Celeste Viedma
Jacobin
(Créditos: Martin Bernetti/AFP) |
Em seu discurso de 19 de dezembro de 2021, o presidente eleito do Chile convidou homens e mulheres a voltarem para casa "com a alegria saudável da vitória limpa alcançada". Assim, Gabriel Boric fez suas as palavras pronunciadas por Salvador Allende perante a Federación de Estudiantes de la Universidad de Chile há pouco mais de meio século. Uma conspiração que para muitos terá passado despercebida, já que o jovem presidente alude ao seu antecessor sem nomeá-lo. Quanto está em jogo nessa ausência de um nome próprio? Propomos ler nisso um sintoma, um sinal de tudo o que não está em nosso modo de herdar a experiência da Unidade Popular e de lidar com sua derrota. Pensar nessas tensões e a partir delas é o propósito deste texto: tentar uma conversa com o passado, um "acerto de contas" com o legado em que nos reconhecemos.
Sou uma pergunta teimosa
Não foi apenas o Chile que caiu em 11 de setembro de 1973. O golpe militar de Pinochet fincou o marco de uma derrota que se espalharia dramaticamente por todo o continente. Com o objetivo de disciplinar o movimento operário e sufocar a rebelião juvenil, um terror sem limites pairava sobre o povo latino-americano. Aqueles que conseguiram evitar o desaparecimento forçado ou o assassinato se dispersaram no exílio.
Além da denúncia da sistemática violação dos direitos humanos cometida pelas ditaduras, o trabalho simbólico de elaboração sobre o que estava acontecendo adquiriu contornos de "autocrítica" e se organizou em torno de uma pergunta: poderia ter sido evitado? Uma pergunta trágica, destinada a refletir sobre os erros cometidos. Assim, em vários países do Cone Sul surgiram vozes que condenavam o "dogmatismo" e o uso da violência política pelas forças revolucionárias.
No caso chileno, a atenção se concentrou nos problemas táticos e estratégicos que imobilizaram o governo Allende. Inúmeras obras tratam deles, como os de Clodomiro Almeyda, Sergio Bitar, Luis Corvalán, Joan Garcés, Carlos Matus ou Tomás Moulian, para citar alguns. Em suas formas mais conhecidas, essa "autocrítica" considera a impossibilidade de expandir as bases sociais para os setores médios, construir consensos com adversários políticos (sobretudo a Democracia Cristã) ou romper a lealdade corporativa das Forças Armadas.
Carlos Matus, por exemplo, constrói todo o seu planejamento estratégico situacional a partir do que considera um erro político crucial: ter se comportado de maneira "normativa", desconsiderando a criatividade do adversário em sua própria estratégia. Não são poucos os que lamentam a intransigência da ala mais radical da Unidad Popular, que teria impedido uma negociação que consideravam necessária. No extremo oposto, onde poderíamos colocar Carlos Altamirano, Agustín Cueva ou Ruy Mauro Marini, argumenta-se que a moderação do projeto foi justamente o fator que enfraqueceu decisivamente o governo. Nesta leitura, não se tratava tanto de «parar e consolidar», mas sim de «avançar sem comprometer», como dizia o slogan. Duas interpretações que precisam uma da outra para se opor à "explicação" a posteriori da derrota.
Nesse sentido, essa ficção está orientada a mostrar os efeitos no presente das concessões que possibilitaram a saída da ditadura chilena. Eles foram sentidos quando, já no século 21, o Chile não pode acompanhar a onda dos chamados "governos pós-neoliberais" que conquistaram gradualmente a Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Paraguai. No país de Allende, o mesmo país que já foi farol e esperança para todos os movimentos de libertação dos anos 1960 e 1970, o novo século não traria nada mais do que uma tímida mudança de liderança na Concertación.
Hoje, vinte anos depois, quando as forças populares chilenas recompõem seu vigor e, finalmente!, a esquerda recupera o Estado, não é necessário então assumir o legado da Unidade Popular e rever a maneira como nos contamos sua derrota? É este presente, chileno e latino-americano, que clama por uma nova conspiração.
Os anos 1980 são aqueles em que as ciências sociais problematizam a democracia e também os tempos em que as discussões sobre "boa governança" ganharam força. O problema do governo em uma democracia, então, passa a ser pensado como uma questão de buscar consenso e estabelecer contratos. Não é difícil perceber a afinidade entre a leitura da derrota que descrevemos e esse problema. Lida na chave do "não sabíamos governar", a derrota deixa a tarefa de profissionalizar os conselheiros, de formar o estrato tecnopolítico que seria capaz de assessorar o príncipe em bases científicas, como propôs Carlos Matus na época.
Mas a insistência no aperfeiçoamento das capacidades governamentais divorciada de uma pergunta sobre o projeto corre o risco de se tornar uma aceitação do futuro que se impõe como provável. E é que a democracia dos anos oitenta, como bem observa Giller, será o ponto de chegada, o tabuleiro preparado e as regras de um jogo em que não haverá mais espaço para pensar a revolução. Claro, para fundar esta democracia será necessário apresentar como não democráticas todas as tentativas de alcançar o socialismo, incluindo a tentativa presidida por Allende! A experiência chilena permanece então em um lugar paradoxal, sintomático e é exatamente isso que a torna um ponto de vista privilegiado para nos questionarmos.
Esses tempos de reflexão sobre o "bom governo" serão, naturalmente, também os de abandono do marxismo. Exigirão, portanto, a construção de um marxismo maniqueísta, reduzido à mais simplista «determinação econômica» e apresentado como incapaz de compreender o fenômeno político. Mas não havia obras extraordinárias que pensaram sobre esse problema, como as de Agustín Cueva, Norbert Lechner ou René Zavaleta Mercado, que ainda faziam parte do universo conceitual marxista? Um livro recente de Andrés Tzeiman escuta esses textos escritos no alvorecer da derrota (La fobia al Estado en América Latina, 2020). Mesmo o Situation Planning (1980) de Matus se inscreve, mesmo com correções importantes, no universo conceitual do marxismo (embora seja surpreendente o pouco que ele quis ser reconhecido por seus leitores contemporâneos).
Parece então que, para erguer o que seria construído sobre a derrota, em cima de suas ruínas, seria necessário silenciar tudo o que foi produzido nela e a partir dela no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Embora sem se inscrever expressamente no marxismo, mas em constante diálogo com ele, Oscar Varsavsky vinha insistindo no problema do cálculo da viabilidade desde meados da década de 1960, com o atento interesse de figuras como Alfredo Eric Calcagno, Pedro Sáinz e o próprio Carlos Matus. Por que então sustentar que o político teria permanecido impensado até depois da derrota?
A construção dessa temporalidade produz efeitos devastadores: as preocupações que foram evocadas com esforço seriam enterradas no museu das tentativas fracassadas, onde vai parar s desejos, o que está ultrapassado que deve ser abandonado. Fica claro então que a derrota do marxismo como universo conceitual não se explica por razões estritamente teóricas, mas pela derrota do horizonte político que nele ganhou vida. Como assinala Eduardo Rinesi no seu Prólogo a Espectros dependentistas (2020), a sua substituição por outras formas de pensar não se deve tanto a uma análise rigorosa das suas virtudes ou defeitos, mas sim à decisão política de “virar a página”.
E seu nome flutuando no adeus
Em nossa temporalidade do puro presente, é o futuro que se tornou um espectro e por isso acreditamos ser necessário ir ao passado: voltar ao futuro, como diz aquele belo filme de 1985. Mas não para alertar sobre as supostas consequências catastróficas dos usos da máquina do tempo, ou seja, de qualquer forma de modificação do passado (que, a rigor e de acordo com as tecnologias atualmente disponíveis, só pode ser a modificação da maneira como nos contamos o passado, que coincidência!). Em vez disso, procuramos evocar os fantasmas do passado para permitir uma nova conspiração para o futuro.
Procurar entre os restos mortais o que pode "acender em um momento de perigo", como quando alguém encontrou e guardou os famosos óculos do presidente nas ruínas de La Moneda, questão que Patricio Guzmán recupera com carinho em um de seus filmes (Salvador Allende, 2004). E esse alguém era uma mulher, veja se isso não é significativo diante do protagonismo que os feminismos têm no atual movimento popular chileno!
Sobre a autora
Celeste Viedma é socióloga e professora da Universidade de Buenos Aires. Doutoranda do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas. Membro do Centro Cultural de Cooperação "Floreal Gorini".
Sou uma pergunta teimosa
Não foi apenas o Chile que caiu em 11 de setembro de 1973. O golpe militar de Pinochet fincou o marco de uma derrota que se espalharia dramaticamente por todo o continente. Com o objetivo de disciplinar o movimento operário e sufocar a rebelião juvenil, um terror sem limites pairava sobre o povo latino-americano. Aqueles que conseguiram evitar o desaparecimento forçado ou o assassinato se dispersaram no exílio.
Além da denúncia da sistemática violação dos direitos humanos cometida pelas ditaduras, o trabalho simbólico de elaboração sobre o que estava acontecendo adquiriu contornos de "autocrítica" e se organizou em torno de uma pergunta: poderia ter sido evitado? Uma pergunta trágica, destinada a refletir sobre os erros cometidos. Assim, em vários países do Cone Sul surgiram vozes que condenavam o "dogmatismo" e o uso da violência política pelas forças revolucionárias.
No caso chileno, a atenção se concentrou nos problemas táticos e estratégicos que imobilizaram o governo Allende. Inúmeras obras tratam deles, como os de Clodomiro Almeyda, Sergio Bitar, Luis Corvalán, Joan Garcés, Carlos Matus ou Tomás Moulian, para citar alguns. Em suas formas mais conhecidas, essa "autocrítica" considera a impossibilidade de expandir as bases sociais para os setores médios, construir consensos com adversários políticos (sobretudo a Democracia Cristã) ou romper a lealdade corporativa das Forças Armadas.
Carlos Matus, por exemplo, constrói todo o seu planejamento estratégico situacional a partir do que considera um erro político crucial: ter se comportado de maneira "normativa", desconsiderando a criatividade do adversário em sua própria estratégia. Não são poucos os que lamentam a intransigência da ala mais radical da Unidad Popular, que teria impedido uma negociação que consideravam necessária. No extremo oposto, onde poderíamos colocar Carlos Altamirano, Agustín Cueva ou Ruy Mauro Marini, argumenta-se que a moderação do projeto foi justamente o fator que enfraqueceu decisivamente o governo. Nesta leitura, não se tratava tanto de «parar e consolidar», mas sim de «avançar sem comprometer», como dizia o slogan. Duas interpretações que precisam uma da outra para se opor à "explicação" a posteriori da derrota.
Não nos interessa aqui tomar partido de um ou de outro, embora seja necessário assinalar que a primeiro tem sido consideravelmente mais difundida, embora nem por isso mais precisa. Em que ponto uma estratégia de “parar e consolidar” teria sido possível e eficaz? A brutalidade das ditaduras em toda a região torna difícil pensar que o golpe de Pinochet poderia ter sido evitado com contenção de projetos. Mesmo que houvesse um erro de avaliação custoso e decisivo em relação ao terror que mais tarde seria implantado por obscuras potências cívico-militares, esse erro de avaliação custoso e decisivo é suficiente para afirmar que houve um descaso geral das capacidades criativas do oponente?
No mínimo, um governo que tentasse atingir níveis de participação popular a ponto de ser extremamente difícil contê-la teria que ser julgado de forma diferente (as obras de Franck Gaudichaud são uma boa abordagem para essa questão). Podemos citar também as tentativas de construção de consensos que foram construídas em torno do Plano Nacional de Economia 1971-1976. É curioso que o Plano Trienal Argentino de Reconstrução e Libertação Nacional 1974-1977 também tenha se destacado por seus esforços nesse sentido (ver tese de doutorado de Claudia Bernazza).
Mas, mesmo que tais tentativas não tenham sido suficientes, há outro problema com essa leitura: a questão não é tanto se houve um delírio de onipotência referente às próprias forças, mas sim que o adversário também parecia considerar que o poder era tal que seria necessária a mais brutal, dura e selvagem demonstração de força para reprimi-lo. Nesse sentido, esquecer o caráter real e atuante das forças revolucionárias exige uma negação do Terror que foi desencadeado para aniquilar essas mesmas forças. Se isso se encaixa no que aconteceu na região, é ainda mais dramático para o caso chileno.
Temos hoje inúmeras provas da enorme preocupação da direita norte-americana com a chegada de um presidente marxista ao poder pelo voto popular. Quais seriam os erros que, se tivessem sido evitados, teriam impedido a reação do imperialismo? É difícil acreditar em uma suposta superestimação de sua própria força por parte do movimento revolucionário quando foram seus próprios inimigos que agiram como se a revolução já estivesse em pleno andamento.
No mínimo, um governo que tentasse atingir níveis de participação popular a ponto de ser extremamente difícil contê-la teria que ser julgado de forma diferente (as obras de Franck Gaudichaud são uma boa abordagem para essa questão). Podemos citar também as tentativas de construção de consensos que foram construídas em torno do Plano Nacional de Economia 1971-1976. É curioso que o Plano Trienal Argentino de Reconstrução e Libertação Nacional 1974-1977 também tenha se destacado por seus esforços nesse sentido (ver tese de doutorado de Claudia Bernazza).
Mas, mesmo que tais tentativas não tenham sido suficientes, há outro problema com essa leitura: a questão não é tanto se houve um delírio de onipotência referente às próprias forças, mas sim que o adversário também parecia considerar que o poder era tal que seria necessária a mais brutal, dura e selvagem demonstração de força para reprimi-lo. Nesse sentido, esquecer o caráter real e atuante das forças revolucionárias exige uma negação do Terror que foi desencadeado para aniquilar essas mesmas forças. Se isso se encaixa no que aconteceu na região, é ainda mais dramático para o caso chileno.
Temos hoje inúmeras provas da enorme preocupação da direita norte-americana com a chegada de um presidente marxista ao poder pelo voto popular. Quais seriam os erros que, se tivessem sido evitados, teriam impedido a reação do imperialismo? É difícil acreditar em uma suposta superestimação de sua própria força por parte do movimento revolucionário quando foram seus próprios inimigos que agiram como se a revolução já estivesse em pleno andamento.
A derrota produz efeitos, mas também produz – e de forma mais dramática – maneiras de questioná-la. Se o modo como foi elaborado está tão especulativamente dividido entre a convicção de que faltou prudência e a convicção de que faltou audácia, o problema não é tanto qual das duas opções deve ser tomada como verdadeira, mas qual é a verdade que organiza essa divisão, a saber: o esmagamento dramático de uma pergunta sobre o futuro. Se é possível sustentar que havia então uma confiança excessiva de que as forças revolucionárias finalmente triunfariam, também é preciso notar que mais tarde haverá uma crença obstinada na impossibilidade de retornar ao caminho, na expiração dos sonhos que revelaram-se ingênuos e tiveram de ser resignados.
Como observa Diego Giller (Espectros dependentistas, 2020), a derrota foi concebida não tanto a partir de uma preocupação com o futuro da revolução —isto é, sustentando está última como futuro—, mas como uma instância para avaliar as razões pelas quais ela fracassou. Assim, o problema não é tanto se esta ou aquela leitura dos erros cometidos é verdadeira, mas o fato de que é a questão trágica do passado que está ocupando plenamente o centro da cena, deslocando a questão política sobre o futuro. "Será possível?" perguntas sobre a viabilidade futura de uma estratégia. "Isso poderia ter sido prevenido?" Pergunta sobre os erros do passado. Não há uma ponderação exagerada da tragédia nesse curso de autocrítica? Parece que as utopias do passado designariam então uma possibilidade que sempre será derrotada. Talvez este seja um risco que valha a pena correr em toda autocrítica, mas deve-se notar que é também o momento em que o prefixo "auto" esmaece a própria crítica.
Como são bonitas os cogumelos
O final dos anos 80 seria "os dias do arco-íris", segundo a expressão com que Antonio Skármeta (2012) intitulou a ficção sobre o plebiscito que possibilitou a saída de Pinochet do poder. O filme Não, de Pablo Larraín, hoje disponível na plataforma Netflix, foi inspirado em seus rascunhos. O jingle cativante da campanha "N" dizia: "a alegria está chegando". Nem revolução, nem socialismo... alegria. Os dias do arco-íris seriam a hora de esquecer a cor vermelha, de esquecer tudo o que foi comprometido pela transição negociada.
Nesse sentido, essa ficção está orientada a mostrar os efeitos no presente das concessões que possibilitaram a saída da ditadura chilena. Eles foram sentidos quando, já no século 21, o Chile não pode acompanhar a onda dos chamados "governos pós-neoliberais" que conquistaram gradualmente a Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Paraguai. No país de Allende, o mesmo país que já foi farol e esperança para todos os movimentos de libertação dos anos 1960 e 1970, o novo século não traria nada mais do que uma tímida mudança de liderança na Concertación.
Hoje, vinte anos depois, quando as forças populares chilenas recompõem seu vigor e, finalmente!, a esquerda recupera o Estado, não é necessário então assumir o legado da Unidade Popular e rever a maneira como nos contamos sua derrota? É este presente, chileno e latino-americano, que clama por uma nova conspiração.
Os anos 1980 são aqueles em que as ciências sociais problematizam a democracia e também os tempos em que as discussões sobre "boa governança" ganharam força. O problema do governo em uma democracia, então, passa a ser pensado como uma questão de buscar consenso e estabelecer contratos. Não é difícil perceber a afinidade entre a leitura da derrota que descrevemos e esse problema. Lida na chave do "não sabíamos governar", a derrota deixa a tarefa de profissionalizar os conselheiros, de formar o estrato tecnopolítico que seria capaz de assessorar o príncipe em bases científicas, como propôs Carlos Matus na época.
Mas a insistência no aperfeiçoamento das capacidades governamentais divorciada de uma pergunta sobre o projeto corre o risco de se tornar uma aceitação do futuro que se impõe como provável. E é que a democracia dos anos oitenta, como bem observa Giller, será o ponto de chegada, o tabuleiro preparado e as regras de um jogo em que não haverá mais espaço para pensar a revolução. Claro, para fundar esta democracia será necessário apresentar como não democráticas todas as tentativas de alcançar o socialismo, incluindo a tentativa presidida por Allende! A experiência chilena permanece então em um lugar paradoxal, sintomático e é exatamente isso que a torna um ponto de vista privilegiado para nos questionarmos.
Esses tempos de reflexão sobre o "bom governo" serão, naturalmente, também os de abandono do marxismo. Exigirão, portanto, a construção de um marxismo maniqueísta, reduzido à mais simplista «determinação econômica» e apresentado como incapaz de compreender o fenômeno político. Mas não havia obras extraordinárias que pensaram sobre esse problema, como as de Agustín Cueva, Norbert Lechner ou René Zavaleta Mercado, que ainda faziam parte do universo conceitual marxista? Um livro recente de Andrés Tzeiman escuta esses textos escritos no alvorecer da derrota (La fobia al Estado en América Latina, 2020). Mesmo o Situation Planning (1980) de Matus se inscreve, mesmo com correções importantes, no universo conceitual do marxismo (embora seja surpreendente o pouco que ele quis ser reconhecido por seus leitores contemporâneos).
Parece então que, para erguer o que seria construído sobre a derrota, em cima de suas ruínas, seria necessário silenciar tudo o que foi produzido nela e a partir dela no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Embora sem se inscrever expressamente no marxismo, mas em constante diálogo com ele, Oscar Varsavsky vinha insistindo no problema do cálculo da viabilidade desde meados da década de 1960, com o atento interesse de figuras como Alfredo Eric Calcagno, Pedro Sáinz e o próprio Carlos Matus. Por que então sustentar que o político teria permanecido impensado até depois da derrota?
A construção dessa temporalidade produz efeitos devastadores: as preocupações que foram evocadas com esforço seriam enterradas no museu das tentativas fracassadas, onde vai parar s desejos, o que está ultrapassado que deve ser abandonado. Fica claro então que a derrota do marxismo como universo conceitual não se explica por razões estritamente teóricas, mas pela derrota do horizonte político que nele ganhou vida. Como assinala Eduardo Rinesi no seu Prólogo a Espectros dependentistas (2020), a sua substituição por outras formas de pensar não se deve tanto a uma análise rigorosa das suas virtudes ou defeitos, mas sim à decisão política de “virar a página”.
E seu nome flutuando no adeus
Voltemos agora à ausência de um nome próprio com que iniciamos esta viagem. É curioso que um dos livros mais conhecidos de Carlos Matus também se refira ao ex-presidente sem nomeá-lo. Escrito do exílio em Caracas e publicado um ano antes da partida de Pinochet, Adiós, Señor Presidente (1987) mostra a disposição de convocar Allende em um momento em que não poucos queriam esquecê-lo. Mas esse Sr. Presidente é precedido por um "adeus" que parece anunciar uma despedida. "Descanse, descanse, espírito perturbado". A fala de Hamlet é muitas vezes lembrada por Rinesi, que joga com a familiaridade entre rest e resto, entre o descanso (rest, em inglês) e restos (o que resta depois de uma derrota, jogado à beira da estrada) que são, por sua vez, chamados a descansar (Remains and resíduos, 2019).
Os espectros cercam. Por mais que gostaríamos de enterrá-los, por mais que gostaríamos que os restos descansassem em seu lugar, eles relutam em sumir. Para Carlos Matus, dizer "adeus" a Allende é também dizer "adeus" àquela parte de si mesmo que ele precisa deixar de lado. Ou seja, diz Rinesi, a outra face do resto, a do lixo, ou seja, o que resta de alguém depois que aceitou cortar uma parte de si para continuar participando do jogo. Não é surpreendente, então, que o que foi escrito pelo ex-ministro de Allende em tempos de derrota traz consigo uma certa pretensão fundadora de novidade: "até agora, os líderes políticos (...) não foram treinados para governar", disse ele no prólogo da segunda edição de Adiós, Señor Presidente (1993).
Quais são os efeitos políticos dessa afirmação? O problema desses gestos fundadores é que eles nos impedem de nos reconhecer no passado. Talvez possamos entendê-los, como testemunho de quem precisou continuar para não ficar em ruínas, à beira da estrada. Mas a leitura é política não pelo que compreende, mas pelo que busca. E precisamente porque queremos herdar Carlos Matus e Salvador Allende, porque nos interessa reconhecer-nos no seu legado, é que não podemos reproduzir esse gesto.
Mais cedo ou mais tarde, sem descanso
Em suas últimas palavras, Allende mostrou (ou conjurou, gritou?) confiança no futuro da revolução: "Saibam que, muito mais cedo ou mais tarde, as grandes avenidas por onde passa o homem livre se abrirão novamente para construir uma sociedade melhor", lê-se em uma de suas frases mais conhecidas. O Presidente assume um sacrifício confiando que não será em vão, apelando para que não seja. A pergunta que poderia ser feita então poderia ser formulada da seguinte forma: que estratégia precisamos para garantir que no futuro, mais cedo ou mais tarde, as grandes avenidas voltem a abrir? Mas o terror desencadeado pelas forças militares em toda a região parece ter deslocado a questão, tornando inaudível o apelo, o clamor, o enredo de Allende. Ou melhor, impossibilitando que suas palavras fossem ouvidas como uma conjuração, como um clamor. Em vez disso, elas foram lidas como a expressão confiante de um sonhador, um utópico no sentido mais puro.
Não é possível ler uma chamada, um convite ali. Apenas a mais sangrenta perplexidade diante do trauma parece ser possível. O que chamamos aqui de "questão trágica" não é uma maneira um pouco mais racionalizada de lidar com o trauma, uma tentativa de simbolização diante da perplexidade? Antes do horror, as perguntas básicas: o que aconteceu?, o que é isso?, onde estamos?, como chegamos aqui? Um passo adiante: poderia ter sido evitado? O drama do caso chileno está imbuído do destino daquele homem nascido em Valparaíso e batizado de Salvador Allende Gossens.
Pouco importa quem disparou, Allende anuncia sua recusa em renunciar: "Pagarei com a vida pela lealdade do povo". Ele escolhe para seu próprio corpo aquele ato que não pode falhar, apostando talvez nas possibilidades que isso abriria para o corpo coletivo e popular. Mas, qual é o caminho que resta depois desse ato tão corajoso, admirável e heroico quanto irreversível, trágico e fatal? Embora isso tenha sido, sem dúvida, fora de qualquer intenção do presidente, sua morte durante o bombardeio do Palácio significará o fim da estratégia, a interrupção da política.
Tomás Moulián capta este problema em uma entrevista recente: "O que você lembra de Allende? Seu suicídio." Um desfecho fatídico para um político cujo “punho” costumava se destacar, como chamam no Chile a capacidade de negociação, que na Argentina costumamos chamar de “jogo de cintura”. Resultado fatídico também para um processo que se caracterizou justamente pela originalidade de sua estratégia. Porque, com efeito, uma das características mais importantes do chamado "caminho chileno para o socialismo" foi seu insistente caráter democrático, seus marcantes esforços de consenso incorporados no Plano Nacional de Economia 1971-1976 e o impulso de participação, organização e mobilização popular.
No concerto de "autocríticas" que se seguiriam, é como se a complexidade desses esforços tivesse sido enterrada no esquecimento. Como se a suspensão da estratégia que significou a morte de Allende tivesse sido projetada para trás para ser vista como ausente desde o início. Parece-nos que ainda não se pensou o suficiente no lugar que sua morte ocupa entre os efeitos que eles evocaram para produzir uma leitura da derrota da qual ainda é muito difícil nos desapegar. Tragicamente, fica para a história como mais um elemento entre aqueles que operariam (como nos dói dizer isso!) ao lado do terror como forjador da irreversibilidade.
A política é um compromisso com o futuro, não pode se cristalizar em um eterno presente. Se a derrota é marcada pela irreversibilidade, estamos diante do fim da política. É assim que os vencedores gostariam, é claro. Vamos agradá-los?
Você herdará essas flores, venha se curar com elas
Procurar entre os restos mortais o que pode "acender em um momento de perigo", como quando alguém encontrou e guardou os famosos óculos do presidente nas ruínas de La Moneda, questão que Patricio Guzmán recupera com carinho em um de seus filmes (Salvador Allende, 2004). E esse alguém era uma mulher, veja se isso não é significativo diante do protagonismo que os feminismos têm no atual movimento popular chileno!
O que é trágico na história é o que é irrecuperável em cada derrota. Que isso não é tudo é o que temos tentado dizer neste escrito. Mas também é preciso dizer que sabemos que o que volta, não pode voltar igual. Que há perdas absolutas na história, como disse uma vez Louis Althusser. Mas então é preciso não sucumbir à tentação que faria escolher entre dois pólos, entre o pensar que não quer abrir mão de nada e o pensar que se deixa levar pelo que cada novo "contexto" lhe oferece. Antes de escolher, trata-se mais de colocar-se no interstício, que está longe de ser um "ponto médio", mas um ponto onde ambos os pensamentos colidem e acendem. Pensar "com el ojo mocho" seria então pensar entre as dobras, como o pensamento tentado pela revista de mesmo nome. Ao formular as duas questões entre as quais oscilamos ao longo deste escrito, tentamos algo semelhante. Situar-nos no ponto em que a questão política – será possível? – consegue estilhaçar uma questão trágica por demais onipresente – não poderia ter acontecido?
Assumimos então a herança em que nos reconhecemos e projetamos com ousadia o futuro que queremos. Parece-nos que o destino de nossa região está em jogo nessa nova onda de governos populares da qual, felizmente, o Chile participa.
Assumimos então a herança em que nos reconhecemos e projetamos com ousadia o futuro que queremos. Parece-nos que o destino de nossa região está em jogo nessa nova onda de governos populares da qual, felizmente, o Chile participa.
Sobre a autora
Celeste Viedma é socióloga e professora da Universidade de Buenos Aires. Doutoranda do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas. Membro do Centro Cultural de Cooperação "Floreal Gorini".
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