15 de janeiro de 2018

O anticapitalismo radical de Martin Luther King

Neste pequeno trecho do livro Fifty Years Since MLK, Keeanga-Yamahtta Taylor examina a virada de MLK em direção a uma crítica radical do capitalismo antes de sua vida ser interrompida.

Keeanga-Yamahtta Taylor

The Paris Review
Horace Cort / AP Photo

Tradução / Num ensaio publicado postumamente, Martin Luther King Jr. indicava que a “revolução negra” havia se estendido para além dos “direitos dos negros”. A luta, dizia ele, está “forçando a América a enfrentar todas as suas falhas inter-relacionadas – o racismo, a pobreza, o militarismo, o materialismo. Está expondo os males profundamente enraizados em toda a estrutura de nossa sociedade. Revela falhas mais sistêmicas do que superficiais, e sugere que a reconstrução radical da própria sociedade é a real questão a ser enfrentada.”

Mas não começara assim. Por uma década, a luta negra tinha inaugurado um questionamento mais profundo da sociedade dos Estados Unidos, e a política de King seguira o mesmo caminho.

De fato, no começo dos anos 60, o movimento sulista se unificava em torno de duas demandas claramente definidas: o fim da segregação de Jim Crow e a garantia do acesso irrestrito de afro-americanos ao voto. Com metas claras e barômetros para medir o grau de sucesso ou de fracasso, um amplo movimento social foi capaz de desmantelar esses sistemas de opressão. King consagrou-se como estrategista e como alguém capaz de articular os sofrimentos e as aspirações dos negros sulistas.

Contudo, apesar do exemplo bem-sucedido da desobediência civil não violenta no Sul, isso pareceu ter pouco ou nenhum impacto duradouro no edifício da discriminação racial que definia a vida de um negro em outros lugares. De fato, a aparente continuidade da marginalização dos negros por todos os Estados Unidos produziu centenas de levantes urbanos no meio dos anos 60. Se no Sul o gênio estratégico de King empregava a desobediência civil não violenta para desarmar os racistas da região enquanto coagia o establishment[1] político a proteger os direitos de cidadãos de primeira classe, essa estratégia falhou em cidades como Los Angeles, Chicago, Filadélfia e Washington D.C. Nessas regiões, o problema não eram as placas ofensivas de Jim Crow, mas as insidiosas (porém obscuras) ações do corretor de imóveis, do banqueiro, do empregador, do policial e de outros agentes que sustentavam a desigualdade racial.

Conforme a atenção de King se deslocava do Sul para os guetos solidamente estabelecidos no Norte, ele enfrentou denúncias e punições de antigos aliados nortistas. Essas pessoas o haviam apoiado enquanto suas demandas se limitavam ao fim da discriminação legal. Como o racismo sulista era visto como antiquado e retrógrado, King era celebrado por ajudar a impulsionar o Sul rumo ao progresso e à modernidade. Contudo, ainda que o movimento pelos direitos civis fosse valorizado por sua intervenção no Sul, passou a ser demonizado quando trouxe para o Norte sua reivindicação pela libertação e pelo poder negro – uma dinâmica que se mantém até os dias de hoje.

Nos tempos de King, instituições no Norte que pregavam neutralidade racial, mas eram inteiramente cúmplices da subjugação racial, pareciam imunes a táticas que usavam a confrontação e o constrangimento para provocar mudanças. Ele foi obrigado a redefinir sua estratégia.

O enfrentamento entre King e Richard J. Daley, prefeito de Chicago, por exemplo, foi instrutivo. Quando King foi a Chicago em 1966, para participar de uma campanha pelo fim das favelas no West Side negro, foi confrontado pela obstinação de uma máquina política financiada pelo clientelismo. Formadores de opinião afro-americanos viam King como um intruso, e o prefeito o via como um incômodo. Daley simplesmente negava a existência de um gueto em Chicago, e a máquina política negra sustentava que a existência do gueto era uma prova positiva do progresso racial. Eles privaram King do espetáculo do confronto que havia exposto o establishment sulista.

Foi essa incursão no duro ambiente político de segregação residencial e máquinas políticas que forneceu a King o ímpeto para se radicalizar. Seu amadurecimento político levou-o a conectar a guerra dos Estados Unidos no Vietnã com as condições cada vez mais deterioradas das cidades estadunidenses – e, ainda mais importante, levou-o a buscar táticas mais efetivas para confrontar a ameaça legal de segregação no Norte e as crises concomitantes: as condições das favelas, o desemprego e a violência policial.

Dentro desse contexto, King começou a articular publicamente uma análise anticapitalista dos Estados Unidos, o que o colocou em sintonia com as críticas crescentes dirigidas pela esquerda revolucionária global contra as economias baseadas no livre mercado. Apesar da “abundância” dos Estados Unidos, o país estava afundado na pobreza e envolvido numa guerra sem fim. King habilidosamente derrubou a barreira que os establishments políticos e econômicos utilizavam para separar as políticas domésticas das políticas internacionais. Ele desmascarou a mentira central da administração de Johnson[2], de que poderiam entregar ‘armas e manteiga’[3], e demonstrou como a Guerra do Vietnã tornou impossível a satisfação da profunda necessidade que existia no front interno. Além disso, qualquer sociedade investida na função de eviscerar o povo vietnamita não poderia ser uma sociedade realmente comprometida com o desenvolvimento do potencial humano de seu próprio povo.

King compreendeu a necessidade de recrutar forças ainda maiores para o movimento para conquistar uma transformação social nos Estados Unidos. No fim de sua vida, reconheceu o poder coercitivo de outras formas de desobediência. Ao planejar uma “Marcha do Povo Pobre” em Washington, encorajou protestos extralegais focados não na anulação de leis injustas, mas em demandas políticas e econômicas que representavam os interesses da maioria. Em Memphis, durante a greve dos trabalhadores do saneamento de 1968, ele conclamou uma greve geral capaz de parar toda a cidade.

Numa história publicada uma semana antes de seu assassinato, King declarou a José Yglesias, no New York Times, que “em certo sentido, você pode dizer que estamos engajados na luta de classes”. Ele afirma, na entrevista, que o movimento dos direitos civis não havia custado nenhum centavo, mas o movimento para desmantelar a pobreza e a desigualdade em todo o país seria “uma luta longa e difícil, porque nosso programa demanda uma redistribuição do poder econômico”. Mesmo reconhecendo a necessidade de uma luta multirracial mais ampla para uma “revolução radical de valores” bem-sucedida, King ainda entendia a dialética que conectava o movimento negro a um ajuste de contas ainda mais amplo nos Estados Unidos.

Ele foi derrubado antes de poder vislumbrar a realização de sua nova estratégia em Memphis ou em Washington, e, passados 50 anos da primeira vez em que King evocou as “falhas inter-relacionadas” da sociedade estadunidense, estas apenas se intensificaram. De fato, as condições que justificam a luta de classes pioraram, à medida que a riqueza na sociedade americana continuou se acumulando no topo. Ainda assim, a habilidade de King em dar um nome ao sofrimento humano elementar que é produzido por nosso sistema de lucros, demonstrando simultaneamente a centralidade do movimento negro para desenredar sua lógica interna e externa, continua sendo um poderoso instrumento político. Este aniversário oferece novas oportunidades de envolvimento com o pensamento político de King, inclusive seu anticapitalismo e seus repetidos chamados para uma luta política mais ampla e mais profunda.

Extraído com permissão do livro Fifty Years Since MLK, editado por Brandon Terry, ainda não publicado.

Keeanga-Yamahtta Taylor é professor assistente em Estudos Afro-americanos em Princeton e autor de "Do #BlackLivesMatter à Libertação Negra".

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