30 de março de 2022

Campanha de Jean-Luc Mélenchon mostra que a esquerda francesa ainda pode vencer

O aumento das pontuações nas pesquisas deixa Jean-Luc Mélenchon cada vez mais perto de chegar ao segundo turno da eleição presidencial de abril. Manon Aubry, da France Insoumise, diz a Jacobin como a esquerda está desafiando o domínio neoliberal e de extrema direita sobre a política do país.

Uma entrevista com
Manon Aubry

Entrevistado por
David Broder


Jean-Luc Mélenchon, líder do La France Insoumise, fala em um comício pelo estabelecimento de uma Sexta República, em Paris, França, em 20 de março de 2022. (Benjamin Girette / Bloomberg via Getty Images)

Nos últimos anos, houve uma acentuada virada reacionária na França – e não apenas graças à mainstreamzação da líder anti-imigrante Marine Le Pen. Emmanuel Macron, ex-ministro das Finanças de François Hollande, do Parti Socialiste, ganhou a presidência em 2017 prometendo reunir “tanto a esquerda quanto a direita”. Na prática, ele governou da centro-direita, com seu governo promovendo ataques ao sistema de bem-estar social, medidas autoritárias contra manifestantes e até uma caça às bruxas contra o suposto “islamismo-esquerdismo” nas universidades do país.

O mandato de Macron viu grandes movimentos sociais, desde os protestos dos gilets jaunes que começaram no outono de 2018 até as greves contra sua reforma previdenciária. Hoje, os eleitores franceses listam o poder de compra como sua principal preocupação – um problema agravado pela alta da inflação. No entanto, até agora, parecia que a esquerda estava lutando para dar uma expressão eleitoral efetiva a esse descontentamento.

Antes do primeiro turno da eleição presidencial de 10 de abril, Jean-Luc Mélenchon estava inicialmente um em um campo lotado de candidatos, com fragmentação tanto na esquerda quanto na extrema direita da política francesa. No entanto, a fragilidade de figuras como o líder comunista Fabien Roussel,
Yannick Jadot dos Verdes (Europa Écologie Les Verts, EELV) e a meio esquerdista Christiane Taubira fez a atenção voltar para o líder da France Insoumise (LFI). Ele subiu para um impactante terceiro lugar com 15 por cento de apoio, pouco atrás de Le Pen, no esforço para disputar o segundo turno de 24 de abril contra Macron.

Manon Aubry é membro do Parlamento Europeu pela LFI e copresidente do Partido da Esquerda Europeia. Ela conversou com David Broder, da Jacobin, sobre a campanha de Mélenchon e suas chances de afastar a política francesa de um ciclo de reformas neoliberais e reação identitária.

David Broder

Jean-Luc Mélenchon está desfrutando de um aumento nas pesquisas, para cerca de 15 por cento de apoio. Ele pode fazer o segundo turno – e que efeito isso teria na mudança dos termos do debate?

Manon Aubry

A menos de duas semanas das eleições, Jean-Luc Mélenchon – mas também, atrás dele, a campanha da esquerda União Popular – tem uma chance real de estar presente no segundo turno, negando à extrema direita racista essa posição. Mesmo além de qualquer previsão quanto ao resultado desse segundo turno, sua presença o transformaria em uma disputa diferente.

Significaria o fim do duelo entre um presidente de direita como Emmanuel Macron e a extrema-direita, que de fato concorda em muitas questões econômicas: empurrar a idade de aposentadoria para 65 anos, congelar salários, em manter a monarquia presidencial que é a Quinta República, e em dádivas fiscais de impostos para os mais ricos.

Se Jean-Luc Mélenchon chegar ao segundo turno, teremos finalmente um debate sobre questões sociais: entre a reforma aos sessenta ou sessenta e cinco anos, entre um salário mínimo de 1.400 euros líquidos por mês ou então salários estagnados, entre o restabelecimento do imposto solidário sobre a riqueza ou então mais presentes aos ricos, entre avançar para a Sexta República ou manter a monarquia presidencial, entre planejamento público verde ou o destrutivo livre mercado.

Isso significaria que o debate não seria sobre quantos funcionários do Estado vamos cortar, quantos refugiados vamos mandar de volta para a fronteira ou quanto estigmatizar os muçulmanos.

Abordar essas questões reais mudaria completamente a atmosfera no país, mesmo além do segundo turno.

David Broder

Em 2017, você estava a menos de dois pontos de chegar ao segundo turno. O que você aprendeu com essa experiência? O importante é superar a fragmentação da esquerda; apelar aos votos de protesto “raivosos, mas não fascistas”; ou talvez até apelar àqueles que normalmente não votam?

Manon Aubry

Para nós, essas coisas não são opostas. A chave para esta eleição é trazer de volta a esquerda para o povo e o povo para a esquerda. Mobilizar todos aqueles que não querem ser condenados a um segundo turno entre Macron e Le Pen.

Precisamos de ênfase nas questões sociais, especialmente com a nossa proposta clara de limitar os preços em resposta à atual emergência social. Apelamos ao planejamento ecológico, à redistribuição da riqueza e à mudança institucional com a Sexta República. Há uma maioria geral para essas propostas no país, e a esquerda pode se unir a ela e chegar ao segundo turno.

Mas não devemos nos enganar. Hoje, o poder dos partidos políticos na França, inclusive a esquerda, é fraco – e nosso principal inimigo não é Macron nem Le Pen, mas a indiferença e a desconfiança. Nos últimos quinze anos, as pessoas viram três partidos diferentes no poder, mas não viram nenhuma mudança em suas vidas, exceto que estão ficando mais pobres. Então, o maior desafio para nós é mostrar que a eleição pode fazer a diferença. Acho que à medida que nos aproximamos da ida para o segundo turno, isso também pode ajudar a mobilizar essas pessoas.

A chave para as eleições está em suas mãos. Costumo dizer que há apenas um lugar onde cada um de nós é igual a um magnata como o homem mais rico da França, Bernard Arnault – nos Estados Unidos, você pode dizer com Jeff Bezos – e isso é nas urnas. Podemos ter certeza de que Arnault e todos os seus amigos, os bilionários, estarão se mobilizando em torno desta eleição. Se nos mobilizarmos também, somos mais do que eles – e podemos fazer a diferença.

Acredito que isso também será uma inspiração em nível internacional, após o fim da era de Bernie Sanders e de Pablo Iglesias na Espanha. Uma nova esquerda está surgindo, como vimos com Gabriel Boric no Chile e com a AOC nos Estados Unidos. Em outros países, a esquerda está lutando – mas um bom resultado para nós na França impulsionaria nossos camaradas em toda a Europa e mostraria que podemos chegar lá.

David Broder

Se olharmos para casos como Sanders, Iglesias e, de fato, Jeremy Corbyn na Grã-Bretanha, eles fizeram seus avanços com retórica antiestablishment e populista, mas em campanhas subsequentes pareciam mais concentrados em unir “progressistas” ou o eleitorado de esquerda. A France Insoumise fez uma mudança semelhante em relação a 2017?

Manon Aubry

Bem, há duas coisas. Uma é que, em 2017, estávamos saindo de cinco anos de presidência de François Hollande, que as pessoas viam como a esquerda no poder. Então, se fôssemos de porta em porta e disséssemos: “Olá, representamos Jean-Luc Mélenchon, somos a esquerda”, as pessoas perguntariam: Bem, o que a esquerda fez no poder? Rasgou os direitos trabalhistas, fez doações fiscais para grandes corporações e ameaçou tirar a nacionalidade francesa dos descendentes de estrangeiros. O rótulo de esquerda havia se desvalorizado e perdido seus rumos ideológicos. Assim, em 2017 foi complicado reivindicar uma identidade de esquerda, enquanto hoje, embora Macron tenha afirmado ser “de esquerda e de direita”, ele seguiu uma política totalmente de direita. Confrontando-o neste contexto modificado, somos uma oposição claramente social, no campo da esquerda.

A segunda coisa que mudou em relação a 2017 é que naquela época La France Insoumise era muito nova, com pouca experiência, e dizia-se que só Jean-Luc Mélenchon a representava. Cinco anos depois, disputa rodeado por uma equipe de deputados e eurodeputados conhecidos e reconhecidos pelo seu trabalho. Em 2017, ele fazia dois ou três comícios por semana, mas desta vez, uma vez por semana, todos nós, deputados, estamos fazendo comícios e reunindo milhares de pessoas em cidades de toda a França. Somos a única força com essa capacidade de mobilização coletiva, o que também aponta para o tipo de governo que queremos: o exercício do poder coletivo.

David Broder

Vai ajudá-lo a chegar ao segundo turno se conseguir desviar votos do candidato verde, Yannick Jadot. Ele é fortemente crítico de Jean-Luc Mélenchon e se opõe à ideia de um “voto pragmático” para ele – em vez disso, diz que o único “voto pragmático” é votar na ecologia. Por que os ecologistas deveriam votar em Mélenchon e não em Jadot?

Manon Aubry

Parece que Yannick Jadot passa mais tempo lutando contra Jean-Luc Mélenchon do que lutando contra Emmanuel Macron ou mesmo a extrema direita, que não se importa com o aquecimento global. É uma pena, porque hoje Jean-Luc Mélenchon encarna o lado que leva a sério o combate à emergência climática. E o papel de Jadot deve ser trazer de volta os eleitores de centro-esquerda de Macron.

Obviamente, temos muitos pontos de convergência com a EELV, e é bom que tenhamos dois partidos profundamente ecológicos no espectro político francês. Onde temos nuances e áreas de desacordo é a estratégia que nos leva até lá. Pensamos que não podemos enfrentar o desafio climático e o desafio dos limites planetários no quadro do nosso atual sistema econômico e que precisamos de uma política de ruptura. Para quebrar a lógica atual, precisamos transformar profundamente nosso modelo econômico, e não podemos fazer isso com alguns band-aids nas partes externas.

Isso também significa ter uma estratégia para superar os obstáculos que serão colocados em nosso caminho. Um obstáculo que frequentemente citamos é ao nível da UE: existem certas regras que nos impedirão de enfrentar a questão climática de frente.

Por exemplo, se amanhã quiséssemos tornar as cantinas escolares gratuitas e servir apenas alimentos orgânicos de origem local, isso iria contra a lei da concorrência da UE, porque exige um processo de concurso aberto para quem dirige as cantinas escolares e tal política estaria a favorecer apenas uma opção. Ou se você quer um sistema de transporte público e, de fato, um sistema ferroviário eficiente, administrado pelo Estado, que rejeite a privatização do frete imposta pela UE, então isso vai contra a lei europeia. Se você deseja investimentos em massa na transição ecológica e, em particular, na transição do nosso modelo agrícola para as energias renováveis, precisa abandonar totalmente as regras da UE que limitam os déficits orçamentários a 3%. Se você quer uma agricultura orgânica liderada por pequenos agricultores que respeite o planeta e os ciclos da terra, você precisa de uma profunda transformação da Política Agrícola Comum da Europa.

Aqui, mencionei várias propostas incompatíveis com as regras da UE. Propomos uma estratégia para enfrentar essas regras, enquanto a EELV se limita a dizer que vamos persuadir todos os outros, que é o que a esquerda pretende fazer há trinta anos. François Hollande disse que faria isso, prometendo até renegociar os tratados europeus – mas ele absolutamente não o fez.

Digo aos nossos amigos do movimento ecologista que para cumprir de forma consistente esse compromisso é preciso remover os obstáculos que as regras europeias colocam às propostas ambientalistas. Há uma luta pelo poder que deve ser travada a nível europeu, mas até agora a EELV rejeita isso. Por fim, noto que Jadot continua dizendo que “diante da emergência ecológica, o verdadeiro radicalismo é governar”. Concordo, e é por isso que precisamos do candidato ecológico mais bem colocado, Jean-Luc Mélenchon, para vencer.

David Broder

Seu programa na Europa diz que você implementará seu programa não importa o que a UE diga, e a France Insoumise às vezes fala em romper os limites dos tratados da UE. Mas você não fala mais, como fez em 2017, de um “Plano B” que poderia significar deixar totalmente a UE. Então, a abordagem é apenas desconsiderar as regras existentes – ou você vê alguma possibilidade concreta de reformar os tratados da UE?

Manon Aubry

Tem várias coisas. Primeiro, o contexto mudou desde 2017. Agora, terminamos a era Angela Merkel. A atual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem o mandato mais fraco de sua história. Além disso, muitas regras e dogmas foram quebrados à luz da crise de saúde pública. A regra do déficit de 3% foi suspensa. A regra dos auxílios estatais, que consagra o sacrossanto direito à livre e não distorcida concorrência, foi suspensa durante a crise. Aqui está a prova de que essas regras não fazem sentido, mesmo do ponto de vista dos liberais do livre mercado.

Além disso, graças à nossa experiência a nível europeu, adquirimos uma compreensão mais precisa de nossa capacidade e nossa estratégia para atingir nossos objetivos. Nossa lógica, nossa bússola, é implementar nosso programa custe o que custar. Não vamos desistir do programa para o qual fomos eleitos. Esse é um imperativo democrático: primeiro, porque não queremos mentir para o povo, e segundo, porque esta é também a oportunidade de remover os obstáculos que identificamos.

Revisamos todas as nossas propostas em relação às regras europeias e identificamos sistematicamente bloqueios. Mencionei alguns deles anteriormente, por exemplo, sobre a renacionalização do transporte ferroviário de mercadorias e o investimento em energias renováveis.

A nossa estratégia assenta em dois pilares. A primeira é criar o confronto necessário dentro das instituições europeias, por exemplo, sobre acordos de livre comércio. Tais acordos exigem unanimidade entre os Estados membros. Sem a assinatura da França, não haverá acordo com o Mercosul (Mercado Comum do Sul), com China, Nova Zelândia, Canadá ou Estados Unidos. Então, temos a possibilidade de bloquear essas regras.

Além disso, há uma certa relação de forças dentro da UE que deve ser considerada. Somos a segunda maior economia europeia, um contribuinte líquido para o orçamento europeu. Obviamente, somos a favor da solidariedade europeia e não temos qualquer problema em ser um contribuinte líquido. Mas isso não deve ser feito contra os interesses da França e o programa que fomos eleitos para implementar. Portanto, estamos prontos para usar nossa contribuição como ferramenta de negociação para garantir que as regras europeias não sejam aplicadas contra a vontade do povo francês.

O segundo pilar é uma estratégia de desobediência. A UE tem várias regras que sabemos que não respeitaremos se estivermos no poder. Não aplicaríamos a diretiva sobre “trabalhadores destacados”, que lança os trabalhadores europeus em uma corrida para o fundo. Em vez disso, garantiríamos que, por exemplo, um trabalhador polonês na França tenha direito às mesmas proteções sociais que um trabalhador francês.

Acrescento que, na realidade, a desobediência já é comum a nível europeu. O próprio Macron não respeita os padrões de proteção de dados. Macron não respeita as normas sobre jornada de trabalho e períodos de descanso nos ministérios. Macron não respeita as metas europeias de energia renovável. Essas regras são boas e pretendemos respeitá-las – mas não as outras regras que nos impedem de realizar a transição ecológica.

Achamos que nossa capacidade de quebrar as regras é uma maneira de fazer com que as regras mudem. Há muitos exemplos. A Alemanha disse recentemente que queria excluir a gestão da água da privatização. Conseguiu isso não só para si, mas para toda a UE.

Ainda mais recentemente, no contexto da atual crise energética, a Espanha pediu para poder controlar os preços da energia e, assim, baixá-los para as famílias – ou seja, desconsiderar a lei de concorrência da UE existente. Obteve essa exceção e foi estendida a toda a UE. Então, acho que podemos pressionar junto com outros estados membros pedindo as mesmas coisas, e isso reorientará a construção europeia. E ela precisa dessa mudança, ou então, com certeza, vai entrar em um beco sem saída.

David Broder

Podemos imaginar que a França poderia desafiar as leis da UE e forçar mudanças dessa maneira. Mas, digamos, em uma chave mais “construtiva”, estou interessado que seu programa também fale em convocar uma cúpula europeia.

Manon Aubry

Se Jean-Luc Mélenchon for eleito no próximo mês, ele também terá os meses restantes da presidência da União Europeia pela França. Pretendemos usar isso para convocar uma grande cúpula que buscaria revisar certas regras europeias sobre as quais desejamos iniciar discussões.

Esta seria uma oportunidade para dizer, por exemplo, que nossa vulnerabilidade à crise energética, que tem se destacado nos últimos meses, deve acabar. Para isso, devemos dar aos Estados membros a possibilidade de criar o que chamamos de pólos públicos de energia com gestão pública da energia, em vez da privatização forçada que nos foi imposta pela Comissão Europeia nos últimos anos. Isto permitir-nos-ia abordar tanto as questões dos preços como a nossa independência energética.

Para nós, é prioritário abrir uma discussão e definir um certo número de mudanças necessárias com as quais a França será intransigente. E é uma oportunidade para colocar esses assuntos muito claramente na mesa, usando a presidência francesa da UE para estabelecer alguns marcos políticos fortes. O mesmo vale para o fim das regras de austeridade, o financiamento de um verdadeiro New Deal Verde e Social através do imposto sobre transações financeiras, e assim por diante.

David Broder

A Catalyst publicou um artigo de Cédric Durand, no qual ele fala de uma desintegração seletiva em algumas áreas mesmo enquanto busca mais integração em outras, por exemplo em colaboração no combate à crise climática. O que você acha dessa proposta?

Manon Aubry

A lógica é semelhante. Significa dizer que hoje a aproximação e o debate entre federalismo e soberanismo não faz mais sentido e que devemos encarar as coisas assunto por assunto. Isso significa adaptar-se ao contexto, porque há assuntos sobre os quais “mais Europa” é, de fato, necessário. Vimos isso na coordenação da saúde, por exemplo, ou no que diz respeito às mudanças climáticas, ou ao combate à evasão fiscal. Mas isso não deve impedir-nos de agir unilateralmente quando necessário e, em última análise, agir caso a caso, para evitar sermos bloqueados como fomos nas últimas décadas pelo quadro europeu.

Vou dar um exemplo que conheço bem: o combate à evasão e elisão fiscais. Hoje, todas as decisões fiscais devem ser tomadas por unanimidade pelos estados membros, ou seja, com o acordo da Irlanda, Luxemburgo, Holanda e Malta – em suma, com alguns dos piores paraísos fiscais do mundo. A este respeito, temos de ter a certeza de que vamos avançar sem eles, mas estamos a alterar as regras e estamos mesmo dispostos a sancionar os paraísos fiscais europeus se quisermos combater esta praga.

David Broder

Jean-Luc Mélenchon começou seu comício na Place de la République em 20 de março, saudando a resistência ucraniana contra a invasão russa. Ele também defende uma política de saída francesa da OTAN, insistindo repetidamente que o não alinhamento não implica neutralidade ou isolacionismo. Mas se Mélenchon e não Macron fosse presidente, e a França não estivesse na OTAN, o que seria diferente no papel da França em relação à guerra na Ucrânia?

Manon Aubry

Em primeiro lugar, devo explicar que não-alinhamento significa não estar sujeito a um bloco diplomático. Isso não significa isolamento, mas sim poder ver a situação geopolítica com clareza. Então, significa ser capaz de dizer não quando os Estados Unidos invadirem o Iraque, dizer não quando os russos invadirem a Ucrânia e dizer não se, um dia, a China invadir Taiwan. Desalinhamento significa poder dizer não: não ter um aliado sistemático cuja estratégia sempre temos que aprovar. Cada situação requer suas próprias alianças.

Além disso, os aliados da OTAN incluem a Turquia, e não tenho certeza se quero endossar tudo o que a Turquia de Recep Tayyip Erdoğan está fazendo agora.

Assim, não-alinhamento significa estar lúcido sobre os interesses dos impérios e propor uma diplomacia alter-globalista. Uma estratégia histórica da esquerda, à qual só agora está voltando ao debate, é buscar a todo custo uma rota diplomática. Jean Jaurès disse: você não pode fazer a guerra para se livrar da guerra. Responder à guerra com a guerra só a intensificará, e devemos buscar, a todo custo, uma maneira de forçar Vladimir Putin a voltar à mesa de negociações.

Antes, mencionei a evasão fiscal. Fico rindo quando as pessoas dizem que vamos confiscar os ativos dos oligarcas russos: porque os paraísos fiscais são tão opacos, não sabemos realmente onde estão os ativos. Um grupo de jornalistas revelou que há pelo menos US$ 17 bilhões detidos por oligarcas russos em paraísos fiscais. Talvez a Comissão Europeia devesse acordar e ameaçar sanções contra paraísos fiscais europeus que se recusam a divulgar a lista de ativos detidos por oligarcas russos. E, se a comissão se recusar a fazê-lo, a França deve tomar a iniciativa. Esta é a nossa visão de uma diplomacia não alinhada que visa trazer a paz a todo custo por todos os meios possíveis de pressão.

Nossa política também lembra que o objetivo é pressionar Putin, e todos aqueles que o cercam e o financiam, para não condenar o povo russo. Eles não escolheram isso, e tal política contra eles pode até ser perigosa, dando a Putin ainda mais controle sobre o povo russo no final das contas devido às sanções.

Desalinhamento significa ter uma voz independente diante de cada situação e pensar na equação global, para convencer aqueles que podem pressionar a Rússia. Estou pensando em particular nos países africanos que se abstiveram de condenar a Rússia. Temos que ouvi-los, mas também tentar convencê-los, mostrar que nos preocupamos com a crise alimentar que eles podem sofrer como consequência da crise na Ucrânia.

David Broder

Este ano vimos os limites da suposta igualdade de condições da França para as eleições presidenciais. Emmanuel Macron se recusou a debater com os outros candidatos no primeiro turno, permitindo apenas eventos de mídia gerenciados por palco, enquanto também houve um grande hype em torno da candidatura de extrema-direita Éric Zemmour na mídia privada. Como superamos esse foco em “estrelas” individuais concorrendo à presidência e superamos o poder das grandes plataformas de mídia para criá-las?

Manon Aubry

Há muito que trabalhamos nessa questão da concentração midiática: ela já foi abordada no programa de Mélenchon de 2012, e dez anos depois a vemos criando um monstro político. Vincent Bolloré – um dos bilionários que detém grande parte da mídia francesa – elevou Zemmour a essa proeminência e conseguiu impor um fascista como grande candidato nesta eleição. Este é um problema gravíssimo e uma ameaça real à democracia se um candidato puder ser criado do zero como este. Então, precisamos quebrar essa concentração midiática e também reconstruir os espaços midiáticos de esquerda na França, que são bastante fracos.

Chegamos ao fim da Quinta República, e esta eleição é uma oportunidade para reformulá-la completamente.

Mas por trás disso está uma crise mais profunda do nosso sistema democrático, com poderes concentrados nas mãos de um homem, o presidente em quem votamos uma vez a cada cinco anos e sobre o qual não temos poder no meio. Isso foi exacerbado sob Macron, já que ele decide sozinho, sem transparência ou responsabilidade. Mesmo em meio à pandemia ainda em curso, diante da eleição mais importante do nosso sistema, ele não se digna a entrar em debate.

É por isso que queremos reconstruir completamente nosso sistema democrático. Queremos uma Sexta República, como forma de retomar o controle da política e responder também à raiva crescente e à abstenção extremamente alta devido ao fato de as pessoas não se verem mais no atual sistema democrático. Queremos um processo para reescrever a constituição, para que o povo francês possa assumir coletivamente as regras do jogo. Isso pode significar uma refundação da nossa democracia.

Isso significa dar novos direitos aos cidadãos, como poder convocar referendos por iniciativa própria, como exigiam os gilets jaunes. Como poder destituir funcionários eleitos quando eles não satisfazem seu eleitorado. Como um papel mais profundo para as assembleias municipais locais no planejamento ecológico e na gestão dos bens comuns. Em suma, reapropriar-se da democracia, que cada vez mais parece ter nos escapado nos últimos anos. Chegamos ao fim da Quinta República, e esta eleição é uma oportunidade para reformulá-la completamente.

Sobre o entrevistado

Manon Aubry é membro do Parlamento Europeu por La France Insoumise e copresidente da Esquerda Europeia.

Sobre o entrevistador

David Broder é editor da Jacobin na Europa e historiador do comunismo francês e italiano.

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