Volodymyr Ishchenko
Tradução / Desde que as forças russas invadiram a Ucrânia, no início deste ano, analistas de todo o espectro político esforçaram-se por identificar exatamente o que – ou quem – nos levou a este ponto. Palavras e expressões como “Rússia”, “Ucrânia”, “Ocidente” ou “Sul Global” foram lançadas como se apresentassem atores políticos unidos. Mesmo na esquerda, as declarações de Vladimir Putin, Volodymyr Zelensky, Joe Biden, e outros líderes mundiais, sobre “preocupações de segurança”, “autodeterminação”, “escolha civilizacional”, “soberania”, “imperialismo” ou “anti-imperialismo” são muitas vezes tomadas pelo seu valor nominal, como se representassem interesses nacionais coerentes.
Especificamente, o debate sobre os interesses russos – ou, mais precisamente, da elite governativa russa – em lançar esta guerra tende a ser polarizado em torno de extremos que são questionáveis. Muitos interpretam de forma literal o que Putin diz, deixando de questionar se a sua obsessão com a expansão da NATO ou a sua insistência em afirmar que ucranianos e russos constituem “um só povo” representa os interesses nacionais russos ou são compartilhados pela sociedade russa como um todo. Por outro lado, muitos descartam os seus comentários como mentiras descaradas, fazendo parte de uma estratégia de comunicação sem qualquer relação com os seus objetivos “reais” na Ucrânia.
À sua maneira, ambas as posições servem para mistificar as motivações do Kremlin em vez de as esclarecer. As discussões atuais sobre a ideologia russa muitas vezes parecem um regresso aos tempos de "A Ideologia Alemã", escrita pelos jovens Karl Marx e Friedrich Engels há cerca de 175 anos. Para alguns, a ideologia dominante na sociedade russa é uma verdadeira representação da ordem social e política. Outros acreditam que simplesmente proclamar que "o rei vai nu" será suficiente para furar a bolha da ideologia.
Infelizmente, o mundo real é mais complicado. A chave para entender “o que Putin realmente quer” não é escolher frases obscuras dos seus discursos e artigos que se encaixam nas ideias preconcebidas dos analistas, mas sim realizar uma análise sistemática dos interesses materiais estruturalmente determinados, organização política e legitimação ideológica da classe social que representa.
A seguir, tento identificar alguns elementos básicos de tal análise para o contexto russo. Isto não significa que uma análise semelhante dos interesses das classes dominantes ocidentais ou ucranianas neste conflito seja irrelevante ou inadequada, mas concentro-me na Rússia em parte por razões práticas, em parte porque é a questão mais controversa no momento e em parte porque a classe dominante russa é a principal responsável pela guerra. Ao entender os seus interesses materiais, podemos ir além das explicações frágeis, atribuindo às reivindicações dos governantes o seu valor real, e avançar em direção a uma imagem mais coerente de como a guerra está enraizada no vácuo económico e político aberto pelo colapso soviético em 1991.
O que há em um nome?
Durante a guerra atual, a maioria dos marxistas referiu-se ao conceito de imperialismo para teorizar sobre os interesses do Kremlin. Claro, é importante abordar qualquer quebra-cabeças analítico com todas as ferramentas disponíveis. No entanto, é também importante usá-las de forma correta.
O problema aqui é que o conceito de imperialismo praticamente não passou por nenhum desenvolvimento na sua aplicação à condição pós-soviética. Nem Vladimir Lenine, nem qualquer outro teórico marxista clássico, poderiam ter imaginado a situação fundamentalmente nova que surgiu com o colapso do socialismo soviético. A sua geração analisou o imperialismo da expansão e modernização capitalistas. A condição pós-soviética, pelo contrário, é uma crise permanente de contração, "desmodernização" e periferização.
Isto não significa que a análise do imperialismo russo hoje seja inútil enquanto tal, mas precisamos de trabalhar bastante os conceitos para a tornar frutífera. Um debate sobre se a Rússia contemporânea constitui um país imperialista, referindo-se a algumas definições de livros didáticos do século XX, tem apenas valor escolástico. A partir de um conceito explicativo, o “imperialismo” transforma-se num rótulo descritivo a-histórico e tautológico: “A Rússia é imperialista porque atacou um vizinho mais fraco”; “A Rússia atacou um vizinho mais fraco porque é imperialista”, e assim por diante.
Não ter em conta o expansionismo do capital financeiro russo (considerando o impacto das sanções sobre a economia russa muito globalizada e os ativos ocidentais dos “oligarcas” russos); a conquista de novos mercados (na Ucrânia, que não conseguiu atrair praticamente nenhum Investimento Direto Estrangeiro, exceto o dinheiro offshore dos seus próprios oligarcas); controlo sobre recursos estratégicos (quaisquer que sejam as reservas de minérios em solo ucraniano, a Rússia iria precisar de expandir a indústria para os absorver, ou pelo menos expandir a possibilidade de os vender para economias mais avançadas, o que é, surpresa…, severamente restringido por causa das sanções ocidentais); ou quaisquer outras causas imperialistas típicas por trás da invasão russa, alguns analistas afirmam que a guerra pode possuir a racionalidade autónoma de um imperialismo “político” ou “cultural”. Esta é, em última análise, uma explicação eclética. A nossa tarefa é justamente explicar como os fundamentos políticos e ideológicos da invasão refletem os interesses da classe dominante. Caso contrário, acabaremos, inevitavelmente, com teorias absurdas do "poder pelo poder" ou "fanatismo ideológico". Além disso, isso significaria que a classe dominante russa ou foi feita refém por um maníaco, chauvinista nacionalista, sedento de poder e obcecado com uma “missão histórica” de restaurar a grandeza russa, ou sofre de uma forma extrema de falsa consciência – compartilhando as ideias de Putin sobre a ameaça da NATO e a sua negação da condição de Estado ucraniano, levando a políticas que são objetivamente contrárias aos seus interesses.
Eu acredito que isto está errado. Putin não é um maníaco sedento de poder, nem um fanático ideológico (esse tipo de política foi marginal em todo o espaço pós-soviético), nem um louco. Ao lançar a guerra na Ucrânia, ele protege os interesses coletivos racionais da classe dominante russa. Não é incomum que os interesses coletivos de classe se sobreponham apenas parcialmente aos interesses dos representantes individuais dessa classe, ou mesmo os contradigam. Mas que tipo de classe realmente governa a Rússia – e quais são seus interesses coletivos?
Capitalismo político na Rússia e mais além
Quando questionados sobre qual a classe que governa a Rússia, a maioria das pessoas de esquerda provavelmente responderia quase instintivamente: capitalistas. O cidadão médio, no espaço pós-soviético, provavelmente chamá-los-ia de ladrões, bandidos ou máfia. Uma resposta um pouco mais intelectual seria “oligarcas”. É fácil descartar tais respostas como a falsa consciência daqueles que não compreendem os seus próprios governantes em termos marxistas “adequados”. No entanto, uma análise mais produtiva seria pensar qual é a razão pela qual os cidadãos pós-soviéticos enfatizam o roubo e a estreita interdependência entre os negócios privados e o Estado que a palavra “oligarca” implica.
Tal como na discussão do imperialismo moderno, precisamos de levar a sério a especificidade da condição pós-soviética. Historicamente, a “acumulação primitiva” aconteceu, neste caso, no processo de desintegração centrífuga do Estado soviético e da economia. O cientista político Steven Solnick chamou a este processo de “roubar o Estado”. Os membros da nova classe dominante ou privatizaram a propriedade estatal (muitas vezes por cêntimos de dólar) ou tiveram muitas oportunidades para desviar lucros de entidades formalmente públicas para mãos privadas. Exploraram as relações informais com funcionários do Estado e as brechas legais muitas vezes intencionalmente projetadas para a evasão fiscal em massa e fuga de capitais, enquanto executavam aquisições hostis de empresas em prol de lucros rápidos com um horizonte de curto prazo.
O economista marxista russo Ruslan Dzarasov capturou essas práticas com o conceito de “insider rent” (renda dos de dentro), enfatizando a natureza rentista do rendimento extraído por pessoas de dentro do sistema graças ao seu controlo sobre os fluxos financeiros das empresas, que dependem das relações com os detentores do poder. Certamente que estas práticas também podem ser encontradas em outras partes do mundo, mas o seu papel na formação e reprodução da classe dominante russa é muito mais importante devido à natureza da transformação pós-soviética, que começou com o colapso centrífugo do socialismo de Estado e a subsequente reconsolidação político-económica com base no clientelismo.
Outros pensadores proeminentes, como o sociólogo húngaro Iván Szelényi, descrevem um fenómeno semelhante como “capitalismo político”. De acordo com Max Weber, o capitalismo político é caracterizado pela exploração do cargo político para acumular riqueza privada. Eu chamaria aos capitalistas políticos a fração da classe capitalista cuja principal vantagem competitiva é derivada de benefícios seletivos do Estado, ao contrário dos capitalistas cuja vantagem está enraizada em inovações tecnológicas ou uma força de trabalho particularmente barata. Os capitalistas políticos não são exclusivos dos países pós-soviéticos, mas são capazes de florescer precisamente naquelas áreas onde o Estado historicamente desempenhou o papel dominante na economia e acumulou imenso capital, agora aberto à exploração privada.
A presença do capitalismo político é crucial para entender a razão pela qual, quando o Kremlin fala em “soberania” ou “esferas de influência”, não é de forma alguma produto de uma obsessão irracional por conceitos ultrapassados. Ao mesmo tempo, tal retórica não é necessariamente uma articulação do interesse nacional da Rússia, mas um reflexo direto dos interesses de classe dos capitalistas políticos russos. Se os benefícios seletivos do Estado são fundamentais para a acumulação de sua riqueza, esses capitalistas não têm escolha a não ser cercar o território onde exercem o controlo monopolista – controlo que não deve ser compartilhado com nenhuma outra fração da classe capitalista.
Esse interesse em “marcar território” não é compartilhado, ou pelo menos não é tão importante para tipos de capitalista diferentes. Uma controvérsia de longa data na teoria marxista girava em torno da questão de, parafraseando Göran Therborn, “o que a classe dominante realmente faz quando governa”. O enigma era que a burguesia nos estados capitalistas não administra o estado diretamente. A burocracia estatal geralmente goza de autonomia substancial em relação à classe capitalista, mas serve-a estabelecendo e aplicando regras que beneficiam a acumulação capitalista. Os capitalistas políticos, por outro lado, não exigem regras gerais, mas um controle muito mais rígido sobre os decisores políticos. Alternadamente, eles próprios ocupam cargos políticos e exploram-nos para o seu enriquecimento privado.
Muitas figuras do capitalismo empresarial clássico beneficiaram de subsídios estatais, regimes fiscais preferenciais ou várias medidas protecionistas. No entanto, ao contrário dos capitalistas políticos, a sua própria sobrevivência e expansão no mercado raramente dependiam de um conjunto específico de indivíduos que ocupavam cargos específicos, dos partidos específicos no poder ou de regimes políticos específicos. O capital transnacional iria sobreviver sem os estados-nação em que as suas sedes estavam localizadas – lembre-se do projeto de cidades empreendedoras flutuantes, independentes de qualquer estado-nação, impulsionado por magnatas do Silicon Valley como Peter Thiel. Os capitalistas políticos não podem sobreviver na competição global sem terem pelo menos algum território onde possam recolher rendas internas sem interferência externa.
Conflito de classes na periferia pós-soviética
Permanece uma questão em aberto se o capitalismo político será sustentável a longo prazo. Afinal, o Estado precisa tirar recursos de algum lado para os redistribuir entre os capitalistas políticos. Como observa Branko Milanovic, a corrupção é um problema endémico para o capitalismo político, mesmo quando uma burocracia eficaz, tecnocrática e autónoma o administra. Ao contrário do caso mais bem-sucedido de capitalismo político, como o da China, as instituições do Partido Comunista Soviético desintegraram-se e foram substituídas por regimes baseados em redes de clientelismo pessoal, virando a fachada formal da democracia liberal a seu favor. Isto muitas vezes impede impulsos de modernizar e profissionalizar a economia. Para ser muito claro, não se pode roubar da mesma fonte para sempre. É preciso transformar o modelo capitalista para sustentar a taxa de lucro, seja por meio de investimentos de capital ou intensificação da exploração do trabalho, ou expandir para obter mais fontes de extração de renda interna.
Tanto o reinvestimento como a exploração do trabalho enfrentam obstáculos estruturais no capitalismo político pós-soviético. Por um lado, muitos hesitam em envolver-se em investimentos de longo prazo quando o seu modelo de negócios e até a propriedade dependem fundamentalmente de pessoas específicas no poder. Em geral, provou-se mais oportuno simplesmente transferir lucros para contas offshore. Por outro lado, a força de trabalho pós-soviético era urbana, educada e não era barata. Os salários relativamente baixos da região só foram possíveis devido à extensa infraestrutura material e instituições de assistência social que a União Soviética deixou como legado. Esse legado representa um fardo enorme para o Estado, mas que não é tão fácil de abandonar sem prejudicar o apoio de grupos-chave de eleitores. Procurando acabar com a rivalidade voraz entre os capitalistas políticos que caracterizou os anos 1990, líderes bonapartistas como Putin e outros autocratas pós-soviéticos mitigaram a guerra de todos contra todos equilibrando os interesses de algumas frações da elite e reprimindo outras – sem alterar os alicerces do capitalismo político.
À medida que a expansão voraz começou a esbarrar nos limites internos, as elites russas procuraram terceirizá-la externamente para sustentar a taxa de renda aumentando a capacidade de extração. Daí a intensificação dos projetos de integração liderados pela Rússia, como a União Económica da Eurásia. Estes enfrentaram dois obstáculos. Um era relativamente menor: capitalistas políticos locais. Na Ucrânia, por exemplo, eles estavam interessados em energia russa barata, mas também no seu próprio direito soberano de recolher rendas internas dentro do seu território. Estes capitalistas poderiam instrumentalizar o nacionalismo anti-russo para legitimar a sua reivindicação à parte ucraniana do estado soviético em desintegração, mas não conseguiram desenvolver um projeto de desenvolvimento nacional distinto.
O título do famoso livro do segundo presidente ucraniano, Leonid Kuchma, "A Ucrânia não é a Rússia", é uma boa ilustração desse problema. Se a Ucrânia não é a Rússia, então o que é exatamente? O fracasso universal dos capitalistas políticos pós-soviéticos não russos em superar a crise de hegemonia tornou o seu governo frágil e, em última análise, dependente do apoio russo, como vimos recentemente na Bielorrússia e no Cazaquistão.
A aliança entre o capital transnacional e as classes médias profissionais no espaço pós-soviético, representadas politicamente por sociedades civis pró-ocidentais e ONGs, deu uma resposta mais convincente à pergunta sobre o que exatamente deveria crescer sobre as ruínas do degradado e desintegrado o socialismo de Estado e apresentou um obstáculo maior à integração pós-soviética liderada pela Rússia. Este constituiu o principal conflito político no espaço pós-soviético que culminou na invasão da Ucrânia.
A estabilização bonapartista decretada por Putin e outros líderes pós-soviéticos fomentou o crescimento da classe média profissional. Parte dela compartilhava alguns benefícios do sistema, por exemplo, se estava empregada no sistema burocrático ou em empresas estatais estratégicas. No entanto, grande parte dela foi excluída do capitalismo político. As suas principais oportunidades de rendimento, carreira e desenvolvimento de influência política estavam nas perspetivas de intensificar as conexões políticas, económicas e culturais com o Ocidente. Ao mesmo tempo, eles eram a vanguarda do "soft power" ocidental. A integração nas instituições lideradas pela UE e pelos EUA apresentava-lhes um projeto de modernização de contrafação de adesão a um capitalismo “adequado” bem como ao “mundo civilizado” em geral. Isto significava, necessariamente, romper com as elites pós-soviéticas, as instituições e as mentalidades arraigadas da era socialista das massas populares “atrasadas” que se apegaram a pelo menos alguma estabilidade após o desastre dos anos 1990.
A natureza profundamente elitista deste projeto é o motivo pelo qual ele nunca se tornou verdadeiramente hegemónico em nenhum país pós-soviético, mesmo quando era impulsionado pelo nacionalismo anti-russo histórico como era – mesmo agora, a coligação negativa mobilizada contra a invasão russa não significa que os ucranianos estejam unidos em torno de qualquer agenda positiva específica. Ao mesmo tempo, ajuda a explicar a neutralidade cética do Sul Global quando solicitado a solidarizar-se com uma aspirante a grande potência em pé de igualdade com as outras grandes potências ocidentais (a Rússia) ou com uma aspirante a periferia dessas mesmas grandes potências que não busca abolir o imperialismo, mas aderir a um melhor (a Ucrânia). Para a maioria dos ucranianos, esta é uma guerra de autodefesa. Reconhecendo isso, também não devemos esquecer a lacuna entre os seus interesses e os interesses daqueles que afirmam falar em seu nome, e que apresentam agendas políticas e ideológicas muito particulares como universais para toda a nação – moldando a “autodeterminação” num sentido de classe muito específico.
A discussão do papel do Ocidente na preparação do caminho para a invasão russa é tipicamente focada na postura ameaçadora da NATO em relação à Rússia. Mas, tendo em conta o fenómeno do capitalismo político, podemos ver o conflito de classes por detrás da expansão ocidental e porque a integração ocidental da Rússia, sem a transformação fundamental desta, nunca poderia ter funcionado. Não era possível integrar os capitalistas políticos pós-soviéticos nas instituições lideradas pelo Ocidente, que explicitamente procuravam eliminá-los como classe, privando-os da sua principal vantagem competitiva: benefícios seletivos concedidos pelos estados pós-soviéticos. A chamada agenda “anti-corrupção” tem sido uma parte vital, senão a mais importante, da visão das instituições ocidentais para o espaço pós-soviético, amplamente compartilhada pela classe média pró-ocidental da região. Para os capitalistas políticos, o sucesso dessa agenda significaria o seu fim político e económico.
Em público, o Kremlin tenta apresentar a guerra como uma batalha pela sobrevivência da Rússia como nação soberana. No entanto, a aposta mais importante, é na sobrevivência da classe dominante russa e do seu modelo de capitalismo político. A reestruturação “multipolar” da ordem mundial resolveria o problema por algum tempo. É por isso que o Kremlin está a tentar vender o seu projeto de classe específico às elites do Sul Global, que obteriam, desta forma, a sua própria “esfera de influência” soberana com base na alegação de representar uma “civilização”.
A crise do Bonapartismo Pós-Soviético
Os interesses contraditórios dos capitalistas políticos pós-soviéticos, das classes médias profissionais e do capital transnacional estruturaram o conflito político que finalmente deu origem à guerra atual. No entanto, a crise da organização política dos capitalistas políticos exacerbou a ameaça sobre eles próprios.
Regimes bonapartistas como os de Putin ou de Alexander Lukashenko na Bielorrússia dependem de um apoio passivo e despolitizado e obtêm a sua legitimidade através da superação do desastre do colapso pós-soviético, não de um tipo de consenso ativo que assegure a hegemonia política da classe dominante.
Um regime autoritário personalista deste tipo é fundamentalmente frágil por causa do problema da sucessão. Não há regras ou tradições claras para transferir o poder, nenhuma ideologia articulada à qual um novo líder deva aderir, nenhum partido ou movimento no qual um novo líder possa ser socializado. A sucessão representa o ponto de vulnerabilidade onde os conflitos internos dentro da elite podem escalar a um grau perigoso e onde as revoltas vindas de baixo têm melhores chances de sucesso.
Estas revoltas têm-se acelerado na periferia da Rússia nos últimos anos, incluindo não apenas a revolução Euromaidan na Ucrânia em 2014, mas também as revoluções na Arménia, a terceira revolução no Quirguistão, a fracassada revolta de 2020 na Bielorrússia e, mais recentemente, a revolta na Cazaquistão. Nos dois últimos casos, o apoio russo mostrou-se crucial para garantir a sobrevivência do regime local. Dentro da própria Rússia, os comícios “Por eleições justas” realizados em 2011 e 2012, bem como as mobilizações posteriores, inspiradas por Alexei Navalny, não foram insignificantes. Na véspera da invasão, a agitação laboral estava a aumentar, enquanto as sondagens mostravam o declínio da confiança em Putin e um número crescente de pessoas que queriam que ele se retirasse. Perigosamente, a oposição a Putin era maior quanto mais jovens eram os entrevistados.
Nenhuma das chamadas “revoluções maidan” pós-soviéticas representava uma ameaça existencial para os capitalistas políticos pós-soviéticos enquanto classe em si. Apenas trocavam frações da mesma classe no poder e, assim, apenas intensificavam a crise de representação política à qual reagiam em primeiro lugar. É por isso que estes protestos se repetiram com tanta frequência.
As “revoluções maidan” são típicas revoluções cívicas urbanas contemporâneas, como as chamou o cientista político Mark Beissinger. Através de dados estatísticos em massa, ele mostra que, ao contrário das revoluções sociais do passado, as revoluções cívicas urbanas apenas enfraquecem temporariamente o regime autoritário e fortalecem as sociedades civis da classe média. Elas não trazem uma ordem política mais forte ou mais igualitária, nem mudanças democráticas duradouras. Normalmente, nos países pós-soviéticos, as revoluções maidan apenas enfraqueceram o Estado e tornaram os capitalistas políticos locais mais vulneráveis à pressão do capital transnacional – direta e indiretamente por meio de ONGs pró-ocidentais. Por exemplo, na Ucrânia, após a revolução Euromaidan, um conjunto de instituições “anti-corrupção” foi teimosamente empurrado para a frente pelo FMI, G7 e sociedade civil. Estas não apresentaram nenhum caso importante de corrupção nos últimos oito anos. No entanto, institucionalizaram a supervisão das principais empresas estatais e do sistema judiciário por estrangeiros e ativistas anti-corrupção, apertando assim as oportunidades dos capitalistas políticos domésticos de colher rendas internas. Os capitalistas políticos russos teriam um bom motivo para ficarem nervosos com os problemas dos oligarcas outrora poderosos da Ucrânia.
As consequências não intencionais da consolidação da classe dominante
Vários fatores ajudam a explicar o momento da invasão, bem como o erro de cálculo de Putin sobre uma vitória rápida e fácil, como a vantagem temporária da Rússia em armas hipersónicas, a dependência da Europa da energia russa, a repressão da chamada oposição pró-russa na Ucrânia, a estagnação dos acordos de Minsk de 2015 após a Guerra no Donbass, ou o fracasso dos serviços de inteligência russos na Ucrânia. Aqui, procurei delinear em traços muito largos o conflito de classes por detrás da invasão, nomeadamente entre os capitalistas políticos interessados na expansão territorial para sustentar as suas rendas, por um lado, e o capital transnacional aliado às classes médias profissionais – que foram excluídas do capitalismo político — por outro.
O conceito marxista de imperialismo só pode ser aplicado utilmente à guerra atual se pudermos identificar os interesses materiais que estão por trás dela. Ao mesmo tempo, o conflito é mais do que apenas sobre o imperialismo russo. O conflito que agora está a ser resolvido na Ucrânia por tanques, artilharia e mísseis é o mesmo conflito que os cassetetes da polícia suprimiram na Bielorrússia e na própria Rússia. A intensificação da crise de hegemonia pós-soviética – a incapacidade da classe dominante de desenvolver uma liderança política, moral e intelectual sustentada – é a causa raiz da escalada da violência.
A classe dominante russa é diversa. Algumas partes estão a sofrer perdas pesadas como resultado das sanções ocidentais. No entanto, a autonomia parcial do regime russo em relação à classe dominante permite que este procure interesses coletivos a longo prazo, independentemente das perdas para representantes individuais ou grupos. Ao mesmo tempo, a crise de regimes semelhantes na periferia russa está a exacerbar uma ameaça para a existência da classe dominante russa como um todo. As frações mais soberanas dos capitalistas políticos russos estão a aumentar a sua vantagem sobre as mais clientelares, mas mesmo estas últimas provavelmente entendem que, com a queda do regime, todos eles perdem.
Ao lançar esta guerra, o Kremlin procurou mitigar essa ameaça no futuro próximo, com o objetivo final da reestruturação “multipolar” da ordem mundial. Como sugere Branko Milanovic, a guerra dá legitimidade à dissociação russa do Ocidente, apesar dos altos custos e, ao mesmo tempo, torna extremamente difícil revertê-la após a anexação de ainda mais território ucraniano. Ao mesmo tempo, a clique dominante russa eleva a organização política e a legitimação ideológica da classe dominante a um nível superior. Já existem sinais de uma transformação em direção a um regime político autoritário mais consolidado, ideológico e mobilizador na Rússia, com indícios explícitos de capitalismo político mais efetivo, que tomam a China como modelo. Para Putin, este é essencialmente mais um estágio no processo de consolidação pós-soviética que ele começou no início dos anos 2000, ao domar os oligarcas da Rússia. A narrativa frouxa de prevenir desastres e restaurar a “estabilidade” no primeiro estágio é agora seguida por um nacionalismo conservador mais articulado no segundo estágio (dirigido no exterior contra os ucranianos e o Ocidente, mas também dentro da Rússia contra os “traidores” cosmopolitas) como a única linguagem ideológica amplamente disponível no contexto da crise ideológica pós-soviética.
Alguns autores, como o sociólogo Dylan John Riley, argumentam que uma política hegemónica mais forte vinda de cima pode ajudar a promover o crescimento de uma política contra-hegemónica mais forte vinda de baixo. Se isso for verdade, a mudança do Kremlin para uma política mais ideológica e mobilizadora pode criar a condição para uma oposição política de massas mais organizada, consciente e enraizada nas classes populares do que qualquer país pós-soviético jamais viu e, em última análise, para uma nova onda revolucionária. Tal desenvolvimento poderia, por sua vez, mudar fundamentalmente o equilíbrio das forças sociais e políticas nesta parte do mundo, potencialmente pondo fim ao ciclo vicioso que a atormenta desde o colapso da União Soviética há cerca de três décadas.
Colaborador
Volodymyr Ishchenko é um sociólogo de Kiev. Tem publicado artigos e entrevistas em vários órgãos de comunicação social como o Guardian e a New Left Review.
Especificamente, o debate sobre os interesses russos – ou, mais precisamente, da elite governativa russa – em lançar esta guerra tende a ser polarizado em torno de extremos que são questionáveis. Muitos interpretam de forma literal o que Putin diz, deixando de questionar se a sua obsessão com a expansão da NATO ou a sua insistência em afirmar que ucranianos e russos constituem “um só povo” representa os interesses nacionais russos ou são compartilhados pela sociedade russa como um todo. Por outro lado, muitos descartam os seus comentários como mentiras descaradas, fazendo parte de uma estratégia de comunicação sem qualquer relação com os seus objetivos “reais” na Ucrânia.
À sua maneira, ambas as posições servem para mistificar as motivações do Kremlin em vez de as esclarecer. As discussões atuais sobre a ideologia russa muitas vezes parecem um regresso aos tempos de "A Ideologia Alemã", escrita pelos jovens Karl Marx e Friedrich Engels há cerca de 175 anos. Para alguns, a ideologia dominante na sociedade russa é uma verdadeira representação da ordem social e política. Outros acreditam que simplesmente proclamar que "o rei vai nu" será suficiente para furar a bolha da ideologia.
Infelizmente, o mundo real é mais complicado. A chave para entender “o que Putin realmente quer” não é escolher frases obscuras dos seus discursos e artigos que se encaixam nas ideias preconcebidas dos analistas, mas sim realizar uma análise sistemática dos interesses materiais estruturalmente determinados, organização política e legitimação ideológica da classe social que representa.
A seguir, tento identificar alguns elementos básicos de tal análise para o contexto russo. Isto não significa que uma análise semelhante dos interesses das classes dominantes ocidentais ou ucranianas neste conflito seja irrelevante ou inadequada, mas concentro-me na Rússia em parte por razões práticas, em parte porque é a questão mais controversa no momento e em parte porque a classe dominante russa é a principal responsável pela guerra. Ao entender os seus interesses materiais, podemos ir além das explicações frágeis, atribuindo às reivindicações dos governantes o seu valor real, e avançar em direção a uma imagem mais coerente de como a guerra está enraizada no vácuo económico e político aberto pelo colapso soviético em 1991.
O que há em um nome?
Durante a guerra atual, a maioria dos marxistas referiu-se ao conceito de imperialismo para teorizar sobre os interesses do Kremlin. Claro, é importante abordar qualquer quebra-cabeças analítico com todas as ferramentas disponíveis. No entanto, é também importante usá-las de forma correta.
O problema aqui é que o conceito de imperialismo praticamente não passou por nenhum desenvolvimento na sua aplicação à condição pós-soviética. Nem Vladimir Lenine, nem qualquer outro teórico marxista clássico, poderiam ter imaginado a situação fundamentalmente nova que surgiu com o colapso do socialismo soviético. A sua geração analisou o imperialismo da expansão e modernização capitalistas. A condição pós-soviética, pelo contrário, é uma crise permanente de contração, "desmodernização" e periferização.
Isto não significa que a análise do imperialismo russo hoje seja inútil enquanto tal, mas precisamos de trabalhar bastante os conceitos para a tornar frutífera. Um debate sobre se a Rússia contemporânea constitui um país imperialista, referindo-se a algumas definições de livros didáticos do século XX, tem apenas valor escolástico. A partir de um conceito explicativo, o “imperialismo” transforma-se num rótulo descritivo a-histórico e tautológico: “A Rússia é imperialista porque atacou um vizinho mais fraco”; “A Rússia atacou um vizinho mais fraco porque é imperialista”, e assim por diante.
Não ter em conta o expansionismo do capital financeiro russo (considerando o impacto das sanções sobre a economia russa muito globalizada e os ativos ocidentais dos “oligarcas” russos); a conquista de novos mercados (na Ucrânia, que não conseguiu atrair praticamente nenhum Investimento Direto Estrangeiro, exceto o dinheiro offshore dos seus próprios oligarcas); controlo sobre recursos estratégicos (quaisquer que sejam as reservas de minérios em solo ucraniano, a Rússia iria precisar de expandir a indústria para os absorver, ou pelo menos expandir a possibilidade de os vender para economias mais avançadas, o que é, surpresa…, severamente restringido por causa das sanções ocidentais); ou quaisquer outras causas imperialistas típicas por trás da invasão russa, alguns analistas afirmam que a guerra pode possuir a racionalidade autónoma de um imperialismo “político” ou “cultural”. Esta é, em última análise, uma explicação eclética. A nossa tarefa é justamente explicar como os fundamentos políticos e ideológicos da invasão refletem os interesses da classe dominante. Caso contrário, acabaremos, inevitavelmente, com teorias absurdas do "poder pelo poder" ou "fanatismo ideológico". Além disso, isso significaria que a classe dominante russa ou foi feita refém por um maníaco, chauvinista nacionalista, sedento de poder e obcecado com uma “missão histórica” de restaurar a grandeza russa, ou sofre de uma forma extrema de falsa consciência – compartilhando as ideias de Putin sobre a ameaça da NATO e a sua negação da condição de Estado ucraniano, levando a políticas que são objetivamente contrárias aos seus interesses.
Eu acredito que isto está errado. Putin não é um maníaco sedento de poder, nem um fanático ideológico (esse tipo de política foi marginal em todo o espaço pós-soviético), nem um louco. Ao lançar a guerra na Ucrânia, ele protege os interesses coletivos racionais da classe dominante russa. Não é incomum que os interesses coletivos de classe se sobreponham apenas parcialmente aos interesses dos representantes individuais dessa classe, ou mesmo os contradigam. Mas que tipo de classe realmente governa a Rússia – e quais são seus interesses coletivos?
Capitalismo político na Rússia e mais além
Quando questionados sobre qual a classe que governa a Rússia, a maioria das pessoas de esquerda provavelmente responderia quase instintivamente: capitalistas. O cidadão médio, no espaço pós-soviético, provavelmente chamá-los-ia de ladrões, bandidos ou máfia. Uma resposta um pouco mais intelectual seria “oligarcas”. É fácil descartar tais respostas como a falsa consciência daqueles que não compreendem os seus próprios governantes em termos marxistas “adequados”. No entanto, uma análise mais produtiva seria pensar qual é a razão pela qual os cidadãos pós-soviéticos enfatizam o roubo e a estreita interdependência entre os negócios privados e o Estado que a palavra “oligarca” implica.
Tal como na discussão do imperialismo moderno, precisamos de levar a sério a especificidade da condição pós-soviética. Historicamente, a “acumulação primitiva” aconteceu, neste caso, no processo de desintegração centrífuga do Estado soviético e da economia. O cientista político Steven Solnick chamou a este processo de “roubar o Estado”. Os membros da nova classe dominante ou privatizaram a propriedade estatal (muitas vezes por cêntimos de dólar) ou tiveram muitas oportunidades para desviar lucros de entidades formalmente públicas para mãos privadas. Exploraram as relações informais com funcionários do Estado e as brechas legais muitas vezes intencionalmente projetadas para a evasão fiscal em massa e fuga de capitais, enquanto executavam aquisições hostis de empresas em prol de lucros rápidos com um horizonte de curto prazo.
O economista marxista russo Ruslan Dzarasov capturou essas práticas com o conceito de “insider rent” (renda dos de dentro), enfatizando a natureza rentista do rendimento extraído por pessoas de dentro do sistema graças ao seu controlo sobre os fluxos financeiros das empresas, que dependem das relações com os detentores do poder. Certamente que estas práticas também podem ser encontradas em outras partes do mundo, mas o seu papel na formação e reprodução da classe dominante russa é muito mais importante devido à natureza da transformação pós-soviética, que começou com o colapso centrífugo do socialismo de Estado e a subsequente reconsolidação político-económica com base no clientelismo.
Outros pensadores proeminentes, como o sociólogo húngaro Iván Szelényi, descrevem um fenómeno semelhante como “capitalismo político”. De acordo com Max Weber, o capitalismo político é caracterizado pela exploração do cargo político para acumular riqueza privada. Eu chamaria aos capitalistas políticos a fração da classe capitalista cuja principal vantagem competitiva é derivada de benefícios seletivos do Estado, ao contrário dos capitalistas cuja vantagem está enraizada em inovações tecnológicas ou uma força de trabalho particularmente barata. Os capitalistas políticos não são exclusivos dos países pós-soviéticos, mas são capazes de florescer precisamente naquelas áreas onde o Estado historicamente desempenhou o papel dominante na economia e acumulou imenso capital, agora aberto à exploração privada.
A presença do capitalismo político é crucial para entender a razão pela qual, quando o Kremlin fala em “soberania” ou “esferas de influência”, não é de forma alguma produto de uma obsessão irracional por conceitos ultrapassados. Ao mesmo tempo, tal retórica não é necessariamente uma articulação do interesse nacional da Rússia, mas um reflexo direto dos interesses de classe dos capitalistas políticos russos. Se os benefícios seletivos do Estado são fundamentais para a acumulação de sua riqueza, esses capitalistas não têm escolha a não ser cercar o território onde exercem o controlo monopolista – controlo que não deve ser compartilhado com nenhuma outra fração da classe capitalista.
Esse interesse em “marcar território” não é compartilhado, ou pelo menos não é tão importante para tipos de capitalista diferentes. Uma controvérsia de longa data na teoria marxista girava em torno da questão de, parafraseando Göran Therborn, “o que a classe dominante realmente faz quando governa”. O enigma era que a burguesia nos estados capitalistas não administra o estado diretamente. A burocracia estatal geralmente goza de autonomia substancial em relação à classe capitalista, mas serve-a estabelecendo e aplicando regras que beneficiam a acumulação capitalista. Os capitalistas políticos, por outro lado, não exigem regras gerais, mas um controle muito mais rígido sobre os decisores políticos. Alternadamente, eles próprios ocupam cargos políticos e exploram-nos para o seu enriquecimento privado.
Muitas figuras do capitalismo empresarial clássico beneficiaram de subsídios estatais, regimes fiscais preferenciais ou várias medidas protecionistas. No entanto, ao contrário dos capitalistas políticos, a sua própria sobrevivência e expansão no mercado raramente dependiam de um conjunto específico de indivíduos que ocupavam cargos específicos, dos partidos específicos no poder ou de regimes políticos específicos. O capital transnacional iria sobreviver sem os estados-nação em que as suas sedes estavam localizadas – lembre-se do projeto de cidades empreendedoras flutuantes, independentes de qualquer estado-nação, impulsionado por magnatas do Silicon Valley como Peter Thiel. Os capitalistas políticos não podem sobreviver na competição global sem terem pelo menos algum território onde possam recolher rendas internas sem interferência externa.
Conflito de classes na periferia pós-soviética
Permanece uma questão em aberto se o capitalismo político será sustentável a longo prazo. Afinal, o Estado precisa tirar recursos de algum lado para os redistribuir entre os capitalistas políticos. Como observa Branko Milanovic, a corrupção é um problema endémico para o capitalismo político, mesmo quando uma burocracia eficaz, tecnocrática e autónoma o administra. Ao contrário do caso mais bem-sucedido de capitalismo político, como o da China, as instituições do Partido Comunista Soviético desintegraram-se e foram substituídas por regimes baseados em redes de clientelismo pessoal, virando a fachada formal da democracia liberal a seu favor. Isto muitas vezes impede impulsos de modernizar e profissionalizar a economia. Para ser muito claro, não se pode roubar da mesma fonte para sempre. É preciso transformar o modelo capitalista para sustentar a taxa de lucro, seja por meio de investimentos de capital ou intensificação da exploração do trabalho, ou expandir para obter mais fontes de extração de renda interna.
Tanto o reinvestimento como a exploração do trabalho enfrentam obstáculos estruturais no capitalismo político pós-soviético. Por um lado, muitos hesitam em envolver-se em investimentos de longo prazo quando o seu modelo de negócios e até a propriedade dependem fundamentalmente de pessoas específicas no poder. Em geral, provou-se mais oportuno simplesmente transferir lucros para contas offshore. Por outro lado, a força de trabalho pós-soviético era urbana, educada e não era barata. Os salários relativamente baixos da região só foram possíveis devido à extensa infraestrutura material e instituições de assistência social que a União Soviética deixou como legado. Esse legado representa um fardo enorme para o Estado, mas que não é tão fácil de abandonar sem prejudicar o apoio de grupos-chave de eleitores. Procurando acabar com a rivalidade voraz entre os capitalistas políticos que caracterizou os anos 1990, líderes bonapartistas como Putin e outros autocratas pós-soviéticos mitigaram a guerra de todos contra todos equilibrando os interesses de algumas frações da elite e reprimindo outras – sem alterar os alicerces do capitalismo político.
À medida que a expansão voraz começou a esbarrar nos limites internos, as elites russas procuraram terceirizá-la externamente para sustentar a taxa de renda aumentando a capacidade de extração. Daí a intensificação dos projetos de integração liderados pela Rússia, como a União Económica da Eurásia. Estes enfrentaram dois obstáculos. Um era relativamente menor: capitalistas políticos locais. Na Ucrânia, por exemplo, eles estavam interessados em energia russa barata, mas também no seu próprio direito soberano de recolher rendas internas dentro do seu território. Estes capitalistas poderiam instrumentalizar o nacionalismo anti-russo para legitimar a sua reivindicação à parte ucraniana do estado soviético em desintegração, mas não conseguiram desenvolver um projeto de desenvolvimento nacional distinto.
O título do famoso livro do segundo presidente ucraniano, Leonid Kuchma, "A Ucrânia não é a Rússia", é uma boa ilustração desse problema. Se a Ucrânia não é a Rússia, então o que é exatamente? O fracasso universal dos capitalistas políticos pós-soviéticos não russos em superar a crise de hegemonia tornou o seu governo frágil e, em última análise, dependente do apoio russo, como vimos recentemente na Bielorrússia e no Cazaquistão.
A aliança entre o capital transnacional e as classes médias profissionais no espaço pós-soviético, representadas politicamente por sociedades civis pró-ocidentais e ONGs, deu uma resposta mais convincente à pergunta sobre o que exatamente deveria crescer sobre as ruínas do degradado e desintegrado o socialismo de Estado e apresentou um obstáculo maior à integração pós-soviética liderada pela Rússia. Este constituiu o principal conflito político no espaço pós-soviético que culminou na invasão da Ucrânia.
A estabilização bonapartista decretada por Putin e outros líderes pós-soviéticos fomentou o crescimento da classe média profissional. Parte dela compartilhava alguns benefícios do sistema, por exemplo, se estava empregada no sistema burocrático ou em empresas estatais estratégicas. No entanto, grande parte dela foi excluída do capitalismo político. As suas principais oportunidades de rendimento, carreira e desenvolvimento de influência política estavam nas perspetivas de intensificar as conexões políticas, económicas e culturais com o Ocidente. Ao mesmo tempo, eles eram a vanguarda do "soft power" ocidental. A integração nas instituições lideradas pela UE e pelos EUA apresentava-lhes um projeto de modernização de contrafação de adesão a um capitalismo “adequado” bem como ao “mundo civilizado” em geral. Isto significava, necessariamente, romper com as elites pós-soviéticas, as instituições e as mentalidades arraigadas da era socialista das massas populares “atrasadas” que se apegaram a pelo menos alguma estabilidade após o desastre dos anos 1990.
A natureza profundamente elitista deste projeto é o motivo pelo qual ele nunca se tornou verdadeiramente hegemónico em nenhum país pós-soviético, mesmo quando era impulsionado pelo nacionalismo anti-russo histórico como era – mesmo agora, a coligação negativa mobilizada contra a invasão russa não significa que os ucranianos estejam unidos em torno de qualquer agenda positiva específica. Ao mesmo tempo, ajuda a explicar a neutralidade cética do Sul Global quando solicitado a solidarizar-se com uma aspirante a grande potência em pé de igualdade com as outras grandes potências ocidentais (a Rússia) ou com uma aspirante a periferia dessas mesmas grandes potências que não busca abolir o imperialismo, mas aderir a um melhor (a Ucrânia). Para a maioria dos ucranianos, esta é uma guerra de autodefesa. Reconhecendo isso, também não devemos esquecer a lacuna entre os seus interesses e os interesses daqueles que afirmam falar em seu nome, e que apresentam agendas políticas e ideológicas muito particulares como universais para toda a nação – moldando a “autodeterminação” num sentido de classe muito específico.
A discussão do papel do Ocidente na preparação do caminho para a invasão russa é tipicamente focada na postura ameaçadora da NATO em relação à Rússia. Mas, tendo em conta o fenómeno do capitalismo político, podemos ver o conflito de classes por detrás da expansão ocidental e porque a integração ocidental da Rússia, sem a transformação fundamental desta, nunca poderia ter funcionado. Não era possível integrar os capitalistas políticos pós-soviéticos nas instituições lideradas pelo Ocidente, que explicitamente procuravam eliminá-los como classe, privando-os da sua principal vantagem competitiva: benefícios seletivos concedidos pelos estados pós-soviéticos. A chamada agenda “anti-corrupção” tem sido uma parte vital, senão a mais importante, da visão das instituições ocidentais para o espaço pós-soviético, amplamente compartilhada pela classe média pró-ocidental da região. Para os capitalistas políticos, o sucesso dessa agenda significaria o seu fim político e económico.
Em público, o Kremlin tenta apresentar a guerra como uma batalha pela sobrevivência da Rússia como nação soberana. No entanto, a aposta mais importante, é na sobrevivência da classe dominante russa e do seu modelo de capitalismo político. A reestruturação “multipolar” da ordem mundial resolveria o problema por algum tempo. É por isso que o Kremlin está a tentar vender o seu projeto de classe específico às elites do Sul Global, que obteriam, desta forma, a sua própria “esfera de influência” soberana com base na alegação de representar uma “civilização”.
A crise do Bonapartismo Pós-Soviético
Os interesses contraditórios dos capitalistas políticos pós-soviéticos, das classes médias profissionais e do capital transnacional estruturaram o conflito político que finalmente deu origem à guerra atual. No entanto, a crise da organização política dos capitalistas políticos exacerbou a ameaça sobre eles próprios.
Regimes bonapartistas como os de Putin ou de Alexander Lukashenko na Bielorrússia dependem de um apoio passivo e despolitizado e obtêm a sua legitimidade através da superação do desastre do colapso pós-soviético, não de um tipo de consenso ativo que assegure a hegemonia política da classe dominante.
Um regime autoritário personalista deste tipo é fundamentalmente frágil por causa do problema da sucessão. Não há regras ou tradições claras para transferir o poder, nenhuma ideologia articulada à qual um novo líder deva aderir, nenhum partido ou movimento no qual um novo líder possa ser socializado. A sucessão representa o ponto de vulnerabilidade onde os conflitos internos dentro da elite podem escalar a um grau perigoso e onde as revoltas vindas de baixo têm melhores chances de sucesso.
Estas revoltas têm-se acelerado na periferia da Rússia nos últimos anos, incluindo não apenas a revolução Euromaidan na Ucrânia em 2014, mas também as revoluções na Arménia, a terceira revolução no Quirguistão, a fracassada revolta de 2020 na Bielorrússia e, mais recentemente, a revolta na Cazaquistão. Nos dois últimos casos, o apoio russo mostrou-se crucial para garantir a sobrevivência do regime local. Dentro da própria Rússia, os comícios “Por eleições justas” realizados em 2011 e 2012, bem como as mobilizações posteriores, inspiradas por Alexei Navalny, não foram insignificantes. Na véspera da invasão, a agitação laboral estava a aumentar, enquanto as sondagens mostravam o declínio da confiança em Putin e um número crescente de pessoas que queriam que ele se retirasse. Perigosamente, a oposição a Putin era maior quanto mais jovens eram os entrevistados.
Nenhuma das chamadas “revoluções maidan” pós-soviéticas representava uma ameaça existencial para os capitalistas políticos pós-soviéticos enquanto classe em si. Apenas trocavam frações da mesma classe no poder e, assim, apenas intensificavam a crise de representação política à qual reagiam em primeiro lugar. É por isso que estes protestos se repetiram com tanta frequência.
As “revoluções maidan” são típicas revoluções cívicas urbanas contemporâneas, como as chamou o cientista político Mark Beissinger. Através de dados estatísticos em massa, ele mostra que, ao contrário das revoluções sociais do passado, as revoluções cívicas urbanas apenas enfraquecem temporariamente o regime autoritário e fortalecem as sociedades civis da classe média. Elas não trazem uma ordem política mais forte ou mais igualitária, nem mudanças democráticas duradouras. Normalmente, nos países pós-soviéticos, as revoluções maidan apenas enfraqueceram o Estado e tornaram os capitalistas políticos locais mais vulneráveis à pressão do capital transnacional – direta e indiretamente por meio de ONGs pró-ocidentais. Por exemplo, na Ucrânia, após a revolução Euromaidan, um conjunto de instituições “anti-corrupção” foi teimosamente empurrado para a frente pelo FMI, G7 e sociedade civil. Estas não apresentaram nenhum caso importante de corrupção nos últimos oito anos. No entanto, institucionalizaram a supervisão das principais empresas estatais e do sistema judiciário por estrangeiros e ativistas anti-corrupção, apertando assim as oportunidades dos capitalistas políticos domésticos de colher rendas internas. Os capitalistas políticos russos teriam um bom motivo para ficarem nervosos com os problemas dos oligarcas outrora poderosos da Ucrânia.
As consequências não intencionais da consolidação da classe dominante
Vários fatores ajudam a explicar o momento da invasão, bem como o erro de cálculo de Putin sobre uma vitória rápida e fácil, como a vantagem temporária da Rússia em armas hipersónicas, a dependência da Europa da energia russa, a repressão da chamada oposição pró-russa na Ucrânia, a estagnação dos acordos de Minsk de 2015 após a Guerra no Donbass, ou o fracasso dos serviços de inteligência russos na Ucrânia. Aqui, procurei delinear em traços muito largos o conflito de classes por detrás da invasão, nomeadamente entre os capitalistas políticos interessados na expansão territorial para sustentar as suas rendas, por um lado, e o capital transnacional aliado às classes médias profissionais – que foram excluídas do capitalismo político — por outro.
O conceito marxista de imperialismo só pode ser aplicado utilmente à guerra atual se pudermos identificar os interesses materiais que estão por trás dela. Ao mesmo tempo, o conflito é mais do que apenas sobre o imperialismo russo. O conflito que agora está a ser resolvido na Ucrânia por tanques, artilharia e mísseis é o mesmo conflito que os cassetetes da polícia suprimiram na Bielorrússia e na própria Rússia. A intensificação da crise de hegemonia pós-soviética – a incapacidade da classe dominante de desenvolver uma liderança política, moral e intelectual sustentada – é a causa raiz da escalada da violência.
A classe dominante russa é diversa. Algumas partes estão a sofrer perdas pesadas como resultado das sanções ocidentais. No entanto, a autonomia parcial do regime russo em relação à classe dominante permite que este procure interesses coletivos a longo prazo, independentemente das perdas para representantes individuais ou grupos. Ao mesmo tempo, a crise de regimes semelhantes na periferia russa está a exacerbar uma ameaça para a existência da classe dominante russa como um todo. As frações mais soberanas dos capitalistas políticos russos estão a aumentar a sua vantagem sobre as mais clientelares, mas mesmo estas últimas provavelmente entendem que, com a queda do regime, todos eles perdem.
Ao lançar esta guerra, o Kremlin procurou mitigar essa ameaça no futuro próximo, com o objetivo final da reestruturação “multipolar” da ordem mundial. Como sugere Branko Milanovic, a guerra dá legitimidade à dissociação russa do Ocidente, apesar dos altos custos e, ao mesmo tempo, torna extremamente difícil revertê-la após a anexação de ainda mais território ucraniano. Ao mesmo tempo, a clique dominante russa eleva a organização política e a legitimação ideológica da classe dominante a um nível superior. Já existem sinais de uma transformação em direção a um regime político autoritário mais consolidado, ideológico e mobilizador na Rússia, com indícios explícitos de capitalismo político mais efetivo, que tomam a China como modelo. Para Putin, este é essencialmente mais um estágio no processo de consolidação pós-soviética que ele começou no início dos anos 2000, ao domar os oligarcas da Rússia. A narrativa frouxa de prevenir desastres e restaurar a “estabilidade” no primeiro estágio é agora seguida por um nacionalismo conservador mais articulado no segundo estágio (dirigido no exterior contra os ucranianos e o Ocidente, mas também dentro da Rússia contra os “traidores” cosmopolitas) como a única linguagem ideológica amplamente disponível no contexto da crise ideológica pós-soviética.
Alguns autores, como o sociólogo Dylan John Riley, argumentam que uma política hegemónica mais forte vinda de cima pode ajudar a promover o crescimento de uma política contra-hegemónica mais forte vinda de baixo. Se isso for verdade, a mudança do Kremlin para uma política mais ideológica e mobilizadora pode criar a condição para uma oposição política de massas mais organizada, consciente e enraizada nas classes populares do que qualquer país pós-soviético jamais viu e, em última análise, para uma nova onda revolucionária. Tal desenvolvimento poderia, por sua vez, mudar fundamentalmente o equilíbrio das forças sociais e políticas nesta parte do mundo, potencialmente pondo fim ao ciclo vicioso que a atormenta desde o colapso da União Soviética há cerca de três décadas.
Colaborador
Volodymyr Ishchenko é um sociólogo de Kiev. Tem publicado artigos e entrevistas em vários órgãos de comunicação social como o Guardian e a New Left Review.
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