22 de fevereiro de 2018

De Zuma a Ramaphosa

Jacob Zuma não será lembrado como um herói da libertação, mas como um líder corrupto que destruiu a esquerda sul-africana.

Sean Jacobs e Benjamin Fogel

Jacobin

Jacob Zuma comparece a um almoço para líderes mundiais na Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de setembro de 2016. Peter Foley / Getty Images

Tradução / No último Dia dos Namorados na África do Sul, em 14 de fevereiro, dia de São Valentim, Jacob Zuma anunciou ao mundo que renunciaria à presidência de seu país. No começo daquele dia, Zuma fez um discurso surreal e desconexo escamoteado de “entrevista”, no qual ele insistia que não tinha feito nada de errado em seus nove anos no governo. Se o objetivo de Zuma era projetar um ar triunfante, depois daquilo ele terminou numa situação digna de pena, isolado e triste. Estava muito longe de sua reputação de estrategista maquiavélico que, repetidamente, desafiou tanto a opinião pública quanto o seu próprio partido.

Zuma sobreviveu a oito moções de desconfiança no parlamento, inclusive uma do ano passado, na qual alguns membros de seu próprio partido, o Congresso Nacional Africano (CNA), romperam com a tradição e apoiaram a Oposição na votação sigilosa. No entanto, este ano ele renunciou para não se submeter à humilhação do dia seguinte no parlamento, quando os deputados do CNA planejavam se juntar à oposição na votação para depô-lo.

Alguns, desconfiados dos muitos obituários prematuros escritos para Zuma durante toda a sua carreira política, estavam preocupados de que ele poderia dar um derradeiro golpe. Em sua entrevista no Dia dos Namorados, ele fez vagas ameaças de violência e, dias antes, grupos sombrios como Hands of Zuma e Black First, Land First — o último envolvido em trollagem profissional em nome de Zuma — realizaram marchas declarando-o como uma espécie de figura radical, que só estava sendo perseguido porque liderava uma luta vagamente definida por algo chamado “Transformação Econômica Radical” contra o “Capital Monopolista Branco” e o neoliberalismo.

Mas na manhã de quinta-feira, a África do Sul ganhou um novo presidente, Cyril Ramaphosa, que naquela noite fez seu primeiro discurso sobre o Estado da Nação. A recepção positiva que Ramaphosa recebeu — mesmo pela Economic Freedom Front (EFF) geralmente combativa, que frequentemente barrava as visitas de Zuma ao parlamento — evidenciava que poucos sul-africanos lamentariam a partida de Zuma. Durante seus quase dois mandatos, Zuma conseguiu realizar um feito bastante notável: unir os sul africanos em desaprovação compartilhada. Uma pesquisa realizada há alguns meses registrou seu índice de aprovação em 18%.

Zuma

Os quase dez anos de Zuma no poder serão lembrados como a pior presidência da ordem pós-Apartheid. Nelson Mandela, primeiro presidente democrático da África do Sul, cimentou uma reputação como o grande unificador — um patriarca nacional. Como consequência, até mesmo os críticos mais severos de Mandela minimizam os efeitos negativos de suas políticas econômicas, ou mesmo do fracasso de seu governo em lidar com as heranças malditas do passado racista da África do Sul.

O sucessor de Mandela, Thabo Mbeki, foi amado pelas elites empresariais e fez nascer a classe média negra da África do Sul (inclusive os estudantes que tomaram frente do #FeesMustFall e #RhodesMustFall em 2015 e 2016). O governo de Mbeki, no entanto, registrou recordes de número de protestos de rua contra suas privatizações, despejos e, principalmente, a sua imperdoável resposta negacionista à crise sul-africana de HIV/AIDS.

Zuma era uma figura errática desde o início; CNA, sindicatos e líderes comunistas como Ronnie Kasrils (que serviu como ministro nos governo de Mandela, Mbeki e Zuma), há muito questionaram suas qualidades de liderança — e Zuma tinha sido implicado em corrupção generalizada, tendo sobrevivido a um julgamento de estupro (ele foi acusado de estuprar a filha de seu ex-companheiro de prisão na prisão de Robben Island). Em 2005, Mbeki demitiu Zuma, o então vice-presidente, por acusações de corrupção. As forças anti-Mbeki, incluindo a maioria da esquerda, se juntaram em torno de Zuma, alegando que ele foi vítima de uma conspiração política. O que ajudou Zuma foi sua postura humilde, algo que faltava a Mbeki. Enquanto os movimentos de aluguel queimavam as efígies da mulher que o acusava de estupro, e cantavam “queime a cadela”, a Esquerda – incluindo o então secretário geral da COSATU, Zwelinzima Vavi — declarou que Zuma iria reverter o neoliberalismo na África do Sul.

Três anos depois, Mbeki foi obrigado a se retirar da presidência do país e em 2009, com a força de um CNA fortalecido nas eleições, Zuma foi eleito presidente da África do Sul. Se os pobres esperavam uma pausa da recessão global ou o fim dos efeitos negativos das políticas neoliberais, o que eles obtiveram foi o aumento da repressão e da violência estatal, a fisiologização de instituições-chave do Estado (para resolver disputas políticas dentro do CNA), incompetência generalizada (por exemplo, caos temporário na prestação de assistência social), e um largo histórico de politicagem.

Os sul-africanos passaram a falar novamente sobre a “aparelhamento do Estado” — uma relação entre o Estado e os interesses externos (geralmente os capitalistas), na qual os interesses privados assumem o controle de elementos-chave do Estado e são capazes de influenciar, orientar e moldar diretamente a política. O aparelhamento do Estado remonta às eras coloniais e do Apartheid — quando o regime branco e os negócios dos brancos conluiavam para facilitar a super-exploração da maioria negra — mas, na sua versão pós-Apartheid, os Guptas, um clã indiano oligárquico próximo a Zuma, puderam nomear e demitir os ministros, orientaram a política de apropriação do Estado e, até mesmo, alteram a política oficial de ação afirmativa para incluí-los como sul-africanos negros naturalizados.

No entanto, talvez o que Zuma seja lembrado para a maioria é o massacre de Marikana. Em agosto de 2012, a polícia disparou, em plena luz do dia, contra trinta e quatro mineiros naquela cidade do noroeste. O governo do CNA e seus aliados no COSATU (Congress of South African Trade Unions) e o SACP (South African Communist Party) alegaram que os trabalhadores assassinados eram “criminosos” que, auxiliados por poções, induziram a polícia num surto suicida e, portanto, mereciam morrer. Mais tarde, surgiram evidências de que os políticos do CNA (incluindo Ramaphosa) pressionaram a polícia a intervir na greve e que o massacre não foi um trágico acidente, mas um ato premeditado. Como membro do conselho da mina, Ramaphosa enviou um e-mail dizendo que a greve era “criminosa e devidamente caracterizada como tal”. Sua conclusão: “é necessário que haja uma ação concomitante para resolver esta situação”.

Zuma mais tarde estabeleceu uma comissão pública de inquérito sobre Marikana, mas ela terminou como um mero espantalho. Ninguém foi acusado, e nenhum de seus ministros — nem mesmo o comissário da polícia — renunciou. Ninguém pagou qualquer preço político pelo massacre. Isso era de se esperar: a era pós-Apartheid tem amplamente significado violência, exclusão e degradação para os pobres negros da África do Sul.

O CNA assumiu o Estado sul-africano, um país onde as oportunidades econômicas até então estavam fechadas para sul-africanos negros, o que o fez não ser apenas mais um partido político, mas uma maneira de ganhar um salário decente. A concorrência para o cargo político no CNA, especialmente no nível local, se tornou cada vez mais a razão e o fim de tudo, porque significava o acesso a lucrativos contratos estaduais e à acumulação de riqueza. Chegar ao topo do partido logo virou uma ponte para ter acesso ao Estado através do CNA para quem desejava se enriquecer rapidamente.

Isso também criou uma nova classe política que atua como os senhores da guerra das antigas. A violência se tornou inseparável da política, especialmente na província natal de Zuma, em KwaZulu-Natal. Entre janeiro de 2016 e meados de setembro de 2017, pelo menos 35 pessoas foram assassinadas em violência política relacionadas a rivalidades do CNA. O próprio CNA contabilizou 80 representantes políticos seus mortos entre 2011 e 2017. Em um albergue masculino em Durban, a maior cidade da província, 89 pessoas foram assassinadas entre março de 2014 e julho de 2017 em atos de violência política. Quase nenhuma prisão foi feita.

A partida de Zuma indica o fim do saque total do Estado da África do Sul. Não é por acaso que, no mesmo dia em que Zuma renunciou, a polícia invadiu a casa dos Guptas em um rico subúrbio de Joanesburgo. A eleição de Ramaphosa, esperamos, significa o fim da corrupção parasitária que deixou muitas empresas estatais endividadas e pouco funcionais.

O regime de Zuma era um mar de instabilidade. Ele, com enorme frequência, nomeou e depois demitiu ministros (se calcula a média de um ministro das Finanças por ano), mas também manteve ministros bisonhos. Zuma governou de uma forma altamente personalista, falando sobre o seu reino como se fosse um observador externo e, ao mesmo tempo, usando seu poder para afastar ou aparelhar qualquer parte do Estado que pudesse ameaçar seus interesses — ou os de sua vasta família ou dos Guptas. Todos eram dispensáveis para Zuma; seus aliados de primeira hora em sua jornada para a presidência — como Blade Nzimande, ex-secretário geral do Partido Comunista e, crucialmente, Julius Malema, antigo líder da juventude do CNA — também se tornariam os maiores inimigos de Zuma.

Ao final de sua presidência, pouquíssimos sul-africanos se importaram que Zuma era um herói da libertação, que tinha passado uma década na prisão de Robben Island, ou que ele foi a chave para acabar com a violência entre o CNA e um grupo nacionalista zulu, que agia como uma cópia do regime do Apartheid, no final da década de 1980 e início dos anos 90. Zuma será lembrado como alguém que derrubou um movimento de libertação de 105 anos e quebrou a esquerda sul-africana.

Zuma foi hábil em tomar para si a crítica que a esquerda sempre fez sobre as desigualdades raciais e sociais da África do Sul, tudo isso para avançar seu próprio projeto político parasitário, subindo ao poder através da esquerda. Na maior parte da presidência de Zuma, a esquerda defendeu toda sua indignação. Em vários pontos, eles declararam que Zuma iniciaria um “momento Lula” em seu segundo mandato ou que todas as críticas de Zuma eram o produto de conspirações imperialistas contra os BRICS. Zuma era o líder de esquerda que o país precisava. Em vez disso, ele mostrou os becos sem saída de uma política que procura, desesperadamente, um líder messiânico para libertar o país de seu mal-estar.

Ramaphosa

Na conferência nacional do CNA de dezembro passado, Zuma tentou impedir que Ramaphosa, então presidente do partido, o sucedesse. Zuma favoreceu sua ex-esposa, Nkosazana Dlamini-Zuma, ex-ministra das Relações Exteriores e, mais recentemente, chefe da União Africana. Embora a facção de Zuma tenha terminado com metade dos seis melhores cargos do partido, ele não conseguiu impedir a eleição de Ramaphosa como presidente da CNA. Quando o resultado foi anunciado, Zuma aparentava choque; a vida parecia se esvair em seu rosto cansado.

O CNA ficou com um enigma. As eleições estavam programadas apenas para meados de 2019, e Zuma estava sangrando votos (nas eleições locais de 2011, em grande parte por causa do desempenho de Zuma, o CNA perdeu as prefeituras de Johanesburgo, Pretória e Port Elizabeth para a liberal Aliança Democrática). Para apressar sua partida, seus correligionários usaram um velho truque: quando Zuma arquitetou um golpe contra Mbeki em 2007, seus defensores alegaram que ter uma pessoa como presidente do CNA e outra como presidente do país resultou em “dois centros de poder”. Forçaram, assim, Mbeki a se demitir. Zuma estava agora na posição de Mbeki. Mas ao contrário de Mbeki, que partiu em silêncio, Zuma parecia determinado a terminar o seu mandato. O problema de Zuma era que Ramaphosa estava jogando contra ele, transformando até mesmo seus aliados em inimigos e, ainda, os os usando para condená-lo publicamente.

A jogada funcionou. Ramaphosa é agora presidente. Ele está sendo elogiado em opiniões editoriais, nas mídias sociais e na propaganda do CNA como o anti-Zuma. Ele é educado, articulado e suave, capaz de se deslocar tranquilamente dos gabinetes para eventos de massa. Ele é um político competente e estável, capaz de apelar aos mesmos eleitores de classe média que abandonaram, em larga escala, o CNA,  por causa de Zuma. Ele é caloroso e reconfortante, um excelente orador, um conciliador.

Ele está se saindo melhor do que por encomenda

Uma certa euforia acompanhou o rápido juramento de Ramaphosa como presidente do país. Mesmo aqueles nos movimentos sociais e organizações de direitos humanos combateram Zuma, e o governo do CNA, em temas como educação, habitação e saúde estão dispostos a lhe dar uma chance ou aplaudir abertamente sua presidência. O clima parece quase espelhar a esfuziante presunção da Nação do Arco-Íris de meados até o final dos anos 90, com referências ao fato de que estamos todos juntos nisso.

Apesar de Ramaphosa ser certamente preferível a Zuma, e se ele cumprir suas metas declaradas de estabilizar a economia, purgar o Estado de seus elementos parasitas e, por fim, restaurar as instituições falidas à prontidão operacional, isso será para um benefício para toda a África do Sul, o que não significa que a esquerda deve lhe dar um salvo-conduto.

Ramaphosa já liderou o então maior sindicato da África do Sul, o Sindicato Nacional de Mineiros, durante o período mais violento e politicamente caótico da história do país, enfrentando um governo racista e assassino. Mas ele trocou todo o capital político ganho da luta dos trabalhadores pelo capital de verdade — Ramaphosa agora tem uma fortuna pessoal estimada em mais de 450 milhões de dólares.

Seus defensores contam a velha história de que, como ele já é rico, ele não pode ser comprado, no entanto os exemplos de Donald Trump, Silvio Berlusconi, Mauricio Macri e muitos outros mostram que esse tipo de lógica é fantasia. Mesmo sua ascensão à imensa riqueza não foi tanto devido às suas habilidades como homem de negócios, mas sim porque o CNA o “implantou” no setor privado e, desse modo, os capitães brancos da indústria da África do Sul decidiram que ele era um homem com quem poderiam fazer negócios. Como resultado, ele foi catapultado para as diretorias de megaempresas como o McDonald’s e a Coca-Cola. Embora Ramaphosa não possa introduzir o mesmo tipo de abordagem parasitária à governança como Zuma, é improvável que ele prove ser amigo dos trabalhadores e dos pobres.

A grande bandeira de Ramaphosa é sua agenda anticorrupção. Muitos sul-africanos, revoltados com a corrupção aberta de Zuma, e com o cabide de imprestáveis que ele trouxe para o governo, foram influenciados pelas promessas anticorrupção de Ramaphosa. Em seu discurso sobre o Estado da Nação, Ramaphosa prometeu demitir os lacaios corruptos e incompetentes de Zuma e estabelecer comissões investigando o aparelhamento do Estado.

Os sul-africanos também estão esperando que ele melhore a economia. Em seu discurso, Ramaphosa apresentou medidas neoliberais recorrentes, como zonas econômicas especiais e parcerias público-privadas. Isso pode ser tudo “para restaurar a confiança e impedir um rebaixamento da nota de investimento” pelas agências de classificação, fato comum sob Zuma. Mas ele também está ciente de sua base. Ramaphosa prometeu “expropriar a terra sem compensação” para a agricultura, impor um salário mínimo nacional e introduzir educação superior gratuita para aqueles cujas famílias ganham menos de 350 rands mil por ano.

Podemos esperar que Ramaphosa seja visto como um parceiro confiável pelo capital global, e haverá algum aumento no investimento estrangeiro direto — mas não o suficiente para criar o tipo de empregos que os sul-africanos precisam desesperadamente. Apesar de toda a sua suavidade, nem Ramaphosa nem nenhum dos partidos da oposição têm uma visão econômica que possa proporcionar taxas de crescimento saudáveis, reduzir o desemprego e combater a terrível desigualdade estrutural.

O que Ramaphosa representa em um nível é um retorno ao modelo clássico de pacto social do CNA, apresentando uma visão coletiva que favorece o capitalismo desenvolvimentista, a aspiração coletiva, a harmonia social – mas pelas e para as elites, às custas dos trabalhadores. De fato, enquanto COSATU e o Partido Comunista apoiaram a campanha de Ramaphosa, Zuma esvaziou essas, outrora orgulhosas, organizações e o novo presidente, provavelmente, será capaz de aprovar políticas pró-negócios sem enfrentar qualquer oposição real da Esquerda.

Talvez os maiores perdedores na ascensão ao poder de Ramaphosa sejam os partidos de oposição da África do Sul, tanto a Aliança Democrática, de centro-direita, quanto, em menor grau, a EFF, nacional-populista. No últimos anos, ambos centraram sua estratégia política na remoção de Zuma e na erradicação da corrupção. Com Zuma fora do poder e um operador astuto como Ramaphosa empossado, a oposição terá que reconfigurar radicalmente sua estratégia política.

A Aliança Democrática não oferece uma visão política radicalmente diferente do CNA; Grande parte de seu apelo se baseou em sua suposta reivindicação de serem melhores administradores do Estado e administradores mais competentes das mesmas políticas que o CNA. Mas com o fracasso do partido opositor na histórica crise hídrica da Cidade do Cabo, combinada com as disputas generalizadas e o discurso superficial e não combativo do líder nacional Mmusi Maimane, o AD perderá a maioria de seus novos eleitores para o novo CNA de Ramaphosa. A EFF pode estar mais bem posicionada para manter sua posição, já que eles realmente têm uma plataforma política dramaticamente diferente do CNA — e estão preparados para trazer o passado sombrio do novo presidente (em particular, Marikana.) Fora do CNA, a EFF talvez, junto com a mídia do país, merecem a maior parte do crédito para influenciar a opinião pública contra Zuma.

Uma narrativa comum é que “este é o começo da renovação do CNA”. Que o CNA está reformado. Que os Guptas estão sendo presos e que os aliados de Zuma no CNA parecem nervosos e desorientados (e aparentemente sob ameaça de prisão). Mas esta é uma narrativa antiga, que simplesmente faz o CNA ganhar tempo e permite que ele ganhe a próxima eleição. Enquanto isso, o CNA continuará a dar desculpas e promessas. A última década comprometeu o CNA internamente, e o partido se encontra ainda na mesma bagunça que estava sob Zuma. Muitos dos comparsas e ajudantes de Zuma podem ser encontrados dentro do partido, não oferecendo nada em termos de introspecção ou contrição. E o CNA não oferece uma nova visão para o país.

Parte do apelo da narrativa de renovação é o estado patético dos partidos de oposição da África do Sul e o rápido declínio da esquerda. Sem uma oposição crível no parlamento ou nas ruas, sob a forma de um movimento sindical forte e independente, o CNA, mais uma vez, parece a muitos como o único jogo na cidade, e Ramaphosa, o principal jogador.

E as perspectivas políticas de Ramaphosa parecem cor-de-rosa. Ele provavelmente vencerá a eleição do ano que vem e recuperará muitos dos votos perdidos por Zuma. Mas os problemas econômicos e sociais da África do Sul serão um desafio mais difícil.

A nova classe trabalhadora

Sarah Jaffe


Joe Raedle/Getty

Não são apenas os homens que trabalham em fábricas no Cinturão de Ferrugem - e nunca realmente foi.

Mais de um ano após a presidência de Donald Trump, os comentaristas políticos continuam, apesar de todas as evidências em contrário, a descrever sua base política como a "classe trabalhadora branca". Os artigos sobre seus apoiadores parecem quase inteiramente dedicados a americanos médios com bonés de beisebol em cidades industriais em declínio que acreditavam nas promessas de campanha do presidente de trazer de volta o carvão, ou aço, ou manter os empregos na fábrica da Carrier no país.

Existem problemas com esta imagem do trabalhador de fábrica dos EUA como ele - e geralmente é ele - é retratado. Primeiro, nas fábricas americanas, a força de trabalho é muito mais diversificada do que a narrativa do Cinturão de Ferrugem teria. A fábrica da Carrier, local do negócio triunfante de Trump que, de fato, resultou na demissão de centenas de trabalhadores, tinha pelo menos tantos trabalhadores afro-americanos como brancos, e havia muitas mulheres trabalhando lá também. Mais importante, os trabalhadores industriais que supostamente colocaram Trump no cargo (uma suposição duvidosa) nunca constituíram a totalidade da classe trabalhadora ou mesmo sua maioria. Hoje em dia, apenas cerca de 11% da classe trabalhadora são homens brancos em empregos industriais.

Embora os “criadores de narrativas” possam não ter percebido, a classe trabalhadora mudou. Aqueles que costumavam ocupar suas periferias - governantas de hotéis, balconistas e auxiliares de cuidados domésticos - são agora a maioria. Hoje, a assistência médica domiciliar é o setor de crescimento mais rápido nos Estados Unidos, com projeção de adicionar mais de um milhão de novos empregos à economia nos próximos dez anos. Os empregos no varejo, de acordo com o Bureau of Labor Statistics, atualmente representam 10% de todos os empregos.

Esses empregos sempre foram importantes, mas como a automação e a terceirização dizimaram a manufatura, a importância relativa do trabalho de serviços aumentou. O emprego na indústria atingiu o pico em 1953, com cerca de 30% dos empregos; agora é a indústria de serviços que domina. Uma era anterior de pensamento político dispensou esses trabalhadores politicamente, e esse pensamento ainda é válido em muitos setores: na decisão Harris v. Quinn de 2014 da Suprema Corte, o juiz Samuel Alito considerou os trabalhadores de cuidados domiciliares apenas funcionários "parciais", uma categoria separada de trabalhadores completamente.

Obviamente, os prestadores de serviço estão em sindicatos há muitos anos. A presença deles, de fato, alimentou o pouco de crescimento que os sindicatos têm visto nos últimos tempos. Mas os trabalhadores também encontraram maneiras eficazes de perseguir seus interesses fora do antigo modelo sindical. Em um exemplo revelador, os trabalhadores da Hardee's e Carl's Jr. conseguiram forçar Andy Puzder, o impopular ex-CEO das duas redes, que enfrentou acusações de assédio e abuso sexual, contra sua empresa e também contra ele pessoalmente, a retirar sua indicação para Secretário do Trabalho.

Essa mudança na composição da força de trabalho tem o potencial de redefinir as alianças tradicionais nos Estados Unidos. Parcerias não convencionais já se formaram em diferentes grupos: trabalhadores do Walmart, trabalhadores em restaurantes e trabalhadores domésticos se organizaram e se uniram a grupos e movimentos comunitários como o Occupy Wall Street e o Movimento pelas Vidas Negras. Essas alianças também levam em consideração a importância da programação imprevisível, do isolamento social, das preocupações com a segurança e das expectativas de gênero e racialidade de quem é “naturalmente” inclinado a prestar serviços.

Um problema político contínuo para a classe trabalhadora é que continua difícil medi-la adequadamente. A maioria das estimativas baseia-se em dados falhos. Como Tamara Draut observou em seu livro Sleeping Giant, pesquisas políticas raramente capturam dados ocupacionais, e muitos pesquisadores ainda usam a educação como uma característica definidora de classe e um proxy para aumento de renda. Isso não faz mais sentido em um país no qual a renda média de professores adjuntos, que muitas vezes têm Ph.D., gira em torno de US $ 20.000 por ano, o mesmo que para um trabalhador de saúde domiciliar. Mas as pesquisas ainda precisam se ajustar - e os políticos ainda as ouvem.

Além dos dados falhos, a verdadeira questão é se algum dos dois partidos políticos dos EUA tem algum interesse em promover os objetivos e necessidades da classe trabalhadora como ela realmente existe. A personalidade política de Trump - ou pelo menos os aspectos dela não relacionados ao auto-engrandecimento, ganhos de dinheiro ou beligerância global - foi construída sobre a ideia de que ele poderia transformar o GOP, como o banido guru de Trump Steve Bannon colocou, em um “partido do trabalhador.” Mas os trabalhadores pelos quais ele pretendia falar - os brancos, homens - eram apenas uma fração de toda a classe trabalhadora e, embora seus problemas sejam reais, eles continuam a receber atenção desproporcional. Enquanto isso, tem havido algum movimento desde a eleição de um Partido Democrata puramente corporativo - defesa das leis de salário mínimo de US $ 15, licença médica paga e novo entusiasmo por planos de saúde de pagador único - mas agora, apesar de tudo, a classe trabalhadora e seu descontentamento ainda está em grande parte fora dos dois partidos que temos.

Para entender o eleitorado dos EUA em 2018 e além, é necessário um novo entendimento da classe trabalhadora como uma entidade mutante e reformadora com demandas políticas distintas - demandas que apresentem oportunidades que não têm nada a ver com a ansiedade econômica trumpiana ou nostalgia de uma mitologia econômica ultrapassada.

Sobre o autor

Sarah Jaffe é jornalista do Type Media Center, autora de Necessary Trouble: Americans in Revolt e do próximo Work Won not Love You Back - ambos da Bold Type Books.

19 de fevereiro de 2018

Prisões e guerra de classes: Uma entrevista com Ruth Wilson Gilmore

Nesta entrevista conduzida por Clément Petitjean, Ruth W. Gilmore oferece uma análise impressionante das mudanças no encarceramento nos Estados Unidos.


La prison est désormais une réalité massive pour les subalternes des métropoles occidentales. Dans cet entretien mené par Clément Petitjean, Ruth W. Gilmore propose une analyse saisissante des mutations de l’emprisonnement aux États-Unis. En s’appuyant sur les concepts de la géographie marxiste, elle montre que l’essor des établissements pénitenciers en Californie répond à la crise conjointe du capitalisme et de l’État social ; déconstruisant tous les amortisseurs sociaux de l’après-guerre, les politiques publiques ont fait de la prison l’unique institution de prise en charge et de gestion des populations excédentaires. Sans se contenter de dresser un tableau glaçant des rapports de classe tels qu’ils existent aujourd’hui, Gilmore donne à voir la fécondité et l’inventivité des luttes anticarcérales. Forte de son expérience militante, elle montre ce que veut concrètement dire l’abolitionnisme carcéral : une pratique de désobéissance, sur tous les fronts, capable d’enrayer la terrible industrie carcérale.

Clément Petitjean

Tradução / Em Califórnia Gulag [Golden Gulag], você analisa o crescimento do sistema prisional californiano, que você chama de “o maior na história do mundo”. Entre 1980 e 2007, você explica que o número de pessoas atrás das grades cresceu mais de 450%. Quais foram os diversos fatores que reunidos causaram a expansão desse sistema? Quais foram as diversas forças que construíram o complexo industrial-prisional na Califórnia e nos Estados Unidos?

RUTH WILSON GILMORE

Claro. Deixe-me dizer algumas coisas. Na verdade, eu encontrei essa descrição do maior projeto de construção prisional na história do mundo em um relatório que foi escrito por alguém que o estado da Califórnia contratou para analisar o sistema que estava em crescimento estável desde o final da década de 1980. Então, nem se trata de uma afirmação minha, é como eles mesmos descrevem o que estavam fazendo.

O que ocorreu é que o estado da Califórnia, que é, e foi, uma economia incrivelmente grande e diversificada, atravessou uma série de crises. E essas crises produziram todos os tipos de excedentes. Produziram-se excedentes de trabalhadores, que foram demitidos de certos tipos de ocupações, especialmente na manufatura, não exclusivamente, mas notavelmente. Produziram-se excedentes de terra. Pois o uso da terra, especialmente, mas não exclusivamente na agricultura, mudou com o tempo, com a consolidação da propriedade e o abandono de certos tipos de terra e do uso da terra. Também se produziram excedentes de capital financeiro – e esse é um dos pontos mais contestados que eu argumento à exaustão. Embora possa parecer, observando globalmente, que o conceito de capital financeiro excedente fosse absurdo no início da década de 1980, se observarmos localmente e percebermos como especialmente banqueiros de investimento que se especializaram em finança municipal (vendendo dívidas para os estados) estavam com dificuldades para refazerem os mercados, logo conseguimos perceber o excedente em mãos.

E, então, o excedente final, que é mais teórico, conjectural, é o excedente de capacidade estatal. Com isso quero dizer que as instituições e o alcance do estado da Califórnia haviam se desenvolvido por boa parte do século XX, mas especialmente desde o começo da Segunda Guerra Mundial. Com as capacidades fiscais e burocráticas, tornou-se incrivelmente complexo fazer certas coisas. Essas capacidades não foram inventadas do nada, elas surgiram da era progressista, na virada do século XX. No período pós-guerra, essas capacidades permitiram que a Califórnia fizesse certas coisas que mais ou menos garantiriam a capacidade do capital de espremer valor do trabalho e da terra. Essas capacidades permaneceram, independentemente de a demanda por elas não ter permanecido.

Portanto, o que eu argumento em meu livro é que o estado da Califórnia reconfigurou essas capacidades, e elas sedimentaram a habilidade para construir, equipar e administrar prisão atrás de prisão. Este não é o único uso que eles fizeram dessas capacidades, que já foram utilizadas para fornecer diversas formas de assistência social, mas foi um grande uso. E, então, o sistema prisional, que era uma pequena parte de toda a infraestrutura estatal, transformou-se no maior empregador no governo estadual. Então, o motivo de eu ter abordado o problema do modo que eu fiz foi porque eu sou uma boa marxista e eu queria analisar os fatores de produção, mas também para deixar bem claro – e isso tem relação com ser uma boa marxista – que esses fatores de encarceramento em massa, ou fatores de produção, não tinham que ser organizados da forma que foram. Eles poderiam ser outra coisa.

Portanto, eu começo com a premissa de que a expansão prisional não foi apenas uma resposta a uma coisa chamada crime, uma coisa alegadamente autoexplicativa, flutuante, que repentinamente emergiu como um pesadelo nas comunidades. E, de fato, para pensar sobre o crime e seu papel central no sistema carcerário californiano, eu estudei, como qualquer um teria, o que estava acontecendo com o crime no final da década de 1970 e início da década de 1980. E não surpreendentemente, o crime estava caindo. Todo mundo sabia. Estava na primeira página de todos os jornais que as pessoas liam no início da década de 1980, estava na TV, estava no rádio. Então, se o crime não causou a expansão prisional, o que o fez?

Clément Petitjean

Então, o que estava acontecendo mais especificamente na Califórnia? Como esses excedentes se reuniram para criar esse sistema prisional massivo?

RWG

Bem, eles se reuniram politicamente. De diversas formas. Durante a década de 1970, a economia estadunidense inteira havia atravessado uma recessão muito longa. Foi no mesmo período em que os EUA perderam a Guerra do Vietnã, que a estagflação se tornou uma regra em vez de uma exceção inimaginável – o que quer dizer que havia tanto altas taxas de desempregos quanto alta inflação. Nesse contexto, por todo os Estados Unidos, as pessoas que estavam na prisão brigavam, no sistema judiciário federal, pelas condições de seu confinamento, os tipos de sentença que eles cumpriam, e assim por diante. Muitas dessas ações eram propostas pelos próprios presos. As ações lentamente chegavam aos tribunais. Eventualmente, na Califórnia, mas também em outros estados, no final da década de 1960 e novamente em meados da década de 1970, os tribunais federais disseram ao sistema prisional: “Façam algo sobre isso, porque vocês estão violando a Constituição.”

À primeira vista pode parecer que a Guerra do Vietnã, a estagflação e a violação dos direitos constitucionais dos presos não tenham relação. Mas indiretamente, construir prisões e utilizar o crime se tornou a estratégia padrão para legitimar o estado que havia sido gravemente deslegitimado pela crise política, militar e econômica. A expansão prisional se tornou uma saída para pessoas em ambos os partidos políticos dizerem:

“O problema com os Estados Unidos é que há muito governo. O estado é muito grande. E o motivo pelo qual as pessoas estão sofrendo desse infortúnio econômico geral é porque muita coisa vai para os impostos, muita coisa vai para fazer o que as pessoas deveriam fazer sozinhas. Mas se vocês nos elegerem, nós vamos nos livrar desse insólito fardo sobre vocês. Entretanto, há algo legítimo que podemos fazer com esse poder estatal, que é o motivo pelo qual vocês deveriam nos eleger: nós vamos te proteger do crime, nós vamos te proteger das ameaças externas.”

E as pessoas elegeram e reelegeram com base nesses argumentos. Novamente, apesar de que todos sabiam que o crime não era um problema.

É bem impressionante para mim. Eu vivi esse período e voltei depois para estudá-lo. Eu descobri que no caso da Califórnia – e tenho atualmente estudantes que estão estudando outros estados – sempre encontramos padrões similares: crise econômica, decisões de tribunais federais, conflito sobre a expansão, papel ampliado da finança municipal no esquema da expansão prisional.

Na Califórnia, as pessoas que haviam prosperado através do funcionalismo público, trabalhando no setor de assistência, ou trabalhando no setor de serviços de saúde e humanos, eventualmente foram recrutados para o trabalho na prisão, porque elas possuíam a habilidade para administrar projetos de larga escala com a finalidade de fornecer serviços a indivíduos. E elas trouxeram suas capacidades fiscais e burocráticas para a agência prisional a fim de ajudar na sua expansão e consolidação. Nós realmente vemos o abandono de um setor de funções públicas em favorecimento de outro – de assistência social para guerra doméstica, se preferir. E eu não posso dizer, e ninguém deveria, que o motivo para tudo isso acontecer foi porque algumas pessoas que tinham más intenção distorceram o sistema. Mas em vez disso podemos ver uma renovação sistêmica rumo ao encarceramento em massa: começando no final da década de 1970, quando Jerry Brown, um democrata, era governador da Califórnia, como ele é agora; depois, crescendo enormemente na década de 1980 sob regimes republicanos; mas nunca caindo. Não fez diferença qual partido estava no poder. E a população prisional não começou a cair até que amplos e elaborados trabalhos de organização em conjunto a uma longa ação federal (novamente!) forçassem a redução do sistema nos últimos anos.

Clément Petitjean

No livro, você argumenta que as prisões são “soluções universais para problemas sociais.” Você diria que o surgimento do complexo industrial-prisional ilustra, ou significa, profundas transformações do estado americano, e marca a aurora de um novo período histórico para o capitalismo, um período em que o encarceramento não apenas seria o meio legítimo, mas o único meio de lidar com populações excedentes?

RWG

Honestamente, quinze anos atrás, eu teria dito sim. Hoje, eu digo “quase, mas não absolutamente sim”. Porque está quase pior do que o modo como você formulou a questão. Em vez de o encarceramento em massa ser uma solução universal para problemas sociais, como eu coloco, o que tem acontecido é que aquela força legitimadora, que fez os sistemas prisionais tão grandes em primeiro lugar, tem dado cada vez mais à polícia – inclusive a polícia de fronteira – quantidades extraordinárias de poder. O que tem acontecido é que certos tipos de agências de assistência social, como educação, auxílio financeiro, ou habitação social, têm absorvido algumas das missões de vigilância e punição da polícia e do sistema prisional.

Por exemplo, em Los Angeles, um projeto relativamente novo, com cerca de 10 anos, foca em pessoas que vivem em projetos de habitação social. A experiências dessas pessoas têm sido moldadas pelo policiamento intensivo, criminalização, encarceramento e morte pela polícia. Sob o novo projeto elas têm oportunidade de acesso à saúde, à educação para crianças, todos os tipos de benefícios sociais assistenciais se, e apenas se, elas cooperarem com a polícia. No livro Policing the Planet [Policiando o planeta], meu parceiro e eu escrevemos um capítulo que trabalha à exaustão sobre esse caso.

Clément Petitjean

Você diria que essas mudanças anunciam um novo período histórico para o capitalismo?

RWG

Essa é uma questão difícil, como você sabe, por diversas razões. Uma é que nós todos aprendemos a falar em círculos: todo mundo costumava dizer “globalização”, agora é “neoliberalismo”, e as pessoas estão mais ou menos falando da mesma coisa. Meu principal mentor no estudo do capitalismo é o grande, já falecido, Cedric Robinson, que escreveu uma série fantástica de livros, mas o livro que mudou completamente minha consciência é o Black Marxism [Marxismo Negro]. Robinson argumenta que o capitalismo sempre foi, onde quer que se tenha originado (digamos, na Inglaterra rural), um sistema racial. Logo, ele não precisou de pessoas negras para se tornar racial. Ele já era racial entre as pessoas cujos descendentes viriam a se tornar brancos. Entender o capitalismo desse modo é muito produtivo para mim ao pensar sobre o presente.

Uma questão é o que está acontecendo com o capitalismo racial em uma escala mundial. Uma segunda questão tem relação com as economias políticas específicas, especialmente aquelas que não são soberanas, como o estado da Califórnia: como a atividade político-econômica se (re)forma no contexto das influências da globalização? Certamente, a economia da Califórnia continua a ser grande. Ela sobe e desce um pouco, mas se fosse um país, estaria entre as sete maiores economias do mundo. Entretanto, a mistura de manufatura, serviço e outros setores tem mudado com o tempo. Ainda há muita manufatura no estado, embora tenda a ser uma manufatura de alto valor acrescido, baixos salários, extremamente exploratórias [sweatshops] e assim por diante. E bem menos aço, e bens de produção, e bens de consumo duráveis. Como, então, nós devemos proceder à análise a fim de se organizar em lugares como Califórnia, Nova Iorque, Texas, com suas economias diversas e diversificadas, caracterizadas pelo abandono organizado e violência organizada? Como podemos generalizar a partir de um sistema prisional racista para uma percepção mais flexível do capitalismo racial em atuação, para entender e intervir em lugares onde os estados estão, não menos que as firmas privadas, constantemente tentando descobrir como distribuir capital por todo o cenário produtivo de formas que retornarão lucros aos investidores o mais rápido possível?

O estado continua presente fingindo que não está lá. E aqui não estou falando sobre prisões privadas, que são uma parte infinitésima do encarceramento em massa nos EUA, nem do trabalho explorado do preso, que também não explica muito sobre o tamanho do sistema ou sua durabilidade (que, como nós vimos, é vulnerável). Em vez disso, estou falando sobre como os sindicatos que representam os trabalhadores com baixa à média remuneração do setor público, que possuem uma alta concentração de pessoas de minorias étnico-raciais como membros atuais e em potencial, podem unir forças com organizações de justiça ambiental, organizações de diversidade biológica/contra a mudança climática, organizações de direitos dos imigrantes e outras, para lutar em diversas frentes contra a vulnerabilidade diferenciada de certos grupos à morte prematura – o que em minha visão é o racismo. E se é isso o que é o racismo, e o capitalismo já é racial desde as suas origens, isso significa que uma política inclusiva, englobando pessoas trabalhadoras e desempregadas vulneráveis, bem como os seus espaços, passa a ser uma política de classe robusta que não exclui, nem considera apenas as visões mais estreitas de quem ou o que é a “classe trabalhadora”.

Clément Petitjean

No livro, você desenvolve uma perspectiva crítica fortemente influenciada pela geografia crítica de David Harvey. O que essa perspectiva revela especificamente sobre o encarceramento em massa?

RWG

Eu me tornei uma geógrafa quando estava na faixa dos 40 anos porque me pareceu que, pelo menos no contexto do ensino superior estadunidense, era o melhor caminho para seguir uma análise materialista séria. Há tão poucos programas de doutoramento em geografia nos Estados Unidos. E eu estava pensando que me formaria em planejamento, porque parecia a coisa mais próxima do que eu queria fazer: reunir “quem”, “como”, e “onde” de modo não superficial, mas articulado às transformações em andamento. Na verdade, encontrei por acaso a geografia. Por acaso eu conheci Neil Smith na conferência Rethinking Marxism [Repensando o marxismo] e fui arrebatada pelo seu trabalho; não apenas eu não tinha pensado em geografia, eu não tinha feito um curso de geografia havia três décadas, desde que eu tinha 13 anos. Então no último minuto, em vez de enviar minha candidatura para o departamento de planejamento na Rutgers, eu enviei para o departamento de geografia. E o resto é meio que história.

Matricular-me em geografia me conduziu ao mundo de Harvey do método geográfico histórico-materialista de analisar o mundo. Eu levei muito a sério o que aprendi com o David, o que aprendi com o Neil e com algumas pessoas, e tentei construir sobre esta base, possuindo àquela altura uma longa educação informal com pessoas como Cedric Robinson, Sid Lemelle, Mike Davis, Margaret Prescod, Barbara Smith, Angela Davis, e muitos outros. E eu penso que se não tivesse me formado em geografia, ou sido seduzida pela geografia, talvez eu não teria pensando o tanto que pensei em temas como, por exemplo, conexões urbano-rurais – suas interdependências co-constitutivas. E eu sei que eu não teria pensado em termos de escala – não em escala no sentido de tamanho, mas no sentido de formas socioespaciais pelas quais vivemos e organizamos nossas vidas e como lutamos para participar e cooperar. E eu certamente não teria conceitualizado o encarceramento em massa como a “solução prisional” [prison fix] se eu não tivesse lido o livro de David, Os limites do capital, e pensado tanto sobre a solução espacial [spatial fix] como eu fiz. Somos colegas, agora, David e eu. Gostamos de trabalhar juntos e debater no sentido dos objetivos do movimento, em vez de tentar ter a última palavra.

Clément Petitjean

Você pode elaborar o quer dizer por “solução prisional” compara à “solução espacial” de Harvey?

RWC

O quero dizer no meu livro é que o estado da Califórnia utilizou a expansão prisional provisoriamente para solucionar – para corrigir, bem como fixar no espaço – as crises de terra, trabalho, capital financeiro e capacidade estatal. Ao absorver pessoas, realizando dívidas públicas sem nenhuma promessa pública de pagamento, e utilizando terras retiradas da produção extrativista, o estado também colocou em movimento, como sugeri anteriormente, muitas de suas habilidades fiscais e organizacionais sem enfrentar os desafios que já estavam se acumulando quando os mesmos fatores de produção foram requeridos para, vamos dizer, uma nova universidade.

A solução prisional obviamente abriu um ciclo inteiramente novo de crises, assim como a solução espacial de Harvey, que desloca, mas não resolve o problema criado por ela. Então, no caso das comunidades das quais saem as pessoas encarceradas, temos a remoção de pessoas, a remoção do poder conquistado, a remoção domiciliar e de camaradagem comunitária, e muito mais – tudo isso aconteceu com o encarceramento em massa. Na áreas rurais onde as prisões se levantaram, podemos traçar desestabilizações relacionadas: em vez de, como muitos imaginam, cidades prisionais rurais adquirindo recursos deslocados de vizinhos urbanos, o fato é que os dois locais são unidos em um constante ciclo desconhecido, embora compartilhado, de desespero instável – que foi a base sobre a qual alguns trabalhos de organização que eu descrevi acima tomaram forma.

Em outras palavras, a infraestrutura materialmente simbolizada pela prisão em si sinaliza a infraestrutura amplamente visível e invisível que relaciona a prisão e sua localização aos tribunais e à polícia, às estradas para o transporte de familiares, mercadorias e presos entre a prisão e as comunidades de origem, uma infraestrutura que incorpora cada vez mais todo o cenário por ela intermediado. Uma das coisas que eu tentei fazer no livro, imaginando as duas viagens de ônibus, foi fornecer às pessoas um jeito de pensar sobre o que eu acabei de dizer que seja mais visceralmente comovente. Pensar no movimento pelo e através do espaço nos fornece algum sentido da produção do espaço.

O propósito de Califórnia Gulag [Golden Gulag] não foi fazer as pessoas dizerem “Meu Deus, fomos todos derrotados!”, mas em vez disso dizerem “Uau, isso foi muito grande, agora eu posso ver todas as peças. Então, em vez de pensar que não há nada a fazer, o que eu percebo é que há centenas de coisas diferente que podemos fazer. Podemos nos organizar com sindicatos, podemos nos organizar com ativistas por justiça ambiental, podemos organizar coalizões urbano-rurais, podemos organizar trabalhadores de baixa remuneração e que são extremamente explorados e vulneráveis à criminalização. Podemos nos organizar com imigrantes. Podemos fazer todas essas coisas, porque todas essas coisas fazem parte do encarceramento em massa.” E nós fizemos todo esse trabalho de organização!

Clément Petitjean

Essa é uma transição perfeita para outra série de questões sobre trabalho de organização contra o encarceramento em massa. Existem movimentos de resistência no contexto prisional comparáveis ao que aconteceu na década de 1970, com o levante de Attica em 1971 por exemplo?

RWG

Minha área de especialização não é sobre esse tema. Orisanmi Burton é uma pessoa que está fazendo uma pesquisa fantástica sobre o tema.

Evidentemente, uma das coisas que aconteceram nas prisões californianas, particularmente nas prisões masculinas, é que o seu desenho físico, bem como o desenho de seu sistema de administração, foi deliberadamente indicado pelo Department of Corrections [Departamento Correcional], começando no final da década de 1970, para minar a possibilidade do tipo de organização que havia caracterizado o período do início da década de 1960 até meados da década de 1970. Especialmente os desenhos chamados de “180”, ou Nível 4: essas são as prisões de segurança máxima. Essas prisões não são panópticas, mas os presos não conseguem escapar da vigilância. Tem ocorrido não apenas isolamentos totais automáticos, mas também a redução da educação e outros programas prisionais, até mesmo os lugares onde as pessoas na prisão podem se reunir, como espaços diurnos, salas de aula, academias, lugares onde os presos poderiam cumprir a pena com algum modesto senso contínuo do self. Todos as mudanças no desenho foram pensadas para minar a organização e a solidariedade entre os presos.

Uma coisa bastante notória que aconteceu no sistema californiano, em particular no fim da década de 1970, que pode ou não ter acontecido em outros sistemas, é que o Department of Corrections estava experimentando formas de impedir os presos de desenvolverem solidariedade entre eles e contra os guardas. No início da década de 1970, os presos californianos haviam declarado notoriamente “Toda vez que um guarda matar um de nós, nós vamos matar um deles até que eles parem de nos matar.” E ocorreu sete incidentes em alguns anos. Um guarda matou um preso, presos mataram o guarda. Não necessariamente o guarda que matou o preso, mas alguém morreu porque alguém morreu. Então, o departamento, logo antes de a grande expansão começar, estava tentando descobrir o que fazer. E ele apareceu, sem surpresa, com uma solução que foi desenhada para alimentar a desconfiança entre os presos.

Os administradores declararam que certas categorias de presos pertenciam a certa gangue étnica ou regional, e então fomentou a discórdia entre as gangues. Em um período em que a dessegregação estava se tornando a norma, o Department of Corrections começou a segregar as pessoas nas prisões de acordo com gangues, e em seguida por grupos raciais e étnicos. Isso tudo está bem documentado, existem registros e ações judiciais e um arquivo formidável para serem lidos e estudados. E ocorreram incontáveis audiências sobre essa prática por toda a década de 1990. Eu ouvi horas de depoimentos em que o departamento insistiu, e insiste até hoje: “Não, estávamos apenas respondendo ao que já existia objetivamente.” Sendo que outros que depuseram, incluindo antigos diretores prisionais, disseram: “Não, isso não existia: vocês fizeram isso. Vocês criaram isso.”

O que o Departamento “criou” levou ao desenvolvimento de algo chamado Security Housing Unit (SHU) [Unidade de Alojamento de Segurança], que é efetivamente uma prisão dentro da prisão. A primeira unidade na Califórnia foi aberta em 1988 e a segunda em 1989. Nesta, chamada de Pelican Bay State Prison [Prisão Estadual “Pelican Bay”], as pessoas nas SHUs haviam realizado diversas greves de fome que se iniciaram em 2013. E algumas das pessoas naquela unidade, segregadas de acordo com sua suposta afiliação a uma gangue, algumas das quais estavam na prisão dentro da prisão por mais de 20 anos, haviam aceitado e incorporado as rígidas diferenças étnicas, raciais e regionais como importantes e imutavelmente reais. Mas na medida que tentavam, como indivíduos, encontrar um meio para sair da prisão na prisão e regressar à população prisional comum, eles se tornaram cada vez mais conscientes de o que havia acontecido historicamente; uma terrível reforma da qual eles eram a expressão atual. Assim, nos anos recentes, essas pessoas divididas em quatro “gangues” eventualmente declararam que o único meio de resolver o problema interno era, para utilizar o termo deles, encerrar a hostilidade entre as raças. O que é algo impressionante. Eu já estive dentro de várias prisões, incluindo a Pelican Bay. E o que eu aprendi sobre transformação de consciência a partir de entrevistas com pessoas nas prisões masculinas sobre as condições de seu confinamento no início da década de 2000 comparado com o trabalho de organização e análise que emergiu aproximadamente nos últimos cinco anos é impressionante.

Eu também gostaria de acrescentar algo sobre as prisões femininas. Nas prisões femininas, o nível de segregação nunca foi tão alto – a ponto de que, por exemplo, não se tinha separado as pessoas que estavam cumprindo pena de prisão perpétua por homicídio das pessoas que estavam cumprindo pena de um ano por crime de drogas. Enquanto que em uma prisão para homens, as pessoas são segregadas de acordo com o nível de custódia (pelo que eles estão cumprindo pena), além de segregadas de diversas outras formas, incluindo raça e etnia. Portanto, em parte devido à organização social e espacial das prisões no período caracterizado pela repressão do trabalho de organização nas prisões, para mim houve um alto e crescente nível de trabalho de organização entre as pessoas nas prisões femininas. Portanto, durante os últimos 14 ou 15 anos, na medida em que o estado da Califórnia estava tentando construir caríssimas novas prisões femininas ditas “gênero responsivas” – para permitir que mães sejam trancafiadas com suas crianças, por exemplo –, as pessoas dentro dessas prisões, independentemente de como se identificavam em termos de gênero, escreveram e assinaram “Não façam isso por nós, porque isso apenas expandirá a capacidade de trancafiar pessoas. Isso não fará nossas vidas melhores.” Três mil pessoas fizeram esse trabalho de organização nas prisões femininas, e sua autodeterminação e coragem veio com um grande risco pessoal para elas, pois ativistas presos estão totalmente à mercê dos guardas e administradores prisionais.

Clément Petitjean

E sobre o trabalho de organização fora das prisões? E em particular nas comunidades diretamente afetadas pelo encarceramento em massa?

RWG

O trabalho de organização externo tem sido bastante rico e variado através dos anos. Em minha experiência, parte da qual eu relato em um novo capítulo para a segunda edição de Califórnia Gulag [Golden Gulag], as pessoas que de início começaram trabalhando em prol de uma pessoa em sua família ou até mesmo duas pessoas em sua família, pensando que isso era um problema individual ou, no pior dos casos, um problema domiciliar, vieram a entender através de suas experiências – trabalhando com outras pessoas, majoritariamente mulheres, a maioria das quais mães – as dimensões políticas do que elas originalmente encontraram como um problema pessoal, individual e jurídico. Esse é um tipo de trabalho de organização que tem persistido por muitos anos, 25 anos ou mais.

Há também o trabalho de organização que nós, os grupos Critical Resistance e o California Prison Moratorium Project [Projeto Moratório das Prisões da Califórnia], ajudamos a promover entre comunidades urbanas e rurais, sob uma variedade de questões nominais que eu descrevi anteriormente: diversidade biológica (nós defendemos a preservação do rato-canguru), mas também a justiça ambiental (qualidade do ar, qualidade da água, por exemplo). Nós conseguimos desenvolver e lançar campanhas que reuniram pessoas trabalhando por diversas questões e de diversas comunidades na Califórnia rural e urbana, para que elas pudessem reconhecer umas às outras como prováveis camaradas em vez de supostos antagonistas. E isso tem ocorrido repetidamente.

Retornando ao fato de que o número de pessoas nas prisões da Califórnia tem caído nos anos recentes: as explicações públicas para isso, a explicação superficial ou rasa, é que em 2011 o estado da Califórnia perdeu mais uma ação, Brown v. Plata, também chamada de “Plata/Coleman”, e foi condenado a reduzir o número de pessoas detidas na planta física do Department of Corrections (33 prisões mais diversos campos e outros estabelecimentos de privação de liberdade). A ação federal demonstrou que aproximadamente uma pessoa na prisão estava morrendo por semana de uma doença facilmente curável devido à negligência médica. Durante duas décadas, entre o começo da campanha legal e sua resolução, alguns dos litigantes originais já haviam há muito falecido. No fim, a direitista Suprema Corte dos Estados Unidos (a corte que entregou a presidência no ano de 2000 para George W. Bush) não podia negar a evidência. Havia muitos corpos.

Em seu julgamento final, aquela corte concordou com decisões de tribunais inferiores, afirmando que a Califórnia não poderia resolver o problema por si só. Mas a questão que poucas pessoas que acompanharam essa história jamais se perguntaram é “Como que a Califórnia, que estava abrindo uma prisão por ano há 23 anos, repentinamente diminuiu o ritmo para quase uma paralização e só abriu uma prisão entre 1999 e 2011?” E a resposta é todo aquele trabalho de organização de base que eu descrevi anteriormente. Nós os fizemos parar de construir novas prisões. Nós dificultamos muito o processo. E nós demonstramos em nossa campanha que sempre que o departamento construía uma nova prisão, supostamente para aliviar a superpopulação, o número de pessoas presas saltava mais do que as novas construções conseguiam suportar. As novas relações de base, organizadas por abolicionistas prisionais – embora a grande maioria dos próprios participantes não fossem necessariamente abolicionistas – compeliram essas cortes, que nunca haviam convocado nenhuma de nós como testemunha séria para qualquer coisa, a dizerem que a Califórnia não podia sair por si só desse problema e que o estado teria que fazer algo diferente.

Hoje, muitas das atividades contra a expansão da planta física na Califórnia estão focadas nas cadeias, não nas prisões. (Cadeia é o lugar no qual as pessoas ficam detidas aguardando julgamento ou se a sentença for de apenas um ano ou menos. Prisão é o lugar para o qual as pessoas são enviadas para cumprir uma sentença de um ano e um dia ou mais). As cadeias estão se expandido agora porque uma vez que a Califórnia acatou a decisão da Suprema Corte, o estado, para reduzir o número de pessoas que prende, disponibilizou recursos para jurisdições inferiores – os condados – para fazer o que quisessem em troca da detenção local de pessoas condenadas por certos crimes em vez de seu envio para a custódia estadual. (Esse ajuste é chamado de “realinhamento.”) Os condados poderiam ter aceitado esses recursos e dito para as pessoas condenadas “Vão para casa e se comportem.” Poderiam ter aceitado os recursos e alterado as diretrizes dos promotores públicos para que houvesse menos condenações. Poderiam ter alocado os recursos em escolas, serviço de saúde ou habitação. Mas – e isso traz de volta a persistente questão da capacidade e legitimidade estatal – um pouco mais da metade dos 58 condados estaduais até o momento decidiram construir novas cadeias. E então nós vemos reversamente o fenômeno discutido anteriormente, sobre agências estatais de assistência social absorvendo agências de punição e vigilância.

Os xerifes, que administram as cadeias, agora insistem que eles precisam de mais e maiores cadeias por razões de saúde: “Nós temos que fornecer serviço de saúde mental e assistência para pessoas com problemas. Nós temos que entregar bens sociais, e o único modo que nós podemos fazer isso é se trancafiarmos pessoas.” Portanto, o novo front é lutar contra “cadeias em vez de clínicas”, “cadeias em vez de escolas”, e assim por diante. O trabalho traz novos atores sociais para o conjunto, e, como discutimos anteriormente, isso permite a mais ampla identificação possível de propósito em termos de classe.

Para dar alguns outros exemplos dos tipos de solidariedade que conseguimos trazer com o tempo para a ação na Califórnia, havia uma prisão que supostamente deveria abrir em 2000, mas nós a freamos. Não conseguimos pará-la, mas como eu disse, após a abertura de uma prisão por ano até 1998, nenhuma prisão foi aberta entre 1999 e 2005. Aquela prisão foi agendada para construção por um membro do Partido Democrata que havia acabado de ser eleito governador, e ele estava retribuindo o sindicato dos guardas, que havia doado para ele quase um milhão de dólares para ajudar com a campanha. Então, nós nos ocupamos e organizamos de todas as diferentes formas que podíamos. E uma das formas que pudemos nos organizar foi, como ficou demonstrado, com a associação de servidores estaduais da Califórnia, que é parte de um enorme sindicato do setor público na Califórnia. E eles representam todos os tipos de trabalhadores nas prisões, exceto os guardas, porque os guardas possuem seu próprio sindicado separado. E para a nossa surpresa, os membros do sindicato de servidores estaduais estavam dispostos a enfrentar os guardas e se oporem àquela prisão. Quando eles finalmente concordaram em se encontrar com os abolicionistas, eles disseram:

“Vejam. Os guardas conseguem o que querem. O que nós fazemos, como secretárias, professores, chaveiros, motoristas, mecânicos acaba sendo espremido mais e mais. Nós vemos as vidas das pessoas custodiadas ficando pior e pior, sem nenhuma esperança para voltar à vida normal quando saírem – como a maioria das pessoas saem. E o sindicato do qual fazemos parte representa pessoas que trabalham no setor público, em serviços habitacionais, de saúde, e assim por diante, nas cidades e condados, bem como no estado. Portanto, se reconhecermos quem são os nossos membros e o que eles fazem, não há motivo para apoiarmos essa prisão. Mesmo que possamos perder alguns membros que conseguiriam trabalho nessa nova prisão, nossa missão é maior como um sindicato do setor público.”

Isso me surpreendeu completamente, e por um entusiástico momento político tínhamos meio milhão de pessoas por toda a Califórnia exigindo uma moratória prisional. É difícil manter esses tipos de aberturas políticas vivas, mas ela durou tempo suficiente para interromper a agenda incansável que as prisões na Califórnia seguiam desde o início da década de 1980.

Clément Petitjean

De uma perspectiva externa, parece que o movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] deu um novo ímpeto aos debates em torno da abolição prisional em círculos radicais. O que isso revela sobre a história do movimento abolicionista? Qual é atual correlação de forças? O que está ocorrendo nos debates estratégicos?

RWG

É verdade que o #BlackLivesMatter fez as pessoas pensarem sobre e utilizarem a palavra “abolição”. Dito isso, a abolição que eles ajudaram popularizar é mais sobre a polícia e menos sobre as prisões. Embora seja evidente que há uma conexão entre as duas. Tem sido fantástico para mim e para muitos de meus camaradas ver políticos da esquerda liberal, ou revistas como The Nation ou Rolling Stone, questionarem seriamente se não é o momento de abolir a polícia. O debate subsequente tende a ser o óbvio: na medida em que a abolição é imaginada apenas como ausência – eliminação repentina – a resposta automática é “isso não é possível”.

Mas o fracasso da imaginação reside em não entender o fato de que a abolição não é apenas ausência. Como W.E.B. Du Bois demonstrou em Black Reconstruction in America [Reconstrução Negra na América], a abolição é uma presença material e corpórea da vida social vivida diferentemente. Evidentemente, isso significa que muitos daqueles que são favoráveis à abolição vacilam no que tange à prática. Todo o trabalho de organização que tenho descrito em nossa conversa é abolição – não um prelúdio, mas a prática em si. Houve um ataque recente aos abolicionistas por algum historiador que decidiu, sem estudar, que os abolicionistas sustentam uma teologia tresloucada. Ele conhecia um pouco, por exemplo, sobre o caso Brown v. Plata, mas sabia zero sobre o trabalho de organização de base do projeto moratório que reconheceu a teoria Plata/Coleman (“superlotação”) como motivo suficiente para buscar outra solução. A abolição é: descobrir como trabalhar com pessoas para construir algo em vez de descobrir como eliminar algo. Du Bois demonstra exaustivamente como a escravidão acabou mediante as ações e atividade organizada tanto do Exército da União quanto dos escravos, e como foram, já que a escravidão que acaba hoje não diz nada sobre o amanhã, o dia seguinte e os dias posteriores durante o período revolucionário da Reconstrução radical. A abolição é uma teoria da mudança, é uma teoria da vida social. É sobre construir coisas.

Clément Petitjean

O que o papel central do encarceramento em massa na manutenção do status quo implica em termos de estratégias de luta de classes? A luta anticárcere e o trabalho de organização abolicionista desempenham um papel mais estratégico hoje?

RWG

Podemos pensar da seguinte forma no contexto estadunidense. Nos Estados Unidos, hoje, existem cerca de 70 milhões de adultos que possuem algum tipo de condenação criminal – independentemente de terem sido presos ou não – que os proíbem de acessar certos tipos de trabalho, em muitas modalidades de trabalho. Em outras palavras, não faz diferença o que você supostamente fez: se você foi condenado por alguma coisa, você não pode ter um trabalho. Então, pare um pouco e reflita por um momento, apenas em termos de números absolutos. Se somarmos o número de pessoas que estão efetivamente documentadas para não trabalhar, com os adicionais 7 ou 8 milhões de imigrantes que não estão documentados para trabalhar, a soma é igual a aproximadamente 50% da força de trabalho estadunidense – majoritariamente pessoas de minorias étnico-raciais, mas também 1/3 de brancos.

Portanto, parece que a anticriminalização e as amplas e intensas forças e efeitos da criminalização e da punição perpétua têm de ser centrais para qualquer tipo de mudança política e econômica que beneficie os trabalhadores e suas comunidades, ou beneficie as pessoas pobres e suas comunidades, estejam elas trabalhando ou não. Isso deveria ser um pressuposto, mas frequentemente não é. Em parte, isso ocorre porque o “encarceramento em massa”, infelizmente, mas por razões compreensíveis, apresentou-se como “isso é a coisa terrível que ocorreu com as pessoas negras nos Estados Unidos.” Isso é uma coisa terrível que ocorre com pessoas negras nos Estados Unidos! Também ocorre com pessoas pardas, pessoas vermelhas… e com muitas pessoas brancas. E na medida em que acabar com o encarceramento em massa passa a ser entendido como uma luta exclusiva das pessoas negras, a necessária conexão a ser feita entre o encarceramento em massa e a totalidade da organização do espaço capitalista se desmonta.

O que resta é algo que aparenta ser apenas um erro aberrante que parece solucionável em uma lógica de reforma capitalista. Isso é um impedimento enorme, penso eu, para o tipo de trabalho de organização que deve resultar das diversas experiências no trabalho de organização comunitário e trabalhista que podem produzir grandes mudanças. Tudo é difícil nos EUA agora, por todas as razões evidentes que não vou tomar espaço discutindo agora. Dito isso, eu busco com esperança todas as indicações de meios para reorientar o debate e o trabalho de organização. A resposta para mim é levar em conta todas as formas possíveis de como o grande número de pessoas vulneráveis nos EUA e em outros lugares venha a reconhecer umas nas outras não apenas características ou interesses, mas mais ainda o sentido e o propósito abolicionista.

Entretien réalisé par Clément Petitjean et traduit de l'anglais par François-Xavier Hutteau

18 de fevereiro de 2018

A destruição da História

O governo húngaro de direita está a tentar destruir o arquivo de Georg Lukács – e o seu legado.

Róbert Nárai


Georg Lukács and Árpád Szakasits, a former Hungarian president, at the Central House of the People's Army on June 27, 1956. Samai Antónia / hirado.hu

Tradução / O sol tinha acabado de se pôr numa noite de sexta-feira quando tocou o telefone. Miklós Mesterházi, do Lukács Archívum, em Budapeste, descobriu que a Academia Húngara de Ciências (MTA) iria confiscar a coleção inteira de manuscritos e correspondência que estava guardada nas instalações.

Os funcionários da MTA chegaram na manhã da segunda-feira seguinte e começaram a examinar a coleção. Verificaram o inventário e prepararam-se para transferir o material para o Departamento de Manuscritos e Livros raros no Centro de Informações e Biblioteca da MTA.

De acordo com a MTA, a decisão baseia-se no espírito de “integridade académica” – a deslocação dos manuscritos iria permitir-lhes digitalizar a coleção, permitindo assim que mais pessoas acedessem ao material.

Mas devemos situar a decisão da MTA na conjetura histórica e política da Hungria.

Desde a transição do socialismo de estado para a democracia burguesa, em 1989, a MTA tem dispensado trabalhadores, tornando os projetos de investigação e edição quase impossíveis. Alojar a obra de Lukács – muito desta inédita e ainda por estudar – em tal local não serve nem a “integridade académica” nem os interesses da “investigação”. Ao invés, nega-as.

Além disso, a Hungria é agora controlada por um regime autoritário que deseja reescrever o passado da nação. O regime de Orbán tem trabalhado para reabilitar as tradições nacionalistas e fascistas da Hungria. Tem derrubado estátuas em homenagem àqueles que lutaram contra a ditadura militar de Horthy e o regime do partido da Cruz Flechada, substituindo-as por monumentos que glorificam antisemitas e colaboradores nazis.

O Fidesz, o partido no poder, tem como bodes expiatórios os imigrantes, roma, muçulmanos, judeus, comunistas, socialistas, liberais e o que quer que considere “estrangeiro”. Tomou o controlo de inúmeras instituições estatais e ameaçou acabar com inúmeras instituições da sociedade civil, incluindo a Universidade da Europa Central.

Neste clima de paranóia e medo, a MTA não quer ser acusada de apoiar um “comunista”, pelo que, sob a imagem de racionalização e eficiência, está a trabalhar para desmantelar os arquivos.
O que iremos perder

O Lukács Archívum é uma instituição de investigação única.

Os visitantes passam pelos mesmos quartos em que Lukács viveu e trabalhou desde 1945 até à sua morte, em 1971. O apartamento – que, ironicamente, tem vista para Szabadság híd (Ponte da Liberdade) nas margens do Danúbio – contém não apenas os seus manuscritos, mas toda a sua biblioteca, completa com as suas anotações. Os académicos que, ao longo dos anos, trabalharam nas instalações, recolheram mais ou menos tudo o que já foi publicado sobre o grande teórico marxista.

Mas o arquivo irá perder o seu bem mais valioso quando a MTA remover os manuscritos. Há um exemplo que nos oferece um vislumbre de seu valor.

Uma das conquistas teóricas mais significativas de Lukács foi a sua teorização dos impactos sociais da produção de mercadoria. Sob este sistema, os produtos acabados são isolados dos trabalhadores que os criam. O trabalho sob o capitalismo é degradante e monótono; transforma trabalhadores em máquinas. Todo o processo é projetado para maximizar o lucro, transformando a dimensão qualitativa da experiência humana – o trabalho – numa medida quantitativa do tempo. “Aqui”, escreveu Lukács na História e Consciência de Classe, “a personalidade não pode fazer mais do que olhar de forma impotente, enquanto sua própria existência é reduzida a uma partícula isolada alimentada num sistema estranho”.

Apesar de ser um produto do trabalho humano, a produção de mercadorias expressa-se apenas através de mecanismos sociais desumanos – dinheiro, mercados, capital e salários. Estes ganham vida própria, surgindo como sistemas naturais, hostis e respeitadores da lei que ninguém pode compreender, e muito menos controlar.

Uma vez que se torna universal, esta lógica subordina todas as esferas da existência humana à sua racionalidade matemática. Um código abstrato e formal, desenhado para processar milhares de casos, regula um sistema legal encarregado de tomar decisões de vida e morte. A política, separada da vida quotidiana, começa a parecer inalterável. Abismos gigantes dividem estes mundos, e cada esfera de existência parece independente da outra.

Lukács repudiaria mais tarde essas posições sob pressão do Comintern – primeiro, com Zinoviev ao leme, depois mais tarde com Estaline. As suas opiniões radicais não se encaixavam com a reação termidoriana a decorrer dentro da União Soviética e do movimento comunista internacional.

Até à data, a tentativa mais clara de se justificar aparece na introdução de 1967 à História e Consciência de Classe. Nesta, Lukács argumenta que não conseguiu distinguir entre objetificação (trabalho) e alienação (uma forma mistificada desse trabalho).

Contudo, quando visitei Mari Székely, o último funcionário restante, este informou-me a respeito de uma série de manuscritos inéditos de 1933, escritos durante os primeiros anos do período de Lukács em Moscovo. Num desses textos, Lukács começa a reavaliar algumas das suas reivindicações anteriores à luz do seu contacto com os Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844, de Marx. A publicação deste ensaio numa próxima coleção – juntamente com outros materiais anteriormente não traduzidos de 1924-33 – esclarecerá e aprofundará os termos deste debate, lançando mais luzes sobre a mudança teórica de Lukács e a reconciliação incómoda com o estalinismo.

Esta descoberta representa apenas um caminho por desvendar, num vasto labirinto que ainda não foi totalmente explorado.
Salvando o presente

A preservação dos arquivos não é apenas sobre o passado. Também diz respeito ao nosso presente, e às possibilidades que existem dentro dele.

O Archívum organiza regularmente reuniões e eventos, onde investigadores da Hungria e de todo o mundo se reúnem para discutir o potencial crítico das ideias de Lukács, muitas das quais permanecem inéditas, negligenciadas e incompreendidas.

Por exemplo, um mal-entendido prevalente foi o lugar da resistência dentro da posição de Lukács sobre a forma de mercadoria. A lógica dominante do capitalismo é quantitativa, mas a qualidade – no sentido do valor humano – nunca poderá ser completamente banida. Enquanto o capitalista sente o impulso de maximizar o lucro como algo puramente quantitativo, os trabalhadores sentem-no como algo qualitativo: um ataque à individualidade e à humanidade. Este ataque à sua qualidade de vida fornece a base para a resistência.

O aspecto da racionalização e da eficiência, segundo a qual a MTA está a confiscar os manuscritos de Lukács, expressa a lógica quantitativa capitalista; a rejeição crítica da esquerda a este movimento, em nome dos valores humanos, expressa a lógica de resistência.

É neste espírito que uma petição que protesta contra a decisão da MTA – com mais de 1 500 subscritores, incluindo Agnes Heller, Nancy Fraser e Fredric Jameson, para citar apenas alguns – foi entregue à academia a 25 de janeiro. Está a circular atualmente uma petição semelhante no site change.org.

Manter o universo teórico contido nestes arquivos – para parafrasear Lukács em The Theory of the Novel – ajudará a guiar-nos em tempos de escuridão e revelar as estrelas que nos governam.

Sobre o autor

Róbert Nárai is a co-editor and translator of a forthcoming collection of unpublished and untranslated work by Lukács. He is also a member of the Australian organization Socialist Alternative.

16 de fevereiro de 2018

Elon Musk não é o futuro

Os CEOs de tecnologia estão por si mesmos, não pelo bem público.

Paris Marx

Jacobin

Tesla Roadster de Elon Musk, com a Terra em segundo plano, em 6 de fevereiro de 2018. SpaceX / Flickr.

Tradução / No Vale do Silício não faltam grandes ideias para o transporte. No futuro, na visão deles, nós teremos cabines sem motorista para percorrermos distâncias curtas – poderemos até nos translocar por uma rede de túneis subterrâneos que supostamente nos levarão aos nossos destinos mais rapidamente – e para viagens interurbanas, mudaremos para cabines em tubos de vácuo que nos dispararão para o nosso destino a 1.220 kms por hora.

No entanto, essas fantasias dos bilionários CEOs de tecnologia são apenas isso: fantasias. Nenhuma dessas tecnologias se concretizará da maneira que eles prometem – isso se alguma vez chegarem a se tornar realidade. A verdade é que as tecnologias de que precisamos para transformar nossas redes de transporte já existem, mas as populações ocidentais ficaram presas em um sistema datado e dependente do carro por tanto tempo, ao mesmo tempo em que lhes era negada o acesso a essa tecnologia do presente – quem dirá a do futuro – por políticos que estão nos bolsos do lobistas dos combustíveis fósseis e viciados em uma ideologia prejudicial – de “livre mercado” -, que eles vão acreditar em qualquer vendedor de óleo de cobra – ou empreendedor rico – que apareça com uma solução.

E, de todos eles, Elon Musk é o pior.

O deteriorado culto a Musk
Para grande parte da imprensa de tecnologia, cada palavra de Musk é um evangelho. Junto das frequentes comparações com Steve Jobs vem a ideia simplista de que Musk, por ter construído algumas empresas de sucesso, ele deve ser infalível; se ele afirma conhecer a solução para a crise do transporte que os EUA enfrentam, ele deve estar certo. Afinal, ele é um empresário rico e, se as últimas décadas de discurso político nos ensinaram alguma coisa, é que você sempre deve confiar no empresário.

Mas a realidade é que as ideias de Musk em torno do transporte são, na melhor das hipóteses, mal elaboradas ou, na pior, projetadas para atrasar a construção da infraestrutura de transporte que poderia puxar os EUA para o século XXI.

Isso significa que tudo que Musk toca é problemático? Não necessariamente. Ele definitivamente merece algum crédito por elevar o perfil dos veículos elétricos e por ajudar a impulsionar a indústria nessa direção, mas, no que diz respeito ao transporte, é só isso. Sua visão do futuro não é emancipadora ou mesmo particularmente inovadora; na verdade, é bastante conservadora.

A imaginação de Musk tem dificuldade para se afastar dos limites do automóvel; cada uma das suas supostas soluções possui veículos – Teslas – no seu núcleo. A publicidade da SolarCity enfatiza a vida suburbana, dependente do carro; a empresa Boring é uma tentativa ineficiente e impraticável para resolver o congestionamento do tráfego sem reduzir o número de carros; e até mesmo a sua proposta de Hyperloop deixou a porta aberta para enfiar veículos em tubos a vácuo.

O futuro suburbano (e insustentável) previsto por Elon Musk. Tesla / YouTube

Isso não deve ser surpresa, visto os comentários recentes de Musk sobre como o transporte público é “um pé no saco”, onde “há um monte de estranhos aleatórios, um dos quais pode ser um assassino em série”. Ele valoriza o transporte individual porque não quer estar em torno de outras pessoas – até mesmo parece ter medo delas, com base em seus comentários – mas enfiar todo mundo em seus próprios veículos simplesmente não funciona no mundo cada vez mais denso e urbanizado em que vivemos.

A verdade é que, em vez de bajular Musk e seus colegas “gênios da tecnologia”, precisamos adotar uma visão crítica sobre suas propostas para ver quem realmente se beneficiaria e se suas visões deixam de levar em conta considerações fundamentais que seriam essenciais para torná-las viáveis no mundo real. Não podemos ser enganados por CEOs de tecnologia que colocam seus próprios desejos de transporte e sua sede de lucro antes das necessidades de muitos.

As soluções das gigantes de tecnologia para o transporte não funcionam
Os veículos sem motoristas são a característica central da visão de transporte do Vale do Silício e a mídia comprou as afirmações das grandes empresas de que eles já estavam quase ali na esquina, mesmo quando pessoas como Musk prometiam que eles estavam a dois anos de distância e então, dois anos depois, prometiam que eram dois anos de distância novamente.

A realidade é que eles não estão a dois anos de distância; pelo menos não as cabines sem motoristas nem volantes, capazes de navegar em todas as condições meteorológicas ou rodoviárias que encontrarem. Muitas empresas de tecnologia e automotivas tinham cronogramas semelhantes aos de Musk, e todos foram empurrados para 2021 ou mais tarde. E embora eles estivessem fazendo um grande progresso por um tempo, conforme eles aprendiam a dirigir em estradas suburbanas largas e vazias, em situações de clima claro e ensolarado, dados recentes da Waymo – um dos líderes da indústria – mostram que o progresso travou.

Veremos mais serviços de táxi sem motorista nos próximos um ou dois anos, mas é importante reconhecer que os veículos terão capacidades de nível 4 e não nível 5. Isso significa que eles estarão limitados a operar em certas áreas, como o serviço da Waymo em um subúrbio de Phoenix, no Arizona, e que terão dificuldades em densos centros urbanos com ruas movimentadas e em áreas com muita chuva e neve, que podem obstruir seus sensores. As empresas que os colocarem nessas situações de qualquer maneira, como Uber e Tesla já fizeram, podem se meter em problemas, conforme os relatórios sobre acidentes e transgressões no tráfego continuam a se acumular.

Mas se colocarmos todo mundo em seus próprios veículos, para onde todos irão? Musk quer construir um túnel subterrâneo para carros para aqueles que quiserem escapar do trânsito. Sua retórica sugere que isso seria aberto a todos, mas a realidade do espaço limitado e dos altos custos de construção restringiriam o seu número de usuários ao grupo dos ricos – ou possivelmente um grupo muito menor, já que o primeiro túnel planejado por Musk corre convenientemente do seu local de trabalho para a sua casa.

O enorme feito de engenharia necessário para o sonho de Musk de automobilidade urbana sem congestionamento. A Boring Company / YouTube

Musk não vai admitir que seus túneis serão excludentes. Ele promove a Boring Company como um meio de reduzir massivamente o custo do túnel – “poderia até mesmo beneficiar o transporte público!” – mas novamente, sua afirmação mostra sua ignorância. Musk diz que sua abordagem finalmente reduzirá o custo dos túneis, mas projetos de metrôs em Madri, Seul e Estocolmo já alcançaram custos semelhantes àqueles que Musk promete que só ele pode entregar.

Uma investigação do New York Times sobre o alto custo dos projetos de metrô na cidade de Nova York descobriu que, enquanto o metrô da Segunda Avenida custou US$ 2,5 bilhões por milha (1.6 km), uma expansão similar do metrô de Paris está bem encaminhada para custar apenas US$ 450 milhões por milha. Existem muitos fatores que contam para o alto custo dos projetos de transporte nos EUA que Musk não aborda, ou por ignorância, ou por ser intencionalmente enganador. Este pode ser o caso com o Hyperloop.

Musk publicou sua proposta de Hyperloop em 2013, depois que o projeto de trens de alta velocidade da Califórnia havia sido aprovado pelos eleitores, mas antes da construção ter início. Parecia o futuro: um tubo de vácuo que te dispararia entre São Francisco e Los Angeles em meia hora e custaria apenas US$ 6 bilhões – muitas vezes menos do que o trem de alta velocidade. O que haveria nisso pra não se gostar? Na verdade, bastante.

Não só a velocidade proposta seria incrivelmente desconfortável – mesmo nauseante – para os passageiros devido à força que seria exercida sobre eles, mas o Hyperloop levaria muito menos pessoas do que os trilhos de alta velocidade: 3.360 por direção por hora, em comparação com 12.000. Também se descobriu que os custos de construção eram completamente irreais, e Musk simplesmente mentiu sobre o consumo de energia dos trens de alta velocidade. As empresas que realmente estão tentando construir o Hyperloop descobriram que ele custa muito mais do que a proposta original de Musk: uma linha de 172 km por Bay Area custaria o dobro do que Musk indicou para toda a linha São Francisco-Los Angeles.

Semelhante ao caso dos túneis, a linha ferroviária de alta velocidade da Califórnia é cara em comparação com os padrões internacionais. Na China, tais projetos são de US$ 17-21 milhões por km, em comparação com US$ 29-39 milhões por km na Europa; enquanto na Califórnia está mais em torno de US$ 56 milhões por km. O Hyperloop de Bay Area ficaria na ordem de US$ 52-75 milhões por km. O alto custo dos trens de alta velocidade não é um problema de tecnologia, é um problema com a maneira como os EUA abordam projetos de infraestrutura.

Atrasando o avanço para servir a si mesmo
Defender idéias mirabolantes para retardar o progresso não é nenhuma novidade para o Vale do Silício, mesmo que não seja assim que a mídia os apresenta. Lembre-se de que muitas das suas “inovações” dependeram do financiamento público para pesquisa, enquanto as principais empresas de tecnologia são líderes mundiais em evasão fiscal. Toda vez que há uma iniciativa de votação sobre transporte público, serviços como Uber e veículos auto-dirigidos são usados para convencer os eleitores a se opor ao aumento do financiamento para ônibus e metrôs, os posicionando como as tecnologias do passado – mas nada poderia estar mais longe da verdade.

Em nosso mundo cada vez mais urbanizado, o transporte público é essencial para deslocar um grande número de pessoas de forma rápida e eficiente. O transporte individualizado favorecido por tecnólogos não fornecerá o mesmo nível de eficiência porque não há espaço – sem falar em recursos naturais e produtivos usados na fabricação, alimentação e manutenção dos veículos – para que todos tenham seu próprio veículo ou cabine sem motorista, conforme reduzimos o espaço rodoviário para ampliar as calçadas e adicionar pistas de bicicleta.

Musk e seus colegas CEOs de tecnologia promovem veículos autônomos como o futuro porque é o futuro que eles desejam. Eles não querem estar em um metrô ou trem, perto de pessoas comuns – como Musk já disse, um deles pode ser um assassino em série! É preocupante o quanto eles querem isolar-se das pessoas comuns, mas a realidade da mobilidade urbana é que apenas uma pequena parcela da população pode usar o transporte individual até que ele simplesmente deixe de funcionar. Isso é parte da razão pela qual o congestionamento do tráfego é tão ruim em nossas cidades; todos esses carros simplesmente não cabem, e a solução não é fazer com que a inteligência artificial tome o volante, mas deslocar as pessoas de maneiras mais eficientes.

Acima de seus desejos pessoais, Musk tem interesse financeiro em manter o domínio automotivo no século XXI – pois ele dirige uma empresa de automóveis! O transporte público e os trens de alta velocidade são diretamente opostos aos seus interesses, razão pela qual ele difunde idéias que nunca se concretizarão, mas que podem ser usadas por certos grupos privilegiados para fazer campanha contra o financiamento de um transporte eficiente.

Yonah Freemark / The Transport Politic

Enquanto a infraestrutura dos EUA desmorona e o foco é em reparar o que já existe em vez de construir algo para o futuro, a China e a Europa construíram extensas redes de trens de alta velocidade e de transporte público. Seus cidadãos estão se beneficiando de tecnologias que foram projetadas para mover eficientemente um grande número de pessoas, enquanto os norte-americanos [e os brasileiros] estão, infelizmente, presos em seus veículos com tempos de deslocamento diário cada vez maiores.

As pessoas precisam parar de beber o vinho do Vale do Silício e começar a exigir melhores opções de transporte que os libertem da dependência do automóvel. As marés parecem estar virando, conforme cidades de todo o país aprovam iniciativas de votação para expandir o transporte público e a Califórnia avança com sua linha ferroviária de alta velocidade diante da intensa pressão da visão de curto-prazo dos conservadores.

Não é verdade que o investimento público não gera prosperidade – é só olhar para o sistema de rodovias interestaduais -, mas vai precisar de vontade política, maior escrutínio dos empreendedores de tecnologia e um fim à agenda da austeridade para que o governo volte a investir no futuro uma vez mais. Enormes investimentos em ciência e infraestrutura ajudaram os EUA a se tornarem a principal potência mundial, e a construção de uma rede ferroviária nacional de alta velocidade e a expansão em massa do transporte público – semelhante ao que a China realizou na última década – seria o movimento de pensamento progressista necessário para mostrar aos estadunidenses que seu país ainda pode alcançar grandes conquistas sociais.

Sobre o autor
Paris Marx é escritor freelancer, apresentador do podcast sobre tecnologia de esquerda Tech Won't Save Us e editor da Radical Urbanist.

9 de fevereiro de 2018

A nova tempestade racista da Itália

Um ataque terrorista fascista veio destacar a crescente ameaça da extrema direita na Itália no período que conduz às eleições de 4 de março.

Richard Brodie

Jacobin

Refugiados e migrantes são vistos esperando para desembarcar depois de chegarem no porto em 12 de junho de 2017 em Reggio Calabria, na Itália. Chris McGrath / Getty Images

Tradução / Um mês antes da Itália ir às urnas rebentou o conflito sobre a imigração e o futuro das comunidades migrantes. A questão europeia desapareceu. Por momentos, as discussões em torno do rendimento básico incondicional e de outras formas de alívio da pobreza entraram em cena. Mas também estas desapareceram rapidamente na sequência do ataque na manhã do sábado, 3 de fevereiro, quando um fascista disparou contra oito pessoas da África Ocidental nas ruas em Macerata.

Deparados com a emigração em massa de jovens e uma estagnação econômica aparentemente sem saída, há anos que praticamente todos os partidos têm usado os imigrantes como bodes expiatórios. Os tempos de louvor aos resgates de migrantes no mar e à natureza acolhedora dos italianos comuns fazem parte do passado. Ao longo de dois anos, os partidos da oposição e o governo viraram à direita, o primeiro através do aumento da retórica racista e xenófoba e o último por via da criminalização da solidariedade e encerramento quase total da rota do Mediterrâneo, condenando efetivamente centenas de milhares de pessoas ao inferno líbio.

No ataque de Macerata, todo o racismo promovido pelos meios de comunicação e pela classe política para criar uma distração ideológica dos problemas da classe trabalhadora transformou-se num ato horrível de violência fascista, acelerando a tendência à medida que as eleições se aproximam: um comboio a alcançar o final da linha.

Uma manhã de sábado em Marche

Na manhã de sábado, pelo menos oito jovens da África Ocidental foram baleados nas ruas de Macerata, perto da costa leste do centro de Itália. O que mais sofreu ferimentos foi Mahamadou Touré, um homem de 28 anos do Mali, que permanece nos cuidados intensivos com danos no fígado. Um segundo homem, Festus Omagbon, da Nigéria, estava a comprar bens alimentares da África Ocidental com um amigo do Gana, ambos residentes num albergue de requerentes de asilo na cidade. Foram baleados nas costelas e no braço, respetivamente. Um jovem gambiano, Omar Fadera, recebeu um tiro de raspão.

Jennifer Otiotio, também da Nigéria, foi a única mulher alvejada. Há apenas sete meses em Itália, reside num bairro de requerentes de asilo, trabalhando ocasionalmente como cabeleireira. Tem a mão esquerda fraturada. Estava à espera do autocarro com o seu companheiro, que a afastou da mira da arma quando ouviu os disparos. "A verdadeira ferida não é aquela que se consegue ver, não é a que está no meu corpo", disse aos jornalistas. "Estou muito pior dentro do que pareço por fora. Eu nunca fiz nada de mal a ninguém, estava a sorrir e a conversar com outras três pessoas. Agora sinto que não posso andar em paz ".

Gideon, um outro jovem nigeriano, estava a andar de bicicleta e foi baleado na anca. "Eu gritei e gritei antes de ir ter à paragem de autocarro, antes de me virem buscar e terem levado para o hospital", disse num vídeo do YouTube. Tendo chegado a Itália, vindo da Nigéria, há quatro anos, encontra-se agora sem direito a permanecer no país. Saiu do hospital rapidamente, com medo, devido à sua situação legal. Na verdade, estas são apenas as seis pessoas que se sabem ter sido alvejadas naquele sábado de manhã; há pelo menos outras duas pessoas que não foram à polícia ou ao hospital.

As vítimas formam inadvertidamente uma imagem da nova geração de migrantes em Itália, aquela que se encontra agora na mira política: Gideon, quem está há mais tempo no país, encontra-se agora sem documentos e sem albergue. E dos seis, apenas uma era mulher, refletindo a predominância de homens na mais recente onda de migração em Itália. Além disso, duas pessoas foram alvejadas, mas não apresentaram queixa: e esse é talvez o fato mais significativo que o atacante fascista conseguiu trazer à luz; que, mesmo diante do perigo mais terrível, as pessoas continuam a manter-se invisíveis para proteger a sua possibilidade de permanecer na Europa, condição para a hiper exploração que, como veremos, marca todo o processo de divisão na classe trabalhadora em Itália.

Estes jovens da África Ocidental foram todos atingidos por Luca Traini, um skinhead com uma cópia do livro Mein Kampf no quarto e que foi candidato nas eleições locais do ano passado pelo partido de direita Liga do Norte (não recebeu votos). Depois dos disparos, parou junto do memorial fascista da guerra da cidade, colocou uma bandeira italiana à volta do pescoço, fez a saudação fascista e gritou "Viva l'Italia".

Traini, desempregado e a viver com a avó, pareceu interessar-se por ideias fascistas há cerca de três anos, na altura em que comprou uma Glock 0.9 com uma licença de arma de desporto. O seu instrutor de ginásio afirma que, nos últimos anos, ele esteve próximo não apenas da Liga do Norte, mas também de organizações explicitamente fascistas como a Forza Nuova e a Casa Pound. Foi expulso do ginásio em outubro, depois de fazer piadas racistas e saudações fascistas. Tem um símbolo fascista tatuado na cabeça.

Apesar de tudo isto, a maioria dos jornalistas e políticos italianos têm-se mostrado relutantes em chamá-lo de fascista, com a Repubblica, o Corriere della Sera e a RAI a optar, ao invés, por "racista", "louco" e "lobo solitário", seguindo os rituais estabelecidos através dos quais os Estados europeus e os E.U.A. protegem as organizações de supremacia branca do escrutínio público. Ele explicou a sua motivação de "querer disparar nos negros que vendem drogas".

Feminicídio e a mudança racista

Antes de parar junto do memorial de guerra fascista, Traini dirigiu-se brevemente ao local onde dois sacos tinham sido encontrados três dias antes. No interior estavam os restos mortais de uma jovem italiana, Pamela Mastropietro. Foram os eventos relacionados com a sua morte que motivaram Traini a cometer as tentativas de assassinato.

Pamela, originalmente de Roma, mudou-se em outubro para Macerata, para um centro de reabilitação de toxicodependentes. Desapareceu do centro a 30 de janeiro. Conheceu um homem italiano( que a foi buscar ao centro de reabilitação e, aparentemente, lhe pagou-lhe 50€ em troca de sexo. Posteriormente, foi comprar uma seringa a uma farmácia e, então, aparentemente, foi ao apartamento de um homem nigeriano, Innyent Oseghale. Sabe-se agora que morreu de uma overdose. Seu corpo foi depois cortado e escondido. Oseghale permanece preso e é acusado de ocultação de provas e profanação de um cadáver humano, embora não de homicídio. Traini disse que inicialmente pensou em deslocar-se ao tribunal para atacar Oseghale.

Os pais de Pamela deixaram claro que não querem colaborar na instrumentalização da morte da sua filha feita pela direita:

“Só queremos justiça. Uma pena exemplar para o homem que assassinou e cortou o corpo da nossa filha. Mas condenamos fortemente o ataque. Não somos racistas e a Pamela, se estivesse viva, estaria horrorizada com este ato terrível... Somos boas pessoas. É possível acolher bem os migrantes e a 4 de março todos podem ir às urnas sabendo como votar.”

Essas talvez tenham sido as palavras mais progressivas a alcançar os media tradicionais nos últimos dias. De facto, o efeito do ataque não foi uma polarização de pontos de vista, mas uma viragem repentina à direita. Mesmo enquanto Touré e Otiotio continuam gravemente feridos no hospital, a Forza Nuova, uma frente eleitoral neofascista, expressou a sua solidariedade com o atirador. Esta foi uma manobra imprevisível e arriscada que desencadeou uma cadeia de reações políticas. No dia seguinte, todos os partidos centristas e de direita deram um passo à direita nas suas declarações.

Matteo Salvini, da Liga do Norte, de direita, cujo partido tem desempenhado um papel central no agravamento do racismo em Itália desde há quase duas décadas (passando do ódio aos italianos do sul para os muçulmanos e para os negros), teve uma posição privilegiada nos media, culpando pelos ataques "aqueles que estão a encher o nosso país" e afirmando que "é claro que a imigração descontrolada, uma invasão organizada e financiada como a que vimos nos últimos anos, conduz a conflitos sociais".

Mas desta vez não foi apenas a Liga do Norte a falar sobre deportações e segurança: Matteo Renzi, o líder do Partido Democrata, ostensivamente do centro-esquerda, e ex-primeiro-ministro, declarou que "a Itália e os italianos devem ser defendidos pela polícia, não por homens armados”, prometendo mais dez mil polícias nas ruas. Sugeriu que, de certa maneira, Luca Traini estava a defender os italianos. O ministro do Interior, Marco Minniti, afirma que seu plano para fechar a rota do Mediterrâneo foi feito para evitar este tipo de ataques. O ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi fez uma promessa de deportar seiscentas mil pessoas caso voltasse ao poder, descrevendo a migração como uma "bomba social".

Isso deve ser reiterado: estas são as reações a um ataque armado fascista contra pessoas negras. Em Roma, um grupo de ultras (hooligans de extrema-direita) exibiu uma faixa em solidariedade com o atirador fascista.

Os apelos por polícias nas ruas e migrantes postos em aviões para África (já uma ocorrência semanal) são apoiados através de uma instrumentalização conservadora de um feminismo fraco, tão misógino no seu cavalheirismo como violento no seu racismo. Apesar das muitas vítimas dos últimos dias, a figura a ser protegida após os acontecimentos da última semana continua a ser a da mulher branca, e não as pessoas negras, homens e mulheres. Os pedidos de "justiça para a Pamela" refletem-se no arrependimento que o próprio Traini expressou por ter atirado em Jennifer, a única mulher vítima da sua raiva racista.

No contexto da misoginia violenta de Itália, isso é mais que a reabilitação de uma velha bandeira racista e fascista; equivale a uma tentativa de neutralizar os movimentos progressistas e esquerdistas ao reivindicar uma política que possa enfrentar a crescente taxa de violência contra as mulheres. Tal como a rede feminista de esquerda NON UNA DI MENO afirmou numa declaração de solidariedade com as vítimas do ataque de sábado: "O feminicídio de Pamela M. vem juntar-se àqueles cometidos nas mãos de namorados, maridos e ex parceiros, a maioria dos quais ocorrem dentro de um círculo próximo de amigos e familiares. Esta é simplesmente a ponta do icebergue de um fenômeno geral: a violência masculina contra as mulheres".

Uma maré fascista na costa oriental de Itália

Existem quatrocentos requerentes de asilo nos albergues de Macerata. Este valor é quatro vezes superior ao número recomendado pela associação de autarcas italianos em relação à população da cidade de quarenta mil pessoas. Este número aparentemente alto de requerentes de asilo, embora extremamente baixo em termos reais, provocou ainda assim reações da extrema direita na área nos últimos meses.

Sem dúvida que, para resolver esse desequilíbrio, a autarquia local deu permissão a uma cooperativa privada para abrir um albergue de emergência para requerentes de asilo na cidade vizinha de Spinetoli. No entanto, o autarca do Partido Democrata da cidade organizou uma manifestação contra a abertura do centro, criando uma aliança improvável e perturbadora com a Casa Pound, um grupo fascista extraparlamentar. Na véspera de Ano Novo, o prédio proposto para sediar os quarenta requerentes de asilo foi incendiado num ato criminoso.

As palavras dos conselheiros de direita do autarca de Macerata expressam a confusão, por vezes acidental, por vezes propositada, entre a mera existência de não nacionais em Itália e o sistema de recessão financiado pelo Estado para requerentes de asilo recém-chegados: "Suspenda o sistema de recessão na cidade. Todos vemos que não está a funcionar. Não sabemos quem temos aqui em Macerata, não sabemos quem está a dormir em tendas e sob os arcos. ... Chega disto tudo, tire os imigrantes irregulares da nossa cidade ".

Na realidade, menos de 5% da população migrante da Itália está no sistema de acolhimento. Mas isso não é o que está realmente em jogo: o debate sobre a migração é, na verdade, um debate sobre a cor da pele. Por enquanto, há poucas conversas sobre a grande onda de migração da Europa Oriental no início da década de 1990, na qual Macerata – que se encontra na costa leste de Itália - foi testemunha em primeira mão. Embora a violência contra os norte-africanos, que compõem as comunidades históricas não-europeias da Itália continue, estes já não representam o alvo exclusivo da vilificação praticada pela direita. Na verdade, o grande "outro" da Itália é agora o homem negro.

E, mais uma vez, é na região de Marche que isso é demonstrado. No verão de 2016, Emmanuel Chidi Nnamdi, um refugiado nigeriano, foi morto em Fermo, outra cidade costeira da região, a meio caminho entre Spinetoli e Macerata. Foi assassinado na rua por um ultra do futebol, Amadeo Mancini, depois deste último ter começado uma discussão ao chamá-lo de "macaco africano". O assassino recebeu amplo apoio dos Fermo Ultras. Mais tarde, um juiz decidiu que Nnamdi havia infligido o primeiro golpe e Mancini foi solto em maio do ano passado.

De acordo com a ANPI e outras associações antifascistas, os grupos fascistas formais estão em ascensão em toda a Itália, especialmente nas regiões centro-norte. O quase massacre daquele sábado parece inserir-se neste padrão de eventos.

Racialização da luta de classes

No entanto, não é isto que representa a real ameaça para a sociedade italiana: o fascismo em Itália representa o epifenómeno do sentimento popular, o momento organizacional do que é realmente um movimento social. Pois a luta racial em Itália é, no fundo, uma situação particular de uma luta de classes mundial a ser jogada numa península europeia, nas ilhas mais próximas do Equador do que Tunis.

Os elementos centrais desta luta são o sistema de acolhimento e os campos de trabalho. O sistema de acolhimento italiano difere dos de muitos países, já que quase todo o apoio aos requerentes de asilo (e isso significa que 90 por cento dos que chegam por mar) é canalizado através de centros público-privados. Estes variam de pequenos albergues onde habitam quinze ou vinte pessoas, a acampamentos e ex-quartéis do exército que alojam vários milhares no meio do nada. A maioria são ex-hotéis e antigos lares de idosos nas zonas mais distantes de pequenas cidades e onde habitam entre cinquenta a cem pessoas.

Apesar dos esforços em contrário do governo, os conselhos municipais recusam-se a abrir albergues pequenos e mais integrados e, em vez disso, acabam por ter a autarquia (essencialmente a polícia municipal) a impor centros de maiores dimensões. O resultado é um aumento exponencial de um sistema de emergência que gera lucros às empresas privadas, mas que faz muito pouco para ajudar os requerentes de asilo a obter emprego ou até mesmo a aprender o italiano mais rudimentar. Mas também ajuda a reforçar a divisão racial na classe trabalhadora, mantendo uma forte separação entre negros e brancos, sendo que os primeiros ficam escondidos nos albergues (sem os quais não têm apoio estatal) e os últimos estão presos numa espiral de desemprego e de serviços estatais reduzidos.

O sistema italiano de acolhimento consegue assim repetir a formação da raça numa base diária e, de forma espetacular, na medida em que o desvio dos requerentes de asilo para albergues e acampamentos também fornece uma imagem de divisão racial que vai além dos próprios requerentes: os italianos vêem cada vez mais a imigração como sinónimo de homens negros em albergues de gestão estatal, e não como homens, mulheres e crianças que fazem viagens perigosas à procura de uma vida melhor.

De Veneza a Sicília, os protestos dos requerentes de asilo contra as condições e o isolamento dos albergues são eventos diários. A violência causada por, e usada para impor, estas divisões não é simplesmente metafórica: podemos apontar para a morte de Sandrine Bakayoko, uma jovem mulher da Costa do Marfim, que morreu no antigo e isolado quartel do exército, em Conetta, enquanto aguardava uma ambulância no início do ano passado, ou Bobb Alagie, um jovem gambiano alvejado na boca pelo gerente de seu albergue perto de Nápoles, há alguns meses (sobreviveu, mas agora está literalmente sem voz).

Apesar da consistência dos protestos dos requerente de asilo, a esquerda italiana, na maior parte, não vem em sua defesa. Diante do crescente sentimento de direita que rejeita a ideia de apoio estatal a pessoas negras, a esquerda foi forçada a dar um passo atrás, tendo de defender a mera ideia de imigração. O espaço político para criticar o negócio corrupto da acomodação dos requerentes de asilo está a ser tomado pela direita - como se pode ver na reação a Macerata, com um jornal de direita publicando em capa "Mina de Ouro de Refugiados de Macerata", criticando a cooperativa que administra o albergue onde o suposto homicida de Pamela esteve hospedado. Isto acontece apesar de muitos dos centros serem geridos com fins lucrativos não só pela máfia, mas também pelos próprios políticos de centro-direita.

Os campos de trabalho fornecem a mesma divisão, mas para os negros que estão fora do sistema de acolhimento. Se muitos setores da economia italiana dependem da mão de obra migrante (incluindo indústria, construção, serviços e logística), o setor agrário depende inteiramente destes. Os lucros derivam da hiper exploração no campo, em que os trabalhadores negros, árabes e asiáticos vivem em cidades de tendas que lembram as hoovervilles e bairros de barracas.

O sistema, mais uma vez, conduz e é imposto pela violência: há apenas três semanas, Becky Moses, um jovem nigeriano requerente de asilo, foi morto durante o incêndio que varreu o acampamento em Rosarno, onde mais de mil pessoas perderam suas casas temporárias e todos os seus pertences. Estas são as pessoas invisíveis que, apesar de serem alvejadas naquele sábado, nunca foram à polícia. Os hiper-explorados.

A situação de muitas mulheres negras em Itália é ainda mais marcada pela violência e pela exploração. A indústria do sexo no país tem ainda menos proteção sindical ou direitos laborais do que o setor agrícola; embora nem sempre seja o caso, é extremamente frequente que as mulheres negras estejam presas no setor através de uma espiral de dívidas combinada com redes internacionais de violência masculina.

O proletariado negro de Itália é explorado em todos os setores, desde o negócio do "humanitarismo" e das colheitas de azeitona, ao comércio sexual e aos cartéis de droga. Na própria província de Marchese, o cada vez maior comércio de heroína que vem do Paquistão através dos Balcãs, que reivindicou finalmente a vida de Pamela Mastropietro (e tem reivindicado muitas outras nos últimos anos), depende do trabalho violento de jovens nigerianos como Innocent Oseghale - mas para o lucro de chefes da máfia como Andrea Reccia, que foi candidato no partido de Berlusconi.

“A verdadeira ferida não é aquela que se consegue ver”

A violência a que os migrantes são agora sujeitos em Itália estende-se das cidades ao campo, de homens a mulheres, asiáticos e africanos. Não se limita aos atos de fascistas tatuados que atacam nas ruas, mas faz parte de um amplo sistema de exploração e racialização que se desenrola diariamente em todo o país. E, para reiterar, esta não é uma violência metafórica: é organizada e armada, e é protegida diretamente pelas instituições, como é o caso dos assassinos que andam à solta, ou indiretamente por negligência deliberada, como é o caso dos campos de trabalho e dos albergues.

Nos primeiros anos após a queda de Muammar Gaddafi e a reabertura da rota da Líbia, a esquerda conseguiu criar uma narrativa de Itália como país-herói marítimo que, num ato de solidariedade internacional e cristã, resgata os migrantes no mar. Em 2013, a missão Mare Nostrum foi a gloriosa versão estatal dos heróicos pescadores de Lampedusa. Mas a crise da fronteira europeia de 2015 e o subsequente sistema Hotspot) (aplicando o acordo de Dublin) eliminaram a pressão dos migrantes recém-chegados que podiam reivindicar asilo noutros países. E deixou claro que a tolerância de Itália foi construída sobre bases frágeis.

O único político da oposição que visitou os feridos no hospital foi o secretário geral do Partido da Refundação Comunista, candidato na lista de esquerda Potere al Popolo. Mas, nesta fase, a esquerda tem quase tão pouca voz como Bobb Alagie: alvejado na boca pela máfia, pelo fascismo e os anos de retórica racista e políticas estatais às quais mal se conseguiu opor, muito menos evitar.

Assim, o que o tiroteio de Macerata mostrou não é apenas que o fascismo organizado e armado ainda é possível em Itália. Esta é uma verdade perturbadora, mas talvez não chocante. Muitos afirmam que o fascismo nunca morreu na Itália e a história violenta dos movimentos armados no final da década de 1970 e no início dos anos 80 mostrou um fio preto, a par com um vermelho. Muito mais do que isso, é a reação ao tiroteio - de políticos, meios de comunicação social e público italiano - que revelou algo muito pior: a xenofobia italiana atingiu tanta intensidade nos últimos anos que as ações de um fascista, num país que tem a proibição do fascismo inscrita na constituição, podem ser desculpadas, desde que os alvos sejam negros.

Quem vencer as eleições em 4 de março terá de combater ou seguir a onda da nova tempestade racista em Itália. Se quisermos vencer as forças do racismo e do fascismo, os progressistas europeus devem mostrar solidariedade com a classe trabalhadora internacional na sua batalha diária nos campos de trabalho e albergues italianos, pela liberdade de movimento e por um futuro livre de exploração.

Sobre o autor

Richard Brodie é tradutor e organizador anti-racista em Palermo, Itália.

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