As críticas à operação de Putin são inevitáveis em qualquer declaração da esquerda. Mas esse posicionamento deve ser precedido por uma denúncia contundente do imperialismo norte-americano como o principal responsável pela escalada da guerra.
Claudio Katz
A evidência da responsabilidade primária do imperialismo dos EUA na tragédia da Ucrânia é esmagadora. |
Tradução / Nos primeiros dias da operação militar, o avanço do exército russo foi fulminante. Destruiu os alvos preestabelecidos e inutilizou a infraestrutura de um adversário infinitamente mais frágil. Não há ponto de comparação entre os dois lados, e se o resultado final dependesse do desenlace bélico, o triunfo da Rússia estaria assegurado.
Mas a confrontação acabou de começar e a grande questão é o propósito imediato de Moscou: busca ocupar o país? Tenta forçar a queda do governo? Pretende impor suas demandas a um presidente substituto? Com tanques cercando Kiev, a passagem do tempo joga contra a operação.
Surpresas, reações e acontecimentos imprevistos
A impotência do Ocidente tem sido o dado mais chamativo do cenário criado pela ofensiva de Moscou. A decisão de Putin paralisou seus adversários, que não optaram por qualquer curso de ação para socorrer seu protegido. O presidente Zelensky verbalizou abertamente esse abandono de seus guardiões (“nos deixaram sozinhos”).
A desorientação de Biden é patética. Conhecia o plano russo, que seus porta-vozes publicizaram com grande antecedência, mas não planejou uma resposta. Descartou a escalada militar, assim como as propostas de negociação de Putin, sem considerar outras alternativas.
Este desconcerto confirma que os reflexos de Washington seguem afetados pela recente derrota no Afeganistão. O Departamento de Estado enfrenta sérios limites para envolver os marines em novas operações, e verifica-se na Europa a mesma resistência ao envio de tropas. Por isso, a OTAN limitou-se a emitir pronunciamentos vagos.
É evidente que as sanções econômicas serão irrelevantes se a Rússia alcançar um sucesso político-militar. Na prática, qualquer bloqueio financeiro ou comercial seria desfeito por essa vitória. Moscou preparou-se para resistir às penalidades. Acumulou grandes reservas de divisas e multiplicou acordos comerciais para enfrentar o isolamento. Mas estas precauções só funcionarão se obtiver uma vitória a curto prazo.
A Rússia aperfeiçoou sua política de substituição de importações para lidar com as sanções e é muito incerto o impacto de sua eliminação do sistema internacional de gestão bancária (Swift). Se Putin negociou com Xi Jinping uma compra-venda massiva de mercadorias, poderia compensar o boicote do Ocidente. Mas ninguém sabe qual é a convergência efetiva dos dois gigantes que desafiam os Estados Unidos.
As sanções são uma faca de dois gumes e poderiam transformar-se num bumerangue para o Ocidente, caso afetem as próprias companhias transatlânticas. As sanções estabelecidas em Londres contra os oligarcas russos, por exemplo, já provocam ruídos em outras operações do paraíso financeiro inglês.
A belicosidade comercial contra Moscou aumenta também os preços dos combustíveis e dos alimentos e provoca a erosão da recuperação econômica pós-pandemia. A Rússia fornece grande parte do trigo comercializado no mundo, abastece um terço do gás utilizado pela Europa e metade do que é consumido pela Alemanha. Se Berlim dispensa seu principal fornecedor de energia, quem será mais afetado, o vendedor russo ou o comprador alemão?
Alguns analistas acreditam que Putin caiu numa armadilha concebida por Biden para empurrar a Rússia para o mesmo pântano que exauriu a presença da URSS no Afeganistão. Mas Washington não controla os fios da operação e é muito improvável que seu líder balbuciante tenha planejado tal emboscada. Se a invasão, por outro lado, fica estagnada, Moscou poderia repetir em Kiev a tumba que cavou para si em Cabul.
Faltam muitas sequências para imaginar qual será o desfecho do drama que vive a Ucrânia. Mas, em qualquer caso, os diagnósticos são secundários para a caracterização do conflito.
O principal responsável
Há provas contundentes da responsabilidade primária do imperialismo norte-americano pela tragédia na Ucrânia. Em inúmeras ocasiões, o Pentágono tentou acrescentar Kiev à rede de mísseis criada pelos novos parceiros da OTAN na Europa do Leste. Em 30 anos, a Aliança Atlântica ampliou-se de 16 para 30 membros.
O cerco à Rússia foi iniciado por Bill Clinton, violando todos os compromissos que restringiam a presença militar estadunidense à fronteira da Alemanha. Esse limite foi deslocado diversas vezes para reforçar uma estratégia expansionista, que Bush encorajou com a incursão bélica fracassada na Geórgia (2008). Seus sucessores trabalharam para converter a Ucrânia em outro peão do dispositivo atlântico.
Washington tentou vias múltiplas para incorporar Kiev à OTAN e esteve perto de induzir um referendo para forçar essa adesão. Da revolta de Maidan (2013), surgiram governos contrários à Rússia e o atual presidente Zelensky fez da Ucrânia um “parceiro de oportunidades aperfeiçoadas” da OTAN (2020).
Putin salientou repetidamente que a presença desse organismo na Ucrânia representa uma ameaça à segurança da Rússia. A Ucrânia faz fronteira com seus principais parceiros europeus e compartilha zonas costeiras com a Turquia e os estados caucasianos. Enquanto os mísseis colocados na Polônia ou na Romênia podem atingir Moscou em 15 minutos, seus equivalentes na Ucrânia o fariam em apenas cinco minutos. A Rússia carece de qualquer instrumento equivalente nas proximidades do território estadunidense.
Nos últimos anos, a Ucrânia recebeu grandes fornecimentos de armas e o generalato reformou as fileiras militares em linha com os padrões da OTAN. O país ficou em terceiro lugar em “ajuda” econômico-militar de Washington e adquiriu recentemente mísseis antiaéreos, concebidos para transformar o Mar Negro numa jurisdição do comando ocidental.
O Kremlin questionou durante anos essa belicosidade, e, nas últimas seis semanas, Putin propiciou um freio explícito na conversão da Ucrânia numa catapulta contra a Rússia. Tentou negociar um novo status quo para proteger seu país do belicismo norte-americano, mas não obteve resposta da OTAN.
As propostas de Moscou contemplavam a exclusão de Kiev desse organismo e um veto à instalação de mísseis. Promovia, ademais, um estatuto de neutralidade para o país, semelhante ao que mantiveram a Finlândia e a Áustria durante a Guerra Fria.
Putin também apelou para um consenso sobre outras medidas de distensão global. Convidou Washington a retomar um tratado anulado por Trump, que regula a desativação de certos dispositivos atômicos (INF). O Departamento de Estado respondeu com indiferença, evasivas ou insultos a essas ofertas de paz. Rejeitou especialmente a neutralidade da Ucrânia, para evitar um precedente no desmantelamento das baterias de mísseis construídas pelo Pentágono na Europa. Esta recusa intensificou o conflito provocado pela expansão agressiva da OTAN.
Submeter a Europa
Washington encoraja o belicismo na Ucrânia para reforçar a submissão da Europa à sua agenda. Repete sua velha receita de militarização para subordinar o Velho Continente. Uma funcionária neoconservadora do Departamento de Estado (Victoria Nuland) comanda esta estratégia desde 2014.
A perseguição contra a Rússia já disciplinou Bruxelas, e em poucas semanas o Pentágono impôs a mobilização de tropas da Espanha, Dinamarca, Itália e França. A crise ucraniana também serviu para reforçar o alinhamento pró-ianque do Reino Unido pós-Brexit. Johnson divulga antes de Biden as sanções econômicas contra Moscou e estabelece o caminho a seguir para seus ex-sócios do continente.
A França perdeu autoridade devido à negociação fracassada empreendida por Emmanuel Macron. Procurou criar um marco para as tratativas distante do veto norte-americano, mas não considerou as propostas de pacificação do Kremlin. Sobre as questões principais – a neutralidade da Ucrânia e sua separação da OTAN –, manteve total lealdade à Casa Branca.
A Alemanha tem sido um alvo deliberado do belicismo norte-americano. O Departamento de Estado tentou bloquear a inauguração do gasoduto Nord Stream 2, que forneceria combustível russo através do mar Báltico, contornando o atual trânsito pela Ucrânia. Washington criou um clima rarefeito em toda a região, para impedir que os alemães recebessem a energia de Moscou.
Os Estados Unidos levam em conta também o aumento do preço do gás natural em cinco vezes no último ano. Tenta deslocar a Rússia do mercado europeu para descarregar seus excedentes de gás liquefeito, que oferece a preços mais elevados do que o concorrente de Moscou. Negocia inclusive a construção de um porto no Velho Continente para receber os envios delicados deste combustível. Seu projeto rivaliza abertamente com o gasoduto russo.
A maquinaria industrial alemã necessita do fornecimento externo de energia, razão pela qual Berlim tentou atenuar a pressão bélica estadunidense. Eludiu a mobilização de efetivos e sugeriu que vetaria a utilização de seu espaço aéreo. Mas nunca suavizou seu alinhamento cego com Washington e finalmente suspendeu a inauguração do gasoduto. O efeito imediato da incursão de Putin foi a consolidação do bloco atlântico sob as ordens de Washington.
A escalada a partir de Kiev
A Europa desempenhou um papel complementar aos EUA no projeto de transformar a Ucrânia num bastião da OTAN. Tanto Washington como Bruxelas promoveram essa dinâmica belicista desde a revolta do Maidan (2013) e o posterior golpe contra o presidente Yanukóvych.
Esse líder negociava em duas pontas uma ajuda financeira externa para aliviar o déficit fiscal do país. Ao final, sua escolha do resgate russo em detrimento da ajuda europeia desencadeou a reação dos manifestantes pró-ocidentais, que tomaram as ruas para precipitar a queda do presidente e a chegada de um presidente inclinado a acelerar o giro para a OTAN (Petro Porochekno).
O Departamento de Estado impulsionou esta mudança subindo o tom das tensões com a Rússia e promovendo na população o apego liberal ao sonho americano. Bruxelas lucrou, por seu lado, com a ilusória expectativa de transformar a Ucrânia numa economia desenvolvida pela simples adesão à União Europeia. Encorajou essa crença para escamotear o ajuste brutal que impunha à Grécia nesse momento. Aproveitou o entusiasmo em Kiev com as bandeiras hasteadas da UE (quando eram detestadas em Atenas).
A euforia ocidental propagada pelo governo ucraniano repetiu a norma de todos os processos políticos recentes da Europa do Leste. Mas acrescentou a este padrão uma campanha anti-russa e exacerbou o nacionalismo, que resultou em provocações armadas contra a população de língua russa. Kiev estabeleceu o ucraniano como único idioma oficial, afetando todos os habitantes que não utilizam essa língua. Iniciou, ademais, uma enxurrada de ações militares contra o setor próximo à Rússia situado no Leste.
Estima-se que a miniguerra interna da Ucrânia tenha resultado em 14.000 mortos e um milhão e meio de pessoas deslocadas nos últimos oito anos. Mas o principal teatro dessas confrontações tem sido a região de língua russa Donbass, como consequência dos atropelos perpetrados pelos enviados de Kiev.
Estas agressões são lideradas pelas correntes de extrema direita que emergiram da revolta do Maidan. Entretanto, ainda se discute se essa marca reacionária esteve presente desde o início do movimento ou se emergiu de sua evolução posterior. Mas, em ambas as variantes, o resultado ultraregressivo desse processo tem sido inquestionável.
A Ucrânia encontra-se numa crise econômica dramática devido aos resultados adversos da restauração capitalista. Esta transformação foi completada com a mesma intensidade da Rússia e com o mesmo modelo de apropriadores oligarcas advindos da velha cúpula governante.
Mas as duas economias seguiram trajetórias muito diferentes. Enquanto as riquezas naturais da Rússia permitiram combinar os compromissos entre as elites com certa estabilidade político-social, o declínio produtivo da Ucrânia exacerbou os equívocos no topo e a insatisfação na base. Num contexto de estagnação, retração do consumo, endividamento público e deterioração fiscal, o PIB per capita assemelha-se aos anos 90, e a gestão econômica de Kiev está submetida a um estrito controle do FMI.
Essa crise aprofundou a divisão anterior das classes dominantes do país entre os setores pró-ocidentais do Oeste e pró-russos no Leste. O primeiro grupo procurou integrar o país à União Europeia, oferecendo mão de obra barata, primarização e abertura comercial irrestrita. Assumiram empréstimos impagáveis e comprometeram-se com ajustes irrealizáveis. A crescente integração à Europa (sem ingressar na UE) aumentou a dependência financeira de Bruxelas e das remessas enviadas pelos emigrantes.
No Leste, o cenário é diferente. Ali prevaleceu a manutenção da produção fabril junto ao estreitamento dos laços com Moscou. Os setores governamentais resistiram à demolição que a adesão à União Europeia prometia. Compreenderam que as fábricas da região nunca poderiam digerir os padrões de produção, tecnologia e preços exigidos por Bruxelas. Também sabem que o aço ucraniano não poderia sobreviver sem o fornecimento de petróleo russo.
A Ucrânia foi incapaz de processar essas tensões regionais, preservando sua unidade e a coabitação das duas zonas. O nacionalismo reacionário anti-russo encorajado pelo Pentágono destruiu essa coexistência.
A reação de Moscou
A invasão da Ucrânia foi a resposta de Vladimir Putin às inúmeras recusas que sua proposta de negociar a neutralidade desse país recebeu. Alguns pensadores consideram que ele se antecipou, com uma ação preventiva, ao ingresso de seu vizinho à OTAN. A Rússia acumula uma terrível história de sofrimentos devido a invasões estrangeiras, e sua população é muito sensível a qualquer ameaça. Depois de Hitler, a segurança das fronteiras não é uma questão menor.
É evidente também que o imperialismo norte-americano só entende a linguagem da força. Basta observar o contraste recente entre Afeganistão, Iraque ou Líbia e a Coreia do Norte, para confirmar esse predomínio de códigos bélicos nas relações com Washington.
Depois de ameaçar repetidamente Pyongyang, nenhum presidente ianque passou aos fatos, pelo óbvio temor que suscita uma resposta atômica. A Rússia conhece essa dinâmica e por essa razão alguns analistas sugeriram que Putin responderia ao impasse das negociações instalando mísseis nucleares táticos na Bielorrússia.
Mas o chefe do Kremlin optou por uma invasão, que apresentou inicialmente como uma operação para proteger a população de língua russa. No Donbass, a situação voltou a agravar-se nos últimos meses, com novas ondas de atentados direitistas que corroeram o cessar-fogo e forçaram a evacuação da população civil.
Vladimir Putin exagera quando denuncia a existência de um “genocídio” nessa região, mas faz alusão à violência comprovada das milícias reacionárias. Ele refere-se a estes setores quando exige a “desnazificação” da Ucrânia. Essa denominação não é uma figura de retórica vazia. Desde 2014, os bandos de extrema-direita impuseram uma norma de violência a todos os governos de Kiev.
Estes grupos impuseram uma proibição do Partido Comunista, a erradicação do idioma russo da esfera pública e a purgação de todos os vestígios da era soviética (“descomunização”). Os direitistas desenvolvem uma intensa atividade nas ruas e criaram unidades armadas com centros de treinamento, muito semelhantes ao modelo paramilitar fascista dos anos 1930.
Na primeira linha dessas forças, encontra-se o batalhão neonazista Azov, que utiliza emblemas das SS do Terceiro Reich. Reivindicam as formações locais que colaboraram com Hitler contra os soviéticos (OUN [Organização dos Nacionalistas Ucranianos] - UPA [Exército Insurgente da Ucrânia]) esperando a concessão de uma república própria.
Estas vertentes fascistas bloquearam todas as tentativas de chegar a uma solução negociada, a partir do formato introduzido em 2015 com as tratativas de Minsk. Rejeitam a reintegração do Leste como região autônoma, com direitos reconhecidos para a população de língua russa. Como sua principal bandeira é a identidade nacional, opõem-se a qualquer acordo que inclua o federalismo do Donbass.
Os direitistas vêem tal solução como uma capitulação inaceitável. Por isso, sabotaram todos os armistícios para negociar anistias mútuas e facilitar a livre passagem de civis. Em sintonia com esta belicosidade, Volodymyr Zelensky fechou três canais de televisão pró-russos e aprovou uma grande base de treinamento dos fascistas.
Mas a grande novidade do novo cenário é a decisão do próprio Putin de enterrar os acordos de Minsk, que ele encorajou anteriormente como o marco mais adequado para avançar rumo à neutralidade da Ucrânia. Em vez de preservar este contexto para reunificar o país, reconheceu as duas repúblicas autônomas do Leste (Donetsk e Lugansk).
Ninguém sabe se esta solução é a preferida de ambas as populações, posto que a consulta sobre sua opção nacional segue pendente. Tal como na Crimeia, Putin define primeiro o estatuto de uma região, e depois complementa essa condição com algum procedimento eleitoral.
Mas, neste caso, o líder de Moscou não se limitou a disponibilizar a entrada limitada de tropas para proteger a população de língua russa. Tal ação seria compatível com a continuação das negociações de Minsk. Apenas reforçava essas tratativas com garantias para a segurança do setor mais vulnerável. Optou por um curso completamente diferente de uma invasão geral do território ucraniano, atribuindo ao Kremlin o direito de derrubar um governo adverso. Essa decisão é injustificável e funcional para o imperialismo ocidental.
O desprezo pelo povo
Os Estados Unidos comandam o lado agressor e a Rússia o campo afetado pelo cerco de mísseis. Mas esta assimetria não justifica qualquer resposta dos agredidos, nem determina o caráter invariavelmente defensivo das reações de Moscou. No campo militar, a validez de cada medida depende de sua proporção. Este parâmetro é essencial para avaliar os conflitos bélicos.
A Rússia tem o direito de defender seu território da intimidação do Pentágono, mas não pode exercer esse atributo de qualquer maneira. A lógica dos confrontos militares inclui certas diretrizes. Não é admissível, por exemplo, exterminar um batalhão rival por alguma pequena violação da trégua entre as partes.
É verdade que o fornecimento de armas a Kiev por parte do Pentágono aumentou no período recente, juntamente com perigosas negociações para o país aderir à OTAN. Mas a Ucrânia não deu esse passo, nem instalou os mísseis que atemorizam Moscou. As milícias fascistas mantiveram sua escalada, mas sem se envolverem em agressões de maior alcance. A decisão de invadir a Ucrânia, cercar suas principais cidades, destruir seu exército e mudar seu governo não tem qualquer justificação como ação defensiva da Rússia.
Vladimir Putin demonstrou um enorme desprezo por todos os habitantes do Oeste ucraniano. Ele nem sequer registra quais são os desejos dessa população. Mesmo que Volodymyr Zelensky comandasse o “governo dos drogados” que denunciou, caberia a seus eleitores decidir quem deve substituí-lo. Essa decisão não é uma atribuição do Kremlin.
Nenhuma população do Oeste da Ucrânia simpatiza com os gendarmes enviados por Moscou. A hostilidade em relação a estas tropas é tão evidente que Putin nem sequer tentou a habitual pantomima de apresentar sua incursão como um ato solicitado pelos cidadãos do país invadido. Seu ataque suscitou pânico e ódio em relação ao ocupante. Essa mesma rejeição da incursão russa é verificada em todo o mundo. Foram realizadas manifestações de repúdio em inúmeras capitais, sem que tenham surgido atos contrapostos, de apoio ao exército de Moscou.
Putin ignorou a principal aspiração de todos os envolvidos no conflito por uma solução pacífica. Antes da invasão, o próprio governo de Kiev enfrentava uma grande rejeição interna à sua escalada bélica. Houve inclusive indícios de grande oposição à adesão à OTAN e à subsequente redefinição da Declaração de Soberania (1990) e da Constituição (1996) do país. Estes objetivos pacifistas devem competir agora com a direita belicista, que exige uma resistência ativa contra a invasão russa.
Durante muitos anos Washington, Bruxelas e Kiev sabotaram a saída negociada, que atualmente também é atropelada por Moscou. Putin subiu no comboio belicista porque ignora os desejos dos povos envolvidos no conflito. Guia sua ação pelos conselhos da alta burocracia, que governa numa relação conflituosa com os milionários russos.
Sua invasão destina-se também a arregimentar a população do Leste da Ucrânia. O reconhecimento desta autonomia demorou oito anos, em contraste com a fulminante anexação da Crimeia. Evitou a repetição desse precedente devido ao protagonismo inicial do movimento radicalizado de milicianos locais que derrotou os direitistas.
Esses combatentes propiciaram a criação de uma “república social” e atuaram muito brevemente sob o comando de um líder apelidado de Che Guevara de Lugansk. Levantaram bandeiras de esquerda, reivindicaram o mundo soviético e retomaram a tradição bolchevique com recitações da Internacional. Para neutralizar este radicalismo, Putin forçou desalojamentos de edifícios e o abandono de barricadas, enquanto monitorava o desarmamento das milícias e o castigo de seus dirigentes.
Quando conseguiu impor sua autoridade, congelou o estatuto das duas repúblicas (que mantiveram a designação simbólica de “populares”), à espera de um resultado favorável das tratativas de Minsk. Repetiu a conduta de seus antecessores, que sempre negociaram nas cúpulas, desmantelando os movimentos radicais. Após vários anos, optou agora por um novo curso de ação, tão irrefletido como o anterior.
Com a invasão da Ucrânia, o Kremlin favorece todos os mitos da democracia ocidental, que tinham caído em desgraça pelos fracassos que acumula o Pentágono. Putin deu a Washington o que precisava para reconstruir as falácias ideológicas deterioradas pela devastação do Afeganistão ou Iraque. Sua aventura permite reavivar a contraposição entre a democracia ocidental e a autocracia russa. O Kremlin é mais uma vez insultado com exaltações idílicas do capitalismo. O ressurgimento desta ficção é um resultado direto da incursão russa.
A invasão também deu um impulso externo imprevisto ao nacionalismo ucraniano. Putin alimenta esse sentimento, numa nação historicamente traumatizada pela presença opressiva dos czares e pelas disputas com as forças austro-húngaras e polacas. Qualquer que seja o resultado geopolítico final da invasão, seu impacto nas lutas populares e na consciência popular é terrivelmente negativo. E esse parâmetro é a principal referência que adotam os socialistas para julgar os acontecimentos políticos.
A denúncia da OTAN
A incursão de Vladimir Putin suscitou condenações que omitem a denúncia complementar da OTAN. Ambas as abordagens estão presentes em muitos pronunciamentos da esquerda, mas são posições minoritárias, face à rejeição unilateral da ação do exército russo.
Basta observar as palavras de ordem que prevalecem nas manifestações de rua para corroborar esse clima. Os meios de comunicação são os principais artífices da ocultação do imperialismo norte-americano. Sublinhar esta culpabilidade é uma prioridade do momento. Os discursos em voga descarregam toda a artilharia contra “o expansionismo russo”, encobrindo a dominação imperial dos capitalistas. A democracia, a civilização e o humanitarismo dos Estados Unidos são exaltados, omitindo o fato de que suas tropas pulverizaram o Iraque e o Afeganistão.
Basta comparar o pequeno número de baixas que prevaleceu até agora na Ucrânia com os massacres imediatos consumados pelos bombardeios do Pentágono nesses países, para mensurar o grau de selvageria que acompanha as ações da OTAN. Esse organismo também demoliu a Iugoslávia, até transformá-la em sete repúblicas balcanizadas.
A França não pode exibir melhores credenciais após a sangria perpetrada na Argélia. E ao cabo de seu longo histórico de matanças na Ásia e África, a Inglaterra tem pouca autoridade para levantar o dedo.
A guerra na Ucrânia já convulsiona novamente a Europa num cenário traumático de refugiados. Para frear esta tragédia, é necessário retomar um caminho de paz, baseado no desmantelamento da principal maquinaria bélica do continente.
Nenhuma distensão durará enquanto a OTAN continuar moldando a Europa como uma grande fortaleza de bases militares. Os Estados Unidos definem ações, realizam operações secretas e administram dispositivos de guerra como se o Velho Continente fizesse parte de seu próprio território. O fim desta ingerência, a retirada dos marines e a dissolução da OTAN são exigências indispensáveis para todos os defensores da paz.
Os servidores do imperialismo norte-americano silenciam estas exigências e utilizam a rejeição da invasão da Ucrânia para intensificar sua campanha contra os “conquistadores russos”. Na América Latina, denunciam a “infiltração” de Moscou com um roteiro retirado da Guerra Fria. A direita em Washington já força uma nova lei de “segurança hemisférica” a fim de aumentar a presença do Pentágono ao sul do Rio Grande. Propõem afiançar o estatuto da Colômbia como principal aliado extra-OTAN.
Todas as fantasias espalhadas pela Casa Branca sobre a influência esmagadora da Rússia são infundadas. A presença econômica de Moscou na América Latina é irrelevante quando comparada com o dominador estadunidense e com o pujante rival chinês.
As poucas missões militares dessa potência foram insignificantes em comparação com os exercícios habituais dos marines com os exércitos da região. Nem mesmo as vendas de armas russas na América Latina atingiram a centralidade que têm em outras periferias do planeta. O impacto dos comunicadores relacionados com Moscou é também irrisório frente ao colossal predomínio informativo de Washington.
Mas o Departamento de Estado pretende aproveitar a comoção criada pela invasão da Ucrânia para relançar sua ofensiva contra os governos que não cumprem suas ordens. Aspira a recompor o Grupo de Lima, ressuscitar a OEA, neutralizar a CELAC, reverter as derrotas eleitorais da direita, contrapor o descrédito dos Estados Unidos durante a pandemia e retomar as conspirações contra a Venezuela e Cuba.
De imediato, Washington encoraja as denúncias da incursão russa sem qualquer menção à OTAN. Seus diplomatas trabalham para obter tais pronunciamentos dos ministérios das relações exteriores latino-americanos. Contam com o caloroso apoio dos governos de direita (começando pela Colômbia, Uruguai e Equador), mas também procuram a adesão dos progressistas mais sensíveis à sua pressão. As primeiras declarações de Boric estão de acordo com a direção propiciada pela Casa Branca e contrastam com a neutralidade sugerida por Lula e López Obrador.
A Argentina é um caso à parte. Alberto Fernández vociferou contra os Estados Unidos em seu encontro com Putin, depois adotou uma posição equidistante e finalmente juntou-se à condenação da Rússia sem qualquer menção à OTAN. Em apenas alguns dias, adotou todas as posturas imagináveis, confirmando que lhe falta uma bússola e que molda sua política externa às tratativas com o FMI. Por esta subserviência ao Fundo, é uma presa fácil de Washington.
As condições para a autodeterminação
A crítica à operação de Vladimir Putin é inevitável em qualquer pronunciamento da esquerda. Mas este posicionamento deve ser precedido por uma contundente denúncia do imperialismo norte-americano, como principal responsável pela escalada da guerra. Esta agressão não justifica a resposta militar do Kremlin, que é muito contraproducente para todos os projetos de emancipação. O apoio a essa operação é autodestrutivo e conspira contra a batalha pela democracia, igualdade e soberania das nações.
Putin não se limitou a justificar sua incursão como uma ação defensiva contra a OTAN. Este argumento é insuficiente para explicar a resposta desproporcionada da invasão, mas tem alguma base válida. O chefe do Kremlin foi além desta avaliação e assinalou que a Ucrânia não tem o direito de existir como nação. Tal caracterização coloca sua operação em outro plano, ainda mais inaceitável de impugnação do direito de um povo a decidir seu destino.
O líder de Moscou considera que a Ucrânia nunca foi uma verdadeira nação separada da matriz russa. Afirma que assumiu este caráter artificial por obra dos bolcheviques, que, em 1917, lhe concederam um maligno direito de separação. Este atributo assumiu posteriormente um formato constitucional de união voluntária das repúblicas soviéticas. Putin culpa Lenin por este fracionamento do território russo e acredita que Stalin convalidou o mesmo erro ao preservar uma regra que tolerava a autonomia federativa da Ucrânia.
Esta abordagem de Putin contém uma reivindicação implícita do modelo opressivo anterior do czarismo. Este esquema baseava-se na dominação exercida pela Grande Rússia sobre uma vasta configuração de nações. Lenin lutou contra essa “prisão dos povos” que impedia muitas minorias de gerir seus recursos, desenvolver sua cultura, utilizar seu idioma e criar seu caminho nacional.
A resistência contra tal opressão alimentou a grande batalha que levou ao surgimento da União Soviética. O direito das nações oprimidas à sua própria autodeterminação era uma exigência comum, com as exigências de paz, pão e terra que desencadearam a Revolução de 1917. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi proclamada como uma convergência livre e soberana dessas nações.
Agora Putin rejeita esta tradição e ignora a identidade da Ucrânia, que é o antípoda do artifício a que o líder do Kremlin se opõe. Esse país tem uma longa e dramática trajetória nacional, alimentada pelas tragédias vividas nas guerras mundiais e na coletivização forçada.
Tal como em outras partes do mundo, a autodeterminação nacional discutida na Ucrânia não é uma aspiração sagrada, suprema, nem é mais válida do que as demandas sociais e populares. É claramente utilizada pela direita para impulsionar o nacionalismo e os confrontos entre os povos. Mas Putin não se opõe a esta manipulação reacionária, mas ao próprio direito à existência de um país.
Essa postura retrata a faceta mais regressiva de sua operação militar. Salienta que sua incursão não é apenas determinada pela queda de braço com a OTAN, nem obedece unicamente a motivações defensivas ou geopolíticas. Deriva também de um atributo despótico, que Moscou atribui a si mesmo, alegando que a Ucrânia pertence ao seu raio territorial.
Os ucranianos do Oeste e do Leste têm o mesmo direito que qualquer outro povo de decidir seu futuro nacional. Mas a autodeterminação será apenas um enunciado declamatório enquanto as forças associadas à OTAN e as tropas russas mantiverem sua presença no país.
A primeira condição para avançar no sentido da soberania real da Ucrânia é o restabelecimento das negociações de paz, o acordo sobre a saída dos gendarmes estrangeiros de ambos os lados e a posterior desmilitarização do país, com um estatuto internacional de neutralidade. A esquerda de muitas vertentes e países comprometeu-se com esta dupla batalha contra a OTAN e a incursão russa.
Sobre o autor
Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).
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