30 de junho de 2012

A vitória eleitoral do islã político no Egito

Samir Amin


A vitória eleitoral da Irmandade Muçulmana e dos Salafistas no Egito (Janeiro de 2012) não constitui qualquer surpresa. O declínio provocado pela atual globalização capitalista produziu o extraordinário desenvolvimento de supostas atividades «informais», as quais sustentam mais de metade da população egípcia (as estatísticas apontam para 60%). Este declínio coloca a Irmandade Muçulmana numa excelente posição, permitindo-lhe não só obter daí vantagens como perpetuar a sua reprodução. O seu simplismo ideológico confere legitimidade a uma miserável economia de bazar, completamente hostil às exigências de qualquer desenvolvimento digno desse nome. Os meios financeiros que lhes são concedidos pelos Estados do Golfo permitem-lhes traduzir tal ideologia numa ação eficaz: ajuda financeira à economia informal e serviços caritativos (clínicas, etc).

Desta forma, a Irmandade Muçulmana coloca-se no centro da sociedade, fazendo-a de si depender. Os países do Golfo nunca tencionaram apoiar o desenvolvimento dos países árabes, por exemplo, através do investimento industrial. Eles apoiam uma espécie de «lumpen-desenvolvimento» – recorrendo ao termo originalmente cunhado por André Gunder Frank – que aprisiona as respetivas sociedades numa espiral de pauperização e exclusão. Algo que, por sua vez, reforça o estrangulamento da sociedade por parte do Islão reacionário.

Tal não aconteceria tão facilmente não fosse a perfeita consonância com os objetivos delineados pelos Estados do Golfo, Washington e Israel. Os três aliados partilham da mesma meta: impedir a recuperação do Egito. Um Egito forte e assertivo significaria o fim da tripla hegemonia do Golfo (submissão a um discurso de islamização social), dos Estados Unidos (um Egito vassalo e pobre permanece sob a sua influência direta) e de Israel (um Egito sem poder não intervém na questão palestiniana).

A corrida dos regimes ao neoliberalismo e à submissão a Washington foi imediata e total, tanto no Egito de Sadat, como (de forma mais gradual e moderada) na Argélia e na Síria. Parte do sistema de poder, a Irmandade Muçulmana não deve ser encarada apenas como mais um «partido islâmico», mas como um partido ultrarreacionário que, mais do que tudo, é islâmico. Não se trata apenas dos denominados «assuntos sociais» (o véu, a sharia, a discriminação anticóptica), mas igualmente, num mesmo grau, das áreas fundamentais da vida económica e social: a Irmandade é contra as greves, as reivindicações dos trabalhadores, os sindicatos independentes, o movimento de resistência às expropriações de terras, etc.

O planeado fracasso da «revolução egípcia» garantiria, então, a perpetuação do sistema, vigente desde Sadat e fundado sob a aliança entre altos comandos militares e o Islão político. Seguramente, a vitória eleitoral permitirá à Irmandade exigir um poder superior ao que lhe foi concedido pelos militares. No entanto, uma revisão da distribuição dos benefícios a favor da Irmandade poderá ser difícil.

A primeira volta das eleições presidenciais de 24 de Maio foi organizada de forma a alcançar a meta perseguida pelo sistema no poder e por Washington: o reforço da aliança entre os dois pilares (altos comandos militares e a Irmandade Muçulmana) e a resolução do seu desacordo; no fundo, a qual dos dois pertenceriam as rédeas. Os dois candidatos «aceitáveis» – Morsi, da Irmandade (24%) e Chafiq, candidato dos militares (23%) – foram os únicos a receber os meios adequados à organização de campanhas partidárias. O candidato do movimento, H. Sabbahi, não auferiu dos meios geralmente concedidos aos candidatos, conseguindo alegadamente apenas 21% dos votos (o valor é questionável).

No fim das prolongadas negociações, concluiu-se que Morsi era o «vencedor» da segunda volta. A Assembleia, à semelhança do presidente, foi eleita graças à massiva distribuição de víveres (carne, petróleo e açúcar) por aqueles que votaram nos Islâmicos. E, contudo, os «observadores internacionais» foram incapazes de apontar tal situação, abertamente ridicularizada. A dissolução da Assembleia foi retardada pelos militares, os quais permitiram que a Irmandade auferisse do tempo necessário para se desacreditar, devido à sua recusa em lidar com assuntos de cariz social (emprego, salários, educação e saúde!).

O sistema vigente, «presidido» por Morsi, é a melhor garantia de um lumpen-desenvolvimento e da destruição das instituições do Estado. Tais objetivos, perseguidos por Washington, certamente decorrerão. Veremos como o movimento revolucionário, fortemente comprometido com a luta pela democracia, o progresso social e independência nacional, evoluirá após a farsa eleitoral.

25 de junho de 2012

Eleição é um marco, mas resultado sugere negociação com militares

Salem H. Nasser

Folha de S.Paulo

Ao final, o vencedor levou. Mas isso não significa, necessariamente, que as instituições funcionaram.

Desde o começo das revoltas no mundo árabe, tem-se perguntado se a democracia é possível naquelas paragens.

E ainda que não seja fácil definir exatamente uma democracia ou se pode haver mais de um tipo, talvez seja seguro dizer que tem a ver com o desenho de instituições sadias e que essas funcionem de modo a reduzir o exercício arbitrário do poder.

Nos últimos dias, no Egito, as instituições do Estado tomaram decisões que evidentemente serviam a dar uma roupagem elegante ao arbítrio e aos desvios de poder.

Será uma exceção a decisão que declarou vitorioso o vencedor de fato?

A dúvida é legítima. A demora do anúncio não podia se justificar senão porque algo estava sendo cozinhado em outra cozinha e, por um bom momento, pensou-se que o candidato do regime seria declarado vencedor.

Há algumas hipóteses. Os militares talvez estivessem testando a disposição popular e a dos partidários da Irmandade para saber se passaria uma vitória de Ahmed Shafiq. Ou estavam negociando com a Irmandade e com os interessados externos, entre eles os EUA, um novo status quo de compromisso.

O fato de que um tal acordo foi costurado e era do conhecimento de muitos se fez sentir nas rápidas boas-vindas que muitos, inclusive Israel, deram ao resultado.

Aceitou-se o inevitável, mas conta-se com a capacidade dos militares de assegurar que a Presidência seja despida de poderes e, por isso mesmo, que a Irmandade fracasse na função.

Aos olhos do Ocidente, ou de parte dele, estaria assim desenhado um paradoxo, ou absurdo, do tipo que vigorou na Turquia por tanto tempo: os militares garantindo uma democracia para a qual os islamitas seriam um perigo.

Ainda assim, a chegada da Irmandade à Presidência é um evento de monumental importância.

A Irmandade, que há muito vem fazendo prova de uma crença tranquila em sua própria força, faz também os seus cálculos e acredita poder disputar o Egito com os militares e com forças externas. Tenha ou não havido um acordo que inclua a Irmandade Muçulmana, esse jogo acaba apenas de começar.

SALEM H. NASSER é coordenador do Centro de Direito Global da Faculdade de Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas)

21 de junho de 2012

Por que eles não estavam agradecidos?

Pankaj Mishra

London Review of Books


Patriot of Persia: Muhammad Mossadegh and a Very British Coup por Christopher de Bellaigue
Bodley Head, 310 pp, fevereiro 2012, ISBN 978 1 84792 108 6

Tradução / Em 1890, um ativista muçulmano itinerante de nome Jamal al-din al-Afghani estava no Irã, quando o então governante Naser al-Din Shah Qajar, entregou uma concessão de tabaco a um empresário britânico, G.F. Talbot, que, na prática, lhe garantia um monopólio de compra, venda e exportação. Al-Afghani chamou a atenção, sob um coro de aprovação de intelectuais seculares e também de comerciantes conservadores, que os plantadores de tabaco ficariam à mercê de infiéis, e a sobrevivência dos pequenos distribuidores, destruída. Organizou grupos de pressão em Teerã – inovação política até então desconhecida no país – que enviaram cartas anônimas a funcionários e distribuíram panfletos e cartazes conclamando os iranianos a se revoltarem. Na primavera seguinte, eclodiram protestos furiosos nas principais cidades. Ajudados pelo telégrafo, então recém introduzido no país, os manifestantes reunidos no Protesto do Tabaco – como se tornou conhecido – foram tão cuidadosamente coordenados como novamente o seriam na Revolução Islâmica de Khomeini cem anos depois, quando fitas-cassetes fizeram o papel do telégrafo e as mulheres participaram em grande número.

Al-Afghani também escreveu ao Aiatolá Mirza Hassan Shirazi em Najaf, dando ao clérigo xiita e imensamente influente embora apolítico, uma precoce lição sobre os "ajustes estruturais" que os financistas ocidentais viriam a aplicar aos países pobres: "O que os fará compreender o que é o Banco?", perguntava ele. "Significa entregar completamente as rédeas do governo ao inimigo do Islã, a escravização do povo àquele inimigo, a rendição do povo e de todo domínio e autoridade, entregue ao inimigo estrangeiro". É possível que Al-Afghani tenha exagerado. Mas ele sabia, de suas experiências na Índia e no Egito, o quão rapidamente comerciantes e banqueiros ocidentais aparentemente inócuos podem converter-se em diplomatas e em soldados. O xá, imprestável, já havia cedido a relativa imunidade do Irã aos imperialistas informais europeus. Em 1872, com o país já exaurido de capitais e padecendo sob o peso de massivo déficit no orçamento, cedera um monopólio para construção de ferrovias, estradas, fábricas, barragens e minas a outro cidadão britânico, o Barão Reuter (fundador da agência de notícias de mesmo nome). Até Lord Curzon surpreendeu-se vinte anos depois, quando soube dos termos do negócio, e descreveu-o como "a mais completa rendição de todos os recursos de um reino que se entrega a mãos estrangeiras, com que alguém algum dia sonhou, nem com muito menos do que isso, em toda a história". Protestos da Rússia, vizinha do Irã e grande rival dos britânicos na região, fizeram naufragar essa negociação específica; mas Reuter tinha outros ferros no fogo.

Feita apenas oito anos depois de os britânicos terem ocupado o Egito, a concessão-dádiva do tabaco pareceu obscena a al-Afghani. Expulso do Irã pelo xá, ele sustentou uma barragem de cartas endereçadas a todos os mais influentes clérigos xiitas nas cidades sagradas da Mesopotâmia, pedindo que saíssem eles também da apatia em que viviam e se erguessem contra o xá. Pouco meses depois, Shirazi escreveu sua primeira carta sobre tema político ao xá, denunciando bancos estrangeiros e o poder crescente que estavam adquirindo sobre a população muçulmana, e as concessões comerciais feitas a europeus. O xá, desesperado para manter a seu favor o corpo de clérigos, estudiosos do Islã e homens santos [ulema], enviou intermediários para negociar com Shirazi. Em vez de ceder, o clérigo emitiu uma fatwa que declarava anti-islâmico o hábito de fumar, até que o monopólio fosse cancelado. Foi espantosamente bem-sucedido – até o palácio do xá tornou-se área sem fumo. Finalmente, o xá capitulou a uma aliança de intelectuais, clericato e comerciantes nativos e, em janeiro de 1892, cancelou a concessão do tabaco.

Nessa época, Muhammad Mossadegh era o muito precoce filho de nove anos de um alto funcionário que trabalhava para o xá. Homa Katouzian, seu biógrafo anterior em inglês, atribui a consistente oposição de Mossadegh a "qualquer tipo de concessão a qualquer potência estrangeira" à impressão profunda que lhe causara a fúria popular contra os enclaves europeus que visavam a minar a soberania do Irã. Mossadegh, cuja família pertencia à nobreza e que ainda menino recebeu o título de mussadiq al-saltaneh, "garantidor da monarquia", foi um bem improvável líder da transição do Irã, de monarquia dinástica, para a política de massas. Mas cresceu em tempos de agitação política sem precedentes em toda a Ásia.

Intelectuais e ativistas asiáticos começaram a desafiar o poder arbitrário dos imperialistas ocidentais e seus aliados nativos no final do século XIX. A primeira geração incluiu polemistas como al-Afghani, que congregou em volta dele jovens anti-imperialistas cheios de energia, mas desorganizados, em Cabul, Istanbul, Cairo e Teerã. A geração seguinte produziu homens como Mossadegh, que sabiam da vida no ocidente ou foram educados em instituições de estilo ocidental e eram mais bem equipados para oferecer aos compatriotas, cada vez mais mobilizados, uma ideologia e uma política coerentes de nacionalismo e anticolonialismo.

Na biografia politicamente astuta que Christopher de Bellaigue construiu, Mossadegh não é o "velho bruxo tolo" e "Scheherazade birrento" de incontáveis memórias e matérias jornalísticas anglo-americanas, mas membro "daquela geração de asiáticos educados à ocidental que voltaram para casa com bigodes elegantemente aparados, para vender liberdade aos seus compatriotas": "Apaixonados pela mesma amante, A Pátria, esses turcos, árabes, persas e indianos vieram a liderar movimentos anticoloniais que transformaram o mapa do mundo." Mossadegh tinha mentalidade mais democratizante que Atatürk, por exemplo: de Bellaigue o chama de "primeiro líder liberal do Oriente Médio moderno" – sua "concepção de liberdade era tão sofisticada quanto qualquer outra na Europa ou na América". Mas foi menos bem-sucedido que seus heróis, Gandhi e Nehru; estava chegando aos 70 anos, hipocondríaco, quando afinal se tornou primeiro-ministro do Irã em 1951. Teve a má sorte de ser liberal-democrata num momento em que, como Nehru observou, com os canhões dos navios britânicos ditando o rumo da política egípcia, "democracia, para país oriental, parecia significar uma única coisa: levar adiante os planos e ordens do poder imperialista reinante." Embora mais focados e mais cheios de recursos que al-Afghani, liberais moderados como Mossadegh frequentemente se tornavam presas fáceis para as trapaças imperialistas. Jamais tiveram senão uns poucos aliados simbólicos no ocidente e, em casa, eram desprezados pelos linhas-duras que, adiante, assumiram a tarefa pós-colonial de construir dignidade e força nacionais. Khomeini, para citar um nome, sempre falou com desdém do fracasso de Mossadegh, que não soube proteger o Irã contra o ocidente.

Iranianos liberais e iranianos radicais citam vários casos em que o país foi humilhado pelo ocidente no século XIX, quando era dominado por britânicos e russos. Os eventos do início do século 20 minaram ainda mais a autonomia política, num momento em que as instituições políticas estavam sendo liberalizadas (resultado da Revolução Constitucionalista de 1905-7, fora criado um Parlamento). Na Primeira Guerra Mundial, Grã-Bretanha e Rússia primeiro ocuparam e depois dividiram o país, para manter longe os exércitos otomano-alemães. O fim da guerra não trouxe qualquer alívio. O Exército Vermelho ameaçava pelo note e os britânicos, já fracionando os territórios do Império Otomano, viram uma chance para anexar o Irã. Lorde Curzon, agora secretário do Exterior e convencido, como disse Harold Nicolson, de que "Deus selecionou pessoalmente a classe alta britânica como um instrumento da Vontade Divina", elaborou um acordo anglo-persa que era quase inteiramente destrutivo da soberania iraniana.

Diz-se que Mossadegh chorou ao saber do acordo. Em desespero, decidiu viver o resto da vida na Europa. Como depois se viu, Curzon, que jamais soube interpretar corretamente o ânimo nativo, avaliou mal o sentimento iraniano. O acordo foi denunciado; membros pró-britânicos do parlamento iraniano, Majlis, foram fisicamente atacados. Ante tal oposição, Curzon fincou pé: "Essa gente tem de aprender custe a eles o que custar, que não podem prosseguir sem nós. Pouco me importa se tiver de esfregar o nariz deles na poeira." Apesar da teimosia de Curzon, a revolta iraniana realmente enterrou o acordo anglo-persa. Mas já havia outro arranjo desigual que amarrava o Irã à Grã-Bretanha. Presciente, comprando ações do governo na empresa de petróleo anglo-persa Anglo-Persian Oil Company (APOC) em 1913, Winston Churchill já dera jeito de assegurar que 84% dos lucros da empresa viajassem diretamente para a Grã-Bretanha. Em 1933, Reza Khan, um soldado autodidata que aproveitara o caos do pós-guerra para abocanhar o poder e fundar uma nova dinastia governante (para grande desgosto de Mossadegh), já negociara novo acordo com a APOC, impressionantemente parecido com o primeiro. Durante a Segunda Guerra Mundial, tropas britânicas e russas novamente ocuparam o país, e os britânicos trocaram o xá reinante, afobadamente pró-nazistas, pelo filho dele, Muhammad Reza.

Naqueles anos, a política britânica era dominada pelo que Bellaigue chama, sem exagero, de "profundo desprezo pela Pérsia e seu povo" – o que serviu de faísca, não só para o moderno nacionalismo iraniano, mas, também, pela suspeita, que parece inafastável, de que a Grã-Bretanha sempre será "força maligna". Quando em 1978 o xá chamou Khomeini de agente britânico, usou a expressão como ofensa grave; o ataque acabou saindo-lhe pela culatra, porque marcou o início do primeiro dos movimentos de massa contra seu reinado. APOC, já rebatizada como Anglo-Iranian Oil Company em 1935, gerou gordos lucros de $3 bilhões entre 1913 e 1951, mas apenas $624 milhões permaneceram no Irã. Em 1947, o governo britânico recebeu £15 milhões em impostos só sobre os lucros da empresa, enquanto o governo do Irã ficou com metade dessa soma, em royalties. A empresa também excluiu iranianos da administração e impediu que Teerã examinasse as contas.

O crescente sentimento antibritânico finalmente levou o xá Muhammad Reza a nomear Mossadegh como primeiro-ministro no início de 1951. Os nacionalistas iranianos, então, já reuniam partidos secularistas e partidos religiosos e partidos da esquerda comunista e não comunista. Mossadegh, que, como escreve de Bellaigue, "era o primeiro e único estadista iraniano a comandar todos os ramos nacionalistas", tratou rapidamente de nacionalizar a indústria do petróleo. Dezenas de milhares ocuparam as ruas para saudar os funcionários mandados de Teerã para assumir o comando das instalações britânicas de petróleo em Abadan, beijando os carros cobertos de poeira – um dos quais pertencia a Mehdi Bazargan, que adiante seria o primeiro primeiro-ministro da República Islâmica do Irã. O embaixador dos EUA relatou que Mossadegh tinha o apoio de 95% da população; e o xá contou ao diplomata Averell Harriman que não se atrevera a dizer uma palavra em público contra a nacionalização. Mossadegh sentiu-se conduzido nas asas da história. "Centenas de milhões de asiáticos, depois de séculos de exploração colonial, ganharam afinal a liberdade e a independência", disse ele na ONU em outubro de 1951: os europeus reconheceram os clamores por soberania e dignidade nacional da Índia, da Indonésia, do Paquistão – por que continuaram a ignorar o Irã?

Foi apoiado por uma ampla coalizão de novos países asiáticos. Até o delegado de Taiwan, que ganhou lugar na ONU à custa da República Popular da China de Mao, lembrou aos britânicos que "longe vão os dias quando o controle da indústria iraniana de petróleo podia ser partilhado com empresas estrangeiras." Outros regimes pós-coloniais nacionalizariam em pouco tempo as respectivas indústrias nacionais do petróleo, adquirindo assim o controle sobre os preços internacionais e expondo as economias ocidentais a choques graves. Mas os britânicos, enraivecidos pela impertinência de Mossadegh e desesperadamente carentes de retorno do que era o maior investimento dos britânicos no além mar, nada viam e nada ouviam.

A Grã-Bretanha já não podia sustentar o próprio império, mas, como de Bellaigue destaca, em muitos locais, "particularmente no Irã, homens de bochechas rosadas andavam de casaca, de um lado para o outro, como se nada estivesse acontecendo". Muitos deles estavam na diretoria da Anglo-Iranian Oil Company – e, como um deles confessou, estavam "desamparados, ansiosos, sem qualquer ideia comum a todos, confusos, sem perspectiva, cegos". Ainda convencidos de que "tinham prestado enorme favor aos iranianos por encontrar e extrair petróleo", os britânicos rejeitaram uma proposta, apoiada pelos EUA, de que os lucros fossem partilhados igualmente, e lançaram um bloqueio devastadoramente efetivo contra a economia iraniana. "Se nos curvamos a Teerã, amanhã nos curvamos a Bagdá", disse o Express, com lógica Curzoniana.

O retorno de Churchill a Downing Street em 1951, empoderou ainda mais os neoimperialistas: o Daily Mail exortava o governo a "fazer alguma coisa antes que a podridão se dissemine ainda mais". Rapidamente cresceu um consenso anti-Mossadegh, mesmo entre os liberais. Em 1891, al-Afghani desafiara a imagem criada por Reuter, de iranianos lutando por soberania como fanáticos religiosos, suspeitando que houvesse alguma relação com interesses comerciais britânicos no Irã. Em 1951, o Observer de David Astor não protegia menos os interesses britânicos ao apresentar Mossadegh como 'fanático" e "trágico Frankenstein... obcecado com uma única ideia xenofóbica".

"Havia preocupação em todo o mundo branco", escreve de Bellaigue, ante o "show de maus modos orientais de Mossadegh". O departamento de Relações Exteriores da Grã-Bretanha iniciou uma campanha para persuadir o público dos EUA da correção da causa britânica, e a imprensa dos EUA rapidamente aderiu. O New York Times e o Wall Street Journal compararam Mossadegh a Hitler, ainda que seu populismo ocasionalmente autoritário tivesse de enfrentar um parlamento dividido e uma crescente oposição interna formada de comerciantes, proprietários de terra, saudosos da realeza, militares e clérigos de direita (alguns dos quais garantiriam a entrada de que careciam os aventureiros da CIA e do MI6). Em The US Press and Iran: Foreign Policy and the Journalism of Deference (1988), William Dorman e Mansour Farhang mostram que nenhum grande jornal nos EUA sequer algum dia noticiou as manifestações dos iranianos contra a AIOC. Em vez disso, o Washington Post dizia que o povo do Irã não era capaz de sentir "gratidão". Rememorando aqueles tempos, com remorso tardio, o correspondente do New York Times em Teerã, Kennett Love, descreveu Mossadegh posteriormente como "homem razoável", atuando sob "pressões nada razoáveis". Mas o próprio Love foi sutilmente coagido a acompanhar os que chamou de seus "editores obtusamente pró-establishment" em New York, e a colaborar com a embaixada dos EUA.

Tendo proclamado o "Século Norte-americano", o Time de Henry Luce assumiu interesse direto no Irã rico em mercadorias, argumentando que os "russos podem intervir, passar a mão no petróleo e até disparar a Terceira Guerra Mundial". Já decididos a derrubar Mossadegh, os britânicos não tardaram a explorar a crescente obsessão dos EUA com o expansionismo soviético: o Irã seria como um teste de como "desqualificar" o nacionalismo asiático associando-o ao comunismo. Encontraram audiência receptiva nos irmãos Dulles, o secretário de Estado e o diretor da CIA no novo governo de Eisenhower em 1953.

Apoiado em fontes persas, de Bellaigue apresenta relato bem informado da "Operação Ajax", o golpe de CIA/MI6 que derrubou o governo de Mossadegh e impôs o Xá Reza Pahlavi como todo-poderoso governante do Irã em agosto de 1953. A história da destruição, por forças anglo-americanas, das esperanças do Irã de estabelecer-se como moderno estado liberal já foi contada várias vezes, mas a mensagem de 1953 ainda não parece ter sido absorvida. Ainda em 1964, Richard Cottam, adido político na embaixada dos EUA nos anos 1950 e depois professor especialista em Irã, alertava que as "distorções" distribuídas pela imprensa e por acadêmicos relacionadas à era Mossadegh beiraram o "grotesco, e até hoje parece que praticamente não há qualquer esperança de alguma política exterior norte-americana sofisticada para o Irã." (Cottan teria acrescentado "ou para todo o Oriente Médio".) O New York Times resumiu o clima neoimperial de imediatamente depois do golpe: "Países subdesenvolvidos ricos em recursos têm agora lição bem concreta do alto preço que terá de pagar qualquer deles que se deixe tomar por nacionalismo fanático."

Apesar de ter sido informado repetidas vezes por Kennett Love, o Times nunca fez qualquer referência ao papel central que teve a CIA na derrubada de Mossadegh – e foi a primeira grande operação da Guerra Fria, da então desconhecida agência. Ao festejar a visita oficial do xá aos EUA em 1954, o Times exultava: "Hoje Mossadegh está onde tem de estar – na cadeia. E o petróleo volta a correr para os livres mercados do mundo." O Irã, prosseguia o jornal, caminha "rumo a novos e auspiciosos horizontes". A imprensa americana, que começara a denunciar Mossadegh como o Führer iraniano, aplaudia agora os esquemas de modernização faraônica do xá. Foi pelo menos em parte resultado da prodigalidade com que recebeu os barões da mídia americana, dentre os quais, segundo lista que os revolucionários divulgaram em 1979, estavam Walter Cronkite, Barbara Walters, Peter Jennings e Mrs. Arthur Sulzberger.

Reforçado por esse apoio, o antes tímido xá começou a exibir sintomas da síndrome que al-Afghani já identificava em um de seus predecessores: "Por bizarro que pareça, fato é que, cada vez que o xá voltava de uma de suas visitas à Europa, aumentava a crueldade e a tirania contra o próprio povo." Com certeza a imprensa americana não tinha tempo a perder com opiniões de iranianos comuns, para quem, como de Bellaigue destaca, os EUA, em 1953, já se haviam tornado "quase do dia para a noite", "cúmplices do xá na injustiça e na opressão". Empresas americanas ganharam fatia de 40% da produção de petróleo depois da derrubada de Mossadegh, e no início dos anos 1960, intelectuais iranianos, muitos dos quais forçados ao exílio, já começavam a examinar, como Jalal al-e Ahmad escreveu em Gharbzadegi (traduzido imperfeitamente como Weststruckness), como foram completamente ignorados enquanto outras pessoas mudaram-se "indo e vindo para nosso meio, até que acordamos, para ver cada torre de petróleo como um espinho empalando a terra".

A hostilidade iraniana contra os EUA cresceu, com os negócios entre a CIA e os carrascos e torturadores da polícia secreta do xá. Até irromper em 1979, chocando políticos e a opinião pública americana, que buscavam interpretar os eventos revolucionários em interpretações do "Islã", exatamente como fizeram depois de 11/9. Não tinham como compreender que, como acontecera no Protesto do Tabaco de 1891 e no levante nacionalista que levou Mossadegh ao poder, brotara uma ampla coalizão iraniana contra o xá e seus aliados estrangeiros. De fato, nos primeiros dias da revolução, Mossadeghistas como Bazargan pareciam tão fortes quanto seus aliados socialistas e islâmicos. Foram Jimmy Carter, ao oferecer asilo ao xá em 1979, e o ataque de retaliação contra a embaixada dos EUA em Teerã, que fizeram pender a balança a favor dos revolucionários islâmicos.

O ataque brutal de oito anos de Saddam Hussein contra o Irã, cnicamente assistido pelos EUA, consolidou os republicanos islâmicos ao mesmo tempo em que fortalecia a imagem popular do Grande Satã. Sempre pressionados, reformadores liberalizantes em torno de Mohammad Khatami foram ainda mais enfraquecidos pela repentina inclusão do Irã, por George W. Bush, no seu "eixo do mal". Desde então, as invasões e ocupações americanas só confirmaram a percepção, predominante no Irã, de que o ocidente é pateticamente incompetente e culpado do que Khomeini chamou de istikbar i jahani ("arrogância global").

A guerra entre o Irã e os Estados Unidos nunca pareceu mais provável do que nos últimos meses, enquanto políticos e jornalistas norte-americanos apoiam obedientemente a fanfarronice de Binyamin Netanyahu. Há poucos sinais na imprensa mainstream aqui ou nos EUA de que alguém esteja prestando atenção a De Bellaigue e a outros escritores estudiosos sobre o Irã. Uma recente resenha do The Guardian sobre o livro de De Bellaigue alegou que o xá "trouxe ao Irã uma prosperidade, segurança e prestígio desconhecidos desde o século XVII. Mahmoud Ahmadinejad, um banqueiro oportunista cujo apoio está diminuindo e que sofre a desaprovação do líder supremo, é rotineiramente retratado como o próximo Hitler.

17 de junho de 2012

Antes do dilúvio

Quase um século de ambientalismo depois, mundo segue clivado entre os oásis dos 1% mais ricos e imundas cidades para o resto

Juliana Sayuri e Ivan Marsiglia


Florescem cenários apocalípticos nas críticas do urbanista norte-americano Mike Davis, para quem o futuro está sendo gestado em megalópoles convulsionadas. E será um futuro noir, solapado por catástrofes superlativas, guerras e pandemias de toda sorte. "A Rio+20 tem tanta chance de salvar o mundo como uma convenção de entusiastas do esperanto", ironiza o também historiador e fundador da New Left Review.

Autor de Cidades Mortas, Ecologia do Medo e Holocaustos Coloniais (Editora Record), Apologia dos Bárbaros, Cidade de Quartzo e Planeta Favela (Boitempo Editorial), Michael Ryan Davis cresceu no deserto californiano de El Cajon, foi aprendiz de açougueiro, caminhoneiro e militante estudantil. Atualmente, leciona na Universidade da Califórnia, em Riverside, de onde concedeu esta entrevista exclusiva ao Aliás.

Qual é sua expectativa para a Rio+20?

A Conferência tem tanta chance de salvar o mundo como uma convenção de entusiastas do esperanto ou um encontro de seguidores de Zoroastro. Há sérios pontos para discutir na Rio+20, mas a épica batalha sobre a mudança climática e o desenvolvimento sustentável foi irremediavelmente perdida na esfera da política internacional. Para os futuros historiadores não será difícil aquinhoar a responsabilidade. Mesmo que todos os países ricos compartilhem alguma culpa, alguém apertou o gatilho. O Protocolo de Kyoto foi assassinado no berço pelo Texas - isto é, pelo Partido Republicano norte-americano e os bilionários do petróleo de Houston que o financiam. Os democratas, por sua vez, lamentaram brevemente a morte de Kyoto e, em seguida, discretamente enterraram o aquecimento global como uma questão de campanha. A ausência do presidente Barack Obama no Rio é um sinal de que a mudança climática - questão de vida e morte para grande parte da humanidade - tornou-se órfã.

Anfitrião do encontro, o Brasil tomou posições ambivalentes e criticadas em questões como o novo Código Florestal e a usina de Belo Monte. Como o sr. as analisa?

De perto, o sistema político do Brasil parece muito disfuncional. De longe, porém, lembra o New Deal americano: a bem-sucedida manipulação de mobilizações populares (sobre questões como a pobreza, a terra, os direitos dos trabalhadores e a Amazônia) para forçar o capitalismo brasileiro a se modernizar e competir na pista rápida dos novos países industrializados. As conquistas da era PT são incontestáveis, como as políticas de regulamentação ambiental, que mesmo inconsistentes, abrandaram as formas mais destrutivas de explorar o paraíso de vocês. A tripulação da Estação Espacial Internacional não mais orbita sobre uma Amazônia em chamas. Mas alguns dos limites do novo modelo brasileiro parecem óbvios. O projeto verde inevitavelmente colide com a realidade de uma grande economia que continua dependente das exportações de produtos primários.

Como está a questão verde hoje, após quase um século de movimento ambiental?

Como estamos à beira de uma recessão mundial sincronizada, é difícil até para os Chicago boys (grupo de intelectuais formados na Universidade de Chicago, pioneiros do pensamento neoliberal) argumentarem que as gigantescas corporações e bancos tenham interesse ou poder para criar empregos para nossos filhos, garantir segurança alimentar para os 3 bilhões ainda por nascer nos próximos 40 anos ou adaptar cidades e campos para os desafios da sobrevivência em um clima mais extremo. Empregos, alimentos e meio ambiente são fatores intrinsecamente unidos - mas o movimento verde, com poucas honrosas exceções, não conseguiu ver essa interligação. Assim, muitos pobres ainda consideram o ambientalismo como um luxo que eles não podem pagar. Em países como os EUA, a degeneração da política ambiental é terrível. Os ativistas verdes de outrora agora são lobistas institucionais em Washington, dispostos a apertar a mão do diabo, mesmo a da indústria do petróleo. Enquanto isso, o breve flerte do presidente Obama com o "crescimento verde" - a promessa de centenas de milhares de bons empregos ao redor da energia renovável - tornou-se uma miragem cruel. O único notável boom do trabalho está na produção de combustíveis fósseis: os campos de petróleo de Dakota do Sul e as instalações para extração de gás na Pensilvânia. Acredito que cada questão ambiental deva ser enquadrada em termos de criação de empregos e futuro para a juventude. O mundo precisa imensamente de reparo, e uma humanidade desacorrentada dos balanços corporativos deveria urgentemente construir uma arca antes de o dilúvio chegar. O que realmente precisamos são centenas de milhões de empregos low tech: legiões de jardineiros, pedreiros, professores. Um programa de trabalho global. Diante da austeridade crescente, tal proposta parece politicamente absurda, mas precisamos de partidos que defendam políticas necessárias - e não só realistas. Não tenho certeza se os atuais partidos verdes se encaixam nessa job description.

Nada melhorou desde a Eco-92?

Centenas de livros foram escritos sobre bons experimentos verdes em escala local. As cidades brasileiras, em particular, ganharam reconhecimento mundial por suas inovações. Mas olhe ao redor. Comparadas às deduções para as guerras do Pentágono e da indústria de carvão na China, para não falar na crescente miséria urbana na África e da deterioração das cidades ex-soviéticas, as contribuições verdes marcam um progresso insignificante. De fato, se a crise econômica de 2008 foi apenas um prelúdio para uma depressão abrangente nos anos seguintes, estamos construindo castelos de areia. Há muita ousadia na concepção de soluções técnicas e pouca na política. Fico feliz que Berkeley seja bike-friendly e Julia Roberts viva em uma casa de carbono zero, mas o que é mais importante para nosso ecofuturo: maravilhosos oásis verdes em cidades ricas ou banheiros e salários mínimos em cidades pobres? Aí é onde um Brasil progressista poderia ser a vanguarda.

Então a crise financeira de 2008 selou o destino da causa ambiental?

No caso dos EUA, os resultados foram perversos. Inicialmente, os preços astronômicos do petróleo e a necessidade de um estímulo keynesiano parecia apontar para um boom na energia renovável e tecnologias ambientalmente eficientes. Mas foi o combustível fóssil que se renovou com o boom de tar sands (a mais suja fonte de petróleo) de Alberta e os depósitos de gás nas rochas de Pensilvânia. Ao mesmo tempo, o maior empreendimento da administração de Obama em parcerias público-privadas para a indústria de energia alternativa, uma concessão de US$ 500 milhões para energia solar, foi um fiasco por causa da competição chinesa. A depressão americana deu ao lobby "negador" - a campanha de relações públicas com falsos experts para negar a ideia de aquecimento global - e ao lobby antiambientalista, nova vida no Partido Republicano. Romney é um "cético" renascido na mudança climática enquanto alguns de seus oponentes, como Michelle Bachmann, de Minnesota, são oponentes diretos da ciência moderna per se. Assim, a opinião pública dos EUA mudou drasticamente em direção ao ceticismo sobre o aquecimento global.

Ambientalistas defendem a redução dos padrões de consumo para salvar o planeta. Como uma transformação dessas no comportamento humano seria possível?

Padrões de consumo doméstico obviamente não significam qualidade de vida, uma vez que muitas de nossas mais importantes necessidades só podem ser preenchidas em comunidade com os outros. No entanto, parte dos ambientalistas tem pouquíssimo compromisso com a justiça social. Proporcionar uma vida decente para as massas e preservar a vida animal são vistos como objetivos quase excludentes. Na verdade, acredito que a única forma de salvar o planeta é fazer todo mundo rico. Rico no sentido da desfrutar de maneira completa e equânime de um espaço público luxuoso e de utopias digitais comuns. A melhor maneira de equacionar uma democracia de alta qualidade de vida com uma biosfera sustentável é investindo no espaço público e no consumo comunitário. Para salvar o meio ambiente precisamos salvar a própria humanidade, e salvá-la é criar uma distribuição equânime de bens públicos. Fazendo isso, vamos criar centenas de milhões de empregos. As verdadeiras qualidades urbanas das cidades - construídas com estrutura de transporte público eficaz e interação entre florestas e diversidades sociais e culturais - são a forma mais eficiente de uso da energia e do espaço. Como o grande urbanista utópico Patrick Gedders apontava já no século 19, o lixo produzido por uma cidade pode tanto se transformar em toxina mortal como parte do ciclo ecológico para sustentação de jardins e cinturões verdes. Para repensar esse esquecido, porém essencial, diálogo sobre uma visão socialista e moderna do urbanismo sustentável, discussão que floresceu entre 1880 e 1920 até ser brutalmente assassinada por Hitler e Stalin, eu preferiria pensar no Brasil. Nenhum outro país no mundo tem semelhante expertise para a vida urbana nem tanto potencial, apesar de toda a desigualdade, para abrir as portas do paraíso.

Seu livro Evil Paradises fala de "utopias" bem diversas dessa que acaba de descrever.

Vivemos uma separação sem precedentes entre muito ricos e o restante da humanidade. Seja encastelados em arranha-céus militarizados, metidos em murados subúrbios de luxo ou em paraísos artificiais como Dubai, os 1% mais ricos desistiram de qualquer pretensão de existência compartilhada com o resto de nós. Mas no fim das contas a segurança desses "off worlds", como são chamados no filme Bladerunner, é puramente ilusória. Vírus e bactérias encubadas nas imundas e superlotadas metrópoles viajam de primeira classe nos aviões...

A globalização reduziu as possibilidades de ação de Parlamentos e chefes de Estado na administração da economia mundial?

A crise europeia transformou-se em uma autópsia pública da globalização em sua forma mais radical. Ela mostrou a dificuldade de se superar desequilíbrios estruturais entre grandes economias - mesmo com as mais ousadas tentativas de regulação supranacional da crise. Doutores do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE) alertaram que a prosperidade europeia só pode ser salva por uma integração fiscal e política drástica, pela criação de um genuíno "Estados Unidos da Europa". Mas a atual vantagem comparativa econômica alemã em produtividade e custos do trabalho inviabilizam isso. De um lado, os contribuintes alemães não aceitam sustentar o bem-estar social de gregos e espanhóis. De outro, seria uma humilhação e rendição das soberanias nacionais em troca de benefícios hipotéticos após longos ajustes de austeridade. Os chamados fundos de resgate oferecidos são basicamente um programa para evitar prejuízos aos bancos do norte. Na Grécia, por exemplo, os empréstimos do BCE foram basicamente usados para transferir o risco de bancos estrangeiros para a Grécia e contribuintes europeus. Na Irlanda e na Espanha, transformaram perdas bancárias em dívida pública. Uma vez que os grandes bancos têm sempre prioridade nos botes salva-vidas - enquanto mulheres e crianças ficam por último -, austeridade e dívida vão continuar em uma espiral fora de controle. Essa política está condenando os EUA e a Europa a uma estagnação que já faz lembrar a "década perdida" da América Latina nos anos 1980. Poderão a China e os outros Brics continuarem a crescer em meio a essa depressão? Pergunte aos bancos chineses...

Seus livros são conhecidos pela visão pessimista do futuro. O britânico James Lovelock recentemente reviu suas piores previsões sobre o aquecimento global. Quais são os riscos reais que a humanidade enfrenta?

Os seres humanos obviamente não podem destruir o ambiente per se, apenas os recursos naturais dos quais a civilização depende. A Terra sempre resistirá, embora por um longo tempo com um drasticamente simplificado bioma. A atual taxa de espécies em extinção equivale ao impacto de um asteroide. A ciência climática pode prover contornos brutos dos impactos do aquecimento na agricultura. Parece claro, por exemplo, que uma enorme faixa do norte dos subtrópicos, incluindo o México e o Caribe, a costa do Mediterrâneo, o Oriente Médio e, acima de todos, o Indus Valley (o maior sistema de irrigação do mundo, com 100 milhões de pessoas) enfrentem um futuro de épica seca. Mas não há tecnologia que possa estimar o impacto social das crescentes perdas na complexidade ecológica através da extinção e da invasão de espécies daninhas. Ninguém imagina o que estamos desencadeando no nível microscópico ao reduzir a diversidade ecológica ou ao criar superconcentrações de uma espécie (os seres humanos nas cidades, por exemplo) em fétidas condições. No livro Cidades Mortas, discuto a assustadora pesquisa conduzida após a 2ª Guerra por botânicos nas cidades bombardeadas da Europa. A expectativa científica era o rápido retorno aos ecossistemas complexos. Ao contrário, os pesquisadores ficaram perplexos ao descobrir que um punhado de espécies daninhas, algumas exóticas, estabeleceram uma imediata ditadura. Eles denominaram essa inesperada ecologia de plantas piratas uma "segunda natureza", um sinistro ecossistema florescendo em solo bombardeado e envenenado. Hoje, com o sangramento dos combustíveis fosseis, a simplificação das colheitas e o derramamento de tóxicos, estamos acelerando a criação de uma segunda natureza em escala global. Se ainda haverá espaço para nossa espécie nessa nova ecologia é, claro, a questão final.

14 de junho de 2012

Sectarismo versus ecumenismo: O caso de V.I. Lênin

Roland Boer

Monthly Review

Era Lenin, como as interpretações iniciais entenderam, um sectário que procurava destruir todos que discordavam dele? Ou ele também possuía tendências ecumênicas ao lado, ou em tensão com o seu sectarismo? Há, talvez, uma relação mais profunda entre sectarismo e ecumenismo em seus trabalhos?

O material da época, especialmente antes da Revolução de Outubro, é cheio de evidências abundâncias do sectarismo de Lenin, e a lista de diversos grupos e indivíduos que ele se opôs durante os anos é de fato longa – Narodniks, Mencheviques, Construtores-de-Deus, Bundits, Liquidadores, Otzovistas, Socialistas-Revolucionários, etc. Contra esses grupos, ele instiga que a “pureza da Social-Democracia revolucionária é mais preciosa do que a unidade do partido.”[1] Por esse motivo, ele era contra a conciliação com os demais partidos de esquerda ou liberais nas Dumas (1905-17). Ele era contrário aos “conciliadores”, conduzidos por Trotsky, que buscou unificar as facções em conflitos entre os Sociais-Democratas. Ele até mesmo conseguiu argumentar que esses conciliadores, em cooperação de todas as formas com os oponentes, na verdade, eram divisões agravantes.[2] Por que? O resultado seria sempre o compromisso, uma diluição da tarefa socialista. À luz de tudo isso, seus oponentes certamente sentiram que ele era um jogador de facção, doutrinário e imperdoável. E eles fizeram o seu melhor para culpar todas as diferenças, fragmentações e polêmicas acrimoniosas aos seus pés, ao ponto de perserguirem aqueles no movimento socialista internacional, como Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo, deixando em paz os estudiosos subsequentes.[3] De fato, longe de ser uma invenção de camaradas após a Revolução de Outubro, o termo “Leninismo” foi inicialmente usado como algo pejorativo pelos opositores, como uma acusação de fragmentação.[4]

Entretanto, um exame mais microscópico do material revela um padrão constante de conflitos polemicos com oponentes e simultaneamente conduz à unidade. O exemplo mais claro diz respeito à ruptura dos Bolcheviques-Mencheviques, que surgiu da consternação de muitos no Partido Social-Democratico após o Segundo Congresso. Ainda sim, dentro desse período das Dumas, até 1905, eles concordaram em realizar uma conferência em conjunto, o marco histórico do congresso unido de 1906.[5] Os documentos do congressos são cheios de declarações do tipo “O Congresso Unificado do Partido Trabalhista Social-Democrata Russo realizou-se. A fragmentação não existe mais.”[6] Ademais, a concordância incluía também o Partido Social-Democrata Letonio, Polaco e também o Bund. Mas assim como o desejo da unificação ganhou forças, o mesmo ocorreu com as tendências de sectarismo que se manifestaram mais uma vez. Então encontramos acusações de manipulação de votos e intrigas ardilosas, ambas durante e após o congresso.[7] Mais uma vez, as diversas facções se fragmentaram, apenas para alguns anos depois, tentar mais um projeto de unificação.[8] Parecia que forças exponenciais estavam em constante conflito, inviabilizando quaisquer tentativas de união.

Uma tensão similar surgiu durante o mesmo período das reuniões nas Dumas, quando os Sociais-Democratas frequentemente consideravam alianças com outros partidos socialistas, como os Socialistas-Revolucionários, e mais partidos liberais, como os Trudoviques e os Cadetes. O texto de Lênin “Os Sociais-Democratas e as Acordancias Eleitorais.”[9] capta muito bem essa tensão. De um lado, é absolutamente vital se manter fiel à causa e não comprometer fazendo quaisquer tipos de acordos com quaisquer outros partidos políticos, não fazer nenhum bloco, aliança ou bilhetes conjuntos.[10] Contudo, em uma situação de extrema necessidade talvez seja necessário formar alianças, mesmo com partidos liberais, e apenas temporariamente. Como Lenin argumenta mais tarde, preocupando-se com a necessidade de aliar-se a oponentes após a Revolução de Outubro, às necessidades das lutas talvez dite as necessidades por alianças, porém essas alianças nunca devem sacrificar um pingo da independência ideológica. Sobre esse tópico, há de se trabalhar em conjunto por uma mesma causa, mas então usar da situação para demonstrar como os outros partidos estão errados – como os Bolcheviques fizeram quando juntaram forças de tempos em tempos com os liberais na luta contra o czarismo, com os Mencheviques e os Socialistas-Revolucionários nos meses cruciais de 1917, e até mesmo com as forças de Kerensky da Assembléia Provissional com a intenção de combater o golpe de Kornilov no mesmo ano.[11]

Eu sugiro ao menos três motivos para a extensão dessa tensão no pensamento político e na prática de Lenin. O primeiro é puramente prático. Em uma situação política específica, pode-se aprovar um “acordo de luta”; se os Socialistas-Revolucionários, partidos de camponês e até mesmo outras organizações semi-políticas compartilham uma oposição aos proprietários da terra, o czar, a Duma, o governo provisório ou a exploração capitalista, e se eles representam os objetivos gerais dos camponeses e até mesmo a pequena-burguesia, então os Sociais-Democratas irão se juntar a um front unido. Tal acordo de luta é, apesar de tudo, o interesse no socialismo; será até mesmo providenciado a oportunidade de expor posições semi-socialistas de outros partidos.[12]

A segunda razão é pessoal. Lenin era conhecido por trabalhar muito próximo, praticamente diariamente, com aqueles que ele atacava na imprensa ou nos encontros do partido. Para mais, ele também não hesitaria em atacar o camarada mais próximo se ele pensasse que esse camarada tivesse cometido um erro, apenas para encontrar o mesmo camarada no dia seguinte para acolhê-lo com base em seu objetivo em comum[13]. Alguns exemplos torna isso claro: apesar de seu ataque à Trotsky, Lenin e Trotsky eram dois pilares da Revolução Russa e também do governo bolchevique inicial do que viria a se tornar a URSS; e os intrigantes God-Builder, Anatoly Lunacharsky, cujo Lenin atacou sem piedade na primeira década do século XX, foi nomeado Comissário da Iluminação após a Revolução Russa e se tornou particularmente próximo a Lenin.[14]

Em um nível teórico (sem relação com as motivações práticas e pessoais), Lenin sentiu que o caminho para a união não era através da conciliação, ao invés disso, era dialético, pois apenas discussões abertas e incisivas levariam à união. Ele argumentou de novo e de novo que, como o epigrafe para WITBD (referido à Lassalle) coloca que, os conflitos do partido levam a força e vitalidade.[15] Ele estava sempre ciente da necessidade de ter essas discussões em lugares abertos para participar com grande entusiasmo, pois apenas assim argumentos sólidos surgem. A chave consiste, como Lih deixa claro em uma análise cintilante das consequências da famosa fragmentação ocorrida durante o Segundo Congresso, sobre a soberania do partido e as suas organizações. O chefe característico dos Bolcheviques não era – como as interpretações iniciais compreendiam – o sectarianista mal-humorado.[16] Ao invés disso, os Bolcheviques tinham um profundo comprometimento com a soberania do partido, com a sua condução, decisões, e leis, tudo que foi conquistado através de debates por vezes calorosos, mas sempre abertos. Assim, os Bolcheviques, e não os Mencheviques, eram os favoráveis a um partido eleito no Congresso e aderem às diretrizes apontadas pelo Congresso – pois este é o lugar onde debates abertos e vigorosos devem acontecer.

A conclusão só pode ser que o sectarismo e ecumenismo de Lênin são dois lados da mesma moeda; ou melhor, eles estão dialeticamente conectados: nem um, nem outro, mas os dois em tensão. O compromisso apaixonado de Lênin pelo debate aberto era um caminho para acordos e comprometimentos mais sólidos pela organização.[17] Por essa razão, ele estava morto contra uma abstinação passiva, de laissez faire, laisser passer, o emparelhamento sob diferenças, o comprometimento entre diferentes grupos, até mesmo querelas atrás de portas fechadas. Ao invés disso, a chave era uma unidade de ação, liberdade de discussão e criticismo” aberta e pública, que levaria ao reconhecimento da mais profunda verdade e prover a base da união da classe e do partido.[18]

Notas

[1] Lenin 1907 [ 1963]-f: 172

[2] Lenin 1911 [1963]-a: 179; 1911 [1963]-b, 1912 [1963]-b, 1912 [1964]-a; 1912 [1964]-b: 445; 1914 [1964]: 61; 1914 [1965]-a. Ele os chama de “vacilantes” – em outras palavras, os “conciliadores” que estão tentando preencher o abismo com frases vazias e chavões abrangentes” (Lenin 1911 [1963]-a 179). Mais substancialmente, Lenin contesta o argumento de Trotsky de que com o “amadurecimento”do proletariado, as várias facções, que eram elas próprias discussões entre intelectuais, desapareceriam. Para Lenin, o resultado é simplesmente um compromisso (Lenin 1911 [1963-b: 258).

[3] Valentinov 1969 [1954], 1968 [1953]; Lincoln 1986: 235-6; Read 2005.

[4] Lenin 1912 [1964]-c: 407.

[5] Lenin 1906 [1962]-e; 1903 [1961]-a: 307-9; 1906 [1962]-d.

[6] Lenin 1906 [1962]-a: 310; 1906 [1962]-c: 376.

[7] Lenin 1906 [1962]-f, 1906 [1962]-c, 1907 [1962]-b, 1907 [1962]-d.

[8] Lenin 1910 [1963]-c, 1910 [1963]-b, 1910 [1963]-a.

[9] Lenin 1906 [1963]-d.

[10] Lenin 1906 [1962]-f: 294-8; 1905 [1963]-b: 382-95; 1905 [1963]-a: 468-74; 1906 [1962]-b, 1907 [1962]-e; 1907 [1963]: 132; 1906 [1963]-d: 279, 282-3, 288; 1906 [1963]-a, 1906 [1963]-c; 1906 [1964]: 417-18; 1907 [1962]-a: 424-5; 1907 [1962]-c: 452-5; 1907 [1962]-g: 458, 466; 1914 [1965]-b: 517, 519.

[11] Lenin 1906 [1963]-d: 296; 1906 [1963]-b: 300-1; 1912 [1963]-a: 469-70; 1907 [1962]-g: 471; 1907 [1962]-d: 40-1; 1920 [1966]: 66-77.

[12] Lenin 1905 [1966]-a: 70; 1905 [1966]-b; 1906 [1962]-e: 158-9.

[13] Como Krupskaya escreve: Poderiamos citar dezenas de exemplos como esse, Ilych revidou com força quando foi atacado e defendeu o seu ponto de vista, mas quando novos problemas tiveram que serem enfrentados ele cooperou com os seus oponentes, Ilych conseguiu abordar seu oponente de ontem como um camarada. Ele não teve que fazer nenhum esforço especial para isso. (Krupskaya 1960 [1930]: 251)

[14] Lih fornece outro exemplo de uma discussão acalorada com Georgy Solomon enquanto ambos estavam em Bruxelas em 1908. Discutindo sobre o papel dos sociais-democratas na Duma, Lenin estava cada vez mais acalorado e polemico. Salomon ficou ofendido e disse isso: “Lenin voltou atrás, deu-lhe uma espécie de abraço e assegurou-se que as expressões dirigidas a ele foi apenas devido ao calor do momento e não deveriam ser tomadas como pessoais. (Desculpas semelhantes podem ser encontradas em todas as correspondencia de Lenin) O abuso impessoal de Lenin não foi dirigo a Salomão como individuo, mas contra todos os céticos, pessimistas e derrotistas. (Lih, 2011: 110)

[15] Lenin 1902 [1961]: 347.

[16] Lih 2008 [2005]: 489-553

[17] Krupskaya escreve novamente: “Ele sempre, enquanto viveu, deu enorme importância aos congressos do Partido. Ele realizou o congresso do partido na mais alta autoridade, onde todas as coisas pessoais tinham que ser deixadas de lado, onde nada deveria ser escondido e tudo deveria ser aberto e acima de tudo. (Krupskaya 1960 [1930]: 89)

[18] Lenin 1906 [1963]-c: 320; 1904 [1961]: 404, 447-8; 1903 [1961]-b: 117; 1914 [1965]-b, 1915 [1964]; Bensaïd 2007: 155.

Referências

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———.  1915 [1964].  What Next? On the Tasks Confronting the Workers’ Parties with Regard to Opportunism and Social-Chauvinism .  In Collected Works, Vol. 21.  Moscow: Progress Publishers, 107-15.

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Lih, Lars T. 2008 [2005].  Lenin Rediscovered: What Is to Be Done? in Context, Historical Materialism Book Series.  Chicago: Haymarket.

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Lincoln, W. Bruce.  1986.  Passage Through Armageddon: The Russians in War and Revolution 1914-1918.  New York: Simon and Schuster.

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Valentinov, Nikolai.  1968 [1953].  Encounters with Lenin.  Translated by P. Rosta and B. Pearce.  London: Oxford University Press.

———.  1969 [1954].  The Early Years of Lenin.  Translated by R. H. W. Theen.  Ann Arbor: University of Michigan Press.

Sobre o autor

Roland Boer é Professor Pesquisador em Teologia na Universidade de Newcastle, Austrália. Visite seu blog Stalin's Moustache.

7 de junho de 2012

Salve-nos dos salvadores

Slavoj Žižek sobre a Europa e os gregos


Vol. 34 No. 11 · 7 June 2012

Tradução / Imagine uma cena de um filme distópico que mostre nossa sociedade num futuro próximo. Guardas uniformizados patrulham ruas semivazias dos centros das cidades, à caça de imigrados, criminosos e desocupados. Os que encontram, os guardas espancam. O que parece fantasia de Hollywood já é realidade hoje, na Grécia.

Durante a noite, vigilantes uniformizados com as camisas negras do partido neofascista Golden Dawn [Aurora Dourada], de negadores do Holocausto –, que receberam 7% dos votos no segundo turno das eleições gregas e que contam com o apoio, como ouve-se pela cidade, de 50% da Polícia de Atenas – patrulham as ruas, espancando todos os imigrados que cruzem seu caminho: afegãos, paquistaneses, argelinos. É como a Europa defende-se hoje, na primavera de 2012.

O problema de defender a civilização europeia contra a ameaça dos imigrantes é que a ferocidade com que os defensores europeus defendem-se é ameaça muito maior a qualquer ‘civilização’, que qualquer tipo de invasão de muçulmanos, e ainda que todos os muçulmanos decidissem mudar-se para a Europa. Com defensores como esses, a Europa não precisa de inimigos. 

Há cem anos, G.K. Chesterton deu forma articulada ao impasse em que se metem todos os que criticam a religião:

“Homens que se ponham a combater igrejas em nome da liberdade e da humanidade espantam de si mesmos a liberdade e a humanidade, no momento em que atacam a primeira igreja (...). Os secularistas não provocaram o naufrágio das coisas divinas; só fizeram naufragar coisas seculares... se isso lhes serve de consolo”.

Tantos guerreiros liberais andam tão furiosamente decididos a combater o fundamentalismo não democrático, que acabam esquecendo qualquer liberdade e qualquer democracia, tudo em nome de combater o terror. Se os “terroristas” só pensam e fazer naufragar esse nosso mundo por amor pelo outro mundo, os nossos guerreiros antiterror só pensam em por a pique qualquer democracia, por ódio ao próximo muçulmano. Alguns deles são tão perdidamente apaixonados, fanatizados pela dignidade humana [e, no Brasil, pela chamada “ética”], que chegam a legalizar a tortura... para defender a dignidade humana. É a inversão do processo pelo qual os fanáticos defensores da religião começaram por atacar a cultura secular contemporânea e acabaram por sacrificar até as próprias credenciais religiosas, na ânsia de erradicar todos os aspectos que odeiam no secularismo.

Mas os defensores que insistem em defender a Grécia contra imigrantes não são o principal perigo: não passam de subproduto do perigo muito maior, da ameaça mãe de todas as ameaças: a política de “austeridade” que causou a desgraça da Grécia. As próximas eleições na Grécia estão marcadas para dia 17 de junho.

O establishment europeu alerta que são eleições cruciais: não estaria em jogo só o destino da Grécia, mas o destino de toda a Europa. Um resultado – o correto, segundo eles – levará ao processo doloroso,. mas necessário de recuperação, pela austeridade, para continuar. A alternativa – no caso de vitória do Partido Syriza, de “extrema esquerda” – seria votar pelo caos, pelo fim do mundo (europeu) como o conhecemos.

Os profetas do apocalipse estão corretos, mas não como supõem ou pretendem. Críticos dos arranjos democráticos hoje vigentes reclamam que as eleições não oferecem opção real: votamos para escolher apenas entre uma centro-direita e uma centro-esquerda cujos programas são quase absolutamente idênticos. Mas dia 17 de junho, afinal, haverá escolha significativa: de um lado o establishment (Nova Democracia e Pasok); do outro lado, a Coalizão Syriza. E, como acontece quase sempre em que haja escolhas reais no mercado eleitoral, o establishment está em pânico: caos, pobreza e violência eclodirão imediatamente, dizem, se os eleitores escolherem “errado”. A mera possibilidade de vitória da Coalizão Syriza, como se ouve, já dispara convulsões de medo nos mercados. A prosopopéia ideológica é rampante: os mercados falam como se fossem gente, manifestam “preocupação” pelo que acontecerá se as eleições não produzirem governo com mandato para manter o programa de austeridade e reformas estruturais de UE-FMI. Os cidadãos gregos não têm tempo para pensar nas preocupações “dos mercados”: mal conseguem ter tempo para preocupar-se com a sobrevivência diária, numa vida que já alcança graus de miséria que não se viam na Europa há décadas.

Todas essas são previsões enunciadas para se autocumprirem, causar mais pânico e, assim, forçar as coisas a andarem na direção “prevista”. Se a Coalizão Syriza vencer, o establishment europeu ficará à espera de que nós aprendamos com nossos erros o que acontece quando alguém tenta interromper, por via democrática, o ciclo vicioso de cumplicidade bandida, entre os tecnocratas de Bruxelas e a demagogia suicida do populismo anti-imigrantes.

Foi exatamente o que disse Alexis Tsipras, candidato da Coalizão Syriza, em entrevista recente: que sua prioridade absoluta, no caso de sua coalizão vencer as eleições, será conter o pânico: “Os gregos derrotarão o medo. Não sucumbirão. Não se deixarão chantagear.”

A tarefa da Coalizão Syriza é quase impossível. A coalizão não traz a voz da “loucura” da extrema esquerda, mas a voz do falar racional contra a loucura da ideologia dos mercados. No movimento de prontidão para assumir o governo da Grécia, já derrotaram o medo de governar, tão característico do “esquerdismo”; já mostraram que não temem fazer a faxina do quadro confuso que herdarão. Terão de mostrar-se capazes de montar e cumprir uma formidável combinação de princípios e pragmatismo; de compromisso democrático e presteza para intervir com firmeza onde seja preciso. Para que tenham uma mínima chance de sucesso, precisarão de toda a solidariedade dos povos europeus; não só de respeito e tratamento decente pelos demais países europeus, mas, também, de ideias mais criativas – como a de um “turismo solidário” nesse verão, que já propuseram.

Em suas Notes towards the Definition of Culture, T.S. Eliot [2] observou que há momentos em que a única escolha é entre a heresia e o não crer – i.é, quando o único meio para manter viva uma religião é promover uma divisão de seitas. Essa é, hoje, a posição em que está a Europa. Só uma nova “heresia” – representada hoje pela Coalizão Syriza – pode salvar o que valha a pena salvar do legado europeu: a democracia, a confiança no voto do povo, a solidariedade igualitária etc.. A Europa que haverá para nós, se a Coalizão Syriza for descartada, é uma “Europa com valores asiáticos” – os quais, é claro, nada têm a ver com a Ásia, e tem tudo a ver com a tendência do capitalismo contemporâneo, para suspender a democracia.

Eis o paradoxo que mantém o “voto livre” nas sociedades democráticas: cada um é livre para escolher, desde que faça a escolha certa. Por isso, quando se faz a escolha errada (como quando a Irlanda rejeitou a Constituição da União Europeia), a escolha é tratada como erro; e o establishment imediatamente exige que se repita o processo “democrático”, para que o erro seja reparado.

Quando George Papandreou, então primeiro-ministro grego, propôs um referendum sobre a proposta de resgate que a Eurozona apresentara no final do ano passado, até o referendum foi descartado como falsa escolha.

Há duas principais narrativas na mídia, sobre a crise grega: a narrativa alemã-europeia (os gregos são irresponsáveis, preguiçosos, gastadores, não pagam impostos, etc.; e têm de ser postos sob controle, com aulas de disciplina financeira); e a narrativa grega (nossa soberania nacional está ameaçada pelo tecnologia neoliberal imposta por Bruxelas).

Quando se tornou impossível ignorar o suplício do povo grego, emergiu uma terceira narrativa: os gregos estão sendo apresentados hoje como vítimas de desastre humanitário, carentes de ajuda, como se alguma guerra ou catástrofe natural tivesse atingido o país.

As três são falsas narrativas, mas a terceira parece ser a mais repugnante. Os gregos não são vítimas passivas. Os gregos estão em guerra contra o establishment econômico europeu. Precisam de solidariedade nessa luta, porque a luta dos gregos é a luta de todos nós.

A Grécia não é exceção. É mais uma, dentre várias pistas de testes de um novo modelo socioeconômico de aplicação quase ilimitada: uma tecnocracia despolitizada, na qual banqueiros e outros especialistas ganham carta branca para demolir a democracia.

Ao salvar a Grécia de seus ditos “salvadores”, salvaremos também a Europa.

"Terroristas? Nós?"

Owen Bennett-Jones



Terror Tagging of an Iranian Dissident Organisation 
by Raymond Tanter.
Iran Policy Committee, 217 pp., £10, December 2011, 978 0 9797051 2 0

Tradução / “Mas a verdade é outra. Os apoiadores norte-americanos dos MEKs creem que a organização ainda tenha potencial “de combate”, precisamente por sua longa história de violência e terrorismo. Por isso creem que esses terroristas sejam úteis para arrancar do poder os mulás iranianos. Por isso a secretária Clinton acabará por excluir os MEKs, da lista de organizações terroristas”

Essa história dos “Mujahedin do Povo” (Mujahedin e Khalq, MEK), também conhecidos como “Mujahedin do Irã”, é o relato de como gerenciamento competente e insistente de marketing & imagem pode fazer, de um inimigo mortal, um muito prezado aliado.

Os MEKs estão hoje em campanha massiva para serem excluídos da lista dos EUA de organizações terroristas. Tão logo sejam tirados da lista, estarão livres para usar o apoio que sempre deram aos EUA, e tornarem-se o grupo mais bem amado, mais favorecido e, sem dúvida, o que mais fundos receberá, dentre outros grupos da oposição iraniana.

Outro artifício, também usado para conseguir resultado bem semelhante a esse, foi o Congresso Nacional Iraquiano (CNIq) – grupo de lobby liderado por Ahmed Chalabi que falou de democracia e pavimentou o caminho para a invasão do Iraque, presenteando Washington com “provas” altamente questionáveis da existência de inexistentes armas de destruição em massa e de laços entre Saddam Hussein e a al-Qaeda. Em seguida, quando George Bush levou os EUA à guerra, o CNIq e seus líderes só tiveram de descansar um pouco e preparar-se para governar.

Muitos em Washington acreditam que, para o bem ou para o mal, os EUA irão à guerra contra o Irã, e que os MEK terão papel a desempenhar. Mas, antes, eles terão de convencer Hillary Clinton a retirar o grupo de sua lista oficial de terroristas. Alguns funcionários de Clinton têm insistido para que ela deixe os MEK exatamente na lista onde estão; mas há cachorros grandes em Washington que exigem furiosamente que ela converta os MEK em organização oficialmente declarada não terrorista. Depois de exaustiva caminhada entre várias agências, o processo dos MEK está agora sobre a mesa de Clinton. Declarações recentes do Departamento de Estado indicam que a “desterrorificação” dos militantes MEK já é, agora, bem provável.

Organizados nos anos 1960s como grupo islamista anti-imperialista, com tendências socialistas e dedicado à luta para derrubar o xá, os MEK originalmente defenderam não só a revolução islâmica, mas, também, muitos direitos para as mulheres – combinação que atraiu muitas simpatias nos campi das universidades iranianas. Conseguiram construir genuína base popular e tiveram papel destacado na derrubada do Xá em 1979. Tornaram-se tão populares, que o Aiatolá Khomeini sentiu que precisava destruí-los; ao longo dos anos 1980s, Khomeini fomentou julgamentos e execuções públicas de membros do grupo. Os MEK retaliaram, com atentados contra clérigos influentes no Irã.

Temendo pela vida, membros dos MEK fugiram, primeiro para Paris, depois para o Iraque, onde Saddam Hussein, desesperado para encontrar aliados para a guerra contra o Irã, ofereceu-lhes milhões de dólares, além de tanques, peças de artilharia e armas de vários tipos. Também deu-lhes terras. Camp Ashraf tornou-se lar dos MEK, uma fortaleza no deserto, 80 km ao norte de Bagdá, a uma hora de viagem por terra até a fronteira do Irã.

A partir dos anos 1970s, a retórica dos MEK mudou, de islamista para secular; de socialista para capitalista; de pró-revolução para anti-revolução.

E desde a queda de Saddam o grupo apresenta-se como pró-EUA, “da paz”, dedicado a promover a democracia e os direitos humanos. Mas essa incansável “reinvenção” pode ser perigosa, e o novo governo iraquiano, favorável ao Irã, está sendo pressionado por Teerã para fechar definitivamente a fortaleza de Camp Ashraf, que cresceu ao longo das décadas e abriga hoje população equivalente à de qualquer das pequenas cidades da região. E não só o Irã. Muitos iraquianos também não veem com bons olhos os MEK, não só por terem-se aliado a Saddam Hussein, mas porque os MEK também participaram da violenta supressão de curdos e xiitas.

Forças de segurança do Iraque já, por duas vezes, atacaram Camp Ashraf, em 2009 e 2011, ataques que deixaram mais de 40 mortos. Vídeos de tanques blindados lançados contra moradores desarmados de Ashraf podem ser vistos em YouTube. Agora, o Iraque decidiu que Camp Ashraf tem de ser fechado; e os moradores, relutantemente, começaram a mudar-se para Camp Liberty, ex-base do exército dos EUA próxima do aeroporto de Bagdá, atualmente sob supervisão da ONU e protegida por forças da segurança iraquiana. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados [orig. UNHCR] está cadastrando os residentes, com vistas a distribuí-los por outros países, como refugiados; mas poucos países deram sinais de interesse em receber pessoas que, do ponto de vista oficial dos EUA, são terroristas, e que, segundo outros, não passariam de fiéis adoradores de uma espécie de culto satânico.

Os MEK passaram a viver sob regras típicas de grupos de fanáticos religiosos – os fiéis foram separados das respectivas famílias e amigos; e toda a informação que chegava até eles era controlada – depois de 1989, ano em que o casal que lidera o movimento, Massoud e Maryam Rajavi, lançou a Operação Luz Eterna [orig. Operation Eternal Light]. Depois que Saddan fracassou no golpe para “mudar o regime” no Irã, a Operação Luz Eterna foi a alavanca escolhida para, afinal, levar o grupo a controlar o país. O sucesso, disse Rajavi aos seus guerreiros-fiéis, era garantido, porque o povo iraniano, civis e militares, desertaria em massa e seguiria os MEK na marcha sobre Teerã. Seria fácil, disse ele. Mas, à parte ninguém ter desertado, as forças iranianas resistiram ferozmente e contra-atacaram. Morreram mais de mil seguidores dos MEK de Massoud e Maryam Rajavi, e muitos outros foram feridos. Os MEK perderam cerca de 1/3 de seus quadros.

Rajavi tinha de encontrar alguma explicação para a derrota. A ideia ortodoxa que lhe ocorreu foi dizer aos seus seguidores, que haviam perdido a guerra porque se deixaram distrair por amor&sexo. Ordenou que os seguidores se divorciassem, abraçassem o celibato e passassem a viver numa habitação comunitária, só de homens, como soldados de exércitos regulares. Tomados de ideias de autossacrifício e martírio, os combatentes MEK obedeceram. (Até hoje a regra do celibato é tão rígida que há turnos no posto de combustível de Camp Ashraf, para que mulheres e homens abasteçam os carros sem se encontrarem.) Os combatentes MEK foram treinados para transferir a paixão pelas antigas esposas, para os líderes. Conscientes de que a frustração sexual já gerava novas dificuldades, os Rajavis passaram a organizar reuniões nas quais os MEK deveriam confessar, em público, suas fantasias sexuais. E os que confessavam eram espancados por outros fiéis. Não se estimulavam nem amizades, nem filhos em Camp Ashraf.

A partir de meados dos anos 1980s, sob alegação de que a segurança ali seria precária, os líderes ordenaram que várias crianças que viviam em Camp Ashraf fossem entregues para adoção a famílias pró-MEK na Europa e no Canadá. Alguns pais passaram mais de 20 anos sem ver os filhos.

Essas práticas, e as frequentes sessões de doutrinação, além do bloqueio total de qualquer informação vinda do mundo exterior (os MEK são proibidos também de usar telefones), ajudaram a firmar o controle sobre os membros. Mas os MEK que viviam  fora do Iraque também manifestaram extraordinária devoção à causa. Em 2003, quando autoridades francesas prenderam Maryam Rajavi e a acusaram de terrorismo (adiante, ela foi libertada), 10 militantes dos MEK, em diferentes pontos do mundo, puseram fogo ao corpo, em sinal de protesto: dois deles morreram.

O grupo MEK nega, evidentemente, que tenha organização de culto religioso. Mas vários observadores externos – militares norte-americanos de alto escalão, agentes do FBI, jornalistas e a Rand Corporation (financiada pelo Pentágono) – que estiveram em Camp Ashraf insistem em repetir que, sim, são organizados como seita. Um alto funcionário do Departamento de Estado (hoje aposentado), que foi enviado ao Iraque para entrevistar milhares de membros dos MEK, concluiu que, sim, se tratava de seita e culto religiosos; que a fortaleza de Camp Ashraf, praticamente uma cidade, mas não qual não se via uma única criança, era “completa tragédia, em termos humanos”; que os membros eram “mal atendidos e mal dirigidos” pelos líderes; e que muitos haviam sido subornados ou, no geral, “enganados”, para que se unissem ao grupo.

Os MEK usavam vários métodos de recrutamento. A elite do grupo reuniu-se no Irã, antes da revolução popular islâmica. Outros eram prisioneiros iranianos, capturados durante a guerra Irã-Iraque. A esses, Saddam ofereceu uma barganha: se se alistassem no grupo dos MEK, poderiam trocar os campos de prisioneiros de guerra e mudar-se para o complexo de Camp Ashraf, muito mais confortável. Outros membros foram recrutados em campi de universidades dos EUA, com promessas de emprego, dinheiro, novos passaporte e a oportunidade de lutar contra os exércitos dos mulás. Outros, mais simplesmente, foram enganados.

A um ativista dos MEK que vivia no Irã e que estava em visita a Camp Ashraf contaram que sua mulher e filho haviam sido mortos; e que ele, se quisesse poderia ficar vivendo ali. Só depois de dez anos, afinal, o homem voltou a encontrar um telefone; ligou para o número de sua casa no Irã e, afinal, soube que estavam todos vivos. Outros ex-membros dos MEK contam que, na chegada ao Iraque, eram passados clandestinamente pelos controles de imigração, de modo que seus passaportes não registravam qualquer carimbo de entrada. Depois, quando decidiam deixar o país, eram informados que corriam o risco de ser presos por ter entrado ilegalmente no país.

Ouvi horas de depoimentos desse tipo, de ex-membros. O grupo insiste que todos os que contam essas histórias são agentes iranianos; que não separou famílias nem expulsou crianças. Mas as lágrimas de pais, mães, esposas e filhos me pareceram mais convincentes.

Mas, apesar de tudo isso, alguns oficiais militares norte-americanos que trabalharam em Camp Ashraf depois da invasão do Iraque saíram de lá convencidos de que os MEK poderiam ser aliados muito úteis.

O general David Phillips, policial-militar que serviu lá em 2004, argumenta que, se os MEK são organizados como culto e facção religiosa, o mesmo se pode(ria) dizer dos Marines dos EUA: os Marines e os MEK são obrigados a usar uniformes, obedecem ordens e seguem rituais que, para os não iniciados, parecem bizarros.

Esse tipo de simpatia pelos MEK e a avaliação positiva que se ouve de vários militares dos EUA são fáceis de explicar. Em 2003, foram informados de que os EUA encontrariam pesada resistência, de um exército de terroristas uniformizados e pesadamente armados, que combateriam a favor de Saddam e contra as forças dos EUA. Mas aconteceu que, entre o momento em que a informação foi recolhida e a chegada dos americanos, os líderes dos MEK rapidamente entenderam que não havia futuro para Saddam; e, numa pirueta política, trocaram de lado.

Quando os soldados dos EUA chegaram a Camp Ashraf, foram recebidos por anfitriões cordiais, que falavam inglês e logo manifestaram integral apoio à “causa” dos EUA. Para muitos soldados dos EUA, Camp Ashraf tornou-se refúgio e abrigo, onde encontravam segurança, num país massivamente hostil.

Mas nada disso explica a popularidade de que gozam os MEK entre políticos em Londres, Bruxelas e Washington, hoje. Boa parte dessa popularidade é comprada. Cerca de três dúzias de ex-altos comandantes militares e políticos norte-americanos são conferencistas regulares nos eventos dos MEK e de amigos dos MEK: Rudy Giuliani; Howard Dean; o ex-conselheiro para segurança nacional do governo Obama, general James Jones; e o ex-senador Lee Hamilton. O pagamento, por dez minutos de fala, com pose para fotografias, está entre $20 mil e $40 mil dólares. O tema dessas “palestras” pode ser qualquer um: muitos dos palestrantes sequer mencionam a sigla MEK. 

Em meses recentes, o governo Obama sinalizou que poderá proibir a realização dessas “palestras” e eventos. O Tesouro investiga denúncias de que os “palestrantes” norte-americanos estariam recebendo dinheiro de organização terrorista “listada”. O que querem de fato saber, em outras palavras, é se os exilados iranianos que pagam o “soldo” dos “palestrantes” são membros dos MEK; os que fazem campanha a favor do grupo, sem receber pagamento, não serão afetados. A maioria dos apoiadores apóiam os MEK porque apoiariam qualquer coisa que ajude ou pareça ajudar a derrubar o governo em Teerã. Parecem não se dar conta de que a organização tem sido definida como culto de fanáticos e não tomam conhecimento do que dizem os ex-membros.

Grande número dos mais conhecidos lobbyistas pró-MEK dizem que aceitam fazer as tais “palestras” porque outros intelectuais e políticos que também participam das atividades dos MEK são prova da respeitabilidade do grupo.

Mas os MEK também têm lobbyistas contratados em Washington, que se dedicam a escrever longas respostas às críticas. As 105 páginas do relatório da Rand Corporation sobre os MEK foram escritas por quatro desses lobbyistas, que trabalharam durante 15 meses nos EUA e no Iraque, para produzir a mais aprofundada análise que há, dos aspectos considerados “de culto” do movimento. A resposta veio de um grupo dito “de Ação Executiva”, que se autodescreve como “uma CIA e Departamento de Defesa privados, disponíveis para cuidar dos seus mais complexos problemas e desafios mais difíceis”. O relatório da “Ação Executiva” levava o título de Courting Disaster: How a Biased, Inaccurate Rand Corporation Report Imperils Lives, Flouts International Law and Betrays Its Own Standards. [1] O autor que assina pela “Ação Executiva”, Neil Livingstone, hoje candidato dos Republicanos ao governo do estado de Montana, contou que fora contratado por um “cidadão norte-americano” para avaliar a objetividade do Relatório Rand.

Concluiu que, dentre outros problemas, os autores do Relatório Rand eram demasiadamente inexperientes para tratar de tema tão complexo como os MEK. Até hoje, os que apoiam o trabalho publicado por Neil Livingston, publicado há três anos, desqualificam o relatório Rand como “serviço de alunos calouros”. A Rand diz que a crítica visa aos assistentes do autor principal, que foram apenas coadjuvantes e cujos nomes só foram incluídos como autores para oferecer-lhes algo para engordar-lhes os currículos. Todo esse lobby custa quantias astronômicas de dinheiro.

Parte do dinheiro é reunido pelos militantes encarregados de levantar fundos para os MEK, na Grã-Bretanha e em outros pontos, que trabalham de porta em porta. Funcionários dos EUA também creem que os MEKtenham à sua disposição os ganhos auferidos do (muito) dinheiro que receberam de Saddam Hussein e aplicaram bem.

Muitos dos que militam pró-MEK não respondem diretamente às acusações de que não passariam de grupo dedicado a cultos satânicos: os lobbyistas falam insistentemente da questão de os MEK serem excluídos da lista de grupos terroristas.

Em 1996, resolução da Assembleia Geral da ONU criou comissão encarregada de redigir versão inicial de uma Convenção sobre Terrorismo Internacional. Desde então, funcionários reúnem-se anualmente para discutir a questão. Mas, até o momento, ainda não encontraram definição do que seja “terrorismo” que satisfaça todos. Dois pontos parecem emperrar sempre.

Primeiro, a Organização da Conferência Islâmica insiste que movimentos de resistência contra forças de ocupação e que lutem em nome da libertação nacional – por exemplo, na Caxemira –, não podem ser considerados movimentos terroristas. Segundo, os governos temem que estejam, eles próprios, incluídos em toda e qualquer definição de terrorismo que apareça à discussão naquela comissão.

Assim, com cada um tentando construir definições de “terrorismo” que mais claramente excluam as próprias práticas, não parece haver qualquer resultado à vista, no plano internacional.

Evidentemente, decidir quais grupos são terroristas e quais não são é sempre ato político: o IRA nunca foi considerado grupo terrorista, nas listas norte-americanas; e Nelson Mandela, ainda em 2008, permanecia listado como terrorista aos olhos dos EUA.

O histórico de ataques terroristas organizados pelos MEK remonta aos anos 1970s, quando fizeram oposição ao Xá e lutaram contra os EUA que apoiavam o Xá. Para o Departamento de Estado, os MEK, em 1973, assassinaram um soldado do exército dos EUA que servia em Teerã; e, em 1975, assassinaram dois membros do US Military Assistance Advisory Group. Além de três executivos da Rockwell International e um da Texaco, também assassinados. A hostilidade dos MEK contra os EUA continuou depois da Revolução Popular Iraniana.

Dia 4/11/1979, estudantes iranianos ocuparam a Embaixada dos EUA em Teerã e sequestraram 52 diplomatas norte-americanos, que foram mantidos presos por 444 dias. Um dos diplomatas sequestrados contou que não estaria na embaixada naquele dia, se não tivesse sido atraído para lá por seus contatos com os MEK. Outro relatou que não tinha qualquer dúvida de que os MEK haviam apoiado o sequestro e, de fato, não defendiam qualquer negociação diplomática. Muito tempo depois de Khomeini ter decidido que era mais que hora de acertar aquela questão, os MEK ainda insistiam que seu apoio aos sequestros não passaria de boatos, uma farsa ardilosamente concebida; hoje já negam peremptoriamente qualquer participação. Sobre os assassinatos, dizem que, naquela época, seu principal líder era prisioneiro nas prisões do Xá; e que, com isso, uma facção marxista havia invadido a organização e assumido o comando. Essa facção, de fato, um grupo dissidente, teria sido responsável pelos ataques e assassinatos; e os ataques cessaram quando os líderes legítimos foram libertados e reassumiram o comando. São discussões que, em todos os casos, estão ultrapassadas. Os anos 1970s já vão longe. As organizações mudam.

É possível que os MEK tenham parado de assassinar norte-americanos, mas continuam comprometidos com a luta armada no Iraque e no Irã. Os esforços que empenharam a favor de Saddam Hussein contra os curdos e os xiitas nada são, se comparados às bombas, assassinatos e vastas ofensivas que organizaram e executaram dentro do Irã do final dos anos 1980s aos anos 1990s. A história de violência dos MEK está bem documentada, mas a organização insiste que a violência é coisa do passado.

Essa ideia tem recebido considerável estímulo nas cortes europeias. Em 2007, a Comissão de Apelação para Organizações Proscritas, um organismo britânico especializado oficial, declarou que os MEK teriam renunciado ao uso da força e acolheu recurso impetrado pelo grupo e contra decisão do Foreign Office britânico, que preferia manter o grupo na lista de organizações terroristas. Em 2009, a União Europeia tirou os MEK da lista europeia de organizações terroristas, amparada numa tecnicalidade que beira o absurdo: antes de qualquer outra ação, o grupo deveria ter sido formalmente informado dos motivos pelos quais seria listado como “organização terrorista”.

Para manter os MEK na lista dos EUA, Hillary Clinton terá de demonstrar que o grupo ainda tem capacidade para ou projeto de cometer atos terroristas. Os apoiadores dos MEK lembram que, no processo para convencer a corte britânica de que são grupo pacífico, em julho de 2004, todos os que vivem em Camp Ashraf assinaram documento no qual rejeitam o terrorismo e todos os tipos de violência. Há quem não tenha sido plenamente convencido.

Dado o que se viu acontecer em Guantánamo e na base aérea de Bagram, dizem eles, surpresa seria se alguém se recusasse a assinar o tal documento de renúncia ao terror. Em novembro de 2004, o FBI relatou atividades do grupo em Los Angeles; o relatório fala de telefonemas gravados, nos quais líderes dos MEK na França discutiam “específicos atos de terrorismo, inclusive bombas”.

Segundo o FBI, a inteligência francesa e a polícia de Colônia também têm informações semelhantes e gravações. O relatório FBI-2004 foi divulgado há mais de um ano, mas praticamente todo o material no qual a secretária Clinton fundamentará sua decisão é sigiloso. Em 2010, a Corte de Apelação do Distrito de Columbia julgou acusação contra os MEK, e um dos três juízes, Karen LeCraft Henderson, observou que material sigiloso ao qual a corte teria tido acesso oferecia “apoio substancial” à acusação de que os MEK continuam engajados na prática de ações terroristas ou, no mínimo, que não desmontaram a infraestrutura terrorista básica, não perderam capacidade de ataque e têm planos para empreender novas ações terroristas. Matéria apresentada em fevereiro pelo canal NBC News citava funcionários não identificados do governo dos EUA, que teriam dito que os MEK seriam responsáveis pelo assassinato, em tempos recentes, de vários cientistas nucleares iranianos. Apesar de alguns apoiadores dos MEK já terem sugerido que essas ações não desmereciam os MEK, a própria organização negou qualquer envolvimento naqueles atentados.

O livro de Raymond Tanter aqui resenhado é parte da campanha de marketing-publicidade-Relações Públicas para mudança de imagem dos MEK – espécie de briefing dos que pregam que o grupo seja excluído da lista norte-americana de organizações terroristas. Tanter, que é apoiador ativo do grupo já há muito tempo, produziu um guia compacto, completo, com fotos e ilustrações em cores do grupo e transcrições de discursos feitos por defensores pagos para defender os MEK.

O livro nada diz sobre ataques perpetrados nos anos 1970s ou a ajuda que o grupo deu a Saddam Hussein. Também ignora outros ataques no Irã, nos anos 1990s. Tanter crê que, nos termos da legislação nos EUA, só as leis aprovadas nos EUA nos últimos anos seriam aplicáveis à questão de excluir ou manter o grupo na lista de organizações terroristas; o que nos leva à questão de excluir ou não excluir o grupo, daquela lista; e só considera o período pós- 2001.

O autor diz que os MEK seriam a melhor esperança disponível para a chamada “terceira alternativa”: um modo pelo qual os EUA consigam provocar mudança de regime da Síria, sem ter de depender de sanções ou de guerra.

É onde mais claramente se vê o vício que há no argumento dos lobbyistas pro-MEKs: de um lado, dizem que os MEK teriam renunciado à violência, o que lhes daria condições para pleitear que o grupo seja excluído da lista de organizações terroristas. Mas, mesmo que tenham realmente desistido da violência, ainda assim não se entende por que os EUA se aliariam a eles.

Mas a verdade é outra. Os apoiadores norte-americanos dos MEKs creem que a organização ainda tenha potencial “de combate”, precisamente por sua longa história de violência e terrorismo. Por isso creem que esses terroristas sejam úteis para arrancar do poder os mulás iranianos. Por isso a secretária Clinton talvez exclua o grupo, da lista de organizações terroristas.

Os apoiadores dos MEKs dizem que ainda são rede poderosa no interior do Irã e que não perderam as bases populares. Os que se opõem ao grupo dizem que o regime usa os terroristas MEKs para divulgar teorias conspiracionais sobre “complôs” armados fora do país. Dizem também que, ao apoiar o Iraque de Saddam, na guerra Irã-Iraque, os MEKs perderam a considerável base de apoio popular que chegaram a ter.

A secretária Clinton não poderá ignorar as considerações políticas. O lobby a favor dos MEKs insiste que seus ativistas correm risco de serem massacrados no Iraque. Se o Iraque decidir lançar novo ataque aos MEKs que vivem em Camp Ashraf, seja porque o grupo provoque demais, seja porque o grupo monte a encenação de algum ataque no qual surjam como vítimas indefesas, a resposta do lobby pró-MEKs será violenta.

Atualmente, a prioridade do Departamento de Defesa é garantir que os que ainda vivem em Camp Ashraf sejam transferidos em segurança para [o campo de refugiados] Liberty. Em fevereiro, Clinton disse que uma “transferência bem-sucedida teria peso decisivo em qualquer posição dos EUA sobre o status da organização terrorista estrangeira dos MEKs”. Em termos legais, nada significa e não faz qualquer sentido.

O que diz o acordo segundo o qual os MEKs aceitam deixar Camp Ashraf, sobre o grupo desejar ou ser capaz de organizar e executar atentados terroristas? Nada. O acordo não toca nesses temas.

De fato, as declarações da secretária Clinton revelam qual é o verdadeiro medo de Clinton e de seu departamento de Estado: temem que, deliberadamente ou como efeito de alguma provocação lançada pelos MEKs, os iraquianos ataquem os MEKs pela terceira vez, e que os EUA sejam denunciados por ignorarem os sinais de alerta. Em maio, o Departamento de Estado avançou alguns passos, e chegou a dizer que já considerava a possibilidade de excluir os MEKs da lista de suspeitos de associação, desde que continue a evacuação de Ashraf.

A declaração de Clinton sugere que ela já decidiu tirar os MEKs da lista de grupos terroristas. Sinal de que o lobby pró MEKs nos EUA trabalhou bem. Mas há mais uma coisa que se deve ter em mente.

Como disse recentemente um experiente observador em Washington: “Hillary Clinton é homem-político. Nesse momento, muitos de seus parceiros e associados estão ganhando bom dinheiro com a ajuda dos MEKs e eles absolutamente não apreciariam perder essa galinha de ovos de ouro, o que fatalmente acontecerá se o grupo continuar listado como organização terrorista.” Se, porém, os MEKs forem excluídos da lista de organizações terroristas – como, antes, aconteceu ao INC [Congresso Nacional Iraquiano (CNIq)] de Chalabi –, os MEKs passam a poder receber “incentivos” pagos pelo Congresso dos EUA, e os Rajavis serão automaticamente convertidos a candidatos prováveis à presidência, depois da “mudança de regime” no Irã, com que sonham os EUA.

Há dez anos, Donald Rumsfeld e os neocons estavam de tal modo irmanados com Ahmed Chalabi, do Congresso Nacional Iraquiano (CNIq), que lhe forneceu um helicóptero para que Chalabi e um punhado de apoiadores viajassem até Nasiriya, de modo a aparecerem nas fotografias oficiais da “libertação do Iraque”. Mas bastou o helicóptero pousar, para que o mundo soubesse que ninguém, no Iraque, algum dia ouvira falar de Chalabi. E Chalabi foi derrotado nas eleições por outro ex-exilado, Nouri al-Maliki; e teve de contentar-se com o ministério do Petróleo. Até hoje, Al-Maliki lá continua, no Iraque, como sempre foi, dedicado apoiador do governo do Irã. Nada mais distante dos objetivos do golpe dos EUA no Iraque, tão longamente planejado.

Mas os lobbyistas incansáveis que operam em Washington a favor de outros grupos terroristas amigos dos EUA, preferem o lado alegre das histórias. Chalabi, eles concedem, jamais fora o que se supunha que fosse. Mas com os MEKs a coisa agora é diferente. Um coronel aposentado do exército dos EUA, que trabalha em lobbys a favor de grupos terroristas amigos dos EUA, como os MEKs iranianos, costuma escrever que Maryam Rajavi “é um George Washington”.

Os EUA estão a um passo de comprovar, mais uma vez, que não são capazes de aprender com os próprios erros.

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