29 de janeiro de 2018

A democracia é a erosão da norma

Às vezes você tem que quebrar as regras para criar um sistema mais democrático.

Corey Robin


A líder da minoria da Câmara, Nancy Pelosi, fala com repórteres enquanto ela faz o caminho para o escritório do líder da minoria do Senado, Chuck Schumer, no Capitólio dos EUA, 19 de janeiro de 2018. Aaron P. Bernstein / Getty Images

Tradução / Há duas ou três semanas atrás, tive uma intuição, um vislumbre de um pensamento que continuou voltando para mim desde então: o discurso da erosão da norma não é realmente sobre Trump. Nem é sobre o autoritarismo. Do que realmente se trata é o "extremismo", aquele velho cavalo de perseguição do liberalismo da Guerra Fria. E enquanto esse discurso da erosão da norma não fará muito para limitar Trump e o GOP, seu verdadeiro contributo será marcar os limites externos da política da esquerda, apenas num momento em que estamos vendo o surgimento de uma esquerda que parece estar disposta para empurrar esses limites. Esse foi o meu pensamento.

E agora aparece no New York Times essa coluna assinada por Steven Levitsky e Daniel Zilblatt, dois dos principais especialistas acadêmicos em 'desgaste das instituições'. Ninguém encontrará naquela coluna a palavra autoritarismo, embora haja uma rápida referência aos "impulsos autocráticos de Trump". O que mais se encontra lá, isso sim, é grave preocupação com a tal de "disfunção" e com a tal de "crise".

O que lá se vê é o seguinte:

Os Democratas estão começando a responder na mesma moeda. A recente ação de bloquear as votações, o que levou ao trancamento do governo, copiou a ação do manual de Gingrich. E se reconquistarem a maioria do Senado em 2018, já se fala de poderem negar ao presidente Trump a oportunidade de nomear juiz para a Suprema Corte. Essa espiral é perigosa.

Agora imaginem – me acompanhem –, que estamos em 2020, Sanders é eleito com Partido Democrata de certo modo radicalizado no Congresso. Ou, se isso é demais para engolir, imaginem versão diferente da mesma hipótese (sem Sanders necessariamente, ou sem Democratas, mas com alguma esquerda eleitoral empoderada) em 2024. Ou um realinhamento do tipo que os EUA já tiveram em 1932. Realinhamentos sempre envolvem algum tipo de contestar normas; realinhamentos mudam normas; realinhamentos atropelam normas. E todos esses conselhos contra o desgaste das normas e a polarização – que muita gente na mídia e na academia está hoje invocando contra Trump e os Republicanos – correrão então contra a esquerda.

E como não o fariam? Quando você fixa "normas" como seu padrão, sem avaliar a específica valência democrática das normas em cada instância; e os projetos aos quais estão conectadas, como se poderá saber se uma norma contribui para a democracia, em sentido substantivo ou procedimental, ou se as trai e afasta-se da democracia? Como avaliar se o desgaste de uma norma ou instituição é bom ou mau, democrático ou antidemocrático?

Levitsky e Zilblatt mencionam duas normas: tolerância mútua e mútua paciência no exercício do poder. Às vezes a paciência serve à causa da democracia; às vezes, não. Mas à luz do que dizem os autores, uma falta de paciência sempre traria problemas para a democracia.

Considerem esse trecho revelador, daquela coluna:

Poderia acontecer entre nós? Já aconteceu. Nos anos 1850, a polarização na discussão sobre a escravatura minaram as normas democráticas nos EUA. Democratas sulistas viam como ameaça existencial o antiescravismo do emergente Partido Republicano. Atacaram os Republicanos como "traidores da Constituição" e juraram "jamais permitir que esse governo federal seja entregue às mãos traidoras do Partido Republicano pró-negros."

Os autores querem apresentar os anos 1850 como um momento que "minou as normas democráticas dos EUA," sugerindo fortemente que antes dos 1850, haveria gozo robusto de muitas normas democráticas nos EUA. Muitos de nós argumentaríamos que, quando uma banda do povo escraviza outra banda, negando ao outro lado a própria humanidade, além do voto, não há vigente qualquer norma realmente democrática. (Para nem falar que metade da população dos EUA, branca e preta, sequer tinha direito de votar.) E, embora tivesse sido maravilhoso se os sulistas proprietários de escravos tivessem concordado com sair tranquilamente do palco da história, praticamente todos sabemos que nunca foi o caso.  Fora do sul, escreveu C. Vann Woodward, o fim da escravidão foi "a liquidação de um investimento". No sul, foi "a morte de uma sociedade". Sociedade escravista agonizante não é contexto em que os protagonistas deixem-se apagar sem luta, no silêncio da noite.

Se fosse para eliminar a escravidão, alguém teria de declarar o problema e explicitar a pergunta. Foi o que fizeram os abolicionistas (e o Partido Republicano). Esses polarizaram a sociedade. (Para conhecer um exemplo de como polarizaram, sim, o próprio discurso, leia aqui.) E o resultado – por terrível que tenha sido a Guerra Civil (e que ninguém se engane; foi mais terrível do que você possa imaginar) — não foi a destruição da democracia e de normas democráticas, mas a criação de mais e melhor democracia – um "renascimento da liberdade", como Lincoln descreveu o momento —, liberdade que, na sequência foi logo destruída depois da Reconstrução, a qual também foi política de destruir normas e instituições.

Como Jim Oakes mostrou, os Democratas sulistas norte-americanos acertaram, ao muito temer o Partido Republicano e ao ver naquele partido uma ameaça existencial. Os Republicanos realmente queriam destruir a escravatura, queriam quebrar a espinha dorsal da escravatura, para detonar de vez um modo de vida que viam como ultrapassado. Queriam fazê-lo pacificamente, mas também compreendiam que, se viesse a guerra, seria possível fazer o que queriam fazer, embora pela violência; oportunidade que os Republicanos sulistas não deixariam escapar. Os Republicanos norte-americanos abolicionistas eram os mais ativos detonadores de normas naquele momento: não queriam apenas limitar a expansão da escravatura para os territórios (e não se sabe com certeza se limitar a expansão da escravidão foi realmente a norma nos EUA de antes da Guerra Civil; de fato, pode-se dizer que a discussão dessa questão foi muito mais a norma, do que qualquer acordo para conciliar os lados; sobre isso, ver o livro de Mark Graber, Dred Scott); queriam limitar aquela expansão, como prelúdio para destruir a instituição em todo o território. Freedom national.

Levitsky e Zilblatt sabem que o desgaste da norma e a polarização estiveram sempre ativados durante os anos 1850. Mas querem fazer-crer que toda a culpa pelo desgaste da norma e pela polarização estaria com os proprietários de escravos. Assim fazendo, a dupla pode tomar posição contra o desgaste da norma, sem deixar ver que, com isso, apoiam os escravistas; e conseguem jogar o pecado da polarização integralmente também sobre os Sulistas [Democratas] escravistas; assim conseguem falar contra o desgaste da norma e a polarização, ao mesmo tempo em que desgastam a norma e polarizam a discussão. É politicamente compreensível, em limitado sentido; mas historicamente Levitsky e Zilblatt erram grosseiramente o alvo.
E talvez, no final, não tão politicamente compreensível. Pois sugere - não, diz - se os sulistas simplesmente demonstrassem alguma tolerância em relação aos republicanos, as normas democráticas teriam persistido. Sobre a questão da persistência da escravidão, Levitsky e Zilblatt não têm nada a dizer.

(Anoto que Zilblatt e eu tivemos discussão interessante sobre essas questões, pelo Twitter.)

Momento semelhante, talvez menos vicioso, aparece também quando tratam da Constituição:

Ninguém deve dar a democracia por garantida. Nada há de intrínseco na cultura dos EUA que nos imunize contra ataques à democracia. Nem nossa Constituição tão brilhantemente concebida pode, só ela, garantir a sobrevivência da democracia. Se pudesse, a república não teria mergulhado numa guerra civil, 74 anos depois de nascer.

Um dos últimos livros que Robert Dahl escreveu foi How Democratic is the American Constitution? [Quão democrática é a Constituição dos EUA?] Sua resposta: não muito. O discurso contra o desgaste da norma reescreve os EUA de antes da Guerra Civil, quando metade do país era sociedade escravista de proprietários de escravos, como se os EUA 50% escravistas fossem sociedade democrática, com normas escravistas que merecessem ser protegidas contra o desgaste e as forças de polarização. Assim também o mesmo discurso (apresenta a Constituição como texto "brilhantemente concebido" embora não muito brilhante no quesito "garantir a sobrevivência da democracia".

O que a coluna evidencia é que o real problema e objeto de preocupação que se identifica no discurso contra desgaste de normas não é algum autoritarismo: é o que lá se chama de extremismo. Essa abordagem apaga a evidência de que há extremismo de democratização (como o dos abolicionistas) e há extremismo de desdemocratização (ou reacionário) (como o dos proprietários de escravos). Os Republicanos que hoje paralisam o governo nos EUA para impedir que o Estado dê ao povo cobertura integral no atendimento à saúde preservam, contra qualquer desgaste de democratização, as mesmas normas antidemocráticas que os Democratas também preservam quando paralisam o governo para permitir que imigrantes vivam nos EUA. Tudo isso implica dizer que os dois lados são igualmente conservadores de uma ordem que não facilita a democratização. Nem um lado nem o outro cogitam de avançar na democratização da sociedade, produzindo cada vez mais e cada vez melhor democracia. Os dois lados estão satisfeitos com a democracia que há...

Para arrochar um pouco mais o parafuso. Consideremos um dos casos que Levitsky e Zilblatt mencionam — o recente fechamento do governo Trump nos EUA. Um dos argumentos mais fortes a favor da ideia de que Trump chefia governo autoritário é o modo como trata os imigrantes. Os Democratas trancam o governo, para forçar alguma espécie de acordo que permitiria que centenas de milhares de Dreamers [Sonhadores] permaneçam no país onde já viveram a maior parte da vida. A questão a decidir é: assumindo-se que o fechamento do governo leve necessariamente àquele resultado, o fechamento faz a democracia avançar? Ou não passa de lastimável desgaste da norma, com aumento não desejável da polarização? Pode-se dizer que é as duas coisas, e de modo tal que mostra que o avanço da democracia e o desgaste da norma estão ligados entre si: sem a polarização e o desgaste da norma, a democracia não avança. Parece que o desgaste da norma, a polarização e o aprofundamento da democracia não são antitéticos: são aliados.

Se o mais alto valor para alguém é preservar as instituições e evitar a "disfuncionalidade", o discurso contra qualquer desgaste na norma faz sentido. Mas nem tanto, se o mais alto valor for a democracia. Às vezes, só haverá democracia se as instituições e as normas forem radicalmente desgastadas, estraçalhadas.

Reconheço perfeitamente que o diabo mora nesse "às vezes". Há desgastes que minam a democracia, outros a aprimoram. Mas essa é a discussão realmente necessária. Essa é a discussão que temos de fazer! Ninguém precisa de toxina venenosa de espectro tão amplo que paralise todo e qualquer desgaste de toda e qualquer norma: como uma toxina que paralise todas as oposições — e que nos porá num quadro de política de centro e morta, não de política democrática. Precisamos, sim, de discussão bem informada no campo da normatividade, que ajude a sociedade a ver com mais precisão as falhas da democracia, para poder avançar.

Por enquanto, simplesmente deixarei-nos com este pensamento: a democracia é um projeto permanente de erosão normativa, destruindo sempre as normas de hierarquia e dominação e as formas políticas que as ajudam e encorajam.

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