4 de março de 2022

A volta de Lula à presidência será conturbada

Com Jair Bolsonaro e a direita em desordem, Lula da Silva está elaborando seu caminho de volta à presidência brasileira. Esse caminho está repleto de contradições - muitas difíceis, algumas potencialmente perigosas.

Sabrina Fernandes

Jacobin

O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva fala em entrevista coletiva em um hotel em Brasília, Brasil, em 08 de outubro de 2021. (Mateus Bonomi / Agência Anadolu via Getty Images)

A eleição do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, foi um triunfo para a direita. Apoiado pela elite brasileira, ele foi levado à vitória por um movimento conservador arrojado liderado por igrejas evangélicas fundamentalistas e partidários da ditadura militar que durou entre 1964 e 1985.

Desde que assumiu o poder em 2019, o debate se acirrou sobre se o governo de Bolsonaro pode ser caracterizado como fascista. O tempo todo, encorajado por sua vitória, o fascismo inequivocamente viu um aumento de popularidade no Brasil. A adesão a grupos neonazistas brasileiros cresceu 270% entre janeiro de 2019 e maio de 2021. No Brasil, é crime fazer, comercializar e distribuir material nazista. Esse tipo de crime também tem aumentado desde 2015, com um aumento acentuado nas ocorrências desde 2019. Enquanto isso, tanto um famoso podcaster brasileiro quanto um congressista defendiam que os partidos nazistas deveriam ser legalizados.

Embora Bolsonaro tenha sofrido golpes em sua popularidade desde que assumiu o cargo, com seu índice de aprovação caindo para 22%, é evidente que a ideologia de extrema-direita ainda está muito presente na sociedade brasileira. Portanto, temos que levar a sério a perspectiva de que ele desempenhe um papel nas eleições marcadas para outubro de 2022.

Embora haja especulações de que, se estiver perto de perder, Bolsonaro pode optar por uma cadeira no Congresso para garantir status privilegiado, os brasileiros estão atualmente prontos para uma disputa Bolsonaro contra Lula. E enquanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é atualmente o favorito para vencer, seria um erro terrível considerar a derrota de Bolsonaro um acordo feito.

Uma pesquisa recente mostra que, embora Lula venceria qualquer um dos possíveis adversários no segundo turno - incluindo Sergio Moro, o juiz que o perseguiu e prendeu injustamente - sua vantagem contra Bolsonaro caiu de 22 para 15 pontos percentuais. Como a base de Bolsonaro muitas vezes faz referência à invasão do Capitólio dos EUA, e o próprio Bolsonaro fez ameaças de golpe no passado, o perigo de jogo sujo também não pode ser descartado.

Diante dessas ameaças, a esquerda brasileira precisa pensar estrategicamente sobre quais alianças são necessárias para vencer - e quais são contraditórias demais para se manter.

Uma breve história de contradições

A história democrática do Brasil é cheia de drama. Nas três curtas décadas desde que sua atual constituição foi estabelecida, dois presidentes sofreram impeachment, um foi eleito indiretamente e outros dois eram vice-presidentes que ocuparam cargos interinos.

Um desses processos de impeachment foi o de Dilma Rousseff em 2016, liderado pela classe capitalista do país e seus aliados da direita. Depois de anos de negociações sob o projeto do Partido dos Trabalhadores (PT) de conciliação de classes como forma de garantir a governabilidade, os capitalistas estavam fartos. A estratégia do PT era mista, incluindo concessões à direita no Congresso e uma dose de austeridade sob o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy. Mas essas aberturas não foram suficientes para impedir o golpe parlamentar que derrubou Dilma, orquestrado com a ajuda do vice-presidente de Dilma, Michel Temer.

Na tentativa de tirar lições do golpe de 2016, Dilma destacou que a força de um governo está na organização do povo, e que o PT perdeu muito de sua capacidade de mobilização como partido. A mobilização contra o golpe foi errática no início, e talvez tarde demais, considerando que a direita brasileira começou a aproveitar a insatisfação popular durante os protestos maciços e heterogêneos de junho de 2013 e começou a pedir um golpe assim que Dilma foi reeleita em 2014.

A esquerda radical, muito menor que o PT e seus aliados de esquerda moderada, também estava dividida na época. Por exemplo, enquanto partes do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) foram às ruas contra o golpe (e depois contra a prisão de Lula), outros do PSOL tomaram uma posição de “fora com todos” contra o governo do PT e outros políticos do establishment . Alguns até apoiaram a investigação da Lava Jato em sua cruzada fraudulenta contra a corrupção.

A questão da corrupção há muito tem ressonância emocional no Brasil, mas a esquerda tem lutado para politizá-la, às vezes imitando narrativas fracas que reduzem a corrupção a uma falha pessoal em vez de uma característica da democracia capitalista e dos conflitos concomitantes dentro do estado capitalista. Enquanto isso, o bolsonarismo prospera com falsas pretensões “anticorrupção” destinadas a apelar ao moralismo e ao nacionalismo chauvinista. Os ataques a Lula como corrupto e ladrão não começaram com a Lava Jato nem com o bolsonarismo, mas a associação se fortaleceu nos últimos anos e deve se renovar em uma nova onda de fake news e manipulação online à medida que as eleições se aproximam.

O uso de fake news contra a esquerda é cada vez mais comum. Infelizmente, existem até casos de alegações propositalmente difamatórias feitas por esquerdistas contra outras personalidades e organizações de esquerda - sintomáticos da atual crise e fragmentação da esquerda brasileira. Essa fragmentação está estimulando debates sobre como abordar a disputa de Lula em 2022 e, no caso de vitória eleitoral, como mobilizar e negociar sob um novo governo Lula. É aí que entra a questão das alianças.

Em junho de 2002, antes de vencer sua primeira disputa presidencial, Lula publicou uma “carta ao povo brasileiro” que era, na verdade, uma carta ao setor financeiro. Sua principal mensagem era que, se eleito, o governo Lula seguiria uma agenda de “ampla negociação nacional”, respeitando os contratos anteriores e buscando o equilíbrio fiscal. Por exemplo, embora mencionasse a reforma agrária, a carta também afirmava que o agronegócio deveria ser valorizado. Para resolver a crise econômica, dizia a carta, o governo petista teria que dialogar com todos os setores da sociedade, comprometido com o controle dos gastos públicos, ao mesmo tempo em que seguia um programa de mudanças corajosas, mas “responsáveis”.

A carta de Lula deu o tom de seu governo, assim como o de Dilma. Ele promoveu importantes programas sociais e melhorou a qualidade de vida de milhões de brasileiros. No entanto, a ambiguidade do lulismo fez com que os banqueiros e o agronegócio também crescessem e lucrassem em níveis recordes - um desenvolvimento do qual Lula muitas vezes se orgulha, ainda que essas mesmas classes organizadas para derrubar Dilma, tenham promovido reformas antioperárias com o governo Temer, e depois ajudassem a eleger Bolsonaro.

Essa contradição também está presente em 2022. O ministro da Fazenda de Bolsonaro, Paulo Guedes, prometeu recuperação econômica, mas deixou a classe capitalista em falta. Mesmo os membros mais ricos e educados da base de apoio de Bolsonaro acham que o governo não tem uma estratégia e que os traços autoritários de Bolsonaro levam a uma instabilidade desnecessária. Quando as ameaças de Bolsonaro contra o Supremo Tribunal se tornaram muito evidentes, Temer teve que intervir e acalmar seus nervos com uma carta. Em outras palavras, as elites brasileiras não estão totalmente comprometidas com Bolsonaro. Elas estão em disputa, e Lula percebeu.

Para atrair essas elites flutuantes, Lula optou por um vice-presidente de direita. Do ponto de vista da esquerda, isso é decepcionante, especialmente considerando que em 2018 a chapa do PT apresentava Manuela D’Ávila, da esquerda moderada Partido Comunista do Brasil (PCdoB), como candidata a vice-presidente.

Apesar de ainda não ser oficializado, Lula e o PT indicaram preferência por Geraldo Alckmin. Alckmin foi quatro vezes governador de São Paulo e seu governo foi marcado por escândalos de corrupção e tratamento violento aos movimentos sociais. Foi sob o comando de Alckmin que, em 2012, milhares de famílias foram despejadas de seu território e tiveram suas casas destruídas enquanto a polícia agredia violentamente mulheres grávidas, crianças e idosos no Pinheirinho. Alckmin sempre se opôs ao PT e fez questão de associar Lula à criminalidade e à corrupção.

Parece, no entanto, que Lula está disposto a bater o martelo. Isso não cai bem para outros de esquerda que acham a ideia de Alckmin como vice-presidente repugnante e desmoralizante. Pode ser uma coisa fazer campanha pela candidatura Lula/Alckmin em um estado da região Sul, mas em São Paulo os trabalhadores costumam lembrar da crueldade de Alckmin.

Alguns membros do PT afirmam que se unir a Alckmin é a única maneira de derrotar Bolsonaro e, na melhor das hipóteses, estão descartando as objeções da esquerda como contraproducentes. Os moderados estão estendendo o tapete vermelho para Alckmin - que, mesmo aspirando a uma carreira política além de Bolsonaro, se posiciona como representante do golpe de 2016 - enquanto condena a esquerda como obstrucionista. A questão reacendeu os debates sobre junho de 2013, que levaram ao enquadramento da esquerda radical como responsável pelo golpe.

Tornar Lula presidente de novo

Há alguns meses, ativistas e influenciadores começaram a aparecer com bonés vermelhos que diziam “Make Brazil 2002 Again”, em referência à primeira eleição de Lula como presidente do Brasil.

A ironia do boné e de seu slogan é que, ao imaginar 2002 como o início de uma grande era, os partidários de Lula involuntariamente endossam um atoleiro de contradições que acabou permitindo que a direita derrubasse o governo do PT e instalasse um líder com ideais fascistas. A eleição de Lula sinalizou esperança, mas também contenção. Milhões podiam comer três refeições por dia, mas os bilionários ficaram mais ricos ao longo do caminho - e quando o programa do PT não os servia mais, essa classe capitalista empoderada o derrubou.

É verdade que o Brasil já teve um presidente que se importava se as pessoas viviam ou morriam, algo que poderia ter feito uma grande diferença durante a pandemia, que já matou mais de seiscentos mil brasileiros sob a liderança de Bolsonaro até agora. Mas é importante ir além desse estado de nostalgia melancólica e começar a fazer perguntas estratégicas sobre quem pode ser aliado e quais linhas não devem ser cruzadas. Tornar Lula presidente de novo é uma meta importante. Existem outras alternativas esquerdistas, mas nenhuma tão forte quanto ele no momento. No entanto, Lula não é Deus. Sua eleição não é garantida, e sua prática de conciliação de classes cria ao mesmo tempo estabilidade e vulnerabilidades profundas.

Os que justificam a escolha de Alckmin como vice-presidente afirmam que Lula sabe o que está fazendo. Mas se Dilma Rousseff está certa ao dizer que o PT deveria ter mobilizado o povo para apoiar um governo de esquerda, é uma decisão perigosa eleger um vice-presidente conhecido pela brutal repressão aos manifestantes e por promover o golpe que deu ao vice-presidente de Dilma Rousseff a presidência por mais de dois anos. Será que, de todos os políticos de centro e de direita que Lula poderia escolher como vice-presidente para sua estratégia de governabilidade, a melhor opção é alguém que tenha participado do golpe de 2016?

Lula foi o melhor presidente do Brasil até agora, mas até ele pode cometer erros. Esperemos que, se vencer, possa voltar a priorizar a mobilização popular.

Colaboradora

Sabrina Fernandes é uma organizadora e comunicadora ecossocialista brasileira com doutorado em sociologia pela Carleton University, Canadá. Ela é pós-doutoranda pela Rosa Luxemburg Stiftung e a pessoa por trás do canal marxista do YouTube Tese Onze.

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