14 de março de 2022

O que o movimento antipsiquiatria não entendeu sobre doença mental

O movimento antipsiquiátrico avançou com uma crítica radical do papel que o capitalismo e o poder desempenham na profissão médica. Seus motivos eram nobres, mas acabou fechando as portas para compreender e tratar adequadamente o sofrimento psíquico.

Madeleine Ritts


Os esquerdistas, compreensivelmente, procuraram encontrar explicações para a doença mental nas misérias cotidianas das sociedades capitalistas. (Jeff Pachoud/AFP via Getty Images)

Tradução / A saúde mental é conhecida por sua difícil categorização ou definição. Com mais de dois séculos de pesquisa, seguimos longe de alcançar explicações satisfatórias — científicas ou não — para as várias formas de sofrimento e perturbação mental que as pessoas podem vivenciar.

Agravando a dificuldade em lidar com o sofrimento psicológico, as adversidades sociais e pessoais — tais como pobreza, desigualdade, precariedade econômica e experiências de violência ou abuso — influenciam significativamente nossa saúde mental. No entanto, a experiência de trabalhos semelhantes impacta cada indivíduo e sua saúde mental de maneira diferente. Por que alguns sobreviventes de guerra desenvolvem sintomas de transtorno de estresse pós-traumático e outros não?

Impulsionados pelo desejo humanista de aliviar o sofrimento e pela suspeita fundamentada de suas justificativas ideológicas, a esquerda tem buscado a explicação das doenças mentais na miséria cotidiana das sociedades capitalistas. A precariedade econômica e a baixa renda por si só não explicam a depressão — nem todo mundo que vive com baixa renda está deprimido, e nem todo mundo com depressão tem baixa renda. Outras formas de perturbação mental, como mania ou psicose, são ainda mais difíceis de atribuir apenas a questões de justiça econômica. Ainda assim, salvo alguns avanços científicos modestos quanto a fatores de riscos sociais e genéticos (no caso da esquizofrenia), estamos longe de entender suas causas.

É difícil abordar o aspecto da causalidade quando as próprias questões que tentamos explicar são definidas de forma tão tênue. A terminologia diagnóstica tenta impor ordem a uma grande diversidade de experiências que simplesmente somos incapazes de entender. Algumas pessoas com esquizofrenia ouvem vozes e continuam a levar uma vida próspera e plena. Outros experimentam alucinações debilitantes e, às vezes, violentamente perturbadoras ou uma profunda desarticulação da capacidade discursiva e de pensamento. Tais indivíduos podem ser severamente limitados em sua capacidade de completar as tarefas diárias mais básicas. Uma combinação de psicoterapia e medicação antipsicótica pode atenuar as características angustiantes da psicose em alguns casos, mas não em todos. Para alguns desafortunados, os efeitos colaterais farmacológicos podem ser tão graves a ponto do dano superar os potenciais benefícios.

Para cuidar de qualquer doença humana com compaixão apropriada e adequação de tratamento, precisamos de uma compreensão compartilhada, por mais ampla que seja, da natureza do problema que buscamos abordar. Muitas das críticas bem-intencionadas ao tratamento do sofrimento psíquico pela profissão médica têm se concentrado exclusivamente em suas causas sociais, fechando a possibilidade de uma aproximação entre uma crítica socialista da sociedade capitalista e uma tentativa científica de remediar o sofrimento desnecessário.

A natureza controversa da psiquiatria

De modo geral, atribuímos aos psiquiatras a dupla tarefa de compreender e responder ao sofrimento mental. Se não for a área cientificamente mais primitiva da medicina ocidental moderna, a psiquiatria é facilmente a mais polarizadora. Um estudo da história da psiquiatria apresentará descrições surpreendentemente divergentes da profissão. Em seus duzentos anos de história, a psiquiatria passou por muitos períodos de crise e reinvenção — e, a cada transformação, surgem novos paradigmas, padrões de evidência e métodos de pesquisa. A saúde mental é definida não por quão bem um indivíduo pode se adaptar à sua sociedade, mas por quão bem a sociedade se ajusta às necessidades de seu povo.

Seja você um proponente ou crítico da disciplina, a identidade em constante mudança da psiquiatria representa um desafio significativo para quem tenta tecer uma narrativa coerente de sua história institucional e intelectual. Seus defensores afirmam que os psiquiatras são idealistas teimosos ou soldados sitiados da ciência médica. Os notáveis escândalos do campo, as reformas fracassadas, os grandes pronunciamentos e as derrotas públicas são todos etapas ao longo do já familiar caminho científico do progresso incremental.

Os críticos, por outro lado, descrevem a história da disciplina como repleta de violência desde o início. Deste ponto de vista, a psiquiatria é caracterizada pela repressão e conspiração — os psiquiatras são agentes calculistas que tanto se beneficiam quanto contribuem para a punição daqueles que ameaçam a moralidade burguesa e a ordem rotineira. No entanto, em meio a esses profundos cismas de desacordo, encontra-se um frágil consenso entre os apologistas da psiquiatria e muitos de seus críticos: a loucura continua a escapar a uma compreensão básica.

Os críticos do status quo ofereceram objeções valiosas às nossas suposições mais preciosas sobre o que constitui a doença mental. Mais importante, eles dedicaram atenção crucial às graves questões de integridade moral e científica no campo.

Na esquerda, a crítica comum procura apontar como a psiquiatria pode inadvertidamente medicalizar a injustiça. Essa crítica destaca a incriminadora relação de interdependência entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica e as formas pelas quais a psiquiatria pode ser usada para legitimar a violência e a opressão social. Críticos como Michel Foucault, RD Laing e David Cooper ofereceram uma lente política inestimável para lidarmos com questões de diagnóstico, tratamento e detenção. No entanto, eles também estabeleceram a base da visão de que outras intervenções que visam o sofrimento mental são equivocadas, fúteis ou desumanas.

O capitalismo é o distúrbio, a doença mental é o sintoma

As ligações íntimas entre desigualdade social e sofrimento mental já foram documentadas e compreendidas por liberais e militantes de esquerda. O The New York Times, o Financial Times e o canadense Globe and Mail associaram as taxas crescentes de depressão, ansiedade e “mortes por desespero” às redes de segurança social precárias e aos sistemas de saúde lamentavelmente sucateados ou extremamente inacessíveis. Setores da esquerda, por outro lado, há muito destacam a tensão estrutural entre os programas de bem-estar social e o funcionamento básico do capitalismo. O privilégio sistemático da acumulação sobre a necessidade humana garante que nada — incluindo o trabalho de cuidado — possa ter precedência sobre os imperativos da mercantilização e do lucro.

Se pobreza, exploração e alienação são características inerentes ao capitalismo, a degradação da saúde física e mental é inevitável enquanto continuarmos a viver sob o domínio do mercado. Para alguns, tanto os sentimentos episódicos quanto os crônicos de tristeza, ansiedade e estresse são melhor compreendidos enquanto respostas lógicas às forças estruturais em jogo na vida cotidiana sob o capitalismo.

A medicina psiquiátrica pode funcionar para legitimar e fazer valer os interesses da elite dominante, seja por costume ou por iniciativa própria. Como o grande Mark Fisher uma vez escreveu: "A atual ontologia dominante nega qualquer possibilidade de uma causalidade social da doença mental. A químico-biologização da doença mental é, obviamente, estritamente proporcional à sua despolitização". Essa visão, é preciso dizer, é sustentada por alguns psiquiatras e profissionais clínicos de saúde mental. De qualquer forma, o sentimento geral por trás dessa ideia está certo: quando o sofrimento político é medicalizado como disfunção pessoal, nosso senso de solidariedade social e poder político coletivo também sofre.

Em The Sane Society , o filósofo marxista Erich Fromm tenta oferecer uma formulação corretiva para o paradigma médico dominante em saúde e doença mental. Para Fromm, a saúde mental é definida não por quão bem um indivíduo pode se adaptar à sua sociedade, mas por quão bem a sociedade se ajusta às necessidades de seu povo. Uma sociedade saudável é aquela em que as pessoas têm os meios, a liberdade e a segurança para florescer como indivíduos enquanto sentem solidariedade e pertencimento como parte de um todo maior. O ethos corrosivo da competição e atomização da vida sob o capitalismo corrói nossa psique coletiva e ninguém, nem mesmo a classe dominante, é poupada de sua produção de miséria existencial.

Esforços para expor os fundamentos socioeconômicos do sofrimento mental normalmente tomam como estudo de caso estados mentais onde as linhas entre saúde e doença não são facilmente diferenciadas. Depressão, ansiedade, pavor existencial — ou “transtornos de humor e ansiedade” — são tão prevalentes quanto diferentes em grau. A quase impossibilidade de estabelecer conexões causais entre fenômenos sociais concretos e transtornos de humor e ansiedade mal definidos é uma das limitações das explicações socioeconômicas da doença mental.

É duvidoso que todas as formas de sofrimento e desorganização mental — como a psicose — possam ser explicadas igual e satisfatoriamente pelas misérias da vida sob o capitalismo (embora se possa ver facilmente como elas podem ser pioradas). As discussões sobre o grau em que o socialismo pode ser uma panacéia para a depressão, ansiedade e trauma — especialmente aqueles que são mais crônicos e graves — são geralmente especulativas. Parece mais razoável presumir que, assim como a tristeza existiria em um mundo pós-revolucionário, também existiria a doença mental.

As discussões populares da psiquiatria muitas vezes atribuem à profissão uma compreensão sem nuances de nossa vida psíquica. Pode-se certamente encontrar fanatismo neurobiológico na indústria farmacêutica e em certos cantos do campo. No entanto, nas últimas duas décadas, o “modelo biopsicossocial” emergiu como o paradigma dominante da psiquiatria contemporânea. Isso representa uma mudança significativa na forma como a complexa interação entre fatores sociais, desenvolvimento psicológico e genes é levada em consideração pelos clínicos de saúde mental.

Não obstante, há críticas importantes quanto à aplicabilidade e coerência do modelo biopsicossocial. A principal delas é que o modelo não possui uma estrutura sistemática para elencar prioridades entre fatores biológicos, psicológicos e sociais. Isso deixa amplo espaço para que os médicos ignorem ou exagerem a importância de determinantes específicos e, ao fazê-lo, impactem significativamente a prestação de cuidados.

Como exemplo, considere o caso hipotético de alguém que está passando por extrema angústia devido à sua crença de que espíritos poderosos e malévolos estão tentando possuir o seu corpo. Quando interpretado através de uma estreita lente biológica, seu sofrimento pode ser atribuído à esquizofrenia mal tratada — segue-se que encontrar um medicamento antipsicótico mais eficaz seria o melhor curso de ação. Um médico diferente, no entanto, explorando a história de desenvolvimento desse paciente, pode encontrar um histórico de abuso infantil pelas mãos de um membro respeitado da comunidade religiosa do paciente. Enquanto a experiência atual do paciente está enraizada no trauma psicológico, uma intervenção psicoterapêutica pode ter prioridade sob testes de medicação. Um outro médico pode explorar elementos biológicos e psicológicos, mas dar mais atenção ao ambiente social do paciente. Se, por exemplo, esse paciente reside em um internato sombrio, violento e caótico, os médicos têm muito menos probabilidade de abordar as barreiras que o impedem de buscar a psicoterapia, lembrar-se de tomar seus medicamentos e construir relacionamentos de confiança.

A formulação de casos clínicos é uma das muitas áreas em que uma análise política, guiada pela justiça social e econômica, ainda é extremamente necessária para evitar o tipo de psiquiatrização da vida cotidiana com a qual Fisher, Fromm, membros da Critical Psychiatry Network e muitos outros se preocuparam, com razão. No entanto, avançar uma crítica à confiança excessiva da psiquiatria em explicações químicas do sofrimento humano não deve fechar a possibilidade de investigar suas causas biológicas.

Transtorno repressivo maior: Loucura e controle social

A doença mental assumiu muitos nomes, significados e definições diferentes ao longo da história. Descrições de “loucura” e “melancolia” datam de até a antiguidade. Como os entendimentos de “loucura” parecem ser historicamente contingentes, o próprio conceito de doença mental é controverso.
Poucos pensadores foram tão influentes na construção de um arcabouço teórico para a loucura quanto Michel Foucault. Loucura e Civilização (1988), as análises histórico-filosóficas de Foucault, traça a emergência da “loucura” como objeto de estudo científico e como fenômeno social que requer intervenção e controle do Estado. De acordo com seu relato, desenvolver uma “ciência mental” da loucura — isto é, a psiquiatria — não tinha relação com o aprimoramento de nossa compreensão da natureza humana, mas tinha muita relação com os novos modos de governança. Nessa visão, as ciências da mente são elas próprias estruturas de controle — um “monólogo da razão” abafando todas as vozes que ameaçam a autoridade da classe dominante ou a ordem social.

A teoria de Foucault de que os governantes dos primeiros períodos modernos e industriais viam os loucos como ameaças à ordem social é, na melhor das hipóteses, duvidosa. Historiadores encontraram praticamente nenhuma evidência para fundamentar essa ideia, que devemos ver como conjectura. No entanto, o relato de Foucault ainda tem mérito. Seu tratamento cuidadoso dos valores políticos e culturais associados à loucura estendeu ferramentas teóricas bem-vindas a “ ativistas loucos” e grupos de antipsiquiatria. Seu trabalho também inspirou gerações de estudiosos e clínicos a questionar o que consideramos normal e por que e como comportamentos desviantes são transformados em distúrbios que precisam ser corrigidos.

Essas são perguntas úteis. A história é profícua em exemplos de como a psiquiatria patologizou a resistência política, descartando atos de oposição como casos de transtorno mental. Para citar dois exemplos: drapetomania, ou “a doença que faz os escravos fugirem”, é um exemplo assustador de diagnóstico que dá cobertura a práticas sociais ultrajantes, e transtorno opositor-desafiador ) é um diagnóstico normalmente aplicado a crianças e adolescentes que parecem incomumente hostis e são insuficientemente obedientes ou deferentes a adultos em posições de autoridade. Como muitos críticos apontaram, o TOD é um diagnóstico carregado de valores e mal definido que corre o risco de medicalizar os fatores ambientais e contextuais que moldam o desenvolvimento e o comportamento infantil. Mais uma das falhas da psiquiatria, como as campanhas e movimentos LGBTQ+ mostraram, é a maneira como a orientação sexual e as expressões não normativas de gênero foram alvo da patologia médica de maneiras indescritivelmente prejudiciais.

No entanto, argumentos que equiparam a psiquiatria a um controle social quase ditatorial apresentam uma compreensão redutora da profissão e creditam aos psiquiatras muito mais poder do que se justifica. Falta a essas narrativas uma visão dos pacientes como receptores de cuidados e não como vítimas. Como então podemos compreender pacientes atuais e antigos que relatam resultados positivos de seus tratamentos psiquiátricos que, em alguns casos, mudaram suas vidas? A visão de vitimização e sobrevivência não apenas desconsidera as experiências de cura de algumas pessoas — ela também sugere que as pessoas precisam apenas ser libertadas do vício da psiquiatria para florescer.

Levadas ao seu destino final lógico, teorias de controle social — teorias geralmente chamadas de antipsiquiatria” — argumentam que doença mental é um mito. Esta é uma proposta profundamente controversa, especialmente para profissionais de saúde mental que trabalham na área, ou qualquer pessoa que já tenha experimentado ou observado alguém lutando com um comportamento obsessivo debilitante, distúrbios visuais e auditivos incompreensivelmente horríveis ou com decisões radicalmente inconcebíveis e perigosas tomadas na agonia de um estado maníaco.

Para os membros mais intransigentes do movimento antipsiquiátrico, o mito da doença mental é uma tentativa por parte das estruturas sociais opressivas de liquidar o poder revolucionário do desejo e do desvio. O conceito de esquizofrenia, para alguns pensadores franceses que escreveram na esteira da revolta parisiense de maio de 1968, foi uma estrela-guia para o poder libidinal que poderia reconstruir a sociedade. Os revolucionários, de acordo com essa escola de pensamento, poderiam desmantelar estruturas de hierarquia e opressão abraçando a loucura e o desejo. Embora a força libertadora do indivíduo louco ou desviante tenha falhado em alcançar uma mudança social revolucionária, os arquitetos do neoliberalismo implantaram um ethos de individualismo radical com sucesso considerável. Ronald Reagan e Margaret Thatcher ficaram muito felizes em dar ênfase a uma ordem social baseada no interesse próprio e na autogratificação.

Historicamente, aqueles que negam a existência de doenças mentais encontraram estranhos apoiadores em políticos de direita. A direita, ansiosa para justificar sua abdicação da responsabilidade de fornecer estruturas de suporte à saúde mental humanas e financiadas publicamente, está muito feliz em explorar os erros manifestos da psiquiatria. No Canadá e no Reino Unido, a desinstitucionalização — o processo histórico de desmantelamento do sistema de tratamento psiquiátrico — ocorreu com o objetivo explícito de reduzir os gastos com saúde.

Nas últimas décadas, os serviços e estruturas de saúde mental baseados na comunidade desenvolveram-se através de um processo de path dependency (apoio mútuo em pesquisa institucional), sem um plano ou visão coerente. As frágeis redes de serviços privados, de caridade e governamentais que agora formam a base dos cuidados comunitários em grande parte dos Estados Unidos e Canadá são incapazes de fornecer cuidados contínuos a muitas pessoas que lutam com doenças mentais graves. As vidas daqueles que sofrem de doença mental são muitas vezes marcadas pela violência, pobreza, falta de moradia e encarceramento. Os ativistas anti-psiquiátricos caracterizam a psiquiatria como parte integrante dessa dominação para alegar que ela faz mais mal do que bem, defendendo assim a abstenção do tratamento. Em que ponto a luta contra o controle social se alinha com uma política de descaso social?

O complexo farmacêutico-industrial

A influência da indústria farmacêutica sobre a educação médica, a pesquisa clínica e a prática clínica é não se dá somente na psiquiatria. No entanto, é verdade que o papel da psiquiatria em impedir uma compreensão completa das próprias condições que os medicamentos da indústria farmacêutica pretendem tratar é perturbador. As empresas farmacêuticas exercem um grau preocupante de poder e autoridade em definindo transtornos mentais, realizando pesquisas sobre as causas do sofrimento mental e determinando a melhor forma de lidar com ele.

Em meados do século XX, à medida que a psiquiatria se tornava cada vez mais dependente das intervenções farmacêuticas, a indústria farmacêutica reconheceu o quão lucrativa essa aliança poderia ser e nasceu uma relação de inquietante dependência. Em Anatomy of an Epidemic (2010), Robert Whitaker traça a luta da psiquiatria por legitimidade ao lado dos interesses da indústria farmacêutica para expor os laços profundos de dependência entre eles. Essa relação, após o surgimento de drogas psicoativas “inovadoras” na década de 1950, é claramente ilustrada pela transição da terapia da fala para a terapia farmacologicamente orientada como o método dominante de tratamento.

Embora inicialmente desenvolvidas para tratar infecções, drogas como Thorazine e meprobamate mostraram-se, por acaso, úteis para alterar estados mentais e atenuar a presença de sintomas agudos de psicose, ansiedade e depressão. Mesmo que ninguém soubesse como funcionavam, rapidamente seu uso generalizado ganhou espaço em hospitais psiquiátricos e ambulatórios.

Ao longo do tempo, os pesquisadores puderam observar que as drogas psicoativas afetavam o equilíbrio de vários mensageiros químicos (neurotransmissores) no cérebro e raciocinaram que as drogas deveriam estar corrigindo os desequilíbrios químicos. Por exemplo, porque o Thorazine bloqueia os receptores de dopamina no cérebro — cujo efeito reduz a agressão e os sintomas psicóticos, como alucinações — postulou-se que as psicoses devem ser causadas por um excesso de dopamina. A partir desse tipo de observações, nasceu a infame teoria do “desequilíbrio químico” da doença mental.

As décadas seguintes de pesquisa sobre a fisiologia das doenças psicóticas abriram importantes linhas de investigação para a compreensão dos elementos neurobiológicos envolvidos no sofrimento e distúrbio mental. O problema com toda essa pesquisa, no entanto, é o mesmo problema que inibe a maioria das bases e experimentações psiquiátricas — ela é amplamente controlada por interesses farmacêuticos. Trabalhando dentro da matriz de incentivos de mercado, as empresas farmacêuticas fazem pronunciamentos ousados e afirmações redutoras sobre as causas da doença mental. A teoria do desequilíbrio químico foi vendida aos pacientes e ao público porque era uma ferramenta de marketing conveniente. Mas sua promessa de curas químicas foi muito exagerada.

As empresas farmacêuticas têm meios explícitos de vender seus produtos — como publicidade direta ao consumidor — e estratégias mais secretas. O lobby industrial tem um impacto significativo na saúde pública e na política de drogas, enquanto o financiamento corporativo de atividades acadêmicas e pesquisas clínicas enviesa seriamente a educação médica e as diretrizes de prática clínica. Em geral, a psiquiatria se baseia em uma base de conhecimento que foi comprometida pelo envolvimento da indústria, mas esse fato por si só não explica preocupações legítimas com o excesso de psiquiatria. Médicos familiares — que são responsáveis pela maioria dos medicamentos psicofarmacêuticos disponíveis para as populações ambulatoriais — recebem muito menos treinamento em psicoterapia do que deveriam. Seus esforços de boa-fé para ajudar as pessoas são muitas vezes comprometidos por uma confiança excessiva no bloco de receitas.

À medida que os prescritores continuam a fazer uso de ferramentas psicofarmacológicas brutas, a pesquisa e o desenvolvimento de novas intervenções psicofarmacêuticas sofreram uma interrupção virtual. É muito mais lucrativo para as empresas ajustar, re-patentear e renomear medicamentos existentes do que se engajar no negócio muito mais arriscado de criar novas teorias e tratamentos. Isso explica, em parte, por que as empresas farmacêuticas gastam muito mais dinheiro em marketing do que em pesquisa e projetos.

Aqueles que defendem e promovem a psicofarmacologia o fazem em grande parte porque seus medicamentos, embora imperfeitos, geralmente são eficazes. No entanto, dificuldades surgem ao avaliarmos a veracidade das alegações da empresa farmacêutica.

A quantidade excessiva de dinheiro da indústria farmacêutica envolvido em estudos médicos compromete gravemente a qualidade e a confiabilidade das informações que tornam públicas. O fato de que estudos com financiamento da indústria farmacêutica são muito mais propensos a relatar resultados positivos já está bem documentado. Além disso, os processos de aprovação de medicamentos da US Federal Drug Administration e da Health Canada — que geralmente segue as decisões tomadas nos Estados Unidos — são drasticamente distorcidos em benefício das empresas farmacêuticas.

Para levar um medicamento ao mercado, as empresas farmacêuticas devem enviar todos os ensaios clínicos que patrocinaram (não são obrigadas a enviar análises independentes de seus produtos). Embora as empresas farmacêuticas possam realizar quantos ensaios quiserem, eles só precisam produzir dois ensaios mostrando que um medicamento é mais eficaz do que um placebo para que ele seja aprovado. Ensaios negativos raramente verão a luz do dia, enquanto os estudos positivos são promovidos em conferências e publicados em revistas médicas. O público, e até certo ponto os médicos que nos tratam, desconhece grande parte do processo.

Por uma política de cuidados mentais de esquerda

É fácil selecionar os abusos conspícuos da psiquiatria para lançar todo o campo — passado, presente e futuro — sob uma luz negativa. Deve-se notar, no entanto, que os defensores da psiquiatria também foram capazes de produzir suas próprias histórias seletivas que lançam uma luz muito menos negativa sobre sua disciplina. Uma abordagem mais imparcial seria manter nossas críticas à medicina psiquiátrica ao mesmo tempo em que reconhecemos a tarefa profundamente difícil de responder ao sofrimento mental.

Figuras proeminentes no campo como Leon Eisenberg e Allen Frances ofereceram avaliações muito públicas das capacidades cronicamente limitadas da psiquiatria e seus muitos fracassos. Em 1982, em meio às promessas frenéticas de uma “revolução neurobiológica” na psiquiatria, Roberto Mangabeira Unger destacou os desafios da disciplina em um emocionante discurso à American Psychiatry Association:

Nada prejudica mais a ciência do que a negação ou a banalização do enigma. Ao manter as falhas explicativas da ciência psiquiátrica bem diante de nossos olhos, também somos capazes de descobrir o elemento de compreensão válido até mesmo nos ataques mais extremos e menos cuidadosos à psiquiatria contemporânea: transformar até mesmo seus críticos mais confusos e implacáveis em fontes de inspiração é o sonho de um cientista.

A ciência está longe de ser politicamente neutra, mas a esquerda pode e deve empregar seus métodos para promover fins políticos emancipatórios e transformadores.

Há várias dimensões para a política do sofrimento mental. Sabemos que as pessoas estão passando por um sofrimento mental significativo que pode ser reduzido ou resolvido. No entanto, carecemos de explicações sociológicas, psicológicas e biológicas satisfatórias para as várias formas de sofrimento e distúrbio mental que as pessoas podem experimentar. Os psiquiatras não têm o monopólio desse estado de ignorância — todos nós o compartilhamos. Mas cedemos autoridade e poder significativos a pesquisadores médicos e empresas farmacêuticas para promover nosso entendimento público sobre assuntos de grande preocupação e complexidade. Mais estudos devem ser realizados para elevar os padrões de transparência e responsabilidade democrática.

O trabalho de cuidado é uma parte importante da luta mais ampla pela conquista de liberdades sociais e econômicas universais. A oferta pública de programas sociais e terapêuticos cuidadosamente planejados — como clubes, grupos de apoio, alojamento de apoio, gerenciamento de casos e terapias psicológicas e médicas verdadeiramente acessíveis — é desesperadamente necessária para possibilitar que as pessoas vivam bem e em segurança.

Arrancar o poder das corporações e instituições que atualmente lucram com seu monopólio sobre o sofrimento mental não é fácil nem simples. O caminho para democratizar a pesquisa científica certamente será uma batalha difícil. No entanto, é fundamental que ultrapassemos a censura e a rejeição total da psiquiatria em direção a um envolvimento mais ativo com essas questões. Isso começa com humildade e uma apreciação diferenciada dos desafios epistemológicos e políticos que enfrentamos.

Uma política de esquerda de cuidado mental deve exigir uma investigação democrática e financiada publicamente sobre a natureza do sofrimento mental e possíveis tratamentos, avaliações contínuas do que é importante para as pessoas que sofrem e um compromisso com a prestação de tratamento e solicitude no cuidado. As respostas sociais à doença mental têm sido caracterizadas por extremos de paternalismo ou negligência. A esquerda tem muito a contribuir para que tracemos um novo caminho.

Sobre a autora

Madeleine Ritts trabalha como líder de equipe de um programa comunitário de saúde mental e vícios em um hospital no centro de Toronto. Ela está envolvida na organização do trabalho em torno da pobreza e dos sem-teto e ocupa uma posição de pesquisa baseada na prática no Instituto de Conhecimento Li Ka Shing.

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