31 de janeiro de 2018

Horror no Teleprompter

O Estado da União de Trump foi um direcionamento aterrorizante que prometeu terror para os imigrantes em casa e ruído de sabres no exterior.

Paul Heideman

Jacobin

Donald Trump pronuncia seu discurso sobre o Estado da União diante do Congresso ontem à noite. David Mulder / Flickr

O discurso do Estado da União de Donald Trump conseguiu o feito incomum de ser chato e assustador. Com um estilo que gritava "escrito por comitê", o discurso careceu de improvisações e originalidades de Trump que têm animado nossa cena política nos últimos anos. Em vez disso, continha um fluxo implacável de histórias de terrorismo político. Ao longo do discurso, Trump fez promessas após promessas que promovem desenvolvimentos verdadeiramente assustadores na política americana.

A mais distópica dessas propostas centrou-se nos "quatro pilares" do plano de imigração de Trump. Trata-se, basicamente, de um caminho para a cidadania para os jovens indocumentados, um muro fronteiriço, novas restrições sobre os green cards e regras muito mais severas para o reagrupamento familiar. Além desses pilares, Trump também prometeu contratar mais agentes federais de imigração, em outros lugares, situando o número em dez mil, um aumento de 50% no pessoal da agência.

Enquanto o primeiro pilar soa como uma proposta de compromisso para proteger os "Sonhadores", que se beneficiam de um amplo apoio nas pesquisas de opinião pública, o resto do plano dependeria da premissa implícita do "imigrante bom/imigrante mal" do primeiro pilar para impor condições ainda mais severas sobre os imigrantes que tentam alcançar ou já estão vivendo nos EUA. A parede da fronteira simplesmente empurra a migração para as áreas mais desoladas e perigosas da fronteira, expandindo o cemitério não oficial de que a fronteira se tornou desde que Bill Clinton começou a militarização da fronteira na década de 1990. As regras restritas de unificação da família ajudariam a garantir que os imigrantes que venham para os EUA permaneçam mais isolados socialmente, enquanto a expansão do ICE aumentaria as fileiras dos devoradores do corpo, já devastadoras em todo o país.

Trump prometeu complementar o terror em casa com terror no exterior. Ele pediu que derramasse ainda mais dinheiro nos cofres dos militares, e especificamente prometeu "reconstruir" o arsenal nuclear do país. O arsenal atual de quase sete mil armas nucleares (o suficiente para destruir cada cidade no planeta maior do que Edison, New Jesey) é, aparentemente, insuficiente, enquanto uma quantidade maior não especificada, finalmente, constituirá um impedimento efetivo.

Trump também não deixou dúvidas quanto a quem essas novas armas nucleares seriam apontadas, passando vários minutos denunciando a Coréia do Norte. Embora os recentes desenvolvimentos na península tenham tendido a sublinhar a diminuição da influência dos EUA, Trump parece estar determinado a colocar os EUA de volta no banco do motorista através de uma constante belicosidade, um plano que parece ter sucesso apenas para tornar as Coreias e o mundo mais amplamente mais perigoso.

Tão aterrorizante como a visão que Trump estabeleceu para o país na noite passada, o que era mais revelador em seu discurso era o que estava ausente dele. Os lados anti-establishment que eram uma característica tão definidora da campanha de Trump, bem como grande parte de sua presidência, não estavam em nenhum lugar. Longe de prosseguir a agenda populista de direita que lhe permitiu destruir seus principais opositores republicanos, Trump abraçou as políticas que poderiam ter vindo de qualquer um deles. Apesar de ter chegado à Casa Branca prometendo "drenar o pântano", Trump se afunda na lama.

A elite não deixou o recém-apreço de Trump por sua agenda sem recompensas. Conquistadas por grandes cortes de impostos e desregulamentação, a comunidade empresarial está mais do que disposta a ignorar o gaucherie da guerra de Trump contra imigrantes ou flerte com a extrema direita.

O que isso sugere é que, excluindo desvios possíveis deste trato pelo próprio Trump, é provável que a intensidade da oposição de elite à sua presidência diminua e as tentativas de retratá-lo como fora do mainstream da política americana encontrarão menos e menos eco. Ainda há um eleitorado maciço para se opor às políticas de Trump, desde a imigração a brindes aos ricos até a sua reanimação silenciosa de medidas anti-LGBT, mas as tentativas de mobilizar esse círculo eleitoral com base na violação de Trump de um suposto consenso nacional continuarão a cair no vazio.

29 de janeiro de 2018

A democracia é a erosão da norma

Às vezes você tem que quebrar as regras para criar um sistema mais democrático.

Corey Robin


A líder da minoria da Câmara, Nancy Pelosi, fala com repórteres enquanto ela faz o caminho para o escritório do líder da minoria do Senado, Chuck Schumer, no Capitólio dos EUA, 19 de janeiro de 2018. Aaron P. Bernstein / Getty Images

Tradução / Há duas ou três semanas atrás, tive uma intuição, um vislumbre de um pensamento que continuou voltando para mim desde então: o discurso da erosão da norma não é realmente sobre Trump. Nem é sobre o autoritarismo. Do que realmente se trata é o "extremismo", aquele velho cavalo de perseguição do liberalismo da Guerra Fria. E enquanto esse discurso da erosão da norma não fará muito para limitar Trump e o GOP, seu verdadeiro contributo será marcar os limites externos da política da esquerda, apenas num momento em que estamos vendo o surgimento de uma esquerda que parece estar disposta para empurrar esses limites. Esse foi o meu pensamento.

E agora aparece no New York Times essa coluna assinada por Steven Levitsky e Daniel Zilblatt, dois dos principais especialistas acadêmicos em 'desgaste das instituições'. Ninguém encontrará naquela coluna a palavra autoritarismo, embora haja uma rápida referência aos "impulsos autocráticos de Trump". O que mais se encontra lá, isso sim, é grave preocupação com a tal de "disfunção" e com a tal de "crise".

O que lá se vê é o seguinte:

Os Democratas estão começando a responder na mesma moeda. A recente ação de bloquear as votações, o que levou ao trancamento do governo, copiou a ação do manual de Gingrich. E se reconquistarem a maioria do Senado em 2018, já se fala de poderem negar ao presidente Trump a oportunidade de nomear juiz para a Suprema Corte. Essa espiral é perigosa.

Agora imaginem – me acompanhem –, que estamos em 2020, Sanders é eleito com Partido Democrata de certo modo radicalizado no Congresso. Ou, se isso é demais para engolir, imaginem versão diferente da mesma hipótese (sem Sanders necessariamente, ou sem Democratas, mas com alguma esquerda eleitoral empoderada) em 2024. Ou um realinhamento do tipo que os EUA já tiveram em 1932. Realinhamentos sempre envolvem algum tipo de contestar normas; realinhamentos mudam normas; realinhamentos atropelam normas. E todos esses conselhos contra o desgaste das normas e a polarização – que muita gente na mídia e na academia está hoje invocando contra Trump e os Republicanos – correrão então contra a esquerda.

E como não o fariam? Quando você fixa "normas" como seu padrão, sem avaliar a específica valência democrática das normas em cada instância; e os projetos aos quais estão conectadas, como se poderá saber se uma norma contribui para a democracia, em sentido substantivo ou procedimental, ou se as trai e afasta-se da democracia? Como avaliar se o desgaste de uma norma ou instituição é bom ou mau, democrático ou antidemocrático?

Levitsky e Zilblatt mencionam duas normas: tolerância mútua e mútua paciência no exercício do poder. Às vezes a paciência serve à causa da democracia; às vezes, não. Mas à luz do que dizem os autores, uma falta de paciência sempre traria problemas para a democracia.

Considerem esse trecho revelador, daquela coluna:

Poderia acontecer entre nós? Já aconteceu. Nos anos 1850, a polarização na discussão sobre a escravatura minaram as normas democráticas nos EUA. Democratas sulistas viam como ameaça existencial o antiescravismo do emergente Partido Republicano. Atacaram os Republicanos como "traidores da Constituição" e juraram "jamais permitir que esse governo federal seja entregue às mãos traidoras do Partido Republicano pró-negros."

Os autores querem apresentar os anos 1850 como um momento que "minou as normas democráticas dos EUA," sugerindo fortemente que antes dos 1850, haveria gozo robusto de muitas normas democráticas nos EUA. Muitos de nós argumentaríamos que, quando uma banda do povo escraviza outra banda, negando ao outro lado a própria humanidade, além do voto, não há vigente qualquer norma realmente democrática. (Para nem falar que metade da população dos EUA, branca e preta, sequer tinha direito de votar.) E, embora tivesse sido maravilhoso se os sulistas proprietários de escravos tivessem concordado com sair tranquilamente do palco da história, praticamente todos sabemos que nunca foi o caso.  Fora do sul, escreveu C. Vann Woodward, o fim da escravidão foi "a liquidação de um investimento". No sul, foi "a morte de uma sociedade". Sociedade escravista agonizante não é contexto em que os protagonistas deixem-se apagar sem luta, no silêncio da noite.

Se fosse para eliminar a escravidão, alguém teria de declarar o problema e explicitar a pergunta. Foi o que fizeram os abolicionistas (e o Partido Republicano). Esses polarizaram a sociedade. (Para conhecer um exemplo de como polarizaram, sim, o próprio discurso, leia aqui.) E o resultado – por terrível que tenha sido a Guerra Civil (e que ninguém se engane; foi mais terrível do que você possa imaginar) — não foi a destruição da democracia e de normas democráticas, mas a criação de mais e melhor democracia – um "renascimento da liberdade", como Lincoln descreveu o momento —, liberdade que, na sequência foi logo destruída depois da Reconstrução, a qual também foi política de destruir normas e instituições.

Como Jim Oakes mostrou, os Democratas sulistas norte-americanos acertaram, ao muito temer o Partido Republicano e ao ver naquele partido uma ameaça existencial. Os Republicanos realmente queriam destruir a escravatura, queriam quebrar a espinha dorsal da escravatura, para detonar de vez um modo de vida que viam como ultrapassado. Queriam fazê-lo pacificamente, mas também compreendiam que, se viesse a guerra, seria possível fazer o que queriam fazer, embora pela violência; oportunidade que os Republicanos sulistas não deixariam escapar. Os Republicanos norte-americanos abolicionistas eram os mais ativos detonadores de normas naquele momento: não queriam apenas limitar a expansão da escravatura para os territórios (e não se sabe com certeza se limitar a expansão da escravidão foi realmente a norma nos EUA de antes da Guerra Civil; de fato, pode-se dizer que a discussão dessa questão foi muito mais a norma, do que qualquer acordo para conciliar os lados; sobre isso, ver o livro de Mark Graber, Dred Scott); queriam limitar aquela expansão, como prelúdio para destruir a instituição em todo o território. Freedom national.

Levitsky e Zilblatt sabem que o desgaste da norma e a polarização estiveram sempre ativados durante os anos 1850. Mas querem fazer-crer que toda a culpa pelo desgaste da norma e pela polarização estaria com os proprietários de escravos. Assim fazendo, a dupla pode tomar posição contra o desgaste da norma, sem deixar ver que, com isso, apoiam os escravistas; e conseguem jogar o pecado da polarização integralmente também sobre os Sulistas [Democratas] escravistas; assim conseguem falar contra o desgaste da norma e a polarização, ao mesmo tempo em que desgastam a norma e polarizam a discussão. É politicamente compreensível, em limitado sentido; mas historicamente Levitsky e Zilblatt erram grosseiramente o alvo.
E talvez, no final, não tão politicamente compreensível. Pois sugere - não, diz - se os sulistas simplesmente demonstrassem alguma tolerância em relação aos republicanos, as normas democráticas teriam persistido. Sobre a questão da persistência da escravidão, Levitsky e Zilblatt não têm nada a dizer.

(Anoto que Zilblatt e eu tivemos discussão interessante sobre essas questões, pelo Twitter.)

Momento semelhante, talvez menos vicioso, aparece também quando tratam da Constituição:

Ninguém deve dar a democracia por garantida. Nada há de intrínseco na cultura dos EUA que nos imunize contra ataques à democracia. Nem nossa Constituição tão brilhantemente concebida pode, só ela, garantir a sobrevivência da democracia. Se pudesse, a república não teria mergulhado numa guerra civil, 74 anos depois de nascer.

Um dos últimos livros que Robert Dahl escreveu foi How Democratic is the American Constitution? [Quão democrática é a Constituição dos EUA?] Sua resposta: não muito. O discurso contra o desgaste da norma reescreve os EUA de antes da Guerra Civil, quando metade do país era sociedade escravista de proprietários de escravos, como se os EUA 50% escravistas fossem sociedade democrática, com normas escravistas que merecessem ser protegidas contra o desgaste e as forças de polarização. Assim também o mesmo discurso (apresenta a Constituição como texto "brilhantemente concebido" embora não muito brilhante no quesito "garantir a sobrevivência da democracia".

O que a coluna evidencia é que o real problema e objeto de preocupação que se identifica no discurso contra desgaste de normas não é algum autoritarismo: é o que lá se chama de extremismo. Essa abordagem apaga a evidência de que há extremismo de democratização (como o dos abolicionistas) e há extremismo de desdemocratização (ou reacionário) (como o dos proprietários de escravos). Os Republicanos que hoje paralisam o governo nos EUA para impedir que o Estado dê ao povo cobertura integral no atendimento à saúde preservam, contra qualquer desgaste de democratização, as mesmas normas antidemocráticas que os Democratas também preservam quando paralisam o governo para permitir que imigrantes vivam nos EUA. Tudo isso implica dizer que os dois lados são igualmente conservadores de uma ordem que não facilita a democratização. Nem um lado nem o outro cogitam de avançar na democratização da sociedade, produzindo cada vez mais e cada vez melhor democracia. Os dois lados estão satisfeitos com a democracia que há...

Para arrochar um pouco mais o parafuso. Consideremos um dos casos que Levitsky e Zilblatt mencionam — o recente fechamento do governo Trump nos EUA. Um dos argumentos mais fortes a favor da ideia de que Trump chefia governo autoritário é o modo como trata os imigrantes. Os Democratas trancam o governo, para forçar alguma espécie de acordo que permitiria que centenas de milhares de Dreamers [Sonhadores] permaneçam no país onde já viveram a maior parte da vida. A questão a decidir é: assumindo-se que o fechamento do governo leve necessariamente àquele resultado, o fechamento faz a democracia avançar? Ou não passa de lastimável desgaste da norma, com aumento não desejável da polarização? Pode-se dizer que é as duas coisas, e de modo tal que mostra que o avanço da democracia e o desgaste da norma estão ligados entre si: sem a polarização e o desgaste da norma, a democracia não avança. Parece que o desgaste da norma, a polarização e o aprofundamento da democracia não são antitéticos: são aliados.

Se o mais alto valor para alguém é preservar as instituições e evitar a "disfuncionalidade", o discurso contra qualquer desgaste na norma faz sentido. Mas nem tanto, se o mais alto valor for a democracia. Às vezes, só haverá democracia se as instituições e as normas forem radicalmente desgastadas, estraçalhadas.

Reconheço perfeitamente que o diabo mora nesse "às vezes". Há desgastes que minam a democracia, outros a aprimoram. Mas essa é a discussão realmente necessária. Essa é a discussão que temos de fazer! Ninguém precisa de toxina venenosa de espectro tão amplo que paralise todo e qualquer desgaste de toda e qualquer norma: como uma toxina que paralise todas as oposições — e que nos porá num quadro de política de centro e morta, não de política democrática. Precisamos, sim, de discussão bem informada no campo da normatividade, que ajude a sociedade a ver com mais precisão as falhas da democracia, para poder avançar.

Por enquanto, simplesmente deixarei-nos com este pensamento: a democracia é um projeto permanente de erosão normativa, destruindo sempre as normas de hierarquia e dominação e as formas políticas que as ajudam e encorajam.

26 de janeiro de 2018

Uma estratégia para sepultar Lula

Hernán Gómez Bruera


Bonecos infláveis ​​dos ex-presidentes brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff como prisioneiros. Carl De Souza/Agence France-Presse - Getty Images

Para o público que não conhece as particularidades do caso, a notícia de que um ex-presidente é julgado por corrupção em uma nação latino-americana - onde a impunidade geralmente é a regra - pode parecer um avanço. No entanto, um processo judicial em que os promotores e juízes atuaram de forma parcial, sem aderência à lei e violando as garantias do réu, constitui uma grande ameaça para a democracia e um evento que - no meio do ano eleitoral - será um motivo para incerteza e tensão entre os brasileiros.

A sentença do juiz Sérgio Moro, ratificada esta semana, é recebida dezessete meses depois que Dilma Rousseff foi detida pela presidência por meio de uma operação política de legalidade duvidosa e depois que o Congresso livrou o presidente Michel Temer, sobre quem há provas de corrupção.

Ao ratificar a sentença impostas a Lula e aumentá-la de nove a doze anos, os três juízes federais - em busca de estrelato político semelhante ao do famoso Moro - validaram por unanimidade um julgamento de origem viciada e sem o tipo de evidência que exige um processo criminal.

A investigação nunca conseguiu provar que Lula tinha uma única conta bancária ou uma propriedade indevida. Os juízes não só ignoraram as declarações de 73 testemunhas que contradizem as acusações do ex-diretor da empresa de construção OAS e os diversos recursos interpostos pela defesa do ex-presidente. Também não consideraram uma carta aberta assinada por numerosos intelectuais, ativistas e políticos latino-americanos, nem o estudo detalhado da sentença por mais de uma centena de advogados e estudiosos que desmantelaram todas as premissas da sentença do juiz Moro. Juristas internacionalmente reconhecidos criticaram duramente o processo. Mesmo o teórico da garantia legal, Luigi Ferrajoli, advertiu que o julgamento contra Lula se caracterizava por sua "impressionante falta de imparcialidade".

Os próximos meses serão de incerteza para o Brasil, onde um processo eleitoral judicializado será realizado. A decisão não é a última instância. Lula poderá levar o seu caso ao Supremo Tribunal Federal. Embora ele possa ser preso nas próximas semanas, é mais provável que os juízes lhe permitam esgotar o processo em liberdade.

Quanto às eleições, o Partido dos Trabalhadores (PT) provavelmente registrará Lula como candidato e levará a disputa até o fim. No final, se a condenação for ratificada pelo tribunal mais alto do país, poderá ser substituído até vinte dias antes da eleição.

Com a sua decisão, os juízes brasileiros deram carta branca a um conjunto de perigosas práticas legais que criam um estado de exceção típico dos regimes autoritários. Parece que, no poder judicial brasileiro, vale tudo em um julgamento anticorrupção: de romper as regras de um processo criminal, inventar figuras legais inexistentes ou manipular mecanismos de detenção preventiva.

Para mim, é difícil encontrar outra motivação para permitir essas irregularidades do que separar Lula da Silva da campanha presidencial deste ano, na qual o líder ex-sindical é ainda o favorito claro. Da pesquisa mais conservadora (Datafolha) para a maioria dos esquerdistas (Vox Populi), eles concordam que o ex-presidente receberia mais de 40 milhões de votos nas eleições de outubro.

A direita brasileira há muito compreendeu que Lula é eleitoralmente imbatível. Talvez seja por isso que uma via judicial foi desenhada para removê-lo do poder, transferindo para os tribunais uma decisão que em uma democracia deveria corresponder aos cidadãos. Talvez seja por isso que a Bolsa de Valores de São Paulo reagiu com alegria na ratificação da decisão.

A estratégia não só procura desabilitar eleitoralmente o ex-presidente (em poucos meses, saberemos se isso finalmente acontece), mas também prejudicar sua imagem e reputação. O objetivo é pôr fim ao mito de um líder que capacitou os setores populares, causar um golpe mortal à esquerda brasileira e promover uma agenda econômica, política e social conservadora.

Assim, desde o primeiro momento, o julgamento contra Lula foi travado na mídia - esmagadoramente contrária a Lula e ao PT -, onde os juízes e procuradores se dedicaram a expressar opiniões políticas e até mesmo a comentar os processos que estavam sob sua jurisdição exibindo seu viés parcial.

No escândalo Lava Jato, onde esta investigação contra Lula foi inserida, políticos de todas as partes estão envolvidos, tanto no governo como na oposição, bem como os donos das maiores empresas de construção (incluindo OAS e Odebrecht). A corrupção é sistêmica com a política brasileira. Sem corrupção, as campanhas políticas não são financiadas nem as maiorias parlamentares são garantidos.

Claro, combater essa corrupção não só é louvável, mas também é necessário. O problema da suposta cruzada moral é que os promotores e juízes que a levam para frente, em sua ânsia de se tornarem super-heróis e promoverem-se politicamente, investigaram com maior agilidade e dedicação figuras de partidos políticos de esquerda e Lula com uma particular violência. Não em vão, o juiz Moro tornou-se tão popular em setores identificados com a direita, na medida em que aparece em algumas pesquisas como concorrente potencial.

O objetivo do processo contra Lula da Silva não foi promover o surgimento de uma nova república de honestidade e transparência, mas tirar o rival mais temido do caminho. Portanto, ainda que Lula eventualmente saia ileso desse julgamento, ele terá que enfrentar vários outros processos, talvez "igualmente infundados e politicamente motivados", como muitos analistas avaliam.

Se Lula não chegar ao final da disputa pela presidência, outros candidatos menos competitivos podem fazê-lo com seu apoio, como o advogado Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo ou o ex-ministro Ciro Gomes, hoje afiliado ao PDT, com quem o PT poderia se aliar.

Independentemente do que finalmente aconteça, a verdade é que, presente ou não nas próximas eleições, a figura de Lula continuará a influenciar a política brasileira por muitos anos, mesmo que as elites de direita insistam em sepultá-lo e apesar do incalculável custo político que isso poderia ter para a democracia brasileira.

Hernán Gómez Bruera é pesquisador especializado em América Latina no Instituto Mora na Cidade do México. Ele publicou, entre outros livros, "Lula, o Partido dos Trabalhadores e o dilema da governança no Brasil".

Uma guerra sem fim

A falecida Ursula Le Guin fala sobre opressão, resistência e sobre porque "o exercício da imaginação é perigoso."

Ursula K. Le Guin


Ursula Le Guin no campus da Universidade de Oregon, em 2013. Foto: Jack Liu

Em homenagem à saudosa Ursula Le Guin, a Jacobin republica o ensaio abaixo, incluído originalmente na edição inglesa da editora Verso de Utopia, de Thomas More.

Escravidão

Tradução / Meu país foi​​ unido por uma revolução e foi quase destruído por outra.

A primeira revolução foi um protesto contra uma exploração econômica e social desagradável e estúpida, mas relativamente moderada. Foi bem-sucedida de uma maneira quase única.

Muitos dos que fizeram a primeira revolução praticavam a mais extrema forma de exploração econômica e opressão social: eram proprietários de escravos.

A segunda revolução estadunidense, a Guerra Civil, foi uma tentativa de preservar a escravidão. Ela foi parcialmente bem-sucedida. A instituição em si foi abolida, mas a mentalidade do senhor e a mentalidade do escravo ainda permeiam boa parte dos pensamentos dos EUA.

Resistência à opressão

Phillips Wheatley, poeta e escravo alforriado, escreveu em 1774: "Em cada peito humano, Deus implantou um princípio, que chamamos de Amor à Liberdade; ele é intolerante com a Opressão e aspira à Libertação".

Eu não negaria a verdade nisso mais do que negaria que o sol brilha. Tudo que há de bom nas instituições e na política do meu país se baseia nisso.

E ainda assim vejo que por mais que amemos a liberdade somos tolerantes com a opressão, e até recusamos a libertação.

Eu vejo perigo em insistir que nosso amor pela liberdade sempre supera qualquer força ou que a inércia nos impede de resistir à opressão e buscar a libertação.

Se eu negar que pessoas fortes, inteligentes e capazes vão aceitar e aceitam a opressão, eu estou identificando o oprimido como fraco, estúpido e inepto.

Se fosse verdade que pessoas superiores se recusam a serem tratadas como inferiores, a consequência seria que aqueles que estão embaixo na ordem social seriam verdadeiramente inferiores, afinal, se fossem superiores, protestariam; já que aceitam uma posição inferior, seriam inferiores. Esse é o argumento confortavelmente tautológico do proprietário de escravos, do socialmente reacionário, do racista, e do misógino.

É um argumento que ainda atormenta as considerações sobre o holocausto hitleriano: por que os judeus “simplesmente entravam nos trens”? Por que eles não “revidavam”? Uma questão que — assim perguntada — é irrespondível, e pode ser usada pelo antissemita para implicar a inferioridade dos judeus.

Mas o argumento apela também para o idealista. Muitos estadunidenses liberais e humanamente conservadores prezam pela convicção de que todas as pessoas oprimidas sofreriam de forma intolerável por conta de sua opressão, que deveriam estar prontos e dispostos a se rebelar, e que seriam moralmente fracos, moralmente errados, se não se rebelam.

Eu julgo categoricamente como errada qualquer pessoa que se considere superior a outra racialmente ou socialmente ou que imponha um status inferior a outra. Mas é outra coisa aplicar um juízo categórico contras as pessoas que aceitam um status inferior. Se eu digo que eles estão errados, que a moralidade exige que eles se rebelem, cabe a mim considerar que escolha real eles têm, se eles agem por ignorância ou por convicção, se eles têm alguma oportunidade de diminuir sua ignorância ou mudar sua convicção. Tendo feito essas considerações, como posso dizer que eles são culpados? São eles, e não os opressores, que agem errado?

A classe dominante é sempre pequena, os estratos inferiores grandes, mesmo em uma sociedade de castas. Os pobres sempre são amplamente mais numerosos que os ricos. Os poderosos são menos do que aqueles sobre os quais exercem poder. Homens adultos mantêm um status superior em quase todas as sociedades, mesmo sempre sendo superados numericamente por mulheres e crianças. Governos e religiões sancionam e sustentam a desigualdade, a hierarquia social, a hierarquia de gênero, e o privilégio, totalmente ou seletivamente.

A maior parte das pessoas, na maior parte dos lugares, na maior parte das épocas, são de um status inferior.

E a maior parte das pessoas, mesmo agora, mesmo no “mundo livre”, mesmo na “pátria dos livres”, considera esse estado de coisas, ou certos elementos dele, como naturais, necessários, e imutáveis. Acreditam ser a forma como sempre foi e portanto a forma como deve ser. Isso pode ser convicção ou pode ser ignorância; geralmente é ambas. Através dos séculos, a maior parte das pessoas de status inferior não tinha meios para saber que qualquer outra forma de organizar a sociedade existia ou poderia existir — que a mudança é possível. Somente aqueles de status superior sempre souberam o suficiente para saber disso; e é o seu poder e os seus privilégios que estariam ameaçados se a ordem das coisas mudasse.

Nós não podemos confiar na história como guia moral nessas questões, porque a história é escrita pela classe superior, pelos educados, pelos empoderados. No entanto, só temos a história para seguirmos, e a observação dos eventos atuais. A partir dessas evidências, revoltas e rebeliões são coisas raras, e revoluções são extremamente raras. Na maior parte das épocas, na maior parte dos lugares, a maior parte das mulheres, dos escravos, dos servos, dos de baixo, dos excluídos, dos camponeses, dos trabalhadores, a maior parte das pessoas definidas como inferiores — isto é, a maior parte das pessoas — não se rebelaram apesar de serem desprezadas e a exploradas. Elas resistiram, sim; mas sua resistência geralmente é passiva, ou tão insidiosa, tão parte da rotina diária, que é praticamente invisível.

Quando as vozes dos oprimidos e das classes baixas são registradas, algumas são gritos por justiça, mas a maioria são expressões de patriotismo, saudações ao rei, votos de defesa da pátria, todos apoiando lealmente o sistema que os priva e as pessoas que lucram com isso.

A escravidão não teria existido por todo o mundo se os escravos constantemente se levantassem contra seus senhores. A maior parte dos senhores de escravos não é assassinada. Eles são obedecidos.

Os trabalhadores assistem aos executivos de suas empresas receberem salários trezentas vezes maiores que os seus, e resmungam, mas não fazem nada.

As mulheres na maior parte das sociedades sustentam as afirmações e instituições da supremacia masculina, deferindo aos homens, os obedecendo (publicamente), e defendendo a superioridade inata dos homens como fato natural ou dogma religioso.

Homens de status baixo — homens jovens, homens pobres — lutam e morrem pelo sistema que os mantém embaixo. A maior parte dos incontáveis soldados mortos nas incontáveis guerras travadas para manter o poder dos dominadores ou da religião de uma sociedade foram homens considerados inferiores por essa sociedade.

"Vocês não têm nada a perder a não ser as correntes que os prendem", mas preferimos beijá-las.

Por quê?

Serão as sociedades humanas inevitavelmente construídas como uma pirâmide, com o poder se concentrando no topo? Será a hierarquia de poder um imperativo biológico que a sociedade humana estaria impelida a cumprir? É quase certo que a pergunta está mal formulada e, assim, fica impossível respondê-la, mas ela segue sendo feita e sendo respondida, e aqueles que fazem a pergunta geralmente a respondem de maneira afirmativa.

Se existir tal imperativo biológico e inato, será que ele é igualmente imperativo para ambos os sexos? Nós não temos evidências incontroversas de que haja alguma diferença inata de gênero nos comportamentos sociais. Essencialistas dos dois lados da discussão afirmam que os homens seriam inatamente predispostos a estabelecer uma hierarquia de poder enquanto que as mulheres, ainda que elas não criem essas estruturas, as aceitam ou os imitam. De acordo com os essencialistas, é certo que o projeto masculino prevalecerá, e nós deveríamos esperar encontrar essa cadeia de comando, os “de cima” comandando os “de baixo”, com o poder concentrado em poucos, como um padrão quase universal das sociedades humanas.

A antropologia fornece algumas exceções a essa suposta universalidade. Etnólogos já descreveram sociedades que não têm uma cadeia de comando fixa; nelas o poder, em vez de estar preso a um sistema rígido de desigualdade, é fluido, partilhado diferentemente em situações diferentes, operando por freios e contrapesos que sempre tendem ao consenso. Eles já descreveram sociedades que não estabelecem um gênero como superior, ainda que sempre haja alguma divisão do trabalho por gênero, e as ocupações masculinas sejam aquelas com mais chances de serem celebradas.

Mas todas essas são sociedades que descrevemos como “primitivas” — de maneira tautológica, uma vez que já estabelecemos previamente uma hierarquia de valores: primitivo = baixo = fraco, civilizado = alto = poderoso.

Muitas das sociedades “primitivas” e todas as sociedades “civilizadas” são rigidamente estratificadas, com muito poder atribuído a uma minoria e pouco ou nenhum poder para a maior parte. Será a perpetuação das instituições de desigualdade social de fato o mecanismo que impulsiona a civilização, como sugeriu Lévi-Strauss?

As pessoas no poder são melhor alimentadas, melhor armadas, melhor educadas, e portanto são mais capazes de se manter assim, mas isso é suficiente para explicar a ubiquidade e a permanência da desigualdade social extrema? Certamente o fato de que os homens são um pouco maiores e mais musculosos (ainda que um tanto menos duráveis) que as mulheres não basta para explicar a ubiquidade da desigualdade de gênero e sua perpetuação em sociedades nas quais tamanho e musculosidade não fazem muita diferença.

Se os seres humanos odiassem a injustiça e a desigualdade como dizemos que odiamos e como pensamos que odiamos, teria durado mais de quinze minutos qualquer dos Grandes Impérios e das Altas Civilizações?

Se nós estadunidenses odiamos a injustiça e a desigualdade tão apaixonadamente como dizemos que odiamos, poderia haver alguma pessoa nesse país sem ter o suficiente para comer?

Nós demandamos um espírito rebelde daqueles que não têm chance de aprender que a rebelião é possível, mas nós privilegiados permanecemos parados e não vemos mal nenhum nisso.

Nós temos boas razões para sermos cautelosos, para ficarmos quietos, para não chutarmos o balde. Muita paz e conforto estão em jogo. A passagem moral da negação da injustiça à consciência da injustiça geralmente tem um custo bem alto. Minha satisfação, estabilidade, segurança e meus afetos pessoais podem se tornar um sacrifício e nome do sonho do bem comum, da ideia de liberdade que eu posso não viver para partilhar, por um ideal de justiça que talvez ninguém nunca alcance.

As últimas palavras do Mahabharata eram, “de modo algum eu posso atingir um objetivo fora do meu alcance”. É provável que a justiça, uma ideia humana, seja um objetivo além do alcance humano. Nós somos bons em inventar coisas que não podem existir.

Talvez a liberdade não possa ser alcançada por meio de instituições humanas, mas deva ser mantida como uma qualidade da mente ou do espírito independentemente das circunstâncias, um dom da graça. Essa (se eu a compreendo) é a definição religiosa de liberdade. Meu problema com ela é que a desvalorização do trabalho e das circunstâncias estimula as injustiças institucionais que tornam o dom da graça inacessível. Uma criança de dois anos que morre de fome, de tanto apanhar ou por conta de um bombardeio não teve garantido o acesso à liberdade, nem a nenhum dom da graça, em qualquer sentido no qual eu consiga entender essas palavras.

Nós podemos alcançar por nossos próprios esforços apenas uma justiça imperfeita, uma liberdade limitada. Melhor do que nada. Mantenhamo-nos firmes a esse princípio, o amor à Liberdade, do qual falou o escravo liberto, o poeta.

O terreno da esperança

A passagem da negação da injustiça ao reconhecimento da injustiça não pode ser desfeita.

Os que seus olhos viram, viram. Uma vez que você tenha visto a injustiça, não pode nunca mais de boa-fé negar a opressão e defender o opressor. O que era lealdade agora é traição. De agora em diante, se você não resiste, você pactua.

Mas há um terreno intermediário entre a defesa e o ataque, um terreno de resistência flexível, um espaço que se abre para a mudança. Não é um lugar fácil de se encontrar ou de nele viver. Promotores da paz que tentaram lá chegar acabaram correndo em pânico para Munique.

Mesmo que cheguem nesse terreno intermediário, podem acabar não recebendo graças por isso. O Tio Tom de Harriet Beecher Stowe é um escravo que, por seu corajoso esforço para persuadir seu senhor a mudar de ideia e por sua firme recusa em bater nos outros escravos, apanha até morrer. Nós insistimos em usá-lo como símbolo de uma vergonhosa capitulação e servilidade.

Enquanto admiramos a rebeldia heroicamente inútil, zombamos da resistência paciente.

Mas o terreno de negociação, onde a paciência gera mudança, é onde Ghandi se firmou. Lincoln chegou lá, dolorosamente. O bispo Desmond Tutu, tendo vivido lá por anos com honra singular, assistiu ao seu país rumar, ainda que de modo desconfortável e incerto, ao terreno da esperança.

As ferramentas do senhor

Audre Lorde disse que você não pode desmantelar a casa do senhor com as ferramentas do senhor. Eu penso sobre essa poderosa metáfora, tentando entendê-la.

Para radicais, progressistas, liberais, conservadores, e reacionários, receber a educação dos conhecimentos do senhor é visto como algo que inevitavelmente resulta na conscientização da opressão e da exploração, e consequentemente no desejo subversivo por igualdade e justiça. Os progressistas e liberais apoiam e os conservadores combatem a educação universal gratuita, as escolas públicas, a discussão sem censura nas universidades exatamente pela mesma razão.

A metáfora de Lorde parece dizer que a educação é irrelevante para a transformação social. Se nada do que o senhor usou pode ser útil ao escravo, então a educação nos seus conhecimentos deve ser abandonada. Desse modo, uma classe inferior precisa reinventar a sociedade por inteiro, alcançar um novo conhecimento, para poder alcançar a justiça. Se ela não o fizer, a revolução fracassará.

Isso é plausível. Revoluções geralmente fracassam. Mas eu vejo seu fracasso começar quando a tentativa de reconstruir a casa de modo que todos possam nela viver se torna uma tentativa de pegar todas as serras e martelos, fazer barricadas na casa de ferramentas do Sinhô, e manter os outros de fora. O poder não apenas corrompe, ele vicia. O trabalho se torna destruição. Nada se constrói.

Sociedades são transformadas com e sem violência. A reinvenção é possível; construir é possível. Que ferramentas podemos usar se não martelos, pregos, serras — educação, aprender a pensar, aprender a aprender?

Será que há ferramentas que ainda não foram inventadas, que devemos inventar para construir a casa na qual queremos que os nossos filhos morem? Será que podemos partir do que já sabemos, ou o que sabemos nos impede de aprender o que precisamos saber? Será que para aprender o que as pessoas não brancas, as mulheres, os pobres, têm a ensinar, para aprender o conhecimento de que precisamos, devemos desaprender todo o conhecimento dos brancos, dos homens, dos poderosos? Junto com o sacerdócio e a falocracia, será que devemos jogar fora a ciência e a democracia? Será que nos sobrará a tentativa de construir sem ferramentas exceto nossas próprias mãos? A metáfora é rica e perigosa. Eu não consigo responder às questões que ela levanta.

Somente nas utopias

No sentido de que oferece um vislumbre de alguma alternativa imaginada ao “modo como agora vivemos”, boa parte da minha ficção pode ser chamada de utópica, mas eu continuo a resistir à essa denominação. Muitas das minhas sociedades inventadas me soam como um aprimoramento de um aspecto ou outro da nossa própria sociedade, mas considero utopia um nome muito grande e muito rígido para denominá-las.

Utopia, e distopia, são lugares intelectuais. Eu escrevo a partir da paixão e da brincadeira. Minhas histórias não são nem avisos alarmantes nem manuais sobre o que devemos fazer. A maior parte delas, creio eu, são comédias sobre os costumes humanos, lembranças das infinitamente variadas maneiras pelas quais nós sempre voltamos aos mesmos lugares, e celebrações dessa infinita variedade por meio da invenção de ainda mais alternativas e possibilidades. Mesmo os romances Os Despossuídos e Sempre voltando para casa [ainda sem publicação em português], nos quais trabalhei algumas variações nos usos do poder de forma mais metódica que o usual, variações que eu preferiria em comparação às vigentes no nosso mundo — mesmos eles são esforços tanto para expor quanto para subverter o ideal de uma organização social alcançável que acabaria com a injustiça e a desigualdade de uma vez por todas.

O que importa para mim não é oferecer uma esperança de melhoria específica, mas, ao oferecer uma realidade alternativa persuasiva ainda que imaginada, desalojar minha mente, e assim a mente do leitor, do hábito preguiçoso e amedrontado de pensar que a forma em que vivemos agora é a única forma que as pessoas podem viver. É essa inércia que permite às instituições da injustiça continuarem não sendo questionadas.

A fantasia e a ficção científica oferecem na sua própria concepção alternativas ao presente do leitor, ao mundo real. Os jovens em geral saúdam esse tipo de história porque, em seu vigor e avidez por experiência, saúdam alternativas, possibilidades, mudanças. Tendo passado a temer até mesmo a imaginação de uma verdadeira mudança, muitos adultos rejeitam toda literatura imaginativa, orgulhando-se de não enxergar nada além daquilo que já conhecem, ou acham que conhecem.

Contudo, como se temesse seus próprios poderes inquietantes, boa parte da ficção científica e da fantasia são tímidas e reacionárias em suas invenções sociais, a fantasia se apegando ao feudalismo, a ficção científica à hierarquia militar e imperial. Ambas geralmente recompensam seu herói, seja homem ou mulher, somente por feitos extraordinariamente masculinos. (Eu mesma escrevi dessa forma por anos. Em A mão esquerda da escuridão, meu herói não tem gênero, mas seus heroísmos são quase que exclusivamente másculos). Na ficção científica particularmente, encontra-se com frequência a ideia que discuti acima, de que qualquer pessoa de status inferior, se não for um rebelde preparado para arrancar a liberdade através da ação audaciosa e violenta, é ou detestável ou simplesmente desimportante.

Em um mundo tão moralmente simplificado, se um escravo não é Espártaco, ele não é ninguém. Isso é impiedoso e irrealista. A maior parte dos escravos, a maior parte das pessoas oprimidas, são parte de uma ordem social que, pelos próprios termos de sua opressão, não lhes dá nem mesmo a oportunidade de perceberem a possibilidade de transformá-las.

Esse exercício da imaginação é perigoso para aqueles que lucram com as coisas como são porque isso tem o poder de mostrar que as formas como estão as coisas não são permanentes, não são universais, não são necessárias.

Tendo esse poder real, ainda que limitado, de questionar as instituições estabelecidas, a literatura imaginativa também tem a responsabilidade desse poder. O contador de histórias é o contador de verdades.

É triste que tantas histórias que poderiam oferecer uma visão verdadeira contentam-se com o lugar-comum patriótico ou religioso, com obras milagrosas da tecnologia, ou com pensamento idealista, seus autores não tentando imaginar a verdade. A distopia noir da moda simplesmente reverte os lugares comuns e usa o tom ácido ao invés do açucarado, ao passo que continua a evitar o engajamento com o sofrimento humano e com a possibilidade genuína.

A ficção imaginativa que eu admiro apresenta alternativas ao status quo que não só questionam a ubiquidade e a necessidade das instituições vigentes, mas que também ampliam o campo de possibilidade social e de compreensão moral. Isso pode ser feito em um tom tão inocentemente otimista como nas três primeiras séries televisivas de Star Trek, ou por meio de técnicas e construções de pensamento complexas, sofisticadas, e ambíguas como nos romances de Phillip K. Dick e Carol Emshwiller; mas o movimento é distintamente o mesmo — o impulso de tornar a mudança imaginável.

Nós não vamos conhecer nossa própria injustiça se não pudermos imaginar a justiça. Nós não seremos livres se não imaginarmos a liberdade. Não podemos exigir que tente alcançar a justiça e a liberdade quem não teve a chance de imaginá-las como alcançáveis.

Eu gostaria de fechar e coroar essas inconclusivas meditações com as palavras de um escritor que nunca disse nada além da verdade, e sempre a disse silenciosamente, Primo Levi, que viveu um ano em Auschwitz, e sabia o que é a injustiça.

A ascensão dos privilegiados, não só no Lager mas em toda coexistência humana, é um fenômeno angustiante mas infalível: somente nas utopias ele está ausente. É dever dos homens justos travar a guerra contra qualquer privilégio imerecido, mas é preciso não esquecer que essa é uma guerra sem fim.

Colaborador

Ursula K. Le Guin foi uma romancista estadunidense, autora de clássicos da ficção científica como Os despossuídos e A mão esquerda da escuridão.

22 de janeiro de 2018

Sob o neoliberalismo, você pode ser seu próprio chefe tirânico

Um novo estudo observou um aumento alarmante de uma nova forma de sofrimento psicológico. Chamam-lhe "perfeccionismo neoliberal".

Meagan Day

Jacobin

Jose Navarro / Flickr

Tradução / Um novo estudo de Thomas Curran e Andrew Hill, publicado no Psychological Bulletin, concluiu que o perfeccionismo está em ascensão. Os autores, ambos psicólogos, concluem que “as recentes gerações consideram os outros mais exigentes, são mais exigentes com os outros e são mais exigentes consigo mesmos”.

Ao identificar a origem deste crescente desejo de excelência, Curran e Hill não medem palavras: é o neoliberalismo. A ideologia neoliberal venera a competição, desencoraja a cooperação, promove a ambição e atribui valor pessoal à realização profissional. Não surpreendentemente, as sociedades orientadas por esses valores tornam as pessoas mais críticas e mais ansiosas face à possibilidade de serem julgadas.

Os psicólogos costumam falar sobre o perfecionismo como se este fosse unidimensional – apenas dirigido do eu para si mesmo. Esse é ainda o uso coloquial, o que geralmente queremos dizer quando afirmamos que alguém é perfeccionista. Mas, nas últimas décadas, os investigadores descobriram que é produtivo ampliar o conceito. Curran e Hill partem de uma definição multidimensional, abrangendo três tipos de perfeccionismo: auto orientado, orientado para outros e socialmente prescrito.

O perfeccionismo auto orientado é a tendência para alguém se guiar por padrões não realistas, enquanto o perfeccionismo orientado para outros refere-se a expetativas irrealistas quanto aos outros. Mas “o perfeccionismo socialmente prescrito é o mais debilitante das três dimensões do perfeccionismo”, afirmam Curran e Hill. Este descreve o sentimento de paranoia e ansiedade engendrado pela sensação persistente – e não totalmente infundada – de que todos estão à espera que cometas um erro para que te possam afastar para sempre. Esta hiper percepção das expetativas impossíveis dos outros causa alienação social, auto-avaliação neurótica, sentimentos de vergonha e indignidade, e “uma sensação de preocupação patológica e medo da avaliação social negativa, caracterizada por uma concentração nas falhas, e sensibilidade às críticas e fracasso”.

Na tentativa de avaliar o quão culturalmente contingente é o fenômeno do perfeccionismo, Curran e Hill fizeram uma meta-análise de dados psicológicos disponíveis, procurando observar tendências geracionais. Descobriram que as pessoas nascidas depois de 1989 nos Estados Unidos da América, Reino Unido e Canadá obtiveram resultados muito superiores às gerações anteriores para os três tipos de perfeccionismo, e que essas pontuações aumentaram linearmente ao longo do tempo. A dimensão que observou a mudança mais drástica foi o perfeccionismo socialmente prescrito, que aumentou duas vezes mais que taxa dos outros dois. Por outras palavras, o receio sentido pelos jovens em relação à possibilidade de serem julgados pelos seus pares, e pela cultura de uma forma geral, intensifica-se a cada ano que passa.

Curran e Hill atribuem essa mudança à ascensão do neoliberalismo e da meritocracia. O neoliberalismo favorece métodos de atribuição de valor às mercadorias – e designa tudo o que pode enquanto tal. Desde meados da década de 1970 que os regimes neoliberais político-econômicos substituíram sistematicamente coisas como propriedade pública e a negociação coletiva pela desregulamentação e privatização, promovendo o indivíduo face ao grupo no próprio tecido da sociedade. Enquanto isso, a meritocracia – a ideia de que o estatuto social e profissional são resultado direto da inteligência individual, da virtude e do trabalho árduo – convence as pessoas de que a incapacidade de ascensão é sinal de uma inerente inutilidade.

A meritocracia neoliberal, sugerem os autores, criou um ambiente no qual cada pessoa é embaixadora da sua própria marca, a única porta-voz do seu produto (ela própria) e agente do seu próprio trabalho, num infinito mar de competição. Como Curran e Hill observam, este estado de coisas “coloca a necessidade de esforço e realização no centro da vida moderna”, muito mais do que nas gerações anteriores.

Os investigadores citam dados que demonstram que os jovens estão menos interessados em participar em atividades de grupo por mera diversão, favorecendo, ao invés, empreendimentos individuais que os fazem sentir produtivos ou lhes conferem um sentimento de realização. Quando o mundo exige que se prove o nosso valor a cada momento, e quando não se consegue afastar a suspeita de que o respeito dos nossos pares é altamente condicional, sair com os amigos pode parecer menos interessante do que ficar em casa para cuidar meticulosamente dos seus perfis de redes sociais.

Uma consequência desse aumento do perfeccionismo, argumentam Curran e Hill, tem sido uma série de epidemias de doenças mentais graves. O perfeccionismo está muito relacionado com ansiedade, distúrbios alimentares, depressão e pensamentos suicidas. A compulsão constante para se ser perfeito, e a inevitável impossibilidade dessa tarefa, exacerbam os sintomas da doença mental em pessoas já vulneráveis. Mesmo os jovens sem doenças mentais diagnosticáveis tendem a sentir-se mal com maior frequência, uma vez que o perfeccionismo orientado para outros cria um clima de hostilidade, suspeição e desdém – em que todos são juízes numa constante avaliação em grupo – e o perfeccionismo socialmente prescrito envolve o reconhecimento dessa alienação. Em suma, as repercussões do crescente perfeccionismo variam entre emocionalmente dolorosas a literalmente mortais.

E há uma outra repercussão do aumento do perfeccionismo: torna difícil a construção da solidariedade, que é o que precisamos para resistir à investida do neoliberalismo. Sem uma boa auto percepção não podemos ter relacionamentos fortes, e sem relacionamentos fortes não podemos juntar-nos nos números necessários a uma agitação, muito menos a uma melhoria, de toda a ordem político-econômica.

Não é difícil encontrar paralelos entre as três dimensões do perfeccionismo e a chamada “cultura do call-out”, aquela que tem sido ultimamente a tendência hegemônica à esquerda: um estado em que todos procuram pela derradeira falha dos outros, elevando-se a padrões de virtuosismo impossivelmente elevados, paralisados pelo medo secreto (e não infundado) de serem descartáveis para o grupo e de que o dia do seu julgamento se encontre à porta. O padrão é uma peça de outras manifestações do perfeccionismo meritocrático neoliberal, desde admissões no ensino superior até uma gestão obsessiva do perfil de Instagram. E porque este nos divide em vez de nos unir, não é uma maneira de construir um movimento que procure alcançar o poder.

O perfeccionismo faz-nos sentir desdém uns pelos outros, medo uns dos outros e, na melhor das hipóteses, inseguros. Impede o tipo de vínculos solidários e de ação coletiva necessários para atacar o capitalismo neoliberal. O único antídoto possível para atomizar, alienar o perfeccionismo passa por rejeitar o individualismo absoluto e reintroduzir os valores coletivos na nossa sociedade. É uma tarefa gigantesca – mas com os problemas do neoliberalismo incutidos nas nossas mentes, é o único caminho a seguir.

Vida e obra. O significado político de uma leitura biográfica de Marx

Michael Heinrich


Tradução / Jubileus de personalidades importantes costumam encher as prateleiras das livrarias com muitas biografias. Marx, nesse ponto, não é nenhuma exceção. Depois da publicação, em 2013, de Karl Marx: sua vida e seu século, de Jonathan Sperber, veio a público, em setembro último, a tradução alemã da biografia lançada em 2016 por Gareth Stedman Jones – e isso apenas alguns dias depois do lançamento de Marx, o inacabado, de Jürgen Neffe2. Em breve, poucos dias depois do bicentenário de nascimento do autor3, irei me juntar a essa turma com a publicação do primeiro de três volumes do projeto intitulado Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna. Biografia e desenvolvimento de sua obra.

No campo da esquerda, as biografias gozaram durante muito tempo de pouco prestígio. Quando se tratava de pessoas politicamente relevantes, levantava-se contra as biografias a desconfiança de que, à maneira de Treitschke (“os homens fazem a história”)4, poder-se-ia estar praticando uma leitura individualizada da história. E isso contrariava o que todo nós de fato sabemos, isto é, que a história é movida pela luta de classes e pela transformação das estruturas socioeconômicas. Ainda mais suspeitas eram as biografias de teóricos e teóricas de esquerda. Afinal, o que poderia haver de relevante em contar a história de vida de alguém, quando o que importa de verdade é o debate sobre sua teoria?

Esse olhar enviesado para as biografias, muito difundido, não é de todo injustificado. A grande maioria das biografias publicadas todo ano são uma mistura grosseira de fatos conhecidos, anedotas propagadas, um tanto de psicologia vulgar e outro da sabedoria própria dos biógrafos ou biógrafas. Mesmo em biografias um pouco mais sérias, falta com frequência uma distinção precisa entre o que as fontes mostram ser razoavelmente certo e o que não passa de uma suposição mais ou menos bem fundamentada. Quando já abundam biografias dedicadas a alguém, repete-se com satisfação, nas versões mais recentes, aquilo que era afirmado nas mais antigas, no que poucos biógrafos ou biógrafas se encarregam de verificar se essas afirmações, por sua vez, foram mesmo comprovadas. E assim vão se formando as lendas.

Tudo isso acontece também em muitas das biografias de Marx. Naquela escrita por Francis Wheens, publicada em 1999, o autor afirma, por exemplo, ter mostrado o lado “humano” de Marx. Mas mesmo que o livro ofereça uma leitura atraente, sobretudo para iniciantes, resta que muitas das anedotas contadas por Wheens carecem de qualquer comprovação ou são exageros totalmente fantasiosos baseados em evidências muito reduzidas. Até o final da Guerra Fria, muitas das biografias dedicadas a Marx o retratavam pessoalmente de maneira depreciativa ou elogiosa, a depender da avaliação política que se fazia de sua teoria. Com frequência, para aqueles que se posicionavam de modo crítico com relação à teoria marxiana, a pessoa Marx já parecia altamente suspeita. Marx era então descrito como uma personalidade dominante, que abusou da família e dos amigos. Inversamente, não poucos marxistas retratavam Marx como tendo sido permanentemente nobre e bondoso e como alguém que, naturalmente, sempre teve razão nos conflitos em que se envolveu.

Hoje em dia, não dá mais para ser tão tosco. Cultuar heróis saiu de moda, os ataques pessoais se tornaram mais sutis. Mas, como sempre, a vida de Marx continua servindo para sustentar julgamentos sobre sua obra. Isso se torna particularmente claro nas biografias propostas por Sperber e Stedman Jones. Em ambas, o título original em inglês é mais informativo que a versão alemã: A Nineteenth-Century Life (Sperber) e Karl Marx. Greatness and Illusion (Stedman Jones)5. Logo na introdução do seu livro, Sperber dissipa qualquer dúvida sobre o fato de que, para ele, Marx não tem hoje mais nada de importante a nos dizer. Diante isso, alguns resenhistas não deixaram de notar o fato bastante curioso de alguém escrever uma extensa biografia sobre uma pessoa cuja obra considera tão irrelevante. No caso de Stedman Jones, o julgamento não é tão radical. Concede-se certa greatness a Marx, mas, sobretudo, muita illusion6. O argumento central para os dois autores é o de que Marx e suas teorias são tão prisioneiros do discurso e das experiências de seu tempo que, no que diz respeito aos problemas contemporâneos, não se pode mais aprender muita coisa com ele. Para Sperber, as teorias econômicas de Marx se reduzem ao capitalismo do início do século XIX. Para Stedman Jones, as ideias políticas de Marx estão enraizadas na época do Vormärz, o período anterior às revoluções europeias de 1848. Mais generoso é o tratamento concedido por Jürgen Neffe. Ele sublinha em Marx os elementos que lhe parecem adequados ao presente: diante da crise financeira de 2007-2008, por exemplo, somos “lembrados da voz profética do século XIX”, que “predisse o colapso inevitável do capitalismo”. Mas Marx previu realmente o colapso do capitalismo, e se de fato o fez, tinha ele razão ao sustentar tal afirmação?

Lendo-se os três autores, tem-se a impressão de que a mensagem que eles querem transmitir está estabelecida desde o início e que a biografia de Marx serve apenas para conferir mais plausibilidade a essa mensagem. Questões deixadas em aberto, curiosidade sobre algo ainda pouco conhecido ou mesmo o simples questionar-se, como decorrência da escritura da biografia, a respeito de julgamentos anteriores, de tudo isso percebe-se muito pouco. Também os debates travados ao longo dos últimos 40 anos tanto no âmbito dos estudos históricos quanto nos estudos literários sobre os limites da escrita biográfica – algo sobre como determinadas formas de narrar imprimem um direcionamento teleológico à trajetória de vida biografada – são completamente desconsiderados nessas biografias.

Nesse meio tempo, as biografias de Marx se tornaram parte integrante do debate sobre a relevância da teoria marxiana. E dado que as biografias atingem um número essencialmente maior de leitores e leitoras que contribuições de cunho puramente teórico, não se deve subestimar seus efeitos. Somente isso já seria uma boa razão para alguém se dedicar a uma biografia de Marx, ainda que esta razão, de longe, não seja a única. Vejo pelo menos outros três motivos.

Primeiro. É certo que alguém como Marx, que intervia politicamente ao mesmo tempo em que refletia analiticamente sobre desenvolvimentos políticos e econômicos, agia sob circunstâncias bastante diferentes das que nos cercam hoje. Mas determinados problemas estruturais da sua época são muito parecidos com os atuais. Como se deve agir num sistema parlamentar no qual a esquerda radical é progressivamente marginalizada? Que configurações de alianças e quais formas de organização, e sob que condições, devem ser buscadas? De que forma deve ser feita a crítica a membros de uma aliança, o que pode conduzir à quebra de um aliança? Não é porque as respostas de Marx tenha se revelado sempre corretas que a investigação sobre essas questões se mostra útil. Ao contrário, as respostas de Marx eram não raro erradas ou questionáveis. Não obstante, elas eram via de regra bastante refletidas e essas reflexões estão disponíveis em cartas e em artigos de jornal. Vale então a pena pesquisar por meio de que avaliações e dados – presentes ou ausentes – e em função de quais interesses políticos Marx chegou a tais julgamentos. Com isso, pode-se também tirar lições úteis de respostas equivocadas.

Segundo. Ainda é difundida a ideia de que as grandes obras marxianas devem ser lidas como tratados atemporais, sem ligação com seu contexto histórico, enquanto os vários pequenos artigos de jornal escritos por Marx acabam sendo ignorados como considerações sobre questões menores do dia a dia. Um estudo biográfico que inclua também o desenvolvimento da obra marxiana pode, nesse ponto, conduzir a avaliações mais precisas na medida em que, por um lado, esclarece as circunstâncias temporais, resultantes de problemas da época, presentes naquelas grandes obras e, por outro lado, torna claro que é possível encontrar alguns tesouros analíticos na profusão de artigos de jornal e de revista deixados pelo autor. Se Marx nunca chegou a escrever seu planejado livro sobre o Estado, ele discute em incontáveis artigos problemas políticos de seu tempo. Alguns elementos dessa teoria do Estado não realizada podem ser aqui percebidos, e este não é o único proveito que se pode extrair desses artigos.

Terceiro. Ao se observar a obra marxiana como um todo, vê-se não apenas um único tronco. Antes, nota-se que essa obra é composta de uma grande quantidade de troncos: começos, interrupções e recomeços com grandes e pequenos deslocamentos. A própria tese de doutorado, de 1841, deveria constituir o pontapé inicial de uma sequência nunca escrita de estudos sobre a filosofia grega pós-aristotélica (com ligações bastante atuais com a filosofia pós-hegeliana da época). Os Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, deveriam inaugurar, como crítica da economia política, uma série de outras críticas (da política, do direito, da moral) que nunca os sucedeu. Marx queria expor sua Crítica da Economia Política em seis livros (capital, propriedade da terra, trabalho assalariado, Estado, comércio internacional, mercado mundial), mas somente o primeiro tomo, de 1859, que trata unicamente da mercadoria e do dinheiro, foi publicado. No prefácio do primeiro livro de O capital, publicado em 1867, Marx anunciou três outros livros que, nos 16 anos que se seguiram até a sua morte, não pôde completar – o que se deve, não em último lugar, ao fato de que Marx, nos anos 1870, mais uma vez expandiu consideravelmente o objeto de seus estudos.

Se o objetivo é entender de onde vêm esses muitos troncos, então não se pode deixar de lado a biografia de Marx. Trata-se de alguém que trabalhou não apenas como cientista, mas também como jornalista de intervenção política e como um ativista revolucionário que integrava alianças, participava da criação de diferentes organizações e se envolvia em conflitos políticos – e não só com opositores e opositoras, mas também com antigos companheiros e companheiras de luta. Essas diferentes dimensões da vida de Marx não estavam de modo algum separadas. Suas observações teóricas não constituíam uma finalidade em si; elas eram orientadas por uma práxis transformadora da sociedade e influenciaram seu trabalho jornalístico e seu engajamento político. Por outro lado, as intervenções jornalísticas e as atividades políticas não apenas provocaram interrupções do trabalho científico, elas também confrontaram Marx com novos temas e problemas, deslocando sua pesquisa e, por vezes, levando-o a estabelecer novos conceitos. Os textos marxianos são o resultado de processos intermitentes de aprendizado em diferentes níveis e que de modo algum se desenvolveram linearmente. Ao longo de seu desenvolvimento, Marx não apreendeu tudo de forma sempre melhor; por vezes, ele também se viu em um beco sem saída. Se se quiser compreender tais processos e, com isso, chegar a uma avaliação mais adequada de sua obra e seu desenvolvimento – o que se tornou possível a partir da nova base textual oferecida pela segunda versão da MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe), publicada desde 1976 –, então não se pode escapar de um estudo biográfico de Marx.

Os processos de aprendizado de Marx se deram em um contexto histórico determinado e em debate com pessoas concretas. Essas pessoas desempenham em muitas biografias um papel meramente assessório. Não raro elas são observadas através das lentes de julgamentos feitos posteriormente por Marx. Quando se observa Bruno Bauer apenas a partir d’A sagrada família (1845) e d’A ideologia alemã (1845-1846), por exemplo, não se compreende de jeito nenhum como ele pode ter sido o amigo pessoal mais próximo de Marx entre 1837 e 1842, além de seu companheiro político mais importante. E pode-se entender melhor as posições de Bauer quando, além da visão marxiana de 1845, considera-se mais detalhadamente – o que não costuma ser feito – os desenvolvimentos discursivos e políticos na Alemanha entre 1835 e 1844. O mesmo vale também para a consideração de outras pessoas importantes para o desenvolvimento de Marx, tais como Ferdinand Lassalle e Michail Bakunin. As concepções políticas de ambos merecem ser observadas com mais seriedade do que, pelo menos entre marxistas, tem sido usual. As críticas de Marx nem sempre eram apropriadas, seja no nível pessoal ou no objetivo.

Para o desenvolvimento da obra marxiana, posso extrair da pesquisa feita até o momento uma primeira conclusão preliminar. Não apenas a biografia de Marx, mas também o desenvolvimento de sua obra são marcados por inúmeras contingências. Não se pode dizer de modo algum que tudo conduzisse necessariamente ao Capital como obra-prima. Caso Marx não tivesse sido obrigado a deixar Paris em 1849 e não tivesse ido para Londres, ele não poderia ter escrito O capital. Londres – o centro do mercado mundial daquela época (mercado esse dominado pelo capitalismo britânico), onde ocorriam discussões permanentes nos jornais e no parlamento sobre questões econômicas, onde se publicava a cada dia novos relatórios sobre crises econômicas, sobre a política do Banco da Inglaterra, sobre a situação das fabricas etc., e, acima de tudo, onde se encontrava o British Museum, a maior biblioteca de literatura econômica do mundo naquele tempo – Londres, pois, era o único lugar onde O capital, tal como o conhecemos hoje, poderia ter sido concebido.

Ao contrário do que se costuma supor, porém, os estudos econômicos não eram assim tão dominantes nas atividades de pesquisa de Marx a partir dos anos 1850. A discussão sobre a crítica da política e do Estado não se encontra apenas no 18 de brumário de Luís Bonaparte (1852) e em A guerra civil na França (1871), mas também na profusão de artigos de jornal e em fragmentos que só foram publicados integralmente – ao lado de estudos sobre história, etnologia, ciências naturais e, avant la lettre, ecologia – pela MEGA. A multidimensionalidade da obra marxiana também traz consigo a complexa história de seu desenvolvimento. Nas discussões sobre o desenvolvimento dessa obra, confrontam-se há várias décadas duas concepções: a hipótese da continuidade, que enxerga um desenvolvimento essencialmente contínuo desde os manuscritos de Paris de 1844 (por vezes até mesmo desde a Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843), sustenta que as concepções teóricas centrais de Marx não passaram por nenhuma modificação fundamental, tendo sido apenas expandidas e aprofundadas; e a hipótese da ruptura, que enxerga um corte fundamental datado normalmente de 1845-1846, a partir das “Teses sobre Feuerbach” e de A ideologia alemã. Parece-me que nenhuma das duas teses reflete a complexidade do desenvolvimento de Marx. Seu processo de aprendizado o conduziu a um grande número de rupturas assincrônicas e a modificações conceituais de alcances bastante variados e em diferentes campos de pesquisa. Esse processo não se deixa reduzir nem a uma ideia de aperfeiçoamento contínuo nem a uma sucessão de duas ou três fases de desenvolvimento. Aquilo que Marx, no questionário respondido a sua filha, apontou como sendo seu lema de vida – De omnibus dubitandum (de tudo se deve duvidar) – também serve como divisa para o estudo da sua biografia e do desenvolvimento de sua obra.

16 de janeiro de 2018

A anarquista enigmática

A vida de Lucy Parsons foi repleta de contradições. Mas seu compromisso com a emancipação dos trabalhadores nunca esteve em dúvida.

Uma entrevista com
Jacqueline Jones

Entrevistada por
Arvind Dilawar


Lucy Parsons por volta de 1886. Biblioteca do Congresso

Lucy Parsons é muitas vezes celebrizada como uma radical negra pioneira, uma escritora e oradora poderosa que defendeu a emancipação dos trabalhadores por meio de organizações como a Industrial Workers of the World (IWW), enquanto desrespeitava convenções racistas com seu marido branco, Albert Parsons.

Mas, embora esse esboço carregue a pátina da verdade, ele é, como tantos aspectos de Parsons, repleto de contradições. Ao longo de sua vida, Parsons escondeu sua origem como afro-americana e ex-escrava, alegando que ela era descendente de mexicanos e nativos americanos. Ela se absteve de denunciar a situação dos trabalhadores negros, concentrando-se quase exclusivamente em uma classe trabalhadora urbana composta principalmente de imigrantes europeus. E apesar de ser uma delegada na convenção de fundação do IWW em 1905, seu envolvimento com a união radical depois disso foi mínimo.

No entanto, sua jornada de escrava a uma voz radical nacionalmente reconhecida, sua defesa incansável dos trabalhadores e sua coragem inegável em face da repressão estatal assassina a fizeram se destacar em uma era cheia de esquerdistas notáveis.

Parsons desapareceu em grande parte da imaginação popular após sua morte em 1942. Foi só em 1976 que sua primeira biografia, Lucy Parsons: An American Revolutionary de Carolyn Ashbaugh, foi publicada. A segunda — Goddess of Anarchy: The Life and Times of Lucy Parsons, American Radical by Jacqueline Jones — acaba de ser lançado pela Basic Books. A Jacobin conversou recentemente com Jones, um renomado historiador da Universidade do Texas, sobre a evolução política de Parsons, sua vida de tribulações e suas muitas, muitas faces.

Arvind Dilawar

À luz do velho slogan anarquista “sem deuses, sem mestres”, parece natural que Lucy Parsons, uma ex-escrava, se sentisse atraída pelo anarquismo, mas sua evolução política não foi tão simples. Você pode explicar como ela passou de liberta a anarquista?

JJ

O desenvolvimento da ideologia política de Lucy Parsons estava entrelaçado com o de seu marido, Albert Parsons. Quando adolescente, Albert serviu no Exército Confederado, mas não tinha nenhum compromisso de princípios com a causa sulista. Após a guerra, Albert voltou para Waco, Texas, e tornou-se ativo no Partido Republicano. Ele desempenhou um papel importante ao ajudar os libertos a se registrar e votar, e os instou a se apoderarem de seus direitos como cidadãos livres e iguais. Foi durante esse período que Albert percebeu que possuía um talento considerável como orador poderoso, até mesmo destemido. Gradualmente, ele desenvolveu ambições políticas, como evidenciado por sua tentativa de obter favores de republicanos proeminentes no Texas.

Ele e Lucy se casaram em 1872, quando os republicanos controlavam o governo estadual e (pelo menos em algumas áreas) aprovavam o casamento inter-racial. Os democratas recuperaram o controle do estado no ano seguinte, levando o casal a fugir para Chicago, onde se estabeleceram em uma comunidade de imigrantes alemães. Ele trabalhava como impressor e ela se estabeleceu como costureira.

Albert e Lucy compartilharam das sensibilidades radicais dos imigrantes alemães e abraçaram o socialismo. Assim como os republicanos do Texas desafiaram o poderoso Partido Democrata e seu compromisso com a escravidão, os socialistas de Chicago desafiaram os dois principais partidos políticos e seu compromisso com o capitalismo.

Albert mais uma vez saboreou seu papel de forasteiro e espinho ao lado do establishment. Várias vezes no final da década de 1870, ele concorreu a um cargo público com a chapa socialista, mas perdeu todas as vezes. Ele e Lucy se convenceram de que o direito de voto era um péssimo veículo para a revolução de classe. Eles apontaram que muitos trabalhadores não podiam se dar ao luxo de tirar uma folga de seus empregos para votar, os dois principais partidos tinham um controle tenaz sobre a lealdade das classes trabalhadoras brancas e o próprio processo político foi corrompido pela influência de muito dinheiro e legisladores gananciosos.

No início da década de 1880, os Parsons abandonaram as urnas e se voltaram para o anarquismo. Eles argumentaram que a política partidária era uma perda de tempo e que a ação direta dos trabalhadores contra o sistema capitalista era o único caminho verdadeiro para a revolução. Eles observaram que a inovação tecnológica no local de trabalho estava eliminando empregos não apenas para os operários das fábricas, mas também para as classes médias. Em breve, afirmaram, poucos americanos teriam condições de comprar os bens fabricados neste país e, a essa altura, o capitalismo entraria em colapso. Então os trabalhadores se organizariam em sindicatos especializados, que serviriam como embriões de uma nova sociedade igualitária - uma sociedade movida pelo bem-estar do coletivo e não pela busca de lucro de alguns. Esta nova sociedade não teria necessidade de salários ou guerra.

Lucy Parsons permaneceu comprometida com essas idéias ao longo de sua longa vida, mesmo diante das evidências de que o sistema capitalista era flexível, capaz de acomodar muitos novos trabalhadores e de criar muitos novos tipos de empregos.

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Você pode descrever o impacto do caso Haymarket em Lucy?

JJ

During the Great Railroad Strike of the summer of 1877 — when Albert made a name for himself as an orator and labor organizer — the Chicago police mobilized as if for battle and attacked protesters, wounding and killing even those meeting indoors for peaceful purposes. The Parsonses and other radicals became convinced that the laboring classes must defend themselves against the police, private security guards, and federal troops armed with rifles, cannon, and Gatling guns. These radicals began to urge workers to take up arms to protect themselves and their families.

The meeting organized by anarchists in Chicago’s Haymarket Square the evening of May 4, 1886, was a direct response to police attacks on striking workers, who were agitating for an eight-hour day. The Haymarket rally was a peaceful one until eighty policemen arrived in the square and someone threw a bomb, killing seven officers and wounding untold numbers of people.

Later, during the trial, state prosecutors admitted that they could not determine who threw the bomb, but went ahead and charged seven anarchists with murder and conspiracy. According to the state, these men, including Albert Parsons, were guilty by their association with Chicago’s anarchist press. In November of 1887, four of the defendants, including Albert, were hanged.

The Haymarket trial came to symbolize the state-sponsored persecution of anarchists, a corrupt judicial system, a complicit mainstream press, and the enduring vulnerability of all workers to well-armed police forces. Many famous socialists and anarchists, including Eugene Debs and Emma Goldman, later said that they were radicalized by Haymarket.

Albert was incarcerated between June 1886 and his death the following year. During that time, Lucy launched her own career as an orator and agitator, traveling the country to raise money for the defense. In the process, she became a national celebrity for her fiery denunciations of the Chicago police and political establishment. She began her speeches with the defiant and unapologetic “I am an anarchist!” The crowds who came to hear her found on the stage not a pathetic, grieving widow, but a defiant woman eager to provoke — even shock — her listeners.

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Como o caráter e a política de Lucy contrastavam com a compreensão e representação popular dos anarquistas da época?

JJ

Em primeiro lugar, devo observar que o “entendimento popular e descrição dos anarquistas na época” - especialmente após o bombardeio de Haymarket - promoveu certos estereótipos que se mostraram duradouros. Editores, repórteres, clérigos, políticos, reformadores sociais e cartunistas políticos retrataram o anarquista como um homem barbudo, despenteado e de olhos arregalados, pronto para lançar uma lata de dinamite em uma multidão desavisada de homens, mulheres e crianças inocentes. Essa era uma das razões pelas quais as pessoas eram tão fascinadas por Lucy Parsons. Elegante e digna em sua postura, sempre vestida na última moda, ela derrubou esse estereótipo de forma dramática.

O final do século XIX viu uma fratura na persuasão anarquista. (Seria difícil chamá-lo de movimento.) Parsons e seus camaradas próximos representavam o que viria a ser chamado de anarco-sindicalismo. Eles acreditavam que os sindicatos eram os embriões da boa sociedade. Em contraste, alguns anarquistas eram individualistas extremistas que evitavam associações de todos os tipos, mesmo as voluntárias. Goldman representou o que podemos chamar de anarquismo cultural, com sua ênfase na livre expressão não apenas de idéias, mas também de sentimentos sexuais e impulsos artísticos. Finalmente, o anarquista alemão Johann Most promoveu a ideia de que o attentat, ou “propaganda pelo ato”, era a chave para a revolução - um ato breve e violento que galvanizaria as massas e serviria como catalisador para a derrubada do capitalismo.

Lucy Parsons às vezes parecia pelo menos retórica comprometida com o attentat, mas como argumento no livro, ela usou a retórica provocativa principalmente para assustar as autoridades de Chicago - para convencê-los do poder latente das classes trabalhadoras - e não há indicação de que ela tenha planejou um caso de violência para si mesma. Durante as primeiras duas décadas do século XX, quando os seguidores do imigrante italiano e anarquista Luigi Galleani defendiam e praticavam o assassinato e a destruição de propriedades, Parsons teve o cuidado de se distanciar dele e de seu apoio ao assassinato e destruição.

Acrescentarei que ela própria não foi um bom exemplo de, digamos, uma teórica de mente aberta, disposta a mudar seus pontos de vista em resposta às circunstâncias. Ela ignorou o crescimento de uma cultura de consumo, uma força poderosa na vida de muitos trabalhadores de ambos os sexos e de todas as idades e origens. Ela permaneceu alheia à importância de certos símbolos e valores para a maioria dos trabalhadores brancos nativos - a bandeira americana e a igreja, por exemplo. E ela não previu a maneira como um Estado de bem-estar social emergente poderia reduzir os protestos radicais e tornar um grande número de trabalhadores ainda mais devotados ao Partido Democrata do que nunca.

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À primeira vista, o título do seu livro, Deusa da Anarquia, pode parecer um oximoro (de novo, "sem deuses, sem mestres"), mas acho que captura adequadamente as contradições da vida de Lucy. Quais foram algumas das circunstâncias, influências e aspirações opostas que ela teve que enfrentar?

JJ

Devo deixar claro que o título do livro é um rótulo afixado a Lucy Parsons pela Chicago Citizens’Association, um grupo de empresários que a temia e o apelo que ela exercia sobre as massas de trabalhadores brancos. Usei esse rótulo para o título porque sugere seu poder e influência como oradora radical, e porque as pessoas na época comentavam sobre sua beleza.

When she first launched her speaking career, she devised a fictional identity for herself, claiming that she was the daughter of Mexican and Native American parents. (She was light-skinned and, according to many people, of indeterminate origins.) I think she felt this new identity would give her more credibility with her white working-class audiences. Neither she nor Albert ever evinced much sympathy for the plight of African Americans, and indeed both demonized blacks as strikebreakers and as enemies of white workers.

Lucy took care to fashion her public image in other ways. She presented herself as a prim Victorian wife and mother, when in fact she was a sexual free spirit — one of her love affairs ended in spectacular fashion, splashed across the headlines of local Chicago papers. She also claimed that the nuclear family was the foundational building block of the good society, yet, in 1899, she had her own son, Albert Jr, committed to an insane asylum because he defied her wishes and tried to join the US Army. He languished in the asylum for twenty years before he died, and there is no evidence that Parsons ever visited him in that time.

Lucy was a notoriously difficult person according to those who knew her well. She was a prolific writer and editor, an eloquent speaker, and an influential agitator. At the same time, she felt she could never be honest about her past.

Her owner had forcibly removed her, her mother, and younger brother from their home in the east during the Civil War and established a new plantation in McLennan County, Texas. After the war, violence on the countryside forced her family to flee to the small town of Waco. There she met a black man named Oliver Benton who paid her tuition at the local school for freed children. Benton later claimed that Lucy was his wife and that he was the father of the child she bore. (Apparently, the infant died when only a few months old.) When she left Waco in 1873, she left behind Benton, her mother, and her younger siblings.

I believe that her decisions to assume a new identity — as the champion of the white laboring classes — and immerse herself in the German immigrant community took an emotional toll on her. She was fiercely protective of her privacy, always dissembling, always calculating. As I note in the book, just being Lucy Parsons must have been exhausting.

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Você menciona que Lucy nunca "demonstrou muita simpatia pela situação dos afro-americanos", mas os Industrial Workers of the World, do quais ela foi membro fundador, eram - pelo menos em princípio - anti-racistas em uma época em que a maioria dos sindicatos contemporizavam com o racismo. Quais eram suas opiniões sobre raça?

JJ

It is difficult to pinpoint her views on race or black folks in general because she never wrote about them. However, there might be an easy and quite reasonable answer to this question: that she denied her own background as a former slave, and distanced herself from African Americans in general, because she thought that her constituency — white men of the urban laboring classes — would not grant her the degree of respect and credibility she deserved had they known she was of African descent.

I would note here that although she attended and spoke at the founding meeting of the IWW, she did not identify strongly with that particular organization, except to the extent that it represented a robust defense of the First Amendment. (The local head of the Chicago Wobblies disparaged Parsons and her comrades as “anarchist freaks.”)

She did at one point urge Southern blacks to strike back violently against their oppressors, noting that their vulnerabilities stemmed from their legal liabilities and lack of rights, and not their “race” per se.

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A era em que Lucy viveu foi a era do jornalismo amarelo, bem como do primeiro Red Scare. Considerando o matiz da reportagem e dos documentos oficiais da época, quão difícil foi encontrar fontes confiáveis sobre sua vida?

JJ

Parsons deixou pouco na forma de papéis pessoais - diários, cartas e assim por diante - então eu tive que juntar as peças de sua vida a partir de fontes como relatórios de censo e artigos de jornal. A grande imprensa a cobriu obsessivamente e muitos jornais de todo o país registraram seus discursos, descreveram sua aparência e julgaram sua vida pessoal, bem como suas opiniões políticas. Previsivelmente, os repórteres a descreveram em termos sensacionalistas, como fariam com qualquer objeto de sua curiosidade. Eles detalhavam a textura de seu cabelo e o formato de seu nariz, bem como os sapatos, joias e chapéus que ela usava.

Em suas viagens nacionais, ela proferiu variações de sua palestra padrão, e os estenógrafos da imprensa registraram essas palestras com bastante precisão. Devo acrescentar aqui que ela foi uma escritora prolífica, e pude ler muitos dos artigos que ela escreveu não apenas para seus próprios veículos anarquistas - Freedom (1890-1902) e Liberator (1906) - mas também para uma ampla variedade de publicações radicais, do final da década de 1870 até sua morte em 1942.

Ela era reservada sobre sua vida pessoal. No entanto, ela ficou famosa por uma rivalidade com figuras conhecidas, como Debs e Goldman, e os jornais também cobriram essas brigas. Detalhes de sua vida amorosa chegaram às manchetes (quando ela rejeitou um amante e, em pelo menos um caso, o levou ao tribunal), assim como sua decisão de internar o filho.

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Despite the awe she inspired at times in her life, Parsons já estava sendo esquecida antes de sua morte e permaneceu assim desde então. Por que Parsons quase se perdeu no tempo?

JJ

Em Chicago, pelo menos, Parsons definitivamente não foi esquecida enquanto ela era viva. Ela continuou a falar nas comemorações de Haymarket, nos comícios dos grevistas e nas celebrações do Primeiro de Maio quase até a hora de sua morte. Ela permaneceu um ícone entre os trabalhadores brancos e uma heroína recém-descoberta do trabalho entre o pequeno bando de comunistas da cidade.

Ainda assim, em alguns aspectos, Lucy foi vítima de seu próprio sucesso. A partir do início do século XX, ela se tornou a guardiã da chama eterna dos mártires de Haymarket e dedicou o resto de sua vida a escrever e falar sobre o sistema judicial injusto que tirou a vida de seu marido e de seus três camaradas. Com isso, ela subsumiu sua própria personalidade e política sob a memória dele.

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Que lições a vida de Parsons e seu trabalho oferecem aos socialistas hoje?

JJ

Like her socialist and anarchist comrades, Lucy Parsons was prescient about a whole host of issues that continue to confront us today — the growing gap between rich and poor, the mixed effects of technology in the workplace, the inability of the two major parties to address injustices and inequalities, the struggles of ordinary workers, the persistent attacks on labor unions and the idea of collective action in general, and the threat to free speech and peaceful assembly. She read widely and thought deeply about history, as well as economic and political theory. She was a courageous defender of freedom of speech.

At the same time, the Chicago anarchists engaged in a kind of anti-clerical, European-style labor organizing and agitation that was ill-suited to that city’s workforce then (and since). The anarchists denigrated the right to vote. They ridiculed the church and national institutions of all kinds, including the three branches of the US government. They considered reforming the system to be a form of complicity in it. They pushed the boundaries of the First Amendment by urging a militant kind of worker self-defense, one that veered into an advocacy of violence against businessmen and the police. They did not appreciate the ways that racial, religious, and ethnic loyalties could divide workers, nor did they anticipate the ways that consumer culture would transform class relations and all of American society.

Finally, Parsons’s own career stands as a stark reminder of, on the one hand, the unique history and struggles of workers of African descent and, on the other, the economic forces which continue to affect workers regardless of their skills or background. To paraphrase the Reverend Jesse Jackson, when the factory lights go out, all workers — regardless of skin color — look the same. Today, America’s tribalistic politics serve as a persistent, stubborn barrier to the kind of class unity needed to challenge the current racist, authoritarian regime in Washington.

Sobre a entrevitadora

Jacqueline Jones is the Ellen C. Temple chair in women’s history and Mastin Gentry White professor of Southern history at the University of Texas at Austin. Her latest book is Goddess of Anarchy: The Life and Times of Lucy Parsons, American Radical.

Sobre o entrevistado

Arvind Dilawar is a writer and editor whose work has appeared in Newsweek, the Guardian, Al Jazeera, and elsewhere.

O verdadeiro Adam Smith

Ele pode ser o garoto-propaganda de uma economia de livre mercado, mas isso distorce o que Adam Smith realmente pensava

Paul Sagar

Aeon

Um holograma de Adam Smith adorna a nota britânica de £ 20. Foto de Jim Dyson / Getty

Se você já ouviu falar de um economista, é provável que seja Adam Smith. Ele é o mais conhecido de todos os economistas e é tipicamente aclamado como o pai fundador da própria ciência lúgrube.

Além disso, ele geralmente é retratado não apenas como um campeão inicial da teoria econômica, mas da superioridade dos mercados em relação ao planejamento governamental. Em outras palavras, Smith é agora conhecido como o fundador da economia e como um ideólogo da direita política.

No entanto, apesar de ser amplamente aceito, ambas as afirmações são, na melhor das hipóteses, enganosas e, na pior das hipóteses, falsas.

A reputação popular de Smith como economista é um toque notável do destino para um homem que passou a maior parte de sua vida como um pensador acadêmico um tanto recluso. Empregado como professor de filosofia moral na Universidade de Glasgow, a maioria do ensino de Smith era em ética, política, jurisprudência e retórica, e durante a maior parte de sua carreira era conhecido por seu primeiro livro, Teoria dos Sentimentos Morais (1759). Sua identidade profissional era firmemente a de um filósofo - não menos importante porque a disciplina de "economia" não surgiu até o século XIX, momento em que Smith havia morrido há muito tempo. (Ele morreu em julho de 1790, quando a Revolução Francesa estava entrando em pleno andamento.)

É certo que a reputação de Smith como economista não é inteiramente misteriosa. O Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações (1776) foi, sem dúvida, importante na eventual formação - no próximo século - da disciplina da economia. Mas mesmo assim, as coisas não são tão diretas quanto parecem. A Riqueza das Nações - um calhamaço de 1.000 páginas que mistura história, ética, psicologia e filosofia política - tem pouca semelhança com a natureza ahistórica e altamente matemática da teoria econômica mais atual. Seja como for, o livro mais conhecido de Smith é um trabalho de economia política, um campo de estudos que prevaleceu anteriormente e sofreu um declínio notável na segunda metade do século XX.

A reputação de Smith, no entanto, começou a se afastar dele desde o início. Pouco depois da publicação, A Riqueza das Nações foi defendida no Parlamento britânico pelo líder whig Charles James Fox. Ironicamente, Fox mais tarde admitiu que ele nunca havia lido (poucos leitores subseqüentes do livro mostraram essa sinceridade, apesar de muitos deles citá-lo). De fato, Smith suspeitava que aqueles mais rápidos para cantar seus lances não conseguiram entender os principais argumentos de seu trabalho. Mais tarde, descreveu A Riqueza das Nações como um "ataque muito violento... sobre todo o sistema comercial da Grã-Bretanha". Apesar disso, seus líderes de torcida políticos no Parlamento continuaram a sustentar o próprio sistema que Smith estava criticando.

No entanto, se Smith estava desapontado com a recepção imediata de seu trabalho, ele provavelmente teria atribuído ainda menos elogios aos usos futuros para os quais seu nome seria usado. Pois foi seu destino se associar à tensão da política de direita que passou ao controle no início dos anos 80 e que continua a exercer uma forte influência sobre a política e a economia hoje. Geralmente conhecido como neoliberalismo, este desenvolvimento é mais comumente associado com Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Mas é de fato um movimento com profundas raízes intelectuais, em particular nos escritos de meados do século dos economistas Friedrich Hayek e Ludwig von Mises. Mais tarde, o economista de Chicago Milton Friedman e o assessor de política britânico Keith Joseph defenderam-no durante a década de 1980, assim como a extensa rede de acadêmicos, grupos de reflexão, líderes empresariais e formuladores de políticas associados à Sociedade Mont Pelerin.

Os neoliberais muitas vezes invocam o nome de Smith, acreditando que ele é um dos primeiros campeões do empreendimento privado capitalista e um fundador do movimento que procura (como Thatcher esperava) "reverter as fronteiras do Estado" para permitir que o mercado floresça. O fato de que existe um grupo de pensamento britânico de direita proeminente chamado Adam Smith Institute - que, desde a década de 1970, promoveu agressivamente as reformas lideradas pelo mercado, e em 2016 oficialmente se tornou uma organização "neoliberal" - é apenas um exemplo dessa tendência.

É certamente verdade que existem semelhanças entre o que Smith chamou de "o sistema de liberdade natural", e apelos mais recentes para que o estado abra caminho para o livre mercado. Mas se cavarmos abaixo da superfície, o que mais impressiona são as diferenças entre a sutil e cética visão do papel dos mercados em uma sociedade livre, e caricaturas mais recentes dele como um fundamentalista de livre mercado, avant-la-lettre. Pois embora Smith possa ser publicamente elogiado por aqueles que depositam sua fé no empreendimento capitalista privado, e que condenam o Estado como a principal ameaça à liberdade e prosperidade, o verdadeiro Adam Smith pintou um quadro bastante diferente. De acordo com Smith, os perigos mais prementes não vieram do estado ao agir sozinho, mas do estado quando capturado pelas elites mercantis.

O contexto da intervenção de Smith em A Riqueza das Nações foi o que chamou de "sistema mercantil". Por este Smith designava a rede de monopólios que caracterizava os assuntos econômicos do início da Europa moderna. Sob tais arranjos, as empresas privadas pressionavam os governos pelo direito de operar rotas comerciais exclusivas, ou para serem os únicos importadores ou exportadores de bens, enquanto guildas fechadas controlavam o fluxo de produtos e o emprego nos mercados domésticos.

Como resultado, argumentou Smith, as pessoas comuns foram forçadas a aceitar preços inflados de produtos de má qualidade, e seu emprego estava à mercê das cabalas dos chefes. Smith viu isso como uma monstruosa afronta à liberdade e uma perniciosa restrição à capacidade de cada nação para aumentar sua riqueza coletiva. No entanto, o sistema mercantil beneficiou as elites mercantes, que haviam trabalhado duro para mantê-lo no lugar. Smith não rolou nenhum soco em sua avaliação dos chefes como trabalhando contra os interesses do público. Como ele colocou em A Riqueza das Nações: "As pessoas envolvidas na mesma atividade raramente se encontram entre si, mesmo para confraternização e diversão, mas [quando acontece] a conversa termina numa conspiração contra o público, ou em alguma manobra para fazer subir os preços".

Os comerciantes passaram séculos garantindo sua posição de vantagem injusta. Em particular, eles haviam inventado e propagado a doutrina da "balança comercial" e conseguiram elevá-la à sabedoria recebida da era. A ideia básica era que a riqueza de cada nação consistia na quantidade de ouro que possuía. Ao brincar com essa ideia, os comerciantes alegaram que, para se enriquecer, uma nação tinha que exportar o máximo e importar o mínimo possível, mantendo assim um equilíbrio "favorável". Eles então se apresentaram como servos do público oferecendo-se para executar monopólios apoiados pelo Estado que limitariam o influxo, e maximizariam o fluxo, de bens e, portanto, do ouro. Mas, como a longa análise de Smith mostrou, este era um hokum puro: o que era necessário, em vez disso, eram acordos comerciais abertos, de modo que a produtividade poderia aumentar em geral, e a riqueza coletiva cresceria em benefício de todos.

Ainda pior do que isso, pensava Smith, os comerciantes foram a fonte do que seu amigo, o filósofo e historiador David Hume, chamou de "ciúme do comércio". Este foi o fenômeno pelo qual o comércio se transformou em instrumento de guerra, e não o vínculo de "união e amizade" entre os estados que deveria ser apropriadamente. Ao brincar de sentimentos jingoísta, os comerciantes inflamaram o nacionalismo agressivo e cegaram as populações domésticas ao fato de que seus verdadeiros interesses estavam na formação de relações comerciais pacíficas com seus vizinhos.

A paz e a estabilidade do continente europeu foram ameaçadas pelas conspirações dos comerciantes, que incitaram os políticos a combater as guerras para proteger os mercados domésticos ou adquirir estrangeiros. Afinal, ser concedido monopólios privados com apoio militar era muito mais fácil do que ter que competir no mercado aberto, reduzindo os preços e melhorando a qualidade. Os comerciantes dessa forma constantemente conspiraram para capturar o Estado, defraudando o público usando o poder político para promover sua própria vantagem seletiva.

De fato, a ideia mais famosa de Smith - a de "a mão invisível" como uma metáfora para a alocação de mercado descoordenada - foi invocada precisamente no contexto de seu flagelante ataque às elites mercantes. Certamente é verdade que Smith ficou céptico quanto às tentativas dos políticos de interferir ou ignorar os processos básicos do mercado, na vã esperança de tentar fazer um melhor trabalho de alocar recursos do que era possível ao permitir que o mercado fizesse seu trabalho. Mas na passagem da Riqueza das Nações onde ele invocou a idéia da mão invisível, o contexto imediato não era simplesmente o da intervenção estatal em geral, mas a intervenção do Estado a pedido das elites mercantes que promovem seus próprios interesses às custas do povo.

É uma ironia da história que a idéia mais famosa de Smith agora é geralmente invocada como defesa de mercados não regulamentados diante da interferência do Estado, de modo a proteger os interesses dos capitalistas privados. Pois isso é aproximadamente o oposto da intenção original de Smith, que era defender restrições sobre o que os grupos de comerciantes poderiam fazer. Quando argumentou que os mercados funcionavam notavelmente de forma eficiente - porque, embora cada indivíduo "pretenda apenas seu próprio ganho, e é nisso, como em muitos outros casos, liderados por mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua intenção" - isso era um apelo aos indivíduos livres das restrições que lhes eram impostas pelos monopólios que os comerciantes haviam estabelecido e estavam usando o poder do Estado para sustentar. A mão invisível foi originalmente invocada não para chamar a atenção para o problema da intervenção do Estado, mas da captura do Estado.

Smith era, no entanto, profundamente pessimista quanto ao estrangulamento que os comerciantes conseguiram exercer sobre a política européia, e desesperado de que alguma vez fosse afrouxado. Consequentemente, ele classificou sua alternativa preferida - de mercados liberais gerando riqueza para serem transmitidos a todos os membros da sociedade - uma "Utopia" que nunca aconteceria. A História até certo ponto provou que ele estava errado nesta questão: agora vivemos em uma era de liberdade de mercado comparativa. Mas ninguém deve negar essa conspiração mercantil, e o casamento do Estado com o que agora chamamos de poder corporativo, continuamos a definir características da nossa realidade política e econômica atual.

De qualquer forma, a hostilidade de Smith para com os comerciantes está muito distante de ser comparada com o estilo Reagan do herói capitalista empreendedor, que só precisa ser liberado das restrições do estado para nos levar às bases altas do crescimento econômico iluminado pelo sol. Pelo contrário, a análise de Smith implica que uma sociedade livre com uma economia saudável precisará colocar grilhões nas elites econômicas, se a mão invisível for ter qualquer chance de fazer seu trabalho paradoxal.

Isso, então, faz de Smith um dos primeiros defensores da esquerda política? Não, e seria um erro serio tirar essa conclusão. A verdade é mais complexa e mais interessante do que isso.

Embora Smith fosse profundamente crítico com a forma como os comerciantes conspiraram para promover sua própria vantagem à custa do resto da sociedade, ele não tinha nenhuma ilusão de que os atores políticos pudessem substituir com sucesso os comerciantes privados como os condutores necessários da atividade econômica.

Certamente, quando os comerciantes podiam governar como soberanos - como a Companhia Britânica da Índia Oriental tinha sido autorizada a fazer em Bengala - os resultados eram desastrosos. "Necessidade, fome e mortalidade", os resultado da "tirania" e da "calamidade", foram desencadeados na Índia, todos produtos de uma "autoridade opressiva" baseada na força e na injustiça. Sob absolutamente nenhuma circunstância, pensava Smith, os comerciantes deveriam ser encarregados da política. Suas conspirações monopolistas seriam "destrutivas" para todos os países que tivessem o infortúnio de cair sob o governo deles".

No entanto, algo parecido com o inverso também era verdade: políticos se dão terríveis comerciantes e não deveriam tentar assumir o funcionamento sistemático dos assuntos econômicos. Este foi um produto da situação estrutural enfrentada pelos líderes políticos, a quem Smith afirmou ter "raramente conseguido" se tornar "aventureiros nos ramos comuns do comércio", apesar de muitas vezes terem sido tomados a tentar e, muitas vezes, de um desejo genuíno de melhorar a condição de sua nação.

Os políticos, de acordo com Smith, eram juízes muito mais pobres de onde e como alocar recursos do que o resultado agregado de pessoas que realizavam uma troca gratuita de forma espontânea. Como resultado, em questões de comércio, geralmente era loucura para os políticos tentarem substituir a vasta rede de compradores e vendedores com qualquer forma de comando centralizado. Isso, no entanto, incluiu precisamente essas redes estruturadas em torno das atividades de busca de lucro das elites mercantes.

Na análise final de Smith, os comerciantes eram uma parte potencialmente perniciosa, mas totalmente necessária, do funcionamento das economias em grande escala. A verdadeira "ciência de um estadista ou legislador" consistia em decidir a melhor maneira de governar as nefastas atividades dos comerciantes. Políticos efetivos tiveram que encontrar um equilíbrio entre a concessão de liberdade às elites econômicas para prosseguir atividades comerciais legítimas, ao mesmo tempo em que aplicaram controle quando tais atividades se tornaram veículos para exploração. Em outras palavras, Smith estava muito longe de nos pedir para colocar nossa fé em "empresários", esses supostos "criadores de riqueza" que o neoliberalismo busca como motor da prosperidade econômica. Pelo contrário, dar aos empresários o reino livre seria como colocar as raposas para tomar conta do galinheiro.

No entanto, Smith não ofereceu qualquer tipo de plano premeditado sobre como atingir o equilíbrio certo entre liberdade comercial e controle político vigilante. Pelo contrário, ele pressionou as profundas dificuldades subjacentes da situação em que as sociedades comerciais se encontraram.

Os atores políticos, afirmou Smith, eram susceptíveis de serem varridos por um "espírito de sistema", que os fazia apaixonar por planos abstratos, o que eles esperavam que introduziria uma ampla reforma benéfica. Normalmente, as motivações por trás desses planos eram perfeitamente nobres: um genuíno desejo de melhorar a sociedade. O problema, no entanto, era que o "espírito do sistema" cegava os indivíduos às duras complexidades da mudança do mundo real. Como Smith colocou em The Theory of Moral Sentiments em uma de suas passagens mais evocativas:

[O homem do sistema] parece imaginar que ele pode arranjar diferentes membros de uma grande sociedade com facilidade quando a mão organiza as peças diferentes do tabuleiro de xadrez. Ele não considera que as peças do tabuleiro de xadrez não tem outro princípio de movimento além do que a mão imprime sobre eles; mas isso, no grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana, cada um tem um princípio de movimento próprio, completamente diferente daquela que o legislador poderia escolher para impressioná-lo. Se esses dois princípios coincidem e agem na mesma direção, o jogo da sociedade humana vai facilmente e harmoniosamente, e é muito provável para ser feliz e bem sucedida. Se eles são opostos ou diferentes, o jogo continuará miseravelmente, e a sociedade deve estar em todos os momentos no mais alto grau de desordem.

O argumento de Smith poder ser facilmente confundido. À primeira vista, pode parecer uma injunção à direita moderna contra o planejamento estadual de estilo socialista. Mas é muito mais sutil do que isso.

O que Smith está dizendo é que, na política, qualquer plano preconcebido - especialmente aquele que pressupõe que os milhões de indivíduos que compõem uma sociedade simplesmente irão junto com ele - é potencialmente perigoso. Isso ocorre porque o "espírito do sistema" infecta os políticos com uma certeza moral messiânica de que suas reformas são tão necessárias e justificadas que vale a pena pagar quase qualquer preço para alcançá-las.

No entanto, é um passo curto disto para descontar o dano muito real que um plano pode desencadear se começar a dar errado - e especialmente se as "peças no tabuleiro de xadrez" agem de forma a resistir, subverter ou confundir, o político esquema. Isso ocorre porque o "espírito do sistema" encoraja o tipo de atitude capturada em palavras tão baratas como "Você não pode fazer uma omelete sem quebrar ovos". Em outras palavras, esses adversários inconvenientes e espectadores podem ser sacrificados a uma visão moral primordial.

Smith estava prevenindo todos os planos abstratos. Certamente, sua perspectiva sugere ceticismo sobre tais estratégias, como assumir a base industrial de um Estado, presumindo saber o que os cidadãos de bens querem e precisam nos próximos cinco anos e, assim, tentando eliminar o mercado como mecanismo de alocação de recursos. Mas também vê com profunda suspeita um plano para privatizar rapidamente as indústrias anteriormente estatais, expondo milhões de cidadãos aos estragos do desemprego e à destruição de suas comunidades. Em outras palavras, embora ela certamente não percebesse, a reestruturação violenta de Thatcher da economia britânica durante a década de 1980 era tanto um produto do "espírito de sistema" quanto qualquer estratégia industrial soviética de cima para baixo.

A mensagem que Smith transmite atravessa linhas partidárias e ideológicas e aplica-se tanto à esquerda quanto à direita. Trata-se de uma atitude patológica a que os políticos de todas os espectros são propensos. Se não for mantido sob controle, esta pode ser a fonte não apenas de ruptura e ineficiência, mas de crueldade e sofrimento, quando aqueles que se encontram no lado errado das conseqüências do plano são forçados pelos poderosos a sofrê-los independentemente. Smith, por sua vez, nos exorta a reconhecer que a política do mundo real sempre será muito complexa para qualquer ideologia pré-embalada. O que precisamos em nossos políticos é o julgamento cuidadoso e a maturidade moral, algo que nenhuma ideologia, nem qualquer posição no espectro político, detém o monopólio.

Nos tempos difíceis que agora ocupamos, é difícil acreditar que os juízes políticos cuidadosos e responsáveis que Smith imaginou têm muitas possibilidades de surgir. (Alguém na política ocidental atualmente está em alta?) Muito mais provavelmente serão novos homens e mulheres do sistema, com planos abstratos alternativos, seduzindo eleitores desesperados antes de tentar impor suas próprias reformas contundentes, independentemente do que as peças no tabuleiro de xadrez pensem ou queiram.

Se essas reformas vêm da esquerda ou da direita não podem, no final, importar muito. À medida que as economias ocidentais continuam a se debater e a política se torna cada vez mais polarizada, os resultados podem ainda ser catastróficos. Mas, se assim for, certamente não devemos mandar Smith a qualquer desfile de culpa. Pelo contrário, ele tentou nos avisar dos perigos que enfrentamos. É hora de ouvirmos, com um pouco de cuidado, o que o verdadeiro Adam Smith tinha a dizer.

Paul Sagar é um pesquisador em política e relações internacionais no King's College da Universidade de Cambridge. É autor de The Opinion of Mankind: Sociability and the Theory of the State from Hobbes to Smith (2018).

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