as ‘rentiers’ rather than as proper capitalists is to strip Marx’s account of capitalist competition of its substance; it is precisely the constant drive to automate—to cut costs and boost profitability—which accounts for the constant flow of capital towards more productive firms. Workerism, the intellectual cornerstone of the cognitive-capitalism theory, remains trapped in the epistemology of the human worker: if no workers are present, the Italian theorists assume that no capitalist production takes place and that rentierism rules the day. In such accounts, ‘capitalism’ may live on as a label, but we are already somewhere in the No Man’s Land between feudalism and the putting-out system (Vercellone himself has noted the similarity).

4. Fortunas digitais

Theorists of techno-feudalism share the cognitive-capitalism assumption that something in the nature of information and data networks pushes the digital economy in the direction of the feudal logic of rent and dispossession, rather than the capitalist logic of profit and exploitation. What is it? An obvious explanation points to the tremendous growth of intellectual-property rights and the peculiar power relations that they institute. As early as 1995, Peter Drahos, an Australian legal scholar, warned about the looming ‘information feudalism’. Imagining the world of 2015 in the first half of his article—he got virtually everything right—Drahos argued in the second half that extending patents to abstract objects, such as algorithms, would result in the proliferation of private and arbitrary power.footnote32 (Similarly Supiot’s critique of feudalization claims that intellectual-property rights allowed for the formal separation of the ownership of objects from their control—a throwback to the past.)

Another feature of the digital economy that seems to chime with feudal models—especially the Marxian, mode-of-production variety—is the strange, almost surreptitious way in which users of digital services are made to part with their data. As we all know, the use of digital artefacts produces data traces, some of which are then aggregated—potentially yielding insights than can help to refine existing services, finetune machine-learning models and train artificial intelligence, or be used to analyse and predict our behaviour, fuelling the online market for behavioural advertising. Humans are key to activating the data-gathering processes that envelop these digital objects. Without us, many of the initial data traces would never be produced. These days, we are creating them constantly—not just when we open our browsers, use gaming apps or search online, but in myriad ways in our workplaces, cars, homes— even our smart toilets.

What exactly is going on here, capitalism-wise? One could argue, with the cognitive-capitalism theorists, that users are actually workers, with technology platforms living off our ‘free digital labour’; without our interaction with all these digital objects, there wouldn’t be much digital advertising to sell and the making of artificial-intelligence products would become more expensive.footnote33 Another view, of which Shoshana Zuboff is the leading exponent, compares users’ lives to the pristine lands of a faraway, non-capitalist country, threatened by the extractivist operations of the digital giants. Condemned to ‘digital dispossession’, as she puts it in The Age of Surveillance Capitalism (2018), ‘we are the native peoples whose tacit claims to self-determination have vanished from the maps of our own experience.’footnote34 For clarity of exposition, this is not exactly Marx’s c-m-c. But the sentiment is clear.

Zuboff distances herself from theories of ‘digital labour’—in fact, from consideration of labour tout court. Accordingly, she doesn’t have much to say about exploitation; surveillance capitalists, it seems, don’t do much of this.footnote35 Instead, she draws on Harvey’s ‘accumulation by dispossession’, presenting it as an ongoing process. Zuboff discusses at length Google’s elaborate procedures for the extraction and expropriation of user data. The term ‘dispossession’ appears almost a hundred times in the book, often in original combinations with other terms—‘dispossession cycle’, ‘behavioural dispossession’, ‘dispossession of human experience’, the ‘dispossession industry’ and ‘unilateral surplus dispossession’. For all its high-pitched language about users as ‘native peoples’, The Age of Surveillance Capitalism leaves little doubt that ‘dispossession’ is accomplished through modern technology and on an industrial scale—which supposedly makes it look capitalist. For Zuboff, however, ‘capitalism’ is something that companies ‘commit’, like a faux pas or a crime. If the formulation sounds strange, it is an accurate rendering of how she understands this particular -ism: by and large, ‘capitalism’ is what happens to humans when companies do stuff.

Reading Zuboff’s vivid descriptions of the symbolic and emotional violence, deception and expropriation that propel the Google-driven digital economy, one might wonder why she dubs it ‘surveillance capitalism’, rather than ‘surveillance feudalism’. On the very first page of the book she writes of ‘a parasitic economic logic’—not that far from Lenin’s famous analysis of the rentier profits underpinning ‘imperialist parasitism’.footnote36 The Age of Surveillance Capitalism flirts with the ‘feudalist’ formulation in a couple of places, without ever fully embracing it. On closer examination, however, the economic system she describes is neither capitalism nor feudalism. It is what one might call, for lack of a better term, user-ism—in direct analogy to Italian workerism. The Italians could not imagine how non-rentier, labour-light capitalist firms could make capitalist profits merely by attracting surplus value produced elsewhere; as a result, they ended up introducing strained concepts like ‘free digital labour’. Zuboff, in turn, cannot imagine that human experience, congealed in data that is appropriated from the user at the point of contact with digital artefacts, is not the principal driver behind Google’s exorbitant profits.

User-ism posits that, from Google to Facebook, the bulk of the profits of these firms derives from their expropriation of user data. But does it? Could there be other explanations? If they exist, Zuboff doesn’t consider them, marshalling only evidence that will confirm her existing thesis: users give Google data; Google uses the data to personalize advertising and build data-intensive cloud services (an important part of Google’s business, of which Zuboff says very little). Therefore, it must be the user-data-advertising connection that accounts for Google’s windfall profits. What else could it be, given that she discusses no other aspects of Google’s operations?

Google como empresa

To get Google’s business model into sharper focus, let us compare it to Spotify, the music-streaming service from Sweden. The two models are somewhat similar: while Spotify has paying users who make up the bulk of its revenue, it also has plenty of non-paying ones. The latter can stream music for free, but every few songs they have to listen to advertisements. Despite the stellar recent performance of its stock, Spotify is not profitable: in 2020, it lost $810 million; by contrast, the 2020 earnings of Alphabet, Google’s parent company, were $41 billion, much of it coming from Google’s advertising business. In fact, Spotify has been bleeding cash ever since its inception: between 2006 and 2018, the last year that such total figures are available, it spent $10 billion dollars in licensing deals, paying music labels and, eventually, artists, for being able to stream their catalogues.

Now, what business is Spotify in? One could argue that it sells a very peculiar commodity: a unique, personalized user experience that provides real-time access to a nearly infinite collection of music. Here is the view of one perceptive analyst: Spotify is ‘a producer of a new commodity, the branded musical experience’, in which ‘music (commodified as licences) is simply one of several inputs, albeit the most important’.footnote37 Yes, Spotify gives away some of those commodities to its non-paying users, but it does so because it has found a clever way to sell another, advertising-based commodity to someone else; the latter would be impossible without the former. There’s plenty of data extraction—Spotify produces personalized playlists for its users every week by observing their listening habits—and we should not overlook the importance of intellectual-property rights for its business model. But should Spotify’s business model therefore be explained by focusing on data extraction alone, ignoring the fact that it is in the capitalist business of producing something? To do that would be to miss that all that data is just an add-on to the main business of Spotify: its unique music-cum-branded-experience commodity. The despised rentiers in this model are the music labels; Spotify is as much a card-carrying capitalist as Henry Ford.

Let’s return to Google. It, too, produces a commodity—real-time access to vast amounts of human knowledge—but, unlike Spotify, Google’s commodity is much cheaper to make. Why so? Because Google doesn’t pay the publishers and content creators whose pages it indexes in order to produce that commodity, at least not in the same way that Spotify pays the music labels. Google, unlike Spotify, doesn’t offer a different, advertising-free search experience to its paying users; but its sister site, YouTube, does so for a monthly fee. Just like Spotify with its non-paying users, Google gives away its search commodity for free, which, in turn, makes it possible to sell another, highly profitable commodity—access to its users’ screens and attention—to advertisers. There are all sorts of ways in which vast troves of personal data, surreptitiously extracted, can make that advertising commodity more valuable. But none of it would matter if Google actually had to pay a fee for indexing every piece of content it shows on the first page of search results, next to the ads that make it so insanely profitable.

The Age of Surveillance Capitalism is 704 pages long, but Zuboff devotes just two sentences, in discrete passages discussing other subjects, to this original sin at the heart of Google’s business model. She accepts it as a matter of course, simply writing of ‘indexed information that Google’s web crawler had already taken from others without payment.’ It is easy to see why this does not meet Zuboff’s own definition of dispossession: there are no users involved. Google’s actual capitalist operations are thus of no interest to user-ism. However, to focus on users and their data here is like focusing on Spotify’s personalized playlists at the expense of royalty payments: the former are not entirely irrelevant—they keep users coming back—but, in the grand scheme of things, their explanatory power pales in significance compared to the latter.

Paradoxically, the tremendous success of Google’s business model suggests that the environment in which it operates is not defined by ‘information feudalism’ but, rather, by ‘information communism’. This is how its lofty, almost socialist goal of ‘organizing all of the world’s knowledge’ could justify the infinite, no-fee indexing of information produced by others, as if property rights—including rights related to access and use—did not exist. The problem with Zuboff’s account of dispossession-obsessed ‘surveillance capitalism’ is that it is constitutionally incapable of grasping just how the non-capitalist digital economy might operate in the future. As a result, it has no radical political agenda except for some vaguely liberal demands for undefinable things like ‘the right to the future’.

In pathologizing the ongoing extractivist side of contemporary digital capitalism, Zuboff’s critique completely normalizes its non-extractivist dimension. Her utopian horizon doesn’t stretch much beyond demanding a world in which Google, having abandoned advertising and the associated data-extraction, would simply start charging for its search services; an option that Facebook has been reportedly considering. That this would inadvertently normalize all the ‘digital dispossession’ that occurs at the indexing stage, cementing Google’s power and its hold on society’s institutional imagination, is of little concern to Zuboff. After all, for user-ism, the problem with ‘surveillance capitalism’ is the surveillance of user-consumers, not capitalism as such.

Ainda capitalismo?

Até recentemente, a maior parte da literatura séria e de esquerda sobre neofeudalismo ou tecnofeudalismo o abordava – como Neckel e Supiot – como um sistema sócio-político em vez de econômico. A publicação de Technoféodalisme pelo economista francês Cédric Durand representa a tentativa mais sustentada até agora de considerar seriamente as lógicas econômicas envolvidas.16 Durand ganhou seu nome com o livro Fictitious Capital (2014), que consiste numa análise perspicaz das finanças modernas. Ao contrário das suposições de alguns pensadores da esquerda, argumentou Durand, as atividades financeiras não precisam ser “predatórias”: em um sistema que funcione bem, elas podem ajudar a promover a produção capitalista facilitando o financiamento antecipado, por exemplo. No entanto, a partir da década de 1970, essa característica favorável à acumulação das finanças modernas – Durand a chama simplesmente de “inovação” – foi superada por duas dinâmicas mais sinistras. A primeira, enraizada na lógica da despossessão tal como fora teorizada por Harvey, apreendia as poderosas instituições financeiras reforçando as suas conexões com o Estado para redirecionar mais dinheiro público para si mesmas; aqui estamos de volta aos meios “extraeconômicos” de extrair ou, mais precisamente, redistribuir valor, apoiados pelos estreitos vínculos entre Wall Street e Washington. A segunda dinâmica, enraizada na lógica do parasitismo teorizada por Lênin em sua análise do imperialismo, referia-se aos vários pagamentos – juros, dividendos, taxas de administração – que as corporações não financeiras têm que fazer às empresas financeiras, que estão completamente fora do processo produtivo de mercadorias.

Segundo Durand, as medidas de resgate implementadas após a crise financeira de 2008 turbinaram a dinâmica da expropriação e do parasitismo, alijando ­assim a dinâmica de inovação. Por isso, ele se perguntava nas páginas finais de O capital fictício: "Isso ainda é capitalismo?" Para completar: "a agonia da morte deste sistema foi anunciada mil vezes. Mas agora pode muito bem ter começado, quase como se fosse por acidente." Esta não seria a primeira transição “quase acidental” para um novo regime econômico. Certa vez, Brenner descreveu a transição do feudalismo para o capitalismo na Inglaterra como "a consequência não intencional de atores feudais perseguindo objetivos feudais de maneiras feudais".[39] Portanto, a ideia de que os financistas, ao escolher o caminho mais fácil – dedicando-se exclusivamente à redistribuição ascendente politicamente organizada e ao parasitismo sustentado pela renda ­– poderiam acelerar a transição para um regime pós-capitalista não era apenas altamente intrigante, mas também teoricamente plausível.

Em seu novo livro, Technoféodalisme, Durand mantém seu foco no ­iminente fim do capitalismo, mas atribui a tarefa de enterrá-lo às empresas de tecnologia. O Capital Fictício já havia examinado o chamado quebra-cabeça do lucro sem investimento: quando o capitalismo está funcionando bem, lucros maiores deveriam significar investimentos maiores; o objetivo do capitalista como um ser econômico é nunca ficar parado. No entanto, aproximadamente a partir de meados da década de 1990, não houve tal ligação: os lucros aumentaram nas economias capitalistas avançadas – com altos e baixos – mas o investimento estagnou ou diminuiu. Muitas ­explicações foram apresentadas para explicar isso, incluindo a maximização do valor do acionista, a monopolização crescente ou os efeitos tóxicos da financeirização cada vez mais acelerada. Durand não apresentou novos fatores causais. Em vez disso, ele optou por argumentar que “o enigma dos lucros sem acumulação é, pelo menos em parte, artificial” — trata-se de uma ilusão estatística, criada por nossa incapacidade de compreender os efeitos da globalização.

Por um lado, algumas empresas encontraram maneiras de ganhar mais dinheiro sem investimento adicional. A globalização e a digitalização permitiram que as principais empresas do Norte Global – pense no Walmart – fortalecem as suas posições no ápice das cadeias globais de commodities para extrair preços mais baixos para bens finais ou intermediários dos atores mais abaixo na cadeia. Por outro lado, quando os capitalistas do Norte Global faziam investimentos, estes se dirigiam cada vez mais para o Sul Global. Assim, olhar para a dinâmica de investimento de lucro pelas lentes de países individuais do Norte Global – os EUA, por exemplo – não nos diz muito. Era necessária uma visão global para ver como exatamente os lucros são mapeados para os investimentos.

No livro Technoféodalisme, Durand junta-se ao crescente coro que explica o quebra-cabeça do “lucro sem investimento” enfatizando o papel dos direitos de propriedade intelectual e dos intangíveis – incluindo acervos de dados – ao permitir que as gigantes empresas americanas obtenham enormes lucros de suas cadeias de suprimentos, concentrando-se naqueles itens que têm as margens mais altas.18 Até certo ponto, é uma elaboração do argumento de Durand de 2014, mas com muito mais atenção dada às operações reais das cadeias de suprimentos globais e ao papel que os direitos de propriedade intelectual desempenham na distribuição de poder dentro delas. Para algumas das empresas que ele examina, o enigma dos lucros sem investimento não é mais artificial, como era em Capital fictício: eles realmente não investem muito, em seus países ou no exterior, independentemente de seus níveis de lucro. Eles devolvem seus ganhos aos acionistas em dividendos ou compram de volta suas próprias ações; alguns, como a Apple, fazem as duas coisas.

Technoféodalisme argumenta que a ascensão dos intangíveis, geralmente concentrados ­nos pontos mais lucrativos da cadeia de valor global, levou ao surgimento de quatro novos tipos de renda.19 Duas delas – rendas legais de propriedade intelectual e rendas de monopólio natural – parecem familiares: a primeira refere-se às rendas derivadas de patentes, direitos autorais e marcas registradas; a segunda, às rendas derivadas da capacidade de empresas como o Walmart de integrar toda a cadeia e fornecer as infraestruturas necessárias no seu próprio interior. As outras duas – rendas de inovação dinâmica e rendas diferenciais de intangíveis ­– soam mais complexas. Mas eles também capturam fenômenos relativamente claros e distintos: o primeiro refere-se a conjuntos de dados valiosos que são de propriedade exclusiva dessas empresas, enquanto o último se refere à capacidade das empresas dentro de uma única cadeia de valor de escalar suas operações (empresas que próprios ativos predominantemente intangíveis podem fazer isso de forma mais rápida e barata).

A taxonomia de Durand é elegante. Armado com essas categorias, ele começa a ver rentistas em todos os lugares – não muito diferente dos teóricos do ­capitalismo cognitivo que ele repreendeu, moderadamente, em O capital fictício; entretanto, agora ele não vê capitalistas em lugar algum. “A ascensão do digital”, conclui, “alimenta uma gigantesca ­economia rentista”, porque “o controle da informação e do conhecimento, ou seja, a monopolização intelectual, tornou-se o meio mais poderoso de capturar valor”. Com um aceno para as recentes especulações de McKenzie Wark sobre o assunto,20 Durand retorna à pergunta que fez em 2014: ainda estamos diante do capitalismo? O imperativo investir visando melhorar a produtividade, cortar custos e aumentar os lucros era o que assegurava o dinamismo do sistema capitalista. Esse imperativo se devia ao fato de os capitalistas operarem sob as pressões da competição de mercado, com a fungibilidade das mercadorias­, do trabalho e da tecnologia – o resultado, como argumentou Brenner, da ruptura da “fusão” desses três fatores sob o feudalismo.

A ascensão dos intangíveis – mas especialmente dos dados – reverte a ruptura capitalista dessa fusão, Durand argumenta: se os ativos digitais são indissociáveis dos usuários que os produzem e das plataformas em que são feitos, então podemos ler a economia digital como mais uma vez “fundir” os principais fatores de produção, de modo que sua mobilidade seja impedida. Em termos mais simples, estamos presos dentro dos jardins murados das empresas de tecnologia; nossos dados – cuidadosamente extraídos, catalogados e monetizados – nos amarram a eles para sempre. Isso enfraquece os efeitos indutores de produtividade da competição de mercado, dando àqueles que controlam os intangíveis uma capacidade impressionante de apropriar-se de valor sem nunca ter que se envolver na produção­. “Nessa configuração”, escreve Durand, “o investimento não é mais orientado para o desenvolvimento das forças produtivas, mas para as forças de predação”.[43]

Parasitismo e despossessão podem não fazer mais parte do vocabulário de Durand ­em Technoféodalisme – eles são substituídos por “predação”, já que Harvey e Lenin são descartados em favor de Thorstein Veblen. Ademais, as finanças dão lugar à indústria de tecnologia – mas a lógica não é tão diferente daquela encontrada em Capital Fictício. O que dá à economia digital seu peculiar sabor neofeudal ou tecno-feudal é que, enquanto os trabalhadores ainda estão sendo explorados de todas as formas capitalistas antigas, são os novos gigantes digitais, armados com ­meios sofisticados de predação, que mais se beneficiam. Analogamente aos senhores feudais, eles conseguem se apropriar de enormes pedaços da massa global do mais-valor sem nunca se envolverem diretamente na exploração do trabalho ou no processo produtivo. Durand se baseia no trabalho de Zuboff para mostrar a dominação oculta exercida pelo “big other” do “big data”, argumentando que o segredo do sucesso do Google está em sua capacidade de extrair, reunir e lucrar com uma variedade de conjuntos de dados. Ela desfruta de um monopólio efetivo devido aos efeitos de rede e impressionantes economias de escala: ela se beneficiará mais de qualquer novo conjunto de dados do que uma startup poderia, tornando a concorrência muito mais difícil.

Há muita sabedoria, bem como bom senso básico, em tais conclusões­. Mas o teor geral do argumento se volta muito para o usuário, já que Durand, como Zuboff, ignora o papel crucial desempenhado pela indexação ­na operação geral do Google. É mais difícil invocar conceitos como “monopolização intelectual” aqui, pois as páginas de terceiros às quais o Google se vincula para produzir sua mercadoria de resultado de pesquisa permanecem ­propriedade de seus editores. O Google não possui os resultados que indexa. Em teoria, qualquer outra empresa bem capitalizada poderia construir a tecnologia de rastreamento da web para indexá-los. Pode ser extremamente caro, mas não se deve confundir essas barreiras com a forma “aluguel”, com o mecanismo rentista: o que é caro para uma startup de Berlim pode ser relativamente acessível para o SoftBank do Japão, com seu Vision Fund de US$ 100 bilhões. Os extensos acervos de dados do Google são uma questão diferente; eles merecem uma discussão sobre essa forma de obtenção de renda. Mas não se pode fingir que seu negócio gira em torno desses acervos de dados, como se o Google fosse um mero rentista – e não uma empresa capitalista padrão.

6. Forças de predação?

Durand’s reasoning also draws upon important work on information rents in the global economy by the economist Duncan Foley. In line with Marx’s perspective, Foley argues that surplus value is not appropriated only at the sites where it is generated (these are the missing pages of Marxist theory that have still to reach Italian workerists). Treating the vast intangible resources reaped through intellectual-property rights the way Marx and some of the classical political economists treated land rentiers, we can see that the giant information-technology platforms are not capitalists, but rentiers in disguise. ‘It is not even necessary to be a capitalist in order to compete for a share of this pool of surplus value’, Foley writes:

Enforceable property rights that permit the owner of productive resources (often called ‘land’ in the terminology of classical political economy) to exclude capitalists from access to those resources create ‘rents.’ These rents are a part of the pool of surplus value generated in capitalist production, though they have no direct relation to the exploitation of productive labour in themselves. The owner of land resources, such as fertile fields, waterfalls, mineral and hydrocarbon reserves and the like, need not lift a finger or hire anyone else to lift a finger productively in order to share in the surplus value generated by productive wage labour.[44]

Here, the analogies are quite clear: land = data; technology firms = non-capitalists; their revenues = rent. Foley makes much of the waterfall example, arguing that ‘once a particular person or entity has established property right control over a waterfall, for example, a rent constituting a share of the global pool of surplus value springs into existence.’ But, he continues, there are even better things than owning a waterfall. Water is scarce, after all. Intangibles, on the other hand, could be infinite: if one owns the copyright to a popular song, one can draw almost infinite rents from it.

Now, the great outstanding question is whether Google and its peers are like that non-capitalist owner of the waterfall who ‘need not lift a finger’ in order to share in the surplus value generated somewhere else. Foley says they are. But, if so—if the tech giants really are lazy rentiers who are ripping everyone off by exploiting intellectual-property rights and network effects—why do they invest so much money in what can only be described as production of some kind? What kind of rentiers do that? Alphabet’s r&d spending in 2017, 2018, 2019 and 2020 was $16.6 billion, $21.4 billion, $26 billion and $27.5 billion respectively. Does that not count as ‘lifting a finger’? If not, what would?

Amazon, too, spent $42.7 billion in 2020 alone on research and development, while employing over a million people across the globe. In the us, the company employs more people than the entire residential construction industry: one out of every 153 employed Americans.footnote45 If these are lazy waterfall-owning rentiers, they are peculiarly masochistic ones: why not just rest on their laurels, fire everyone and stop spending? And who, looking at these numbers, could really believe—together with the post-workerists—that capitalists are now external to production? What then are they spending all this r&d money on? More telling still, a close analysis of the balance sheets of Google, Amazon and Facebook shows that they have fewer intangible assets than other big corporations—in fact, today they own relatively fewer intangibles than they did ten to fifteen years ago.footnote46 It is easy to see why: all this data requires extensive physical networks and vast data centres—but such trends create a big hole in arguments that overemphasize the intangible assets.

Durand must surely be aware of some of these numbers. His potential escape from this analytical predicament is the concept of ‘predation’—borrowed from Veblen’s analysis of America’s belle-époque bourgeoisie in The Theory of the Leisure Class (1899)—and to argue that these massive investments fund the forces of predation, rather than the forces of production. There are, indeed, many interesting ways to deploy Veblen’s analytical framework—his distinction between efficiency-oriented industry and pecuniary-oriented business, for example—to argue that what really drives capitalists is not profit-seeking, but, rather, the ability to engage in sabotage, to ensure that today’s robber barons receive not only the profits they expect, but higher profits than their competitors.

In the past twenty years, a new approach to political economy known as Capital as Power (CasP), has emerged to do just that, introducing the concept of ‘differential accumulation’ to describe such dynamics.footnote47 Its adherents, concentrated mostly at York University in Canada, have criticized both Marxist and neoclassical economics—using some solid and convincing arguments—for overlooking these ‘sabotage’ dynamics and ignoring the constitutive role of power in capitalism as a whole. This approach has informed some interesting recent research on the technology industry, including empirically rich work on techno-scientific rent and assetization, with insights from Science & Technology studies.footnote48

The difficulty of fitting Marx and Veblen into a single analytical framework here—something Durand also attempts in a recent essayfootnote49—is that Marx saw predation and sabotage as part and parcel of feudalism, not capitalism. For Veblen, these are instincts present in all capitalists, even if those with control over intangible assets may be better positioned to act upon them. Marx, however, ultimately saw capitalists as productive; if one could speak of sabotage, this would only be possible at the systemic level of capitalism as a whole and not at the level of individual capitalists. Durand clearly wants to stay with Marx rather than Veblen. However, that would require spelling out just what exactly these ‘forces of predation’ are and how they relate to accumulation and all the thorny debates on ‘primitive accumulation’—a theoretical challenge that Durand, having engaged with ‘accumulation by dispossession’ in Fictitious Capital, knows all too well. Otherwise, it’s not clear why Marxist theory would need this highly ambiguous theoretical carapace of ‘predation’, when its own categories—of profit and capitalist production, as well as rent and rentierism—suffice to explain Google’s success.

Marx himself was unequivocal about the fact that fully automated capitalist firms not only appropriate surplus value derived elsewhere—on this, both Foley and Durand agree—but that they do so as profits, not rent. These automated firms are as capitalist as the firms that exploit wage labour directly. As Marx writes in Volume 3:

A capitalist who employed no variable capital at all in his sphere of production, hence not a single worker (in fact an exaggerated assumption), would have just as much an interest in the exploitation of the working class by capital and would just as much derive his profit from unpaid surplus labour as would a capitalist who employed only variable capital (again an exaggerated assumption) and therefore laid out his entire capital on wages.footnote50

The techno-feudal thesis stems not from the advance of contemporary Marxist theory, but from its apparent inability to make sense of the digital economy—of what, exactly, is produced in it and how. If one accepts that Google is in the business of producing search-result commodities—a process that does require massive capital investment—there is no great difficulty in treating it as a regular capitalist firm, engaged in normal capitalist production. This is not to say that the digital giants do not engage in all sorts of other tactics to consolidate their power, leverage their patent portfolios, lock in their users and obstruct any possible competition, often by buying challenger start-ups, in addition to the fortunes spent on winning the support of lawmakers on Capitol Hill. Capitalist competition is a nasty business and it may be even nastier when digital products are involved. But this is no reason to fall into the analytical swamps of cognitive capitalism, user-ism or techno-feudalism. Both Veblen and Marx may be needed if we want to understand the tactics of individual firms and the systemic consequences of their actions; in that sense, there’s much that Marxists can learn from the ‘Capital as Power’ school. But for either approach to make great strides forward, one needs to be at least clear about the business models of the firms in question. Fixating on aspects of them—simply because one detects an excess of intellectual-property rights, or signs of financialization, or some other disturbing process—is not going to provide a comprehensive view of those models.

7. enter the state
As well as lack of analytical clarity, another major problem with the techno-feudalist framework is that it risks taking the state out of the picture. Durand’s Techno-féodalisme has very little discussion of the driving role of the American state in the rise of Alphabet, Facebook or Amazon; the same goes for many other shorter texts on techno-feudalism.footnote51 Durand’s critique of what he dubs the Californian Ideology makes much of the cyber-libertarian orientation of the ‘Magna Carta of Cyberspace’, its foundational text. But he neglects to mention that one of that document’s four authors, the prominent investor Esther Dyson, also spent years on the board of the National Endowment for Democracy, America’s finest regime-change outlet. Save for a few contrarian accounts—among them, Linda Weiss’s excellent America Inc.? Innovation and Enterprise in the National Security State (2014)—the role of the American state in the rise of Silicon Valley as a global techno-economic hegemon has been greatly understated. Reading these developments through the lens of techno-feudalism—which assumes that states are weak, with sovereignty ‘parcelized’ among many techno-lords—can only obfuscate this further. All the recent techlash hysteria about the power of technology companies—as ‘giants’ or ‘robber barons’, or just one monolithic ‘Big Tech’ bloc—has entrenched the notion that the rise of digital platforms has come at the cost of the state’s disempowerment.

This may be the case for weaker European or Latin American countries, all but colonized by American firms in recent years. But can the same be said for the United States itself? What of the longstanding links between Silicon Valley and Washington, with Google’s former ceo, Eric Schmidt, leading the Defense Innovation Board, an advisory body to the Pentagon itself? What about Palantir, the company co-founded by Thiel which provides essential links between the us surveillance state and American tech? Or Zuckerberg’s argument—apparently effective so far—that breaking up Facebook would embolden the Chinese technology giants and weaken America’s standing in the world? Geopolitics is barely visible within the techno-feudalist perspective: Durand’s few mentions of China are mostly to scold its Social Credit system, an instrument of algorithmic governmentality.

Could this lack of attention to the constitutive role played by the state in the consolidation of the American tech industry be the result of the analytical, Brennerian framings of capitalism that seek to deduce its ‘laws of motion’ by observing it in action? It is impossible to grasp the ascendancy of the American tech industry if one brackets out the Cold War and the War on Terror—with their military spending and surveillance technologies, as well as the global network of American military bases—as extraneous, non-capitalist factors, of little importance to understanding what ‘capital’ wants and what it does. Could one make the same mistake today, when the ‘rise of China’ and climate catastrophe are coming to occupy the system-orienting role once played by the Cold War? If so, we can also forget about comprehending the rise of what some have dubbed ‘asset-manager capitalism’, which seeks to delegate the state’s task of fighting climate change to the likes of Blackrock, Vanguard and State Street.

From the Brennerian vantage point, any systemic intervention by the state into the ongoing operations of capital might appear as an example of ‘political capitalism’footnote52—rather than properly functioning ‘economic’ capitalism, driven by its own laws of motion. For Brenner himself, the long-term stagnation of the us economy in conditions of global manufacturing over-capacity has led powerful elements of the American ruling class to abandon their interest in productive investment and turn instead to the upward redistribution of wealth by political means.footnote53 In this, strangely, left and right appear to converge. After all, detecting the corrosive effects of ‘political capitalism’ everywhere is much more typical of liberal and neoliberal economics, concerned as they are with rent-seeking by public officials and the resurgence of personalistic networks intervening in the operations of capital. It was this kind of concern about ‘political’ rather than ‘economic’ capitalism that gave rise to Public Choice and the fetishization of anti-corruption by Chicago economists such as Luigi Zingales. Durand himself repeatedly engages with Mehrdad Vahabi, a Public Choice scholar, citing him favourably on predation.footnote54

Perhaps it is now time to ask whether the Brenner–Wallerstein debate is in for some definitive resolution. Arguably, the unresolved ambiguities of that debate have created the analytical and intellectual openings through which the techno-feudalist thesis now appears plausible to creative young Marxian economists like Durand. After all, it is only because ongoing expropriation, and the political power that it presupposes, cannot be easily reconciled with the exploitation-driven account of capitalist development that one needs extraneous concepts like Harvey’s ‘accumulation by dispossesion’, Veblen’s ‘predation’, Vercellone’s ‘cognitive rent’, or even Zuboff’s ‘extraction of behavioural surplus’.

Amplos oceanos

Atualmente, a única maneira de encaixar a exploração e a expropriação em um único modelo é argumentar que precisamos de uma concepção expandida do próprio capitalismo – como Nancy Fraser tem feito, com algum sucesso. Resta saber se o relato de Fraser, que ainda está sendo elaborado, terá êxito em dar conta de considerações geopolíticas e militares mais amplas. Mas o sentido geral do argumento que desenvolve parece correto. Enquanto na década de 1970 pode ter sido interessante pensar o trabalho não-livre, a dominação racial e de gênero e o uso gratuito do transporte público – bem como os termos de troca desiguais, os quais resultaram da aquisição pelo centro de mercadorias baratas produzidas na periferia, supondo tudo isso como externo ao capitalismo baseado na exploração, atualmente tudo isso se tornou mais difícil. Tais argumentos têm sido cada vez mais questionados por alguns trabalhos empíricos excepcionais feitos por historiadores que trabalham nos temas de gênero, clima, colonialismo, consumo e escravidão. A expropriação recebeu um tratamento mais adequado e isso complicou significativamente a pureza analítica com a qual as leis do movimento do capital poderiam ser formuladas. Jason Moore – um aluno de Wallerstein e de Giovanni Arrighi – pode ter chegado a um novo consenso quando escreveu que “o capitalismo prospera quando ilhas de produção e troca de mercadorias podem se apropriar de oceanos formados por porções de natureza potencialmente baratas – fora do circuito do capital, mas essenciais para sua operação”.22 Essa consideração, é claro, vale não apenas para “porções de natureza baratas” – eis que existem muitas outras atividades e processos que podem ser apropriados – tais “oceanos”, na verdade, ocupam mais espaço do que sugere Moore.

Uma grande concessão que o marxismo político provavelmente teria que fazer é abandonar sua concepção de capitalismo como um sistema marcado pela separação funcional entre o econômico e o político. É certo que “a necessidade econômica fornece por si só a compulsão imediata que obriga o trabalhador a transferir o trabalho excedente para o capitalista” e que isso está em contraste com a fusão do econômico com o político que ocorre sob o feudalismo. Certamente havia boas razões para apontar que o avanço da democracia parou nos portões das fábricas; esses direitos concedidos na arena política não eliminavam necessariamente o despotismo na esfera econômica. É claro que muitos pontos nessa suposta separação eram falsos: como Ellen Meiksins Wood argumentou em seu artigo seminal sobre o assunto (The Separation of the Economic and Political in Capitalism), foi a teoria econômica burguesa que construiu uma “economia pura” e, assim, abstraiu os aspectos sociais e políticos que envolvem o sistema econômico. Foi o próprio capitalismo que criou a cunha que desloca as questões essencialmente políticas da arena política para colocá-la na esfera econômica. Um exemplo disso é o poder “de controlar a produção e a apropriação, ou seja, a alocação do trabalho social”. A verdadeira emancipação socialista exigiria também uma plena consciência de que a separação entre essas duas esferas é bem artificial.[56]

No entanto, o relato geral de Wood pintou um quadro de coerção sob o capitalismo que era simplista demais. “A integração entre produção e apropriação [sob o capitalismo]” – escreveu ela – “representa a ‘privatização’ definitiva da política, na medida em que as funções anteriormente associadas a um poder político coercitivo – centralizado ou “parcializado” – estão agora firmemente alojadas na esfera [econômica] privada. Figuram, então, como funções da classe apropriadora que se encontra isenta de obrigações para cumprir quaisquer propósitos sociais maiores”. Nessa visão, o escopo do “puramente político” em relação ao puramente econômico era bastante limitado: consistia, principalmente, em salvaguardar os direitos de propriedade. Que o político também tenha sido fundamental para garantir suprimentos baratos de energia e comida, de mão-de- obra não-livre, de matéria primas minerais, de conhecimento e, talvez, eventualmente, de dados – ou seja, as próprias condições de possibilidade que tornam possível a concepção (expandida) do “econômico” – não foi expresso, por uma razão óbvia: nenhuma dessas coisas tinha relação direta com a exploração.

No entanto, se o “político” foi tão instrumental para a constituição do “econômico”, pode-se perguntar exatamente o que se ganha ao apresentar ­o capitalismo como um sistema que mantém o “político” e o “econômico” separados. Que os capitalistas e seus ideólogos falem dessa maneira é uma coisa; até que ponto esta é uma descrição precisa do que realmente ocorre sob o capitalismo – a tese do artigo de Woods – é outra. Aqui nos lembramos da piada de Bruno Latour de que a modernidade fala com uma língua bifurcada: ela diz que a ciência e a sociedade são polos opostos – mas essa confusão estratégica é precisamente o que permite hibridizá-las de forma tão produtiva. Pode ser que a história do político e do econômico sob o capitalismo seja muito semelhante.

Em retrospecto, é fácil ver por que Brenner nunca se impressionou com a cunhagem do termo, feita por Harvey, de “acumulação por despossessão”. Na medida em que o conceito se refere à redistribuição – realizada tanto pelos mercados quanto pela violência – e não pela produção, ele não poderia deixar de ser acumulação capitalista “primitiva” para a regular, pelo menos no entendimento de Brenner sobre o termo. No entanto, dadas todas as evidências históricas que se acumularam nos últimos quarenta anos – especialmente durante a crise de 2008 e a pandemia de Covid – tornou-se mais difícil, mesmo para Brenner, classificar a redistribuição como algo estranho ao capitalismo realmente existente. As quantias envolvidas – muitos trilhões de dólares – são simplesmente assombrosas demais. Assim, ele escreveu em “Escalating Plunder”, seu texto de 2020 sobre os resgates da Covid: “O que tivemos por uma longa época é o agravamento ­do declínio econômico acompanhado pela intensificação da predação política”.24 A palavra “político” — uma indicação de que, para Brenner, o processo “normal” de ­acumulação capitalista está falhando — aparece com frequência nesse ensaio.

Faltando a estrutura para unir a redistribuição e a exploração dentro de uma explicação mais ampla da acumulação capitalista, Brenner tem apenas um movimento restante: postular que a dependência dos capitalistas da redistribuição ascendente da riqueza conduzida pelo Estado está afastando o capitalismo de si mesmo, em direção a uma forma econômica que aparentemente compartilha uma característica central com o feudalismo. Ora, isso manteria a pureza do modelo original – o título honorário de “capitalismo” poderia ser reservado para aquele regime impressionante em que a acumulação acontece por meio da inovação, em vez de predação ou desapropriação – mas apenas à custa de desencadear todos os tipos de efeitos secundários, ou seja, problemas analíticos e políticos. As fraquezas do argumento de Durand são, até certo ponto, produto de tensões não resolvidas no debate Brenner-Wallerstein.

A ironia final aqui é que a melhor evidência de que a “acumulação via inovação” está – como o próprio capitalismo – ainda muito viva, pode ser encontrada no mesmo setor de tecnologia que Durand descreve como feudal e rentista. Podemos ver isso quando abandonamos as macro-narrativas supra-determinadas ­dessas estruturas analíticas – seja o “neoliberalismo” de Harvey como um projeto político ou o “capitalismo cognitivo” ­de Vercellone. Pensar nas empresas de tecnologia da maneira que Marx provavelmente pensaria sobre elas – ou seja, como empresas produtoras de valor, ou seja, tipicamente capitalistas – certamente produz melhores resultados.

Nesse entretempo, os marxistas fariam bem em reconhecer que a exploração e a expropriação foram constitutivas da acumulação ao longo da história. Talvez o “luxo” de empregar apenas os meios econômicos de extração de valor no núcleo “propriamente” capitalista tenha sido sempre possível devido ao uso extensivo de meios extraeconômicos de extração de valor na periferia não capitalista. Uma vez dado esse salto analítico, não precisamos mais nos preocupar com invocações do feudalismo. O capitalismo está se movendo na mesma direção de sempre, alavancando quaisquer recursos que possa mobilizar – e, nesse aspecto, quanto mais barato, melhor. Nesse sentido, a antiga descrição de Braudel do capitalismo como “infinitamente adaptável” não é a pior perspectiva a ser adotada. Mas ele nem sempre se adapta continuamente; quando o faz, entretanto, não é certo que as tendências redistributivas para cima da pirâmide vençam as que concernem a produção. Pode ser que seja exatamente assim o que acontece, atualmente, com a economia digital. Isso, é claro, não é razão para acreditar que o tecno-capitalismo seja de alguma forma um regime mais agradável, aconchegante e progressivo do que o tecno-feudalismo. Contudo, invocando em vão o último, corremos o risco de passar o pano para a reputação do primeiro.

[1] In the interests of disclosure, I must report that around 2016 I, too, flirted with these concepts, using them in an occasional newspaper column and a talk. Around then, the term ‘digital feudalism’ even crept into the announcement of the subtitle of my yet-to-be-published book (the final edition certainly won’t feature it); it also appeared in the subtitle of a collection of my essays that came out in Spain in 2018. Having realized their analytical weaknesses, I quickly abandoned these concepts.

2 Eric Posner and Glen Weyl, Radical Markets: Uprooting Capitalism and Democracy for a Just Society, Princeton 2018, p. 232.

3 As ideias por trás de “Feudl” estão descritas no blog de Yarvin, Unqualified Reservations.

4 Varoufakis: ver o seu curto artigo Techno-Feudalism Is Taking Over, Project Syndicate, 28 June 2021; ver, também, a minha entrevista com ele, Yanis Varoufakis on Crypto, the Left and Techno-Feudalism, The Crypto Syllabus, 26 January 2022; Mariana Mazzucato, Preventing Digital Feudalism, Project Syndicate, 2 October 2019; Jodi Dean, Communism or Neo-Feudalism?, New Political Science, vol. 42, no. 1, February 2020; Robert Kuttner: ver o artigo em coautoria com Katherine Stone, The Rise of Neo-Feudalism, American Prospect, 8 April 2020. Ver, em adição, a discussão de Wolfgang Streeck sobre a “desiqualdade oligárquica”: How Will Capitalism End? Essays on a Failing System, London and New York 2016, pp. 28–30, 35, 187. Michael Hudson tem escrito sobre o neofeudalismo por quase uma década; ver, por exemplo, The Road to Debt Deflation, Debt Peonage and Neofeudalism, Levy Economics Institute of Bard College Working Paper no. 708, February 2012. Robert Brenner usou o termo em seu From Capitalism to Feudalism? Predation, Decline and the Transformation of US Politics’, University of Massachusetts Amherst Political Economy Workshop, 27 April 2021.

5 Ver Brett Christophers, Rentier Capitalism: Who Owns the Economy, and Who Pays for It? Londres, 2020.

6 Julia Tomassetti, Does Uber Redefine the Firm? The Postindustrial Corporation and Advanced Information Technology, Indiana Legal Studies Research Paper nº 345, abril de 2016.

7 A recapitulação mais acessível da leitura marxista sobre o feudalismo como uma lógica econômica se encontra em Chris Wickham, How Did the Feudal Economy Work? The Economic Logic of Medieval Societies, Past & Present, vol. 251, no. 1, May 2021.

8 Devo essa frase notável ao título do livro de Murray Smith’s Invisible Leviathan: Marx’s Law of Value in the Twilight of Capitalism, Leiden 2020.

9 O livro de Marc Bloch, Feudal Society, London [1939] 2014, é a referência perene nessa esfera intelectual.

10 Ellen Meiksins Wood, The Separation of the Economic and the Political in Capitalism, NLR nº127, maio-junho de 1981, p. 80.

11 A literatura nesse tópico é imensa, mas um texto inicial indispensável sobre o Debate Brenner se encontra no livro de Trevor Aston e Charles Philpin, eds, The Brenner Debate: Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe, Cambridge 1987.

12 Immanuel Wallerstein, The Origins of the Modern World-System, New York 1974, pp. 16–20.

13 Robert Brenner, The Origins of Capitalist Development: A Critique of Neo-Smithian Marxism, NLR nº 104, julho-agosto de 1977.

14 Robert Brenner, What Is, and What Is Not, Imperialism? Historical Materialism, vol. 14, no. 4, Janeiro de 2006, pp. 79–105.

15 Karl Marx, Capital, Livro I. Ref. Orig. Bem Fowkes. Londres, 1990, p. 915.

16 Cédric Durand, Techno-féodalisme: Critique de l’économie numérique, Paris 2020.

17 Ver Chris Harman and Robert Brenner, The Origins of Capitalism, International Socialism, nº 111, verão de 2006.

18 Ver, por exempo, Özgür Orhangazi, The Role of Intangible Assets in Explaining the Investment–Profit Puzzle, Cambridge Journal of Economics, vol. 43, nº 5, março de 2019, pp. 1251–86; Herman Mark Schwartz, Global Secular Stagnation and the Rise of Intellectual Property Monopoly, Review of International Political Economy, 2021, pp. 1–26.

19 Durand também discute essa tipologia num artigo em coautoria com William Milberg, Intellectual Monopoly in Global Value Chains, Review of International Political Economy, vol. 27, nº 2, setembro de 2020.

20 McKenzie Wark, Capital Is Dead: Is This Something Worse? London e New York, 2021.

21 Ver também o livro de Cecilia Rikap, Capitalism, Power and Innovation: Intellectual Monopoly Capitalism Uncovered, London 2021.

22 Jason Moore, The Capitalocene, Part 2: Accumulation by Appropriation and the Centrality of Unpaid Work/Energy, The Journal of Peasant Studies, vol. 45, nº 2, maio de 2018, pp. 237–79.

23 Wood, The Separation of the Economic and Political in Capitalism, pp. 66–7.

24 Brenner, Escalating Plunder, p. 22.

De volta às bandas fiscais

Eleição e fracasso do teto "Temer" de gasto reacendem debate fiscal

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Cédulas de real São Paulo - Gabriel Cabral - 21.ago.2019/Folhapress

Já escrevi bastante sobre o assunto, mas como alguns colegas estão voltando às ideias que sugeri há dez anos, quando o governo Dilma debatia o que fazer diante da desaceleração econômica de 2012, acho que vale a pena retornar ao tema.

Seja qual for a regra fiscal, é preciso descriminalizar o assunto. Devemos aumentar a transparência e a prestação de contas, recuperando o orçamento público e abandonando o orçamento secreto, mas sem criar pretexto para procuradores midiáticos criarem crises institucionais por firulas contábeis.

Já temos um modelo que funciona bem na política monetária, onde o governo fixa o intervalo para a inflação, o BC (Banco Central) toma medidas para cumprir a meta estipulada pelo governo e, quando a inflação efetiva fica fora da meta, o BC explica o que deu ruim e diz como e em que prazo ele trará a inflação de volta ao intervalo definido pelo governo.

As ações monetárias ocorrem de modo gradual (sem "morte" ou "ressurreição" súbita da economia via pancada no juro). Mais importante, ninguém chama a polícia para prender os membros do Comitê de Política Monetária quando a meta não é cumprida.

E se o BC não levar a meta de inflação a sério? O mercado responde com aumento do juro de longo prazo e da taxa de câmbio, o que por sua vez desacelera o crescimento da economia e aumenta o desemprego. As consequências econômicas e políticas da má administração monetária são punição suficiente por não cumprir a meta de inflação, levando à troca de comando do BC de quatro em quatro anos.

A lógica monetária de "transparência explicativa" também pode ser aplicada à política fiscal. Como? Com o governo definindo um intervalo para o seu resultado primário, a ser cumprido pelo Tesouro, e tendo o gasto como principal instrumento de ação.

Por que o gasto? Pelo simples e óbvio motivo de que o governo tem mais controle sobre sua despesa do que sobre sua receita. Além disso, assim como regulação financeira, tributação é assunto mais estrutural do que conjuntural, coisa que não deve ficar variando ao sabor de choques de curto prazo.

Fazendo um paralelo entre política monetária e fiscal, assim como o BC tem por objetivo dar previsibilidade ao valor da moeda, mas sem fixar o nível ótimo de preços, o Tesouro deveria dar previsibilidade ao endividamento público, mas sem fixar o nível ótimo de dívida.

Especificamente, a meta da política monetária é definida pela variação do preço (inflação), não pelo nível de preço. Seguindo essa lógica, a meta do Tesouro deveria ser a variação da dívida (resultado), não o nível de dívida. E como o Tesouro não controla o juro, a variação relevante de dívida é aquela dada pelo resultado primário do governo.

No mesmo sentido, na política monetária a meta é para a inflação, mas o que o BC realmente controla é a taxa Selic. Na política fiscal, a referência para a ação do Tesouro deveria ser o resultado primário, mas com o governo fixando o que ele realmente controla (ou deveria controlar): o seu g asto primário.

Assim como a Selic é a principal variável de controle para atingir o objetivo da política monetária, o gasto deve ser o principal instrumento para atingir o objetivo da política fiscal. Tudo isso não é novidade na literatura sobre o tema, mas como algumas ideias demoram a chegar no Brasil, só agora alguns colegas acordaram para o óbvio. Levou dez anos, mas antes tarde do que nunca!

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Uma guerra normal

A esquerda americana e a guerra na Ucrânia.

Alexander Zevin



Bombas russas estão caindo sobre a Ucrânia, não americanas. Nesse nível, os aspectos morais da guerra são claros. Mas reconhecer isso não é o mesmo que uma resposta política, nem flui automaticamente dela. Ao se recusar a refletir sobre as causas mais profundas da guerra ou as possíveis saídas dela, o comentário liberal nos EUA cai em seus padrões usuais, nos quais a América figura como inocente no exterior, uma benfeitora, para quem cada crise é algo externo sobre o qual agir, nunca algo pelo qual poderia ser responsável. "Você não pode culpar os inocentes, eles são sempre inocentes", escreveu Graham Greene em The Quiet American. Para o narrador, um exausto jornalista britânico em Saigon, isso é uma espécie de insanidade, encarnada no personagem do título: o agente da CIA Alden Pyle, recém-chegado à Indochina vindo de Harvard no início dos anos 1950. "Eu nunca conheci um homem que tivesse melhores motivos para todos os problemas que ele causou".

Esse é o tom subjacente às reações da imprensa, onde a indignação moral é facilmente gasta em uma chama de condenação de um país estrangeiro que deixa pouco de sobra para o seu. Agora não era o momento de discutir se as “queixas de Putin tinham bases de fato”, insistiu o New York Times quando a invasão começou. Putin era o único responsável pela nova Guerra Fria, uma “potencialmente mais perigosa porque suas reivindicações e demandas não oferecem motivos para negociações”. A maioria de seus redatores concordaram, de David Brooks a Paul Krugman e Michelle Goldberg, ao casal não tão estranho Bret Stephens e Gail Collins – os EUA devem mostrar a Putin que “ele nunca, jamais vencerá esta guerra”. Esta linha transitou para editoriais em The New Republic, Atlantic, New Yorker. Para Timothy Snyder em Foreign Policy, era 1939 novamente, e Putin – como herdeiro tanto de Hitler quanto de Stalin – havia feito um pacto nazista-soviético consigo mesmo. Em coletivas de imprensa na Casa Branca, os repórteres pediram que o governo avançasse: Biden errou ao dizer que queria evitar a Terceira Guerra Mundial, perguntou o correspondente da ABC, “encorajando” Putin ao descartar a “intervenção militar direta” cedo demais?

A imprensa de negócios provou ser quase tão incendiária. Cada edição do Financial Times, Economist e Wall Street Journal está cheia de pedidos de sanções mais duras que superam a anterior. Retirar os bancos russos do SWIFT agora é uma guerra financeira para os fracos de coração. Medidas mais radicais visam provocar crises de dívida, moeda e bancárias sobrepostas: um bloqueio aos bancos russos da compensação e liquidação de dólares, proibição de negociar sua dívida em mercados secundários e apreensão de dois terços de suas reservas em dólar. Estes juntaram-se a embargos de tecnologia avançada, por empresas e governos, incluindo equipamentos Boeing e Airbus para atender aeronaves comerciais; e apelos crescentes para acabar com todas as importações de petróleo e gás, não apenas para os EUA, mas também para a Europa – que se dane o clima de inverno, os altos preços dos combustíveis e os aposentados congelados. O jornalista financeiro Matthew Klein passou de diagnosticar guerras comerciais como guerras de classe para promovê-las, com apelos por uma 'OTAN financeira', dotada de 'mecanismos permanentes' de coerção e um 'fundo de liberdade' para compensar os investidores pela perda do mercado russo - e "(hipoteticamente) o chinês".

A escalada econômica começou a evoluir para o envolvimento militar, em vez de atuar como uma alternativa a ele. Martin Wolf, do FT, concluiu em meados de março que a Terceira Guerra Mundial pode ser um risco que vale a pena correr. Entusiasmado com armas econômicas, a mídia tem sido positivamente entusiasmada com o tipo físico. Depois de duas semanas, 17.000 armas antitanque chegaram à Ucrânia, de acordo com o Times, enquanto 'equipes de missões cibernéticas' dos EUA foram criadas para ajudá-los em atos não especificados de 'interferência' contra a Rússia - de maneiras que estão testando as definições legais dos EUA como 'co-combatente'. Apenas caças e uma “zona de exclusão aérea” – ou seja, bombardear aeródromos russos – até agora causaram alguma hesitação nesses bairros. Mas há uma pressão crescente para conceder ambos. O Wall Street Journal exige material aéreo suficiente para tornar redundante uma zona de exclusão aérea: 28 MiG-29, juntamente com Su-25, S-200, S-300 e drones canivete. Dessa perspectiva, US$ 800 milhões em nova ajuda anunciada em 15 de março foi uma espécie de capitulação, "como se Biden estivesse tão cauteloso em provocar Putin a ponto de temer o que poderia acontecer se a Ucrânia vencesse a guerra".

Essa bravata se estende à indústria cultural em geral, onde abundam os sinais de um momento semelhante ao que se seguiu ao 11 de setembro, quando a renomeação de French Fries ocupou o tempo morto entre Operations Enduring e Iraqi Freedom. Então, como agora, colocar o ataque no contexto era desculpá-lo; e há a pressa de fazer alguma coisa, que se orgulha de não ter pensado nas consequências. O que mudou não é apenas a erosão do momento unipolar, mas a multiplicação de caminhos para a guerra virtual, para participar dela e ser manipulado por ela: crowdfunding milícias urbanas no Twitter, postando vídeos de tanques capturados ou 'gatos do exército', para Instagram e TikTok. O resultado está em algum lugar entre a guerra como saúde do estado e a guerra como autocuidado – com bailarinas, pianistas, pintores e cientistas desvinculados de bolsas ou shows, contra banners e emojis azuis e amarelos, sem nenhum custo para os americanos fazerem isso. A Warner Brothers negará aos adolescentes russos o Batman, o Twitch deixará de pagá-los para jogar videogames online, o Facebook permitirá que alguns usuários peçam sua morte.

No entanto, se o tom da histeria é tão alto quanto qualquer coisa depois do 11 de setembro – o mundo livre, a civilização, o bem e o mal, todos estão na balança mais uma vez – há menos unanimidade de opinião por trás disso. Alguns dos mesmos veículos que exigem sanções punitivas, boicotes culturais e ajuda militar ilimitada também carregam vozes discordantes. Até agora, eles têm sido politicamente ecléticos, provavelmente tanto à direita quanto à esquerda: o realista de RI John Mearsheimer; Branko Milanovic, o estudioso da desigualdade; o ex-editor do New Republic Peter Beinart; o católico conservador Ross Douthat, que pediu cautela no Times, indo além de seu colega Thomas Friedman ao apontar que “os Estados Unidos e a OTAN não são apenas espectadores inocentes”; a sanderista Elizabeth Bruenig, agora no Atlantic; e para Tulsi Gabbard e Tucker Carlson, chamados de traidores ou pior, como discrepantes à esquerda e à direita no Congresso ou na TV.

Além desses casos, como a esquerda americana – amplamente definida como crítica do capitalismo, em um grau ou outro – reagiu à guerra? Um pequeno grupo resistiu ao jingoísmo em todas as suas formas. A editora do The Nation, Katrina vanden Heuvel, condenou a invasão, mas também a “irracionalidade de nível” e a “arrogância” de funcionários dos EUA, cujo desejo de estender uma aliança militar às fronteiras da Rússia forneceu o contexto para isso. Ela pediu a Biden que pressione por um cessar-fogo imediato e a retirada russa em troca da neutralidade da Ucrânia. Keith Gessen, editor fundador da n+1, ofereceu um relato poderoso das origens da guerra, evitando a psicologia pop em favor da história e da reportagem para questionar sua inevitabilidade. No outro extremo do espectro, alguns aderiram avidamente a uma campanha de difamação liberal contra supostos putinistas, entre eles George Monbiot no Guardian e Paul Mason no New Statesman, este último pedindo um estímulo militar maciço para se preparar para a próxima conflagração global. Nos EUA, esse papel tem ido diretamente para “abutres da cultura” na New York Magazine ou na Vice.

A maior coorte – a esquerda do DSA e do Squad, escritores da Jacobin, Dissent, Jewish Currents, The Intercept e outras publicações menores – está em algum lugar no meio. Suas posições diferem apenas em grau e nuance da linha do Departamento de Estado: contra amplas sanções, a maioria também se opõe a despejar armas na Ucrânia. Mas sua postura é basicamente defensiva, alardeando sua condenação à Rússia em vez de criticar Biden ou a OTAN, em parte para evitar acusações de “tankiness”. A declaração inicial da DSA foi vaga e sinuosa, embora os democratas tenham feito fila para rejeitá-la de qualquer maneira. A AOC, cuja estrela ajudou a lançar, emitiu um comunicado alguns dias depois, encerrando uma denúncia de “Putin e seus oligarcas”, insistindo que “qualquer ação militar deve ocorrer com a aprovação do Congresso”. Como um grito de guerra, este – na verdade, “nenhuma guerra de aniquilação sem aprovação do Congresso” – deixa a desejar. Em Jacobin, Branko Marcetic soou igualmente duro, embora mais preocupado com a guerra nuclear. Graças a Jeremy Scahill, o Intercept continua a documentar a enorme escala de transferências de armas, mas também tentou se distanciar de uma “esquerda tanque” que “inventa desculpas” para Putin.

Essa coorte tende a apoiar as “boas sanções” defendidas por Thomas Piketty – exercidas contra “a fina camada social de multimilionários da qual o regime depende” em vez de russos comuns. Comparativamente humanas em espírito, tristemente ingênuas na prática, essas propostas não compreenderam os motivos do poder que procuravam guiar. Em poucos dias, Washington lançou medidas para induzir uma crise socioeconômica de poupadores e assalariados comuns, deixando os ricos relativamente ilesos. “Vamos causar o colapso da economia russa”, explicou o ministro das Finanças da França, com naturalidade. Leituras mais atentas de livros de dois arquitetos do moderno regime de sanções, Juan Zarate sob Bush e Richard Sobrinho sob Obama, podem ter esclarecido algumas ilusões sobre seu propósito. A iranificação está na ordem do dia, não sanções com um toque social-democrata.

Nesse sentido, uma parcela significativa da esquerda não conseguiu pensar além de um quadro liberal intervencionista, ainda que discorde de aspectos da resposta de Biden. Em Jewish Currents, David Klion descreveu a expansão da OTAN e os temores de cerco que isso despertou, apenas para descartá-lo como irrelevante: a única explicação é que “algo fundamental mudou na mente de Putin”. Em Dissent, Greg Afinogenov manteve o ataque aos “obcecados” pela OTAN – culpando a esquerda dos EUA por um provincianismo que a cegava para um maior nacionalismo russo, mesmo quando ele rejeitava um envolvimento mais profundo. Para Eric Levitz da New York Magazine, muitos socialistas eram simplesmente “muito ideologicamente rígidos para ver o conflito com olhos claros”. Não havia “base para acreditar que o imperialismo ocidental era o principal obstáculo a uma resolução diplomática”. De fato, a esquerda não estava moralmente obrigada a defender “um governo democrático lutando contra a dominação de uma autocracia de extrema direita”, com armas, sanções e a proteção da OTAN, se fosse preciso? Com o objetivo de complicar as “respostas ideológicas” da esquerda, Levitz reproduziu as justificativas padrão para a intervenção dos EUA da direita liberal e neoconservadora – sem tentar caracterizar a política externa dos EUA em geral, ou situar sua resposta específica aqui em qualquer continuum histórico mais longo.

Nem a esquerda respeitável nem os liberais linha-dura podem explicar como as “punições” em espiral pretendem trazer um fim rápido à guerra, muito menos uma paz duradoura. Será que elas não foram projetados para isso, e que os EUA e seus aliados veem uma chance de resolver seus próprios interesses estratégicos no 'pivô geopolítico' da Eurásia - no qual a soberania ucraniana, para não falar da vida ucraniana, figura no máximo incidentalmente ? “Em território da OTAN, deveríamos ser o Paquistão”, declarou o ex-aluno da NSA Douglas Lute. Condoleezza Rice tinha a mesma mensagem de apoio a “jogar o livro” na Rússia, alegando que – expresso sem uma pitada de ironia – “quando você invade uma nação soberana, isso é um crime de guerra”. Hillary Clinton foi ainda mais explícita: o desastre russo no Afeganistão na década de 1980 deveria ser o “modelo” para a Ucrânia. Os planos para transformar a Ucrânia em um novo Afeganistão, das pessoas que acabaram de libertar o antigo com as garras da fome, deveriam dar uma pausa a qualquer um preocupado com os ucranianos.

Ainda mais impressionante do que a hipocrisia do núcleo imperial é sua continuidade de perspectiva: a mudança de regime é a ordem não oficial do dia. Se Biden finalmente disse isso na Polônia em 26 de março, isso simplesmente ressalta quão pouca necessidade ele sente de se comprometer com um governo em Moscou que Washington vê como ilegítimo: perdedor da Guerra Fria, mais fraco em todos os aspectos que importa, sem um governo liberal ou democrático para cobrir suas predações domésticas, o regime é agora um pária da 'comunidade internacional' também, e sem dúvida isso parece para muitos no 'blob' de segurança como a melhor chance que eles podem ter de se livrar dele. Vale a pena reservar um momento, no entanto, para lembrar a inépcia de nossos governantes, cujos esforços anteriores de mudança de regime terminaram em desastre. Mesmo que as suposições mais alegres da contra-ofensiva dos EUA tenham se concretizado, não está claro o que se ganharia se a Rússia voltasse ao estado de colapso econômico e político dos anos 1990 que deu origem a Putin. A Ucrânia continuaria sendo um problema, por mais flexível que fosse seu substituto.

Aqui, o foco estreito da “esquerda não-tanquista” esbarra em um impasse explicativo. A ideia de que a OTAN é incidental a esta crise é desmentida não tanto pela “narrativa de Putin” quanto pelas fontes americanas disponíveis. Em 2008, o embaixador William Burns, agora chefe da CIA, telegrafou dizendo que as aspirações da Ucrânia e da Geórgia de ingressar na aliança eram “pontos nevrálgicos” para a Rússia, o que poderia levá-la a intervir militarmente. Ignorando isso, Obama avançou com a oferta de adesão de longo prazo e, em seu segundo mandato, retirou-se de todos os tratados de controle de armas com a Rússia, mesmo quando anunciou uma “modernização” de US$ 1 trilhão do arsenal nuclear dos EUA. Em janeiro, Biden rejeitou dois projetos de acordos de segurança apresentados pela Rússia como base para as negociações em Genebra, incluindo propostas para limitar exercícios militares em sua fronteira e excluir a Ucrânia. “A porta da OTAN está aberta”, foi a resposta desdenhosa de Blinken.

Mas o verdadeiro ponto de virada veio antes, como a nova história de expansão da OTAN de M. E. Sarotte, Not One Inch, deixa claro. Tomando o título da garantia que o secretário de Estado James Baker deu a Gorbachev em 1990, de que se ele concordasse com a reunificação alemã, a OTAN 'não mudaria uma polegada para o leste de sua posição atual', o livro detalha como exatamente o oposto aconteceu - com os EUA buscando a rápida incorporação de todos os antigos países do Pacto de Varsóvia, começando com a Alemanha Oriental, no momento em que o colapso soviético parecia iminente. Para aqueles que pensam que a questão da Ucrânia começa e termina com Putin, Sarotte relata como o pacifista Gorbachev insistiu furiosamente a Bush que "veio a existir apenas porque os bolcheviques locais a certa altura o fizeram dessa maneira" acrescentando Kharkov e Donbass, e Khrushchev mais tarde "passou a Crimeia da Rússia para a Ucrânia como um gesto fraterno". Nenhuma proposta de qualquer tipo da OTAN deve ser feita diretamente a ela. Quando Baker pressionou um negociador russo sobre armas nucleares na Ucrânia, e o que aconteceria com eles no caso de uma guerra com Kiev, a resposta ingênua parece um trágico sinal a caminho da crise atual. Ele “respondeu que havia 12 milhões de russos na Ucrânia, com “muitos casamentos mistos”, então “que tipo de guerra poderia ser?” Baker respondeu simplesmente: "Uma guerra normal".

Se grande parte da esquerda está subjugada, parece haver duas razões principais. A primeira decorre de sua relação com o Partido Democrata desde 2016, que efetivamente a neutralizou como bancada e base ativista. Na ausência de qualquer movimento sobre a legislação de reforma social, os progressistas acompanharam a busca de vincular Trump a Putin, a ponto de a russofobia definir cada vez mais o partido como tal. Nesta questão, a maior parte do Esquadrão dificilmente difere do presidente do Comitê de Inteligência da Câmara. O segundo é o sentimento moral, sustentado por uma memória poderosamente seletiva. Meses após a retirada do Afeganistão e o roubo de suas reservas – e durante o bombardeio saudita ao Iêmen apoiado pelos EUA – este país não está em posição de dispensar lições de moral. Como defensor do princípio da soberania nacional, sua credibilidade é nula. E a vacuidade moral de sua posição é importante, não porque absolva a Rússia de irregularidades em um banho quente de torpeza recíproca, mas porque aponta para a necessidade urgente de proceder em outra base, se o objetivo é encontrar uma solução pacífica. Bombas de financiamento coletivo para alimentar os combates em Kiev não é isso. Tampouco são sanções indiscriminadas em busca de mudança de regime em Moscou. No mínimo, a esquerda dos EUA deve reunir as modestas reservas de independência e força que tem para pedir ao seu próprio governo que reduza a escalada, busque negociações diretas e indiretas, troque garantias de neutralidade por um cessar-fogo e retirada de tropas. A recusa em contemplar qualquer alteração a uma ordem pós-Guerra Fria forjada em arrogância pelos vencedores não é firmeza. É guerreira.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...