16 de março de 2022

O "neomarxismo pós-moderno" de Jordan Peterson é pura bobagem

As reflexões recentes de Jordan Peterson sobre o que ele chama de “neomarxismo pós-moderno” – enriquecidas por horas de pesquisa cuidadosa na Wikipedia - são um lembrete de que, quando se trata de intelectuais, a direita reacionária não está dando o seu melhor.

Luke Savage

Jacobin

Jordan Peterson falando com os participantes do Young Women's Leadership Summit 2018, organizado pela Turning Point USA, no Hyatt Regency DFW Hotel em Dallas, Texas, em 15 de junho de 2018. (Gage Skidmore / Flickr)

Tradução / No início desta semana, em uma série de tweets caracteristicamente bizarros, Jordan Peterson publicou uma lista de autores que ele considera “neomarxistas pós-modernos”: “Ibram X Kendi, Ta-Nahesi-Coates, Robin DiAngelo, Kimberle Crenshaw, bell hooks, Andrea Dworkin, Michel Foucault, Naomi Klein, Catherine McKinnon, Judith Butler, Jacques Derrida e, talvez acima de todos, Michel Foucault. Esta lista não está completa.”

Qualquer pessoa que tenha alguma familiaridade mesmo que passageira com alguns desses nomes provavelmente achará a lista de Peterson bastante heterogênea: Naomi Klein, por exemplo, provavelmente é mais conhecida por seu trabalho sobre capitalismo de desastre; Robin DiAngelo, enquanto isso, já trabalhou como consultora para algumas das maiores empresas do capitalismo corporativo. Ta-Nehisi Coates ganhou destaque escrevendo sobre racismo nos EUA e defendendo reparações históricas; Michel Foucault (que comicamente aparece duas vezes na lista) foi um historiador e filósofo amplamente associado ao pós-estruturalismo.

Como algumas pessoas foram rápidas em apontar, algumas das figuras mencionadas visivelmente nem são pós-modernas (Catherine McKinnon, que Peterson inclui, certa vez escreveu um ensaio literalmente intitulado “Pontos contra o pós-modernismo”), e é discutível quantas delas estariam sequer remotamente associadas com qualquer coisa que se assemelhe ao “marxismo”. A título de justificativa, o autor ofereceu o seguinte, como se estivesse revelando aos leitores alguma verdade enterrada: “Tornei essa lista pública porque frequentemente sou criticado por não ser capaz de nomear um único pensador cujo pensamento exista no nexo do pós-modernismo e do marxismo” Para aumentar ainda mais a impressão de ser alguém realmente engajado em pensamentos profundos, Peterson também twittou trechos das páginas da Wikipedia sobre pós-modernismo e marxismo – trechos que soam tão díspares quanto sua lista inicial de nomes.

Há uma razão bastante óbvia para isso, pois o pós-modernismo e o marxismo, como tradições intelectuais, são em muitos aspectos bastante antitéticos entre si.

O pensamento marxista surgiu no contexto de sociedades capitalistas em rápida industrialização e buscou explicar as condições e trajetórias dessas sociedades por meio da análise de suas contradições materiais. Adotado por radicais e revolucionários na última parte do século XIX, viria a animar uma ampla variedade de correntes políticas do século XX que buscavam transcender, neutralizar ou melhorar as desigualdades materiais do capitalismo moderno. Nos níveis tanto da crítica quanto da prescrição, o marxismo tendeu portanto a ser estruturalista em sua orientação: baseado na ideia de que os fundamentos subjacentes da sociedade humana poderiam ser identificados e historicamente situados.

Essa mesma característica, de fato, foi o principal alvo de muitos de seus críticos mais sonoros ao longo do século XX – especialmente na direita, que era cética em relação às grandes teorias da História e às críticas que considerava totalizantes ou utópicas. Trata-se de uma generalização, mas a influência do pensamento pós-moderno e pós-estruturalista tendeu a avançar à medida que as teorias estruturalistas (especialmente o marxismo) recuavam, não apenas nos círculos intelectuais e acadêmicos, mas também em toda a esfera pública mais ampla. Em forte contraste com o marxismo, tanto o pós-modernismo quanto o pós-estruturalismo estão intimamente associados com o ceticismo em relação às narrativas históricas mestras e com a dúvida sobre a possibilidade (e a conveniência) de fundamentos profundos na política, metafísica, epistemologia e crítica literária.

Peterson incluiu um adendo elaborando sua própria fusão bastante peculiar e de utilidade duvidosa:

"E o neomarxismo pós-moderno é a afirmação de que a única verdade e a única grande ética/narrativa é o fato e a perpetração motivada de relações de poder entre classes (definidas de várias maneiras: economicamente, ou por raça/sexo/gênero ou sua 'interseção')... e a exploração inevitável e motivada que disso resulta."

Como num passe de mágica intelectual, esse movimento atinge muito usando bem pouco. Levando a formulação de Peterson à sua conclusão lógica, de fato, seria possível incluir praticamente qualquer coisa em tal definição, uma vez que contenha alguma crítica à desigualdade, hierarquia ou a uma injustiça percebida. Assim, de uma só vez, Jacques Derrida e Robin DiAngelo podem ser colapsados no interior de uma mesma tendência geral, assim como (presumivelmente) qualquer número de grupos ativistas contemporâneos ou tendências de justiça social preocupados com raça, gênero, classe, sexualidade ou exploração em geral.

Há um problema imediatamente óbvio aqui, que é o fato de que muitas críticas das relações de poder entre “classes” (no sentido de Peterson) são claramente anteriores ao pós-modernismo e ao marxismo. (Será que Mary Wollstonecraft seria uma “neomarxista pós-moderna” quando publicou Reivindicação dos direitos da mulher em 1792?) Peterson, é claro, acrescenta a ressalva de “a única verdade e a única grande ética/narrativa”, então, em uma interpretação mais caridosa, sua definição pode ser limitada a teorias holísticas e totalizantes sobre a natureza da sociedade humana.

Mais uma vez, porém, isso contribui bem pouco para tornar sua lista inicial menos arbitrária ou mais coerente. Muitas das principais críticas pela justiça social hoje, no fim das contas, carecem visivelmente de uma dimensão classista ou materialista e, em alguns casos, podem ser adotadas por instituições poderosas por essa mesma razão. Gigantes corporativos como a Amazon estão muito ansiosos para abraçar as regalias da justiça social, mas definitivamente não estão tentando eliminar a hierarquia social ou criar uma sociedade sem classes. De forma semelhante, muitos políticos centristas e liberais que podem endossar a ideia ampla de “interseccionalidade” relutariam em defender qualquer coisa além das reformas mais incrementais e baseadas no mercado (e, em muitos casos, são profundamente hostis à formulação de políticas públicas transformadoras de qualquer espécie).

Há razões para isso, e elas têm muito a ver com o recuo do estruturalismo e das grandes narrativas, para não falar do colapso dos projetos políticos transformadores em geral. Essas tendências, e o vasto espectro de tradições intelectuais que delas surgiram, certamente ainda existem, mas grande parte da política de justiça social dominante atualmente é definida especificamente por sua aversão às teorias totalizantes e explicações holísticas associadas ao modernismo: enfatizando, em vez disso, as dinâmicas das relações interpessoais, as mecânicas da linguagem e o reconhecimento de identidades particulares. Não há nada necessariamente errado com nenhuma dessas coisas, é claro, mas dificilmente se poderia afirmar que pertencem a um mesmo projeto utópico ou que abranja a todas elas.

A coerência intelectual, não seria preciso dizer, não é um pré-requisito para se tornar um pensador de sucesso ou autor de livros campeões de venda. O apelo de Peterson, na verdade, provavelmente se resume ao seu dom para fazer afirmações banais em uma linguagem tão opaca que passam a soar profundas, mesmo que seu significado real permaneça nebuloso. Ao debater com Slavoj Zizek, o atual intelectual de direita da moda muitas vezes soava como um estudante que mal tinha feito a leitura para o dia de uma prova. (Peterson, ao que parece, se preparou para o evento apenas folheando o Manifesto comunista.) Independentemente disso, há uma espécie de destreza intelectual proporcionada por essa falta de rigor: os significados das palavras e dos conceitos (ironicamente) se tornam tão infinitamente fluidos e múltiplos que eles podem ser usados a serviço de praticamente qualquer coisa.

Nesse caso, o resultado é uma brincadeira no estilo “escolha você mesmo a sua aventura”, na qual todas as queixas e adversários percebidos pela direita podem ser projetados em um monolítico bicho-papão ideológico, sem a necessidade de se fazer nenhum trabalho histórico ou intelectual de peso. Falar o quê? Merecíamos um calibre melhor de reacionário.

Sobre o autor

Luke Savage é colunista da Jacobin.

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