30 de setembro de 2015

O jovem Ho Chi Minh

Quando jovem em Paris, Ho Chi Minh abraçou um internacionalismo radical.

Ian Birchall

Nguyen-Ai-Quoc (mais tarde conhecido como Ho Chi Minh) falando no congresso fundacional do Partido Comunista francês em dezembro de 1920. Michael Goebel

Tradução / Setenta anos atrás este mês, em dois de setembro, em Hanói, o Viet Minh, liderado por Ho Chi Minh, publicou a Declaração de Independência da República Democrática do Vietnã. Ho era pouco conhecido no Ocidente até então, mas nos anos 1960 seu nome era cantado por manifestantes no mundo todo, para quem ele se tornou um símbolo da vontade e habilidade do Terceiro Mundo para enfrentar o imperialismo americano.

Em uma época anterior, ele era conhecido como Nguyen-Ai-Quoc, o beneficiário de uma educação privilegiada que, supostamente, disse que assim que ouviu o slogan “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, quis conhecer a França. Mas, a lei colonial proibia os vietnamitas nativos de sair do país; o único meio pelo qual ele poderia ir para a Europa era conseguindo um trabalho em um navio. Ele viajou primeiro para Londres, depois para Paris.

Os contatos iniciais de Nguyen chegando à França parecem ter sido com a esquerda sindicalista. Ele visitou a Librairie du travail, uma livraria trabalhista, onde ficavam os escritórios de La Vie ouvrière, um jornal sindicalista revolucionário de Pierre Monatte e Alfred Rosmer, que tinham sido alguns dos internacionalistas mais consistentes do primeiro dia da Primeira Guerra Mundial.

Ele passou a se juntar ao Partido Socialista Francês (SFIO), que estava no meio de um intenso debate para decidir se deveria se filiar a recém-formada Internacional Comunista, criada no rescaldo da Revolução Russa.

O SFIO reuniu-se no Congresso em Tours em dezembro de 1920 para tomar sua decisão. O Congresso votou pela filiação, tornando-se o Partido Comunista Francês (PCF), com uma minoria socialista se separando por uma aversão ao domínio percebido dos bolcheviques russos na Internacional Comunista.

Nguyen falou como delegado, contando aos reunidos como sua terra natal era “vergonhosamente oprimida e explorada”, além de ser “envenenada” pelo álcool e ópio. Prisões eram mais numerosas do que escolas, e liberdade de imprensa não existia. Ele exortou que “o Partido deve fazer propaganda socialista em todas as colônias” e concluiu com um apelo: “Camaradas, salvem-nos”!

Ele foi aplaudido, mas certamente tocou alguns nervos doloridos. Ele foi interrompido duas vezes. Na primeira ocasião, Jean Longuet, neto de Karl Marx, gritou para defender sua própria reputação: “Eu tenho interferido para defender nativos”! Um pouco depois, quando um delegado sem nome interrompeu, Nguyen respondeu com um corte “silêncio, parlamentares”!

As palavras de Nguyen tinham um peso especial, uma vez que a condição da afiliação do partido exigia que os partidos comunistas

expusessem os truques e trapaças dos “seus” imperialistas nas colônias, para apoiar todo movimento de libertação colonial, não meramente em palavras, mas em ações, para exigir a expulsão dos seus próprios imperialistas dessas colônias, para inculcar entre os trabalhadores do seu país uma atitude genuinamente fraterna para com os trabalhadores da colônia e as nações oprimidas, e para lançar uma agitação sistemática entre as tropas do seu país contra qualquer opressão dos povos coloniais.

Um meio pelo qual o PCF tentou implementar sua nova política foi encontrar meios de se relacionar com o grande número de assuntos coloniais.

É estimado que entre 1914 e 1918, mais de 900.000 homens das colônias foram enviados para o conflito europeu – mais de meio milhão de soldados, pelo menos 250.000 do Norte da África e mais muitos milhares da Indochina, e ainda cerca de 220.000 trabalhadores. O PCF estabeleceu uma organização para aqueles de origem colonial vivendo na França, a Union inter-coloniale (UIC União Intercolonial), e em abril de 1922 começou uma publicação Le Paria editada por Niguyen-Ai-Quoc.

Le Paria foi um pouco desalinhado e claramente subfinanciado, e sua circulação foi sempre baixa. No entanto, reuniu um pequeno, porém dedicado grupo de camaradas comprometidos com a luta anti-imperialista. Estes incluíam não só Nguyen-Ai-Quoc, mas também um jovem norte africano, Hadjali Abdelkader, que se apresentou como candidato eleitoral pelo partido em 1924.

No curso da campanha, ele recrutou um trabalhador fabril chamado Messali Hadj. Juntos eles fundaram a Étoile Nord-Africaine, a primeira organização a pleitear a independência argelina, da qual a FLN (Frente de Libertação Nacional) dos anos 1950 foi, em última análise, descendente.

Le Paria, desse modo, semeou, pelo menos, algumas das sementes das duas grandes guerras de libertação nacional que dominaram a política francesa nas duas décadas seguintes a Segunda Guerra Mundial. Trinta e seis edições do Le Paria apareceram entre 1922 e 1926, usualmente impressas em uma única folha de grande formato, seu título flanqueado por caracteres chineses e árabes.

O interesse principal do jornal era a situação do império colonial da França. Nguyen-Ai-Quoc escreveu sobre a “crueldade inacreditável” de um “funcionário sádico” na administração colonial, e contrastou a barbaridade da prática colonial da França com a tradicional imagem da política republicana.

Evocando a figura feminina da Marianne, que desde a Revolução Francesa tem sido vista como a personificação da república, ele escreveu:

Há uma ironia dolorosa em observar que a civilização, simbolizada em suas várias formas – liberdade, justiça, etc. – pela gentil imagem da mulher, e arranjada por uma categoria de homem que são reputados por serem campeões na cortesia em relação às senhoras, deve fazer o símbolo vivo sofrer o mais ignóbil tratamento e ataca-lo vergonhosamente em seu comportamento, sua modéstia e sua própria vida.

Atenção igual foi dada para a luta por liberdades políticas, notavelmente liberdade de imprensa, e houve um protesto contra o serviço postal interferindo na correspondência para Le Paria. O jornal encorajou várias campanhas, em particular protestando contra a visita a Paris do imperador de Annam, Kai Dinh.

Le Paria apenas raramente levantou a demanda pela independência para os territórios coloniais. O principal impulso para as demandas do jornal foi por um fim da repressão e brutalidade nas colônias e pelas populações coloniais terem direitos iguais aos cidadãos da França metropolitana.

Para este fim, a unidade entre as classes trabalhadoras da Europa e Indochina foi encorajada. Em maio de 1922, em artigo para o jornal diário do PCF, L’Humanité, Nguyen-Ai-Quoc reconhece a profundidade da ignorância e preconceito que existia entre ambos, trabalhadores metropolitanos e coloniais.

Após citar Lenin sobre a necessidade de trabalhadores metropolitanos apoiarem as lutas nas nações subordinadas, observou com tristeza: “infelizmente, ainda há muitos militantes que pensam que uma colônia não é nada além de um país cheio de areia com o sol brilhando; alguns coqueiros verdes e alguns homens de cor, e isso é tudo”.

Enquanto isso, a maioria dos habitantes coloniais era ou repelida pela ideia do bolchevismo ou a identificava puramente com nacionalismo. Quanto a minoria educada, eles poderiam entender o que comunismo significava, mas não tinham interesse em vê-lo estabelecido; “como o cachorro da fábula, eles preferem vestir um colarinho e ter o seu pedaço de osso”.

Por isso ele argumentou:

Da ignorância mútua dos dois proletários preconceitos nascem. Para o trabalhador francês, o nativo é um ser inferior, insignificante, incapaz de entender e ainda menos de agir. Para o nativo, os franceses – quem quer que seja – são todos exploradores perversos. Imperialismo e capitalismo não falham em tirar vantagem dessa desconfiança recíproca e essa hierarquia racial artificial para obstruir a propaganda e dividir forças que deveriam se unir.

E ele concluiu: “Em face dessas dificuldades o que deveria fazer o partido? Intensifique a propaganda para supera-las”.

Diante disso, Le Paria argumentou pela unidade entre trabalhadores metropolitanos e coloniais. Em agosto de 1922, “Apelo às Populações Coloniais,” exortou: “Em face do capitalismo e imperialismo, nossos interesses são os mesmos; lembre as palavras de Karl Marx; trabalhadores de todos os países, uni-vos”. Na próxima edição, Max Cainville-Bloucourt insistiu: “Irmãos coloniais, é indispensável para vocês perceberem que não há salvação possível para vocês fora da conquista do poder político na Europa pelas massas trabalhadoras”.

Esta mensagem atingiu principalmente as colônias. Sua impressão inicial parece ter sido 1.000, subindo apenas para 3.000. A maioria destas foi para as colônias; de 2.000 cópias apenas 500 ficaram na França, enquanto 500 foram pra Madagascar, 400 para o Daomé, 200 para Magrebe, 100 para a Oceania, e 200 pra Indochina.

Já que a distribuição era clandestina, e cópias eram frequentemente apreendidas pela polícia, é difícil saber quão amplamente o jornal foi de fato distribuído. Mas Le Paria certamente fez sucesso em construir um entusiasmado time de ativistas que carregaram o jornal apesar da relativa apatia das camadas mais amplas dos membros do PCF.

Le Paria desapareceu virtualmente depois de setembro de 1925, com apenas uma última edição em abril de 1926. Havia conflitos crescentes entre o minúsculo quadro colonial do partido e o aparato burocrático. Lentamente, mas com toda certeza, o quadro entusiasmado e corajoso que construiu o Le paria foi dispersado. Nguyen-Ai-Quoc/Ho Chi Minh foi levado para Moscou em 1923 e logo abraçou o stalinismo dominante, linha comunista oficial.

Diminuindo o internacionalismo

O espírito do internacionalismo proletário que instruiu a pequena equipe de pioneiros entorno de Le Paria desapareceu junto com Ho Chi Minh, cimentando o relacionamento desigual da esquerda francesa com o imperialismo.

Em nenhum lugar isso foi mais claro do que no Sudeste Asiático. A Indochina Francesa foi formada pela primeira vez em outubro de 1887, depois da guerra Sino-Francesa. Um dos arquitetos da colonização foi Jules Ferry, primeiro ministro até 1885. Ferry foi um racista evidente que disse à Assembleia Nacional em 1885, “Nós devemos dizer abertamente que as raças superiores… tem o dever de civilizar as raças inferiores”.

Sua outra realização notável foi o estabelecimento da educação livre, compulsória e secular na França. Embora isso seja, algumas vezes, visto como parte da herança da esquerda, isso foi parte das suas aspirações imperiais. Se a França fosse se tornar um grande poder imperial, precisaria de um exército, largamente composto de camponeses, com um forte senso de identidade nacional.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Indochina foi controlada por uma administração colonial francesa controlada pelo regime Vichy pró-Alemanha, que fez um acordo com o Japão em 1940. Em 1945, o Japão ocupou o território. Depois do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rapidamente se rendeu. Isso pegou os Aliados um pouco de surpresa; eles esperavam que a guerra continuasse até 1946.

Inicialmente, não foi a França que reocupou o Vietnã, mas a Grã-Bretanha, elas mesma governada por um governo trabalhista. Foi decidido na conferência de Potsdam em julho de 1945 que forças chinesas ocupariam a parte norte da Indochina, e tropas britânicas ocupariam a metade sul.

A França ainda estava se recuperando dos quatro anos de ocupação e precisou de tempo para reorganizar suas forças armadas. Tropas francesas começaram a deixar a Indochina (por navio) apenas em outubro. Forças britânicas, fazendo uso das recentemente derrotadas tropas japonesas, intervieram para garantir que a França estaria apta a recuperar sua colônia.

Charles de Gaulle, que liderou o governo provisório de 1945 da França, capturou o momento pós-guerra em sua transmissão anunciando a fundação da Quarta República.

Nossos postos estão reabrindo. Nossos campos estão sendo arados. Nossas ruínas estão sendo superadas. Quase todos que deixaram a França tem retornado. Estamos recuperando nosso Império. Estamos estabelecidos no Reno. Estamos retomando nosso lugar no mundo.

Os partidos de esquerda que dominaram o governo – comunistas socialistas e democratas cristãos – não fizeram oposição visível às exortações imperialistas de de Gaulle. Na verdade, até 1947, depois que a guerra em grande escala tinha estourado, ministros comunistas respeitaram a disciplina do gabinete votando pelos créditos de guerra (embora os deputados comunistas demostraram sua oposição votando pela abstenção).

Um delegado indochinês que visitou a França em 1946 reportou um encontro com o líder comunista Maurice Thorez em que este declarou que seu partido “não tinha intenção de ser considerado como potencial liquidador das posições francesas na Indochina e que ele desejava ardentemente ver a bandeira francesa voando em todos os cantos da União Francesa”.

O Partido Socialista foi igualmente interessado em preservar o império. O líder veterano Léon Blum favoreceu a fórmula de reconhecimento do Vietnã como em “estado livre dentro da União Francesa”, mas ele justificou isso com uma retórica que era muito aquela do imperialismo: “Há um meio, e um sozinho, de preservar na Indochina o prestígio da nossa civilização, nossa influência política e espiritual, e também aquele dos nossos interesses materiais legítimos, e esse é um acordo sincero na base da independência.”

A Guerra da Indochina começou em 1946, sob Blum como primeiro ministro, parcialmente porque ele falhou ao desafiar a liderança militar francesa, o que fez a guerra inevitável.

Apenas correntes menores da esquerda opuseram-se à recolonização da Indochina. Em 22 de dezembro de 1945, o jornal de esquerde independente Franc-Tireur publicou um vigoroso ataque à política externa francesa, citando uma carta de um soldado francês que comparava as ações francesas na Indochina ao massacre de Oradour, uma das piores atrocidades durante a ocupação nazi na França.

Uma série de fatores afetou o fracasso da esquerda francesa em se opor ao reestabelecimento do Império Francês, incluindo a lealdade do Partido Comunista a Rússia, que a esse ponto não desejava fazer algo que pudesse causar distúrbios ao desafiar o imperialismo do Ocidente.

Mas o principal foi a tradição republicana que dominava o pensamento político francês, especialmente na esquerda. Isso encorajou a noção de que o papel da França no mundo era progressivo, trazendo civilização e iluminação para mais territórios ignorantes – a assim chamada “ação civilizadora”.

Acreditava-se que os habitantes do mundo colonial poderiam e deveriam aspirar a nada mais do que serem cidadãos da República Francesa. É interessante contrastar isso com a abordagem mais pragmática mesmo do governo trabalhista britânico do pós-guerra, que aceitou a independência da Índia; a França agarrou-se a Indochina e Argélia até ser expulsa através de prolongadas e amargas lutas de independência.

O resto da história é bem conhecido. Os franceses lutaram para manter a Indochina, até finalmente serem derrotados na batalha de Dien Bien Phu em 1954. O Vietnã foi dividido, mas o envolvimento americano apoiando seu aliado sul vietnamita levou a mais guerra. Apenas em 1975 o Vietnã finalmente alcançou a independência depois de três décadas de guerra ter deixado uns dois milhões de mortos.

As coisas poderiam ter sido diferentes? Tal especulação é sempre difícil, mas se a esquerda francesa em 1945 tivesse sido fiel aos autênticos princípios internacionalistas, pelos quais o jovem Ho Chi Minh lutou no início dos anos 1920, a história poderia ter tido um curso menos trágico.

29 de setembro de 2015

Os arquivos WikiLeaks da América Latina

Telegramas diplomáticos dos EUA revelam um ataque coordenado contra os governos de esquerda da América Latina

Alexander Main e Dan Beeton


Créditos: TelesurTV / Flickr

Tradução / No início deste Verão, o mundo viu a Grécia a tentar resistir a um desastroso “diktat” neoliberal e a receber uma sova dolorosa no processo. Quando o governo de esquerda grego decidiu fazer um referendo nacional sobre o programa de austeridade imposto pela “troika”, o Banco Central Europeu retaliou restringindo a liquidez dos bancos gregos. Com isso acarretou um fechamento prolongado dos bancos e submergiu a Grécia ainda mais na recessão.

Apesar dos eleitores gregos terem rejeitado em massa a austeridade, a Alemanha e o cartel de credores europeu foi capaz de subverter a democracia e obter exatamente o que queria: submissão total à sua agenda neoliberal. Na última década e meia, uma luta similar contra o neoliberalismo vem sendo travada em toda a extensão de um continente e majoritariamente fora do olhar do público. Ainda que Washington inicialmente tenha procurado anular toda a dissidência e frequentemente utilizando táticas mais violentas que as utilizadas contra a Grécia, a resistência da América Latina à agenda neoliberal tem sido parcialmente bem sucedida. É um conto épico que gradualmente vem sendo conhecido graças à contínua exploração do massivo tesouro de telegramas diplomáticos dos Estados Unidos e difundidos pela WikiLeaks.

O neoliberalismo foi firmemente implantado na América Latina bem antes da Alemanha e as autoridades da zona euro terem imposto ajustes estruturais à Grécia e a outros países periféricos endividados. Através da coerção (e.g., condições anexadas a empréstimos do FMI) e doutrinação (e.g., treinamento de “chicago boys” regionais apoiados pelos Estados Unidos), os Estados Unidos tiveram êxito, em meados dos anos 80, em difundir o evangelho da austeridade fiscal, desregulação, “mercados livres”, privatização e cortes draconianos no setor público por toda a América Latina.

O resultado foi incrivelmente parecido ao que vimos na Grécia: crescimento estagnado (quase nenhum crescimento per capita durante vinte anos de 1980-2000), aumento da pobreza, declínio do nível de vida para milhões e muitas novas oportunidades para os investidores internacionais e empresas fazendo dinheiro em pouco tempo. Começando nos finais dos anos 80, a região começou a ter convulsões e a levantar-se contra as políticas neoliberais. No início a rebelião era majoritariamente espontânea e desorganizada — como foi no caso venezuelano das revoltas do “Caracazo” no início de 1989.

Mas depois, candidatos anti-neoliberais começaram a ganhar eleições e, para choque do establishment da política externa dos EUA, um número crescente destes manteve as suas promessas de campanha e começou a implementar medidas anti-pobreza e políticas heterodoxas que reafirmavam o papel do estado na economia. De 1999 a 2008, candidatos com inclinação de esquerda ganharam eleições presidenciais em Venezuelana, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Honduras, Equador, Nicarágua e Paraguai. Muita da história das tentativas dos governos dos EUA para conter e reverter a onda anti-neoliberal pode ser encontrada nas dezenas de milhares de telegramas diplomáticos dos EUA na região, difundidos pela WikiLeaks e datados desde os primeiros anos de George W. Bush até aos primeiros anos da administração do Presidente Obama.

Os telegramas — que analisamos no novo livro, The WikiLeaks Files: The World According to US Empire — revelam os mecanismos do dia-a-dia da política de intervenção de Washington na América Latina (e fazem do mantra do Departamento de Estado de que “os EUA não interfere na política interna de outros países” uma farsa). Apoio material e estratégico é providenciado aos grupos de oposição de direita, alguns dos quais são violentos e anti-democráticos. Os telegramas também pintam uma imagem vívida da mentalidade ideológica de Guerra Fria dos emissários mais velhos e os expõem a tentar usar medidas coercivas que fazem lembrar o recente estrangulamento aplicado à democracia grega.

De forma nada surpreendente, os principais meios de comunicação ignoraram ou falharam em grande medida em expor estas perturbadoras crônicas de agressão imperial, preferindo focalizar os relatos potencialmente embaraçosos dos diplomatas ou as ações ilegais de oficiais estrangeiros. Os poucos especialistas que deram uma análise de fundo aos telegramas afirmaram que não havia uma disparidade significativa entre a retórica oficial dos EUA e a realidade descrita nos telegramas. Nas palavras de um analista de relações internacionais dos Estados Unidos, “não obtemos uma imagem dos Estados Unidos como sendo esse todo poderoso mestre das marionetas a tentar puxar as cordas dos vários governos à volta do mundo para servir os seus interesses corporativos.” No entanto, uma leitura atenta dos telegramas desmente claramente esta afirmação.

“Isto não é chantagem”

No final de 2005, na Bolívia, Evo Morales teve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais com base em uma reforma constitucional, direitos indígenas e a promessa de lutar contra a pobreza e o neoliberalismo. No dia 3 de Janeiro, apenas dois dias após a sua tomada de posse, Morales recebeu uma visita do embaixador David L. Greenlee. O embaixador foi direto ao assunto: O visto dos EUA sobre a ajuda multilateral à Bolívia dependeria do bom comportamento do governo de Morales. Podia ser uma cena do Poderoso Chefão.

[O embaixador] mostrou a importância crucial das [instituições] financeiras internacionais, das quais a Bolívia dependia para assistência, tais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. “Quando pensar no BID, deve pensar nos EUA,” disse o embaixador, “isto não é chantagem, é a simples realidade.”

No entanto, Morales aferrou-se à sua agenda. Durante os dias seguintes forjou planos para regular novamente o mercado de trabalho, renacionalizar a indústria dos hidrocarbonetos e estreitar a cooperação com o arqui-inimigo de Washington, Hugo Chavez. Em resposta, Greenlee sugeriu um menu de opções para forçar Morales a curvar-se perante a vontade do seu governo. Estas incluíam; vetar empréstimos multilaterais de vários milhões de dólares, adiar os já agendados alívios multilaterais da dívida, desencorajar os fundos da Millennium Challenge Corporation (que a Bolívia nunca recebeu até hoje, apesar de ser um dos países mais pobres do hemisfério) e cortar o “apoio material” às forças de segurança bolivianas.

Infelizmente para o Departamento de Estado, em pouco tempo, ficou claro que este tipo de ameaças seriam devidamente ignoradas. Morales já tinha decidido reduzir drasticamente a dependência da Bolívia nas linhas de crédito multilaterais que requisitassem uma habilitação do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Poucas semanas depois de tomar posse, Morales anunciou que a Bolívia já não estaria dependente do FMI, e deixaria o acordo de empréstimos com o Fundo expirar. Anos mais tarde, Morales, aconselharia a Grécia e outros países endividados da Europa a seguir o exemplo de Bolívia e a “libertarem-se da ordem do Fundo Monetário Internacional.”

Não conseguindo forçar Morales às suas jogadas, o Departamento de Estado começou, então, a centrar-se no fortalecimento da oposição boliviana. A região controlada pela oposição, Media Luna, começou a receber cada vez mais assistência dos Estados Unidos. Um telegrama de Abril de 2007, discute “um maior esforço da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para fortalecer os governos regionais como contrapeso ao governo central.”

Um relatório da USAID de 2007 mencionava que o seu Office of Transition Initiatives (OTI) tinha aprovado 101 bolsas por US$4.066.131 para ajudar os governos departamentais a operar mais estrategicamente.” Também se fez chegar fundos aos grupos indígenas que se opunham à visão de Morales para as comunidades indígenas.”

Um ano mais tarde os departamentos de Media Luna, iriam empenhar-se na rebelião contra o governo de Morales, primeiramente com um referendo sobre a autonomia, apesar destes terem sido considerados ilegais pelas autoridades judiciais; e posteriormente apoiando os protestos violentos pró-autonomia que tiveram como consequência pelo menos 20 simpatizantes do governo mortos.

Muitos acreditavam que se estava a desenvolver uma tentativa de golpe de estado. A situação apenas se acalmou com a pressão de todos os outros presidentes da América do Sul, que emitiram uma declaração conjunta de apoio ao governo constitucional do país. Mas enquanto que a América do Sul se unia em apoio a Evo, os Estados Unidos seguiam em comunicação regular com os líderes da oposição do movimento separatista, mesmo quando estes falavam em “rebentar com as condutas de gás” e usar a “violência como uma probabilidade de forçar o governo a levar a sério qualquer diálogo.”

Contrariamente à posição oficial durante os eventos de Agosto e Setembro de 2008, o Departamento de Estado, levou muito a sério a possibilidade de um golpe de estado ou assassinato do presidente boliviano, Evo Morales. Um telegrama revela planos da Embaixada dos EUA em La Paz para tal caso: “[o Emergency Action Committee] irá desenvolver, com [o US Southern Command Situational Assessment Team], um plano de resposta no caso de uma urgência repentina, i.e. um golpe de estado ou a morte do Presidente Morales,” lê-se no telegrama.

Os acontecimentos de 2008 foram o maior desafio até agora da presidência de Morales e a situação em que ele esteve mais perto de ser derrubado. As preparações para uma possível saída da presidência de Morales revelam que os Estados Unidos, pelo menos, acreditaram que a ameaça a Morales era bastante real. O fato de não ter dito nada publicamente apenas sublinha de que lado Washington se posicionava durante o conflito e qual desfecho provavelmente preferiria.

Como funciona

Alguns dos métodos de intervenção usados na Bolívia foram emulados de outros países com governos de esquerda ou com movimentos fortes de esquerda. Por exemplo, após o regresso dos Sandinistas ao poder, em Nicarágua, no ano 2007, a embaixada dos EUA em Manágua trabalhou “a toda a velocidade” para reforçar o apoio ao partido de oposição de direita, o Alianza Liberal Nicaraguense (ALN). Em Fevereiro de 2007, a embaixada reuniu com o coordenador estratégico do ALN e explicou-lhe que os EUA “não providenciavam assistência direta a partidos políticos,” mas — de maneira a ultrapassar esta restrição — sugeriu que o ALN estivesse mais estreitamente coordenado com ONGs amigas que pudessem receber fundos dos EUA.

A líder do ALN disse que “avançaria com uma lista extensiva da lista ONGs que, de fato, apoiam os esforços do ALN” e a embaixada proporcionou-lhe “encontros com os diretores para o país do IRI [Instituto Republicano Internacional] e NDI [Instituto Internacional Democrata para os Assuntos Internacionais].” O telegrama também faz notar que a embaixada iria “dar seguimento ao incremento de angariação de fundos” para o ALN.

Telegramas como este deveriam ser de leitura obrigatória para estudantes da diplomacia dos EUA e aqueles que querem perceber como o sistema de “promoção de democracia” realmente funciona. Através do USAID, Fundação Nacional para a Democracia (NED), NDI, IRI e outras entidades para-governamentais, o governo dos EUA fornece uma ampla assistência aos movimentos políticos que apoiem os objetivos econômicos e políticos dos EUA.

Em Março de 2007, o embaixador dos EUA na Nicarágua pediu ao Departamento de Estado que providenciasse aproximadamente 65 milhões de dólares acima dos níveis de base recentes nos próximos quatro anos — ao longo das próximas eleições presidenciais de maneira a financiar o “fortalecimento dos partidos políticos, ONGs “democráticas” e “pequenas e flexíveis subvenções de decisão rápida a grupos comprometidos em desenvolver esforços críticos que defendam a democracia em Nicarágua, que façam avançar os nossos interesses e se contraponham a aqueles que se mobilizam contra nós.”

No Equador, a embaixada dos EUA opôs-se ao economista de esquerda, Rafael Correa, vencedor destacado nas eleições de 2006 e o levaram ao cargo presidencial. Dois meses antes dessas eleições, o conselheiro político da embaixada alertou Washington que “se podia esperar que Correa se juntasse ao grupo Chavez-Morales-Kirchner de líderes sul americanos nacionalistas-populistas,” e fazia notar que a embaixada tinha “avisado os nossos contatos políticos, econômicos e midiáticos da ameaça que Correa representa para o futuro de Equador e desencorajou as alianças políticas que podiam equilibrar a percepção de Correa com o radicalismo.” Imediatamente após a eleição de Correa, a embaixada enviou um telegrama ao Departamento de Estado com o seu plano de jogo:

Não mantemos ilusões de que as tentativas do Governo dos Estados Unidos possam influenciar a direção do novo governo ou do Congresso, mas esperamos maximizar a nossa influência junto com outros equatorianos e grupos que partilham os nossos pontos de vista. As propostas de reformas de Correa e atitude perante o Congresso e partidos políticos tradicionais, se não for controlada, pode prolongar o período atual de conflitos e instabilidade.

Os maiores medos da embaixada foram confirmados. Correa anunciou que fecharia a base aérea dos EUA em Manta, aumentaria os gastos sociais, e avançaria uma assembleia constituinte. Em Abril de 2007, 80 porcento de eleitores equatorianos validaram a proposta de uma assembleia constituinte e em 2008, 62 porcento aprovaram a nova constituição que consagrava uma série de princípios progressistas, incluindo a soberania alimentar, direito à habitação, saúde e emprego e controle governamental sobre o banco central (um enorme não-não à cartilha neoliberal).

No início de 2009, Correa anunciou que o Equador cumpriria parcialmente com a sua dívida externa. A embaixada estava furiosa com esta decisão e outras ações recentes, como a decisão de Correa de alinhar Equador mais estreitamente com a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) de esquerda (que tinha sido iniciada pela Venezuela e Cuba em 2004 como contrapeso à Área de Comércio Livre das Américas (ALCA), naquela altura promovida pela administração Bush. Mas o embaixador estava também consciente de que tinha pouca influência sobre ele:

Estamos a transmitir a mensagem em privado de que as ações de Correa irão ter consequências na sua relação com a nova administração de Obama, enquanto evitamos comentários públicos que seriam contraproducentes. Não recomendamos que se termine qualquer programa do Governo dos Estados Unidos que sirvam os nossos interesses uma vez que essa opção apenas enfraqueceria os incentivos de Correa de retroceder para uma posição mais pragmática.

O incumprimento parcial teve sucesso e aforrou ao governo equatoriano aproximadamente 2 bilhões de dólares. Em 2011, Correa recomendou o mesmo tratamento para os países europeus endividados, particularmente Grécia, aconselhando-os a não cumprir os pagamentos da dívida e 'ignorar o conselho do FMI.'

As ruas estão quentes

Durante a Guerra Fria, a suposta ameaça do avanço soviético e cubano serviu para justificar um sem número de intervenções para remover governos de inclinação de esquerda e apoiar regimes militares de direita. De maneira similar, os telegramas do WikiLeaks mostraram como, nos anos 2000, o espectro do “Bolivarianismo” foi usado para validar intervenções contra novos governos de esquerda anti-liberais, como o da Bolívia, representado como tendo “caído sem reservas no abraço venezuelano;” ou do Equador, visto como um “testa-de-ferro” para Chávez”

As relações com o governo de esquerda de Hugo Chávez amargaram desde o início. Chávez eleito presidente pela primeira vez em 1998, rejeitando amplamente as políticas econômicas neoliberais, desenvolveu uma relação estreita com Cuba de Fidel Castro e criticou, bem alto, o assalto da administração Bush ao Afeganistão após os ataques de 9/11 (os EUA retiraram o seu embaixador de Caracas após Chavéz ter proclamado: “Não podes lutar contra o terrorismo com terrorismo”).

Mais tarde fortaleceu o controle governamental do setor petrolífero, aumentando os valores de royalties pagos pelas empresas estrangeiras e usou as receitas do petróleo para financiar o sistema público de saúde, educação e programas alimentares para os pobres.

Em Abril de 2002, a administração Bush validou publicamente um golpe de estado, de pequena duração, que removeu Chávez do poder por quarenta e oito horas. Os documentos da Fundação Nacional para a Democracia, obtidos através da Freedom of Information Act [Lei pela Liberdade de Informação], mostraram que os EUA forneceram fundos para a “promoção da democracia” e treinamento a grupos que apoiassem o golpe de estado e que mais tarde viriam a estar envolvidos em esforços para remover Chávez através de “greves” administrativas que paralisaram a indústria petrolífera, nos finais de 2002 e mergulharam o país em recessão. Os telegramas da WikiLeaks mostram que após essas tentativas falhadas de derrubar o governo eleito venezuelano, os EUA continuaram a apoiar a oposição venezuelana através da NED e USAID.

Em um telegrama de Novembro de 2006, William Brownfield, embaixador naquela altura, explicava a estratégia de USAID/OTI para debilitar a administração de Chávez:

Em Agosto de 2004, o embaixador delineava os 5 pontos estratégicos da sua equipe para o país neste período [2004-2006] que serviriam de guia para a embaixada... o foco da estratégia é: 1) Fortalecimento das Instituições Democráticas, 2) Penetrar na Base Política de Chávez, 3) Dividir o Chavismo, 4) Proteger os negócios vitais dos EUA, e 5) Isolar Chávez internacionalmente.

Os laços apertados que existem entre a embaixada dos EUA e os vários grupos de oposição são evidentes em numerosos telegramas. Um telegrama de Brownfield relaciona a Súmate — uma ONG que teve um papel central nas campanhas de oposição — aos “nossos interesses na Venezuela.” Outros telegramas revelam que o Departamento de Estado fez pressão internacional para que se demonstrasse apoio à Súmate e encorajou apoio financeiro, político e legal dos EUA a esta organização, muito dele canalizado através da NED.

Em Agosto de 2009, a Venezuela foi atingida por protestos violentos de oposição (como tinha ocorrido um variado número de vezes sob Chávez e depois com o seu sucessor Nicolas Maduro). Um telegrama secreto de 27 de Agosto cita o contratante Development Alternatives Incorporated (DAI) referindo-se a “todas” as pessoas protestando naquele momento como “nossos beneficiários”:

[O empregado da DAI] Eduardo Fernandez disse que “as ruas estão quentes” referindo-se aos cada vez maiores protestos contra as tentativas de Chávez de consolidar o poder e que “todas estas pessoas (organizando os protestos) são nossos beneficiários.”

Os telegramas também revelam que o Departamento de Estado providenciou treinamento e apoio a um líder estudante que reconhecidamente tinha liderado multidões com a intenção de “linchar” um governador Chavista: “Durante o golpe de estado de Abril de 2002, [Nixon] Moreno participou nas manifestações no estado de Merida, liderando multidões que marcharam na capital do estado para linchar o governador Florencio Porras do MVR.”

No entanto, uns anos depois disto, outro telegrama mostra: “Moreno participou no International Visitor Program [do Departamento de Estado] em 2004.” Moreno viria mais tarde a ser procurado por tentativa de homicídio e ameaças a uma polícia, além de outras acusações. Também na linha da estratégia dos cinco pontos, como delineava Brownfield, o Departamento de Estado priorizava os seus esforços no isolamento internacional do governo venezuelano e em contrabalançar a sua influência em toda a região. Os telegramas mostram como os chefes das missões diplomáticas na região desenvolveram estratégias coordenadas para contrabalançar a “ameaça” regional.

Assim como a WikiLeaks inicialmente revelou em Dezembro de 2010, os chefes de missão para 5 países sul americanos encontraram-se no Brasil em Maio de 2007 para desenvolver uma resposta conjunta aos alegados “planos agressivos” do Presidente Chávez… de criar um movimento unificado Bolivariano por toda a América Latina.” Entre as áreas de ação que os chefes de missão havia um plano de “continuar a fortalecer laços com aqueles líderes militares na região que partilham a nossa preocupação com Chávez.” Um encontro similar dos chefes de missão dos EUA da América Central — focada na “ameaça” de “atividades políticas populistas na região” — realizou-se na embaixada dos EUA em El Salvador em Março de 2006.

Os diplomatas dos EUA fizeram grandes esforços para tentar prevenir que os governos das Caraíbas e América Central se juntassem à Petrocaribe, um acordo regional de energia de Venezuela que providencia petróleo aos seus membros em termos extremamente preferenciais. Telegramas vindos a público mostram que os oficiais norte-americanos reconheciam, de forma privada, os benefícios econômicos do acordo para os países membros, assim como mostravam preocupação que a Petrocaribe fosse aumentar a influência daVenezuela na região.

No Haiti, a embaixada trabalhou de forma estreita com grandes empresas de petróleo para tentar prevenir que o governo de René Préval se juntasse à Petrocaribe, apesar de reconhecerem que “liberaria 100 milhões de dólares por ano,” como foi reportado por Dan Coughlin e Kim Ives na Nation. Em Abril de 2006 a embaixada “telegrafou” de Porto Príncipe: “Continuaremos a pressionar [o presidente René do Haiti] Preval contra a sua adesão à PetroCaribe. O embaixador verá hoje o conselheiro chefe de Preval, Bob Manuel. Em reuniões anteriores este compreendeu as nossas preocupações e está consciente que um acordo com Chávez iria provocar problemas conosco.”

O histórico da esquerda

Devemos ter em conta que os telegramas do WikiLeaks não mostram vislumbres das atividades mais secretas das agências de informação dos EUA e são provavelmente apenas a ponta do icebergue no que toca às interferências políticas de Washington na região. No entanto os telegramas fornecem evidências alargadas da persistência e dos esforços determinados dos diplomatas dos EUA em intervir contra os governos de esquerda na América Latina, usando a alavancagem financeira e os múltiplos instrumentos disponíveis na caixa de ferramentas para a “promoção da democracia” — e às vezes até através de meios violentos e ilegais.

Apesar do restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba por parte da administração Obama, não há indicações de que as políticas em relação à Venezuela e outros governos de esquerda da América Latina tenham mudado significativamente. Não há dúvida que a hostilidade da administração em relação ao governo eleito da Venezuela é inexorável. Em Junho de 2014, o Vice Presidente Joe Biden deu início à Caribbean Energy Security Initiative, visto como um “antídoto” à Petrocaribe. Em Março de 2015, Obama declarou Venezuela como “ameaça extraordinária à segurança nacional” anunciado sanções contra oficiais venezuelanos, uma atitude criticada de forma unânime por outros países na região.

Mas, apesar das agressões incessantes dos EUA, a Esquerda, em grande medida, tem prevalecido na América Latina. Com a excepção de Honduras e Paraguai, onde golpes de estado de direita derrubaram líderes eleitos, quase todos os movimentos de esquerda que chegaram ao poder nos últimos quinze anos mantêm-se ainda hoje no poder.

Principalmente como resultado destes governos, de 2002 a 2013 a taxa de pobreza da região baixou de 44% para 28% após ter, de fato, piorado nas duas décadas anteriores. Estes sucessos e vontades dos líderes de esquerda de correr riscos de maneira a se libertarem do diktat neoliberal, deve hoje ser uma fonte de inspiração para a esquerda anti-austeridade da Europa. É certo que alguns dos governos estão hoje a passar por dificuldades significativas, em parte devido à recessão econômica regional que afetou os governos de direita e de esquerda de igual maneira. Mas visto através das lentes dos telegramas, há boas razões para questionar se todas estas dificuldades são fomentadas internamente.

Por exemplo, em Equador — onde o presidente Correa está sob ataque da Direita e de alguns setores da Esquerda — os protestos contra as novas propostas de impostos progressivos envolve os mesmos homens de negócios, alinhados com a oposição, com quem os diplomatas dos EUA são vistos a definir estratégias nos telegramas.

Em Venezuela, onde um sistema de controlo monetário disfuncional gerou uma enorme inflação, protestos violentos de estudantes de direita desestabilizaram seriamente o país. As probabilidades são extremamente altas de que alguns destas pessoas que protestam tenham recebido financiamentos e/ou treinamento da USAID ou NED, que viram o seu orçamento para Venezuela aumentar 80 porcento de 2012 para 2014.

Ainda há muito mais a aprender dos telegramas da WikiLeaks. Para os capítulos América Latina e as Caraíbas” do “The WikiLeaks Files”, examinamos atentamente centenas de telegramas e fomos capazes de identificar distintos padrões de intervenção dos EUA que descrevemos em maior profundidade no livro (alguns destes já previamente reportados por outros). Outros autores do livro fizeram o mesmo para outras regiões do mundo. Mas há mais de 250,000 telegramas (quase 35,000 só da América Latina) e há sem dúvida muitos outros aspectos referenciáveis da diplomacia dos EUA na atualidade que estão à espera de ser desmascarados.

Tristemente, após a excitação inicial, na altura que os telegramas foram inicialmente divulgados, poucos jornalistas e acadêmicos têm mostrado grande interesse no assunto. Até que isto mude, não teremos uma discrição completa de como os EUA se vêem a si mesmos no mundo e como o seu braço diplomático responde aos desafios à sua hegemonia.

28 de setembro de 2015

Capitalismo na Teia da Vida: uma entrevista com Jason W. Moore

Uma entrevista com Jason W. Moore

Enstrevistado por Kamil Ahsan



Tradução / Em o Capitalismo na teia da vida, Jason W. Moore sustenta a necessidade imperativa de fazer uma síntese e uma reformulação teórica completa dos pensamentos marxista, ambiental e feminista. Eis que o que afirma: “Acho que muitos de nós entendemos intuitivamente – mesmo se os nossos quadros analíticos estejam defasados – que o capitalismo é mais do que um sistema ‘econômico’ e mesmo mais do que um sistema social. O capitalismo é uma forma de organizar a natureza.”

O jornalista Kamil Ahsan conversou com Moore sobre seu livro Capitalismo na Teia da Vida (Verso), lançado em agosto de 2015, o qual busca enfrentar os novos desafios que se levantam diante das velhas maneiras de compreender o nosso mundo.

Qual foi a motivação para escrever Capitalismo na Teia da Vida?

Eu queria apresentar um arcabouço que nos permitisse entender a história dos últimos cinco séculos de uma forma que fosse adequada à crise que enfrentamos hoje. Nas últimas quatro décadas, adotamos uma abordagem para a crise que pode ser denominada de “aritmética verde”. Quando temos uma crise econômica ou social, ela vai para uma caixa. Quando temos uma crise ecológica – relacionada à água, energia ou clima – ela vai para outra caixa.

Assim, nas últimas quatro décadas, ambientalistas e outros radicais têm alertado sobre essas crises, mas nunca descobriram como resolvê-las. Os pensadores ambientais costumam dizer uma coisa e depois fazerem outra – eles alegam que os humanos são parte da natureza e que tudo no mundo moderno relaciona-se com a biosfera; porém, quando começam a analisar e a propor, se esquecem da unidade “sociedade mais natureza”, como se a relação entre ambas não fosse íntima, direta e imediata.

A premissa de seu livro é que precisamos quebrar o dualismo “natureza/sociedade” que prevaleceu em grande parte dos pensamentos vermelho e verde. De onde veio essa ideia e por que ela é totalmente artificial?

A ideia de que os humanos estão fora da natureza tem uma longa história. Trata-se de uma criação do mundo moderno. Muitas civilizações antes do capitalismo tinham a sensação de que os humanos eram algo distinto. Mas nos séculos XVI, XVII e XVIII, essa poderosa ideia surgiu – ela se incorporou à violência imperialista e à expropriação de camponeses; produziu uma série de reformulações sobre o que significa ser um humano, particularmente no que se refere às divisões em torno de raça e gênero. Passou a existir algo que, nas palavras de Adam Smith, foi chamado “sociedade civilizada”, uma sociedade restrita que incluía apenas alguns humanos.

Mas a maioria dos humanos foi, então, colocada na categoria de “natureza”, a qual era considerada como um mundo que deveria controlado, dominado e posto para trabalhar – em prol do mundo civilizado. Parece muito abstrato, mas o mundo moderno foi realmente baseado nesta ideia de que uma parte dos humanos eram chamados de “sociedade”, mas a maioria do resto é posta noutra caixa chamada “natureza” – com N maiúsculo! Essa formulação é muito poderosa. Isso não aconteceu apenas porque havia cientistas, cartógrafos ou governantes coloniais que decidiram ser esta uma boa ideia, mas por causa de um processo muito amplo que uniu mercados e indústria, império e novas formas de ver o mundo, assim como uma concepção ampla da Revolução Científica.

Esta ideia de natureza e sociedade está profundamente enraizada em outros dualismos do mundo moderno: o capitalista e o trabalhador, o Ocidente e o resto, homens e mulheres, brancos e negros, civilização e barbárie. Todos esses outros dualismos realmente encontram suas raízes principais no dualismo natureza/sociedade.

Qual é a importância de quebrar esse dualismo, em especial devido ao fato de que o capitalismo, segundo o seu entendimento, está sendo “coproduzido” por ambas as naturezas, humana e extra-humana?

É importante entender que o capitalismo é coproduzido pelos humanos e pelo resto da natureza; em especial, para entender a crise que se desdobra hoje. A maneira usual de pensar sobre os problemas do nosso mundo é separar: de um lado, tem-se as crises sociais, econômicas e culturais, as quais são postas na rubrica de “crises sociais”, de outro, tem-se as crises ecológicas, do clima, dos oceanos e assim por diante. Hoje, estamos cada vez mais percebendo que não podemos manter essa separação; porém, apesar disso, ela tem sido mantida ainda o tempo todo.

Precisamos superar esse dualismo para construir nosso conhecimento da crise atual, uma crise singular com muitas expressões. Algumas, como a financeirização, parecem ser puramente sociais; outras, como a potencial sexta extinção das espécies neste planeta, parecem ser puramente ecológicas. Mas, na verdade, esses dois momentos estão intimamente ligados de várias maneiras importantes.

Uma vez que entendemos que essas relações são centrais, começamos a ver como Wall Street é uma forma de organizar a natureza. Vemos o desdobramento de problemas atuais – como as turbulências nos mercados de ações da China e dos Estados Unidos – estão também relacionados com problemas maiores do clima e da manutenção da vida neste planeta. Ora, isso tem um impacto na política que nem mesmo os economistas radicais estão dispostos a reconhecer. Estamos vendo hoje movimentos – como os movimentos de justiça alimentar – dizerem que precisamos entender essa transformação e ela tem a ver com o direito à alimentação no sentido ecológico, mas também no sentido cultural e democrático – e eles não podem ser separados.

O problema com a “aritmética verde” inerente ao binômio “sociedade + natureza” está em que faz uma separação indevida entre justiça ambiental e justiça social, sustentabilidade ambiental e sustentabilidade social, imperialismo ecológico e imperialismo regular. Ora, qualquer um que conheça a história do imperialismo sabe que se trata sempre de saber “o que vai se transformar em valor” e “que grupos da sociedade se tornarão agora fonte de valorização de valor”. Assim que paramos com essa promiscuidade adjetiva, vemos claro que o imperialismo sempre considerou que o humano e o resto da natureza eram partes de um todo que cabia explorar o mais possível.

Acho, por isso, que é possível e necessário começar a fazer na prática novas alianças entre as diferentes partes dos movimentos sociais mundiais que, por enquanto, estão ainda desconectados . É preciso ligar os movimentos camponeses com os movimentos de trabalhadores urbanos, os movimentos de mulheres com os movimentos por justiça racial. Eis que existe uma raiz comum a todos eles. A razão para reunir o que chamo de “metabolismo singular” dos humanos na teia da vida é muito crucial – ele nos permite começar a fazer conexões entre momentos sociais e momentos ecológicos.

Em oposição direta ao binarismo natureza/sociedade, você apresenta uma nova síntese, o “oikos”. O que é isso e como isso nos leva a uma análise mais profunda do capitalismo?

No cerne do pensamento radical dominante há algo que impede que se faça uma conexão entre a história, as relações sociais entre os humanos e a teia da vida. O que predominou até agora foi essa ideia central de que a natureza está fora das relações humanas, que ela seria primitiva, que ela não tem história. Essa concepção produz a ideia de que a natureza está aí e que, no melhor dos casos, precisamos protegê-la, porque se não o fizermos, o apocalipse chegará. Isso, em parte, está acontecendo de fato e é correto; por outro lado, os radicais sempre foram bons em nomear o sistema de maneira errada.

Os radicais falam sobre a interação entre os humanos e o resto da natureza, mas não mencionam a relação de formação da vida que produz o meio ambiente e as espécies. A humanidade evolui por meio de uma série de atividades criadoras de meio ambiente que transformam não apenas as paisagens, mas também a biologia humana. Por exemplo, o controle do fogo permitiu que os ancestrais humanos desenvolvessem sistemas digestivos mais curtos e tratassem o fogo como uma espécie de estômago externo.

Uma das ideias centrais do livro é que a natureza tem, sim, em geral, padrões de reprodução relativamente constantes – a Terra orbita ao redor do Sol de um modo determinado – mas a natureza também evolve historicamente.

Com a ideia de tomar a Terra como um “oikos”, passamos a pensar num processo de formação de vida; nomeamos esse processo assim porque ele dá origem a múltiplos ecossistemas que incluem humanos. Os humanos estão sempre refazendo os ambientes em que vivem e, nesse processo, refazem as suas relações entre si e com a sua própria biologia. As estruturas de poder e produção, principalmente de reprodução, são parte da história sobre como recriamos as paisagens e os ambientes; mas também, como essas paisagens e esses ambientes, ao mesmo tempo, estão nos criando. No entanto, nosso vocabulário e conceitos estão aprisionados nesse dualismo. Precisamos quebrar esse dualismo, oferecendo alguns novos conceitos.

Bem no início do livro, você cita a observação de Marx de que a industrialização transformava “sangue em capital”. Você fala também sobre essa terrível transformação do trabalho, assim como de todas as formas da natureza, em valor. Que formas de natureza o capitalismo historicamente se apropriou? Qual é a tendência do capitalismo em relação aos espaços até então inexplorados?

O capitalismo é um sistema de estranhamento; eis que ele não é realmente antropocêntrico da maneira que os verdes costumam enxergá-lo. É antropocêntrico de uma forma estreita já que impõe aos humanos trabalharem dentro do sistema de mercadorias, que é baseado na exploração: o trabalhador trabalha quatro horas para cobrir seu próprio salário e outras quatro ou mais horas para o capitalista. Essa é uma dimensão em que Marx se concentrou. Mas ele estava ciente de um conjunto mais amplo de dimensões.

O capitalismo trata uma parte da humanidade como social – aquela parte que está dentro do nexo monetário e é reproduzida dentro do nexo monetário. Mas – e isto é bem contraintuitivo – ele consiste de uma ilha de produção e troca de mercadorias dentro de um oceano muito maior. É aí que se dão as apropriações de trabalho/energia não remuneradas. Cada processo de trabalho, digamos, cada trabalhador em Shenzhen, na China, ou em Detroit, 70 anos atrás, depende da apropriação do trabalho/energia não remunerados do resto da natureza. O capitalismo é, antes de tudo, um magnífico sistema de destruição e de “apropriação das mulheres, da natureza e das colônias”, para usar uma frase importante de Maria Mies.

O problema do capitalismo hoje é que as oportunidades de se apropriar do trabalho gratuitamente – de florestas, oceanos, clima, solos e seres humanos — estão diminuindo dramaticamente. Enquanto isso, a massa de capital circulando pelo mundo em busca de algo em que investir está crescendo cada vez mais. A visão do capitalismo que está no livro fala sobre um dinamismo atual que irá alimentar uma situação cada vez mais instável nas próximas uma ou duas décadas. Temos uma enorme massa de capital procurando ser investida e uma enorme contração de oportunidades para conseguir trabalho de graça. Isso significa que o capitalismo precisa começar a pagar seus próprios custos que incorrem ao fazer negócios, o que significa que as oportunidades de investir capital estão diminuindo. Há montanhas de dinheiro e ninguém tem ideia do que fazer com ele senão aumentá-lo nominalmente.

A crítica radical atual corre segundo duas linhas paralelas. Para uma delas, o mundo está chegando ao fim; essa é a visão do apocalipse planetário de John Bellamy Foster. Para a outra, o capitalismo tem apenas um problema de subconsumo ou de desigualdade. Contudo, cada uma delas é incompleta sem a outra; elas precisam ser colocadas juntas. Quando se introduz o ecológico na teoria da crise econômica ou na análise da desigualdade social, o modo de entender o boom e a crise econômica, assim como a desigualdade, começa a mudar. Parte disso vem do fato de que as questões centrais da desigualdade social, ao longo das linhas de classe, raça e gênero, têm tudo a ver com como o capitalismo funciona na teia da vida.

Vamos nos voltar para o processo de trabalho, a pedra angular da exploração capitalista no pensamento marxista clássico. Você argumenta que Marx sabia que não apenas o trabalho assalariado, mas também o trabalho não remunerado – isto é, as energias humanas em geral, especialmente das mulheres, assim como o “trabalho” da natureza extra-humana – eram centrais para o capitalismo. E você também nota que vivemos em um mundo onde, cada vez mais, opõem-se salários e empregos ao clima, o que é uma falsa dicotomia. Como podemos nos afastar desse binarismo, dessa dicotomia que você está tentando quebrar?

Procurei ir ao cerne do pensamento marxista para descobrir uma nova interpretação que fosse consistente com a forma como Marx pensava. Valor é uma das coisas mais chatas sobre a qual os marxistas costumam se pronunciar – falar da “lei do valor” deixa certamente meus olhos vidrados. Pois, todas as civilizações têm uma forma de valorizar a vida. Isso não é exclusivo do capitalismo. O que o capitalismo faz é o seguinte: bem, para mim, a produtividade do trabalho dentro do nexo do dinheiro é o que conta; logo é preciso desvalorizar o trabalho das mulheres, da natureza e das colônias. Note-se, agora, que isso vira do avesso o argumento marxista usual. Existe um tipo de lei do valor no capitalismo que consiste em ser também uma lei da “natureza barata” ou mesmo uma lei que desvaloriza o trabalho dos humanos não remunerados em dinheiro junto com o resto da natureza.

Eu cresci num mundo em que esse tipo de política estava se propagando. De um lado, havia os conservacionistas que, com razão, queriam proteger as florestas antigas. E, do outro lado, havia a burguesia, mas também os sindicatos, que diziam: bem, precisamos de empregos.

Isso está mudando. Está ficando claro, mesmo para muitas grandes empresas, que a mudança climática irá alterar fundamentalmente as condições de obtenção de lucro. Podemos ver isso na produção de comida. O mundo moderno funciona com base em alimentos baratos, que podem ser obtidos com um clima muito regular, muito solo, mão de obra barata – é assim que se obtêm calorias de modo relativamente barato. Mas agora aparece o movimento pela soberania alimentar. Ele diz que não se pode obter empregos de qualquer maneira, que não há maneira de fazer a natureza trabalhar de graça como tem sido. Na verdade, estamos vendo agora a conta chegar devido ao tratamento da atmosfera global como depósito de poluição.

Também vemos a situação na Califórnia, por exemplo, onde a seca se tornou tão severa – a pior em 1200 anos, segundo dizem os estudos – que o centro em que prospera a agricultura comercial norte-americana pode simplesmente desaparecer nas próximas décadas. Portanto, de várias maneiras, a aceleração da mudança histórica está tornando o discurso “empregos versus meio ambiente” obsoleto.

Você fala muito sobre a apropriação do trabalho não remunerado, mas socialmente necessário, como o modus operandi do capitalismo. Entretanto, os pensamentos verde e vermelho tendem geralmente a ignorar esse ponto. Você poderia fornecer alguns exemplos?

A primeira coisa que precisamos saber é que o mito organizador mais poderoso do pensamento verde e do ativismo ambiental nas últimas quatro décadas foi a Revolução Industrial – este é o argumento central atualmente encontrado na tese do “Antropoceno”. Ele diz que todo o mal na mudança ambiental remonta à Inglaterra por volta de 1800, com a máquina a vapor e o carvão. Isso não é verdade, mas essa ideia está arraigada na compreensão do mundo moderno e, especial, no modo de pensar a crise ambiental.

Na verdade, a ascensão do capitalismo pode ser vista muito claramente nos séculos XV, XVI e XVII, ao percebermos as transformações nas paisagens de então e nos seres humanos que aí viviam. Uma revolução na criação do ambiente sem precedentes em velocidade e em escopo ocorreu entre 1450 e 1750.

A expressão mais dramática dessa mudança foi a conquista das Américas. Ela extrapolou em muito o estatuto de uma mera conquista militar e genocídio, embora tenha sido, sim, em grande parte, isso mesmo. O Novo Mundo tornou-se um campo de provas para o capitalismo industrial em todos os sentidos. As origens podem ser vistas nas plantações de açúcar. Um segundo lugar foi a mineração de prata em Potosi, na Bolívia. Havia operações de produção muito grandes, muitas máquinas, dinheiro entrando, trabalhadores que eram arregimentados por tempo e por tarefa – tudo tinha como premissa se apropriar do trabalho da natureza, grátis ou de custo muito baixo, para transformá-lo em algo que poderia ser comprado e vendido.

Isso destruiu os solos e as zonas montanhosas dos Andes, por exemplo, que estavam completamente despojadas de árvores, causando uma terrível erosão do solo. Mas também foi devastador para os humanos incorporados nesse processo. No vice-reinado do Peru, nos séculos XVI e XVII, os castelhanos, os espanhóis, por exemplo, tinham uma palavra especial para designar os povos indígenas: “naturales”. Esses indígenas feitos trabalhadores eram considerados parte da natureza.

O mesmo tipo conceituação ocorreu em torno da escravidão africana. O tráfico de escravos africanos era uma realidade que se juntava às plantações de açúcar; ora, isso diz algo importante – não apenas os solos do Novo Mundo foram apropriados e exauridos, as suas florestas desmatadas, mas também os escravos africanos foram tratados não como humanos ou não fazendo parte da sociedade, mas como parte da natureza. O trabalho dos africanos foi apropriado e o trabalho dos solos e das florestas foram apropriados sem dó nem piedade. Foi a partir daí que começou a surgir uma nova relação com a natureza e ela tinha a ver com a economia.

Cada vez que surgiam novos impérios – o português, o espanhol, o holandês – no Novo Mundo e no Oceano Índico, a primeira coisa que faziam era começar a recolher todas as manifestações da natureza que pudessem encontrar, incluindo os humanos, para codificá-las, para torná-las objeto da razão instrumental. Finalmente, houve processos extraordinários de mobilização de trabalho não remunerado a serviço da produção e troca de mercadorias. A primeira coisa que qualquer capitalista queria, ou qualquer potência colonial queria, era colocar um pouco de dinheiro e obter muita energia útil de volta, na forma de prata, açúcar e, posteriormente, tabaco e algodão com o advento da Revolução Industrial. Era o mesmo processo visto em qualquer avanço tecnológico – seja a máquina a vapor ou antes dela as inovações na construção naval. Isso sempre teve como premissa fazer com que formas da natureza funcionassem de graça ou a baixo custo em escala massiva.

Em que consiste a sua crítica do Antropoceno? Como você acha que esse conceito encobre a análise histórica real do capitalismo?

Precisamos distinguir entre dois usos do termo. Um é o Antropoceno enquanto noção cultural, que medra nas conversas entre amigos durante o jantar ou no bar. Nesse sentido, o termo antropoceno tem a virtude de colocar uma questão importante: como os humanos se inserem na teia da vida? Mas a noção de Antropoceno não pode responder à sua pergunta, porque ela é inerentemente dualística. Veja-se o título de um famoso artigo “O Antropoceno: os humanos estão agora dominando as grandes forças da natureza?” Essa se transfigura numa boa questão quando se acredita que os humanos fazem parte da natureza.

O argumento do Antropoceno em sua forma dominante, por outro lado, está baseado num modelo histórico absurdo. Diz mais ou menos que tudo começou na Inglaterra, em 1800, com motores a vapor e com o uso do carvão mineral. Há vários problemas históricos nessa formulação. Muito antes da máquina à vapor, houve um aumento de ordem de magnitude na capacidade do capitalismo de transformar o meio ambiente, em termos de escala, velocidade e escopo.

Sou uma pessoa muito preocupada com o fato de que a noção de Antropoceno permite fazer esse velho truque burguês que diz que os problemas criados pelos capitalistas são de responsabilidade de toda a humanidade. Essa é uma visão profundamente racista, eurocêntrica e patriarcal que apresenta uma série de problemas muito reais. Não se pode responsabilizar a humanidade como um todo. Em um nível filosófico profundo, somos todos iguais aos olhos do Antropoceno. Em um sentido histórico, essa é uma das piores violências conceituais que se pode impor. Seria como dizer que a raça não importa na América atual – qualquer pessoa que afirmasse isso seria ridicularizada no ato. A fuga permitida pela ideia de Antropoceno vem do dualismo natureza/sociedade.

O capitalismo hoje, em última análise, está passando por uma crise evolutiva. Que prognóstico essa nova análise histórica fornece sobre essa crise?

Tudo depende de como se pensa o capitalismo. Se se tem uma definição padrão de capitalismo como um sistema comprometido com o crescimento econômico sem fim e com a maximização da lucratividade, é possível pensar na capacidade do capitalismo de sobreviver. Mas se se julga que o capitalismo depende da apropriação do trabalho não remunerado dos humanos e do resto da natureza… então se começa a ter uma visão diferente dos seus limites.

A questão central da economia política é: como os grandes booms de investimento e de acumulação capitalistas ocorrem no mundo moderno? Quais são os seus limites?

Mesmo se as mudanças climáticas não estivessem acontecendo, esses limites já seriam formidáveis. Os capitalistas sempre encontraram saídas para as crises e isto é algo com que os radicais e os conservadores concordam. Ambos dizem a mesma coisa porque são cegos à natureza. O capitalismo é, acima de tudo, um sistema de natureza barata, consistindo em quatro elementos: força de trabalho, energia, alimentos e matérias-primas. O capitalismo restaura o baixo custo desses produtos da natureza, encontrando novas partes da natureza que não foram mercantilizadas ou trazidas para o nexo monetário. No século XIX, foram o sul e o leste da Ásia. Nos últimos 30 anos, o neoliberalismo trouxe a China, a Índia, a União Soviética e o Brasil para o seu âmbito.

Ora, em termos de mudanças climáticas, esse processo retroalimenta ainda, de uma forma retardada, a apropriação da “natureza barata” que ainda sobrou. A mudança climática é o maior vetor individual de aumento dos custos dos negócios normais. Isso vai minar a base de todo o relacionamento do capitalismo com a natureza, minando radicalmente a estratégia de apropriação da natureza barata em que ele se baseou para se desenvolver.

Você menciona que os movimentos ambientais e sociais estão lentamente chegando à conclusão de que o binarismo natureza/sociedade é falso, possivelmente por causa das ameaças reais à natureza e à sociedade e mesmo ao próprio capitalismo, particularmente com projetos de perfuração extrativa em grande escala que estão invadindo uma natureza da qual os humanos fazem parte.

Acho que alguns movimentos estão começando a ver a natureza e a sociedade como sendo inextricavelmente ligadas. Acho que o próximo passo é entrar no âmago das questões de raça, gênero e desigualdade para apontar como essas questões são intimamente conectadas à natureza e à sociedade tal como são imaginadas no mundo moderno. Ao se fazer algumas perguntas simples: por exemplo, por que algumas vidas humanas são mais importantes do que outras – pensando na importância de vidas negras? – ou por que alguns genocídios são mais importantes do que outros?, começa-se a ver que existem pressuposições muito poderosas sobre essas noções de natureza e sociedade.

Acho que os movimentos em torno da extração de petróleo por fracking ou do oleoduto Keystone, nos Estados Unidos se apresentam com um tipo de organização social que se encaixa muito bem com os argumentos do livro. Os movimentos por justiça não podem mais ser aplacados por meio de uma nova distribuição de recompensas, em parte porque o capitalismo não tem o excedente que costumava ter. Vê-se isso especialmente nas discussões em torno de projetos de energia, fraturamento hidráulico, petróleo e extrativismo na América Latina. E é claro que para começar, nessa região, muitos grupos indígenas nunca acreditaram nesse dualismo. É por isso que eles estavam à frente nesse ponto até em relação à ciência moderna.

Mas ainda há muitas pessoas na esquerda, especialmente na América do Norte, que veem a natureza como algo externo, como uma variável ou um contexto, que será um beco sem saída político completo. Precisamos trazer a natureza para dentro do capitalismo e entender o capitalismo como parte da natureza.

Sobre o entrevistado

Jason W. Moore is assistant professor of sociology at Binghamton University, and coordinator of the World-Ecology Research Network. He writes frequently on the history of capitalism in Europe, Latin America, and the United States, from the long sixteenth century to the neoliberal era. Presently, he is completing Ecology and the rise of capitalism, an environmental history of the rise of capitalism, for the University of California Press.

Sobre o entrevistador 

Kamil Ahsan is a freelance writer and a PhD candidate in developmental biology at the University of Chicago.

24 de setembro de 2015

A Armadilha de Tucídides: Os EUA e a China estão caminhando para a guerra?

Em 12 dos 16 casos anteriores em que uma potência em ascensão confrontou uma potência dominante, o resultado foi derramamento de sangue.

Graham Allison


Mike Blake / Damir Sagolj / Reuters / alessandro0770 / Shutterstock / Zak Bickel / The Atlantic

Quando Barack Obama se reunir esta semana com Xi Jinping durante a primeira visita de Estado do presidente chinês aos Estados Unidos, um item provavelmente não estará em sua agenda: a possibilidade de que os Estados Unidos e a China se encontrem em guerra na próxima década. Nos círculos políticos, isso parece tão improvável quanto imprudente.

E ainda 100 anos depois, a Primeira Guerra Mundial oferece um lembrete preocupante da capacidade do homem para a loucura. Quando dizemos que a guerra é “inconcebível”, isso é uma afirmação sobre o que é possível no mundo – ou apenas sobre o que nossas mentes limitadas podem conceber? Em 1914, poucos poderiam imaginar uma matança em uma escala que exigia uma nova categoria: a guerra mundial. Quando a guerra terminou, quatro anos depois, a Europa estava em ruínas: o kaiser desaparecido, o império austro-húngaro dissolvido, o czar russo derrubado pelos bolcheviques, a França sangrando por uma geração e a Inglaterra despojada de sua juventude e tesouro. Um milênio em que a Europa havia sido o centro político do mundo chegou a um impasse.

A questão que define a ordem global para esta geração é se a China e os Estados Unidos podem escapar da Armadilha de Tucídides. A metáfora do historiador grego nos lembra dos perigos inerentes quando uma potência em ascensão rivaliza com uma potência dominante – como Atenas desafiou Esparta na Grécia antiga, ou como a Alemanha fez com a Grã-Bretanha um século atrás. A maioria dessas competições terminou mal, muitas vezes para ambas as nações, concluiu uma equipe minha do Harvard Belfer Center for Science and International Affairs após analisar o registro histórico. Em 12 dos 16 casos nos últimos 500 anos, o resultado foi guerra. Quando as partes evitavam a guerra, isso exigia enormes e dolorosos ajustes nas atitudes e ações não apenas do desafiante, mas também do desafiado.

Com base na trajetória atual, a guerra entre os Estados Unidos e a China nas próximas décadas não é apenas possível, mas muito mais provável do que se reconhece no momento. De fato, a julgar pelo registro histórico, a guerra é mais provável do que improvável. Além disso, as atuais subestimações e mal-entendidos dos perigos inerentes ao relacionamento EUA-China contribuem muito para esses perigos. Um risco associado à Armadilha de Tucídides é que o business as usual - não apenas um evento inesperado e extraordinário - podem desencadear conflitos em larga escala. Quando uma potência em ascensão ameaça deslocar uma potência dominante, crises comuns que de outra forma seriam contidas, como o assassinato de um arquiduque em 1914, podem iniciar uma cascata de reações que, por sua vez, produzem resultados que nenhuma das partes teria escolhido de outra forma.

A guerra, no entanto, não é inevitável. Quatro dos 16 casos em nossa revisão não terminaram em derramamento de sangue. Esses sucessos, assim como os fracassos, oferecem lições pertinentes para os líderes mundiais de hoje. Escapar da Armadilha requer um esforço tremendo. Como o próprio Xi Jinping disse durante uma visita a Seattle na terça-feira: “Não existe a chamada Armadilha de Tucídides no mundo. Mas, se os principais países cometerem erros de cálculo estratégico repetidamente, eles podem criar essas armadilhas para si mesmos”.

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Há mais de 2.400 anos, o historiador ateniense Tucídides ofereceu uma visão poderosa: “Foi a ascensão de Atenas e o medo que isso inspirou em Esparta que tornaram a guerra inevitável”. Outros identificaram uma série de causas que contribuíram para a Guerra do Peloponeso. Mas Tucídides foi ao cerne da questão, concentrando-se no estresse estrutural inexorável causado por uma rápida mudança no equilíbrio de poder entre dois rivais. Observe que Tucídides identificou dois principais impulsionadores dessa dinâmica: o crescente direito do poder crescente, o senso de sua importância e a demanda por mais voz e influência, por um lado, e o medo, a insegurança e a determinação de defender o status quo que isso gera no poder estabelecido, por outro.

No caso sobre o qual ele escreveu no século V a.C., Atenas havia emergido ao longo de meio século como um campanário da civilização, produzindo avanços em filosofia, história, drama, arquitetura, democracia e proezas navais. Isso chocou Esparta, que por um século foi a principal potência terrestre na península do Peloponeso. Na visão de Tucídides, a posição de Atenas era compreensível. À medida que sua influência crescia, também crescia sua autoconfiança, sua consciência de injustiças passadas, sua sensibilidade a casos de desrespeito e sua insistência em que arranjos anteriores fossem revisados para refletir novas realidades de poder. Também era natural, explicou Tucídides, que Esparta interpretasse a postura ateniense como irracional, ingrata e ameaçadora ao sistema que havia estabelecido — e dentro do qual Atenas havia florescido.

Tucídides narrou mudanças objetivas no poder relativo, mas também se concentrou nas percepções de mudança entre os líderes de Atenas e Esparta - e como isso levou cada um a fortalecer alianças com outros estados na esperança de contrabalançar o outro. Mas o emaranhamento funciona nos dois sentidos. (Foi por essa razão que George Washington notoriamente alertou os Estados Unidos para tomarem cuidado com “alianças emaranhadas”.) Quando o conflito eclodiu entre as cidades-estado de segundo nível de Corinto e Corcira (agora Corfu), Esparta sentiu a necessidade de vir em defesa de Corinto, o que deixou pouca escolha a Atenas a não ser apoiar seu aliado. Seguiu-se a Guerra do Peloponeso. Quando terminou, 30 anos depois, Esparta era o vencedor nominal. Mas ambos os estados estavam em ruínas, deixando a Grécia vulnerável aos persas.

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Oito anos antes da eclosão da guerra mundial na Europa, o rei da Grã-Bretanha, Eduardo VII, perguntou a seu primeiro-ministro por que o governo britânico estava se tornando tão hostil à Alemanha de seu sobrinho Kaiser Wilhelm II, em vez de ficar de olho na América, que ele via como o maior desafio. O primeiro-ministro instruiu o principal observador da Alemanha do Ministério das Relações Exteriores, Eyre Crowe, a escrever um memorando respondendo à pergunta do rei. Crowe entregou seu memorando no dia de ano novo de 1907. O documento é uma joia nos anais da diplomacia.

A lógica da análise de Crowe ecoou o insight de Tucídides. E sua questão central, conforme parafraseada por Henry Kissinger em On China, era a seguinte: a hostilidade crescente entre a Grã-Bretanha e a Alemanha derivava mais das capacidades alemãs ou da conduta alemã? Crowe colocou de forma um pouco diferente: a busca da Alemanha por "hegemonia política e ascendência marítima" representa uma ameaça existencial para "a independência de seus vizinhos e, finalmente, a existência da Inglaterra?"

A Grande Frota Britânica a caminho de encontrar a frota da Marinha Imperial Alemã para a Batalha da Jutlândia em 1916 (AP)

A resposta de Crowe foi inequívoca: capacidade era fundamental. À medida que a economia da Alemanha superasse a da Grã-Bretanha, a Alemanha não apenas desenvolveria o exército mais forte do continente. Em breve também "construiria uma marinha tão poderosa quanto pudesse pagar". Em outras palavras, escreve Kissinger, "uma vez que a Alemanha alcançasse a supremacia naval … isso em si – independentemente das intenções alemãs – seria uma ameaça objetiva à Grã-Bretanha e incompatível com a existência do Império Britânico."

Três anos depois de ler esse memorando, Eduardo VII morreu. Os participantes de seu funeral incluíram dois “principais enlutados” - o sucessor de Eduardo, George V, e o Kaiser Wilhelm da Alemanha - junto com Theodore Roosevelt representando os Estados Unidos. A certa altura, Roosevelt (um ávido estudante de poder naval e principal defensor da construção da Marinha dos Estados Unidos) perguntou a Wilhelm se ele consideraria uma moratória na corrida armamentista naval germano-britânica. O kaiser respondeu que a Alemanha estava inalteravelmente comprometida em ter uma marinha poderosa. Mas, como ele explicou, a guerra entre a Alemanha e a Grã-Bretanha era simplesmente impensável, porque “fui criado na Inglaterra, em grande parte; Sinto-me em parte um inglês. Depois da Alemanha, preocupo-me mais com a Inglaterra do que com qualquer outro país.” E, então, com ênfase: "ADORO A INGLATERRA!"

Por mais inimaginável que pareça o conflito, por mais catastróficas que sejam as consequências potenciais para todos os atores, por mais profunda que seja a empatia cultural entre líderes, até mesmo parentes consangüíneos, e por mais interdependentes economicamente que sejam os Estados – nenhum desses fatores é suficiente para evitar a guerra, em 1914 ou hoje.

De fato, em 12 dos 16 casos nos últimos 500 anos em que houve uma rápida mudança no poder relativo de uma nação em ascensão que ameaçou deslocar um estado governante, o resultado foi a guerra. Como sugere a tabela abaixo, a luta pelo domínio na Europa e na Ásia ao longo do último meio milênio oferece uma sucessão de variações sob um enredo comum.

Estudos de caso de Tucídides

Harvard Belfer Center for Science and International Affairs

(Para obter resumos desses 16 casos e a metodologia para selecioná-los, e para um fórum para registrar adições, subtrações, revisões e discordâncias com os casos, visite o Harvard Belfer Center’s Thucydides Trap Case File. Para esta primeira fase do projeto , nós do Belfer Center identificamos os poderes “dominantes” e “ascendentes” seguindo os julgamentos dos principais relatos históricos, resistindo à tentação de oferecer interpretações originais ou idiossincráticas dos eventos. Essas histórias usam “ascensão” e “governo” de acordo com suas definições convencionais, geralmente enfatizando mudanças rápidas no PIB relativo e na força militar. A maioria dos casos nesta rodada inicial de análise vem da Europa pós-Vestfália.)

Quando uma França revolucionária em ascensão desafiou o domínio da Grã-Bretanha sobre os oceanos e o equilíbrio de poder no continente europeu, a Grã-Bretanha destruiu a frota de Napoleão Bonaparte em 1805 e depois enviou tropas ao continente para derrotar seus exércitos na Espanha e em Waterloo. Enquanto Otto von Bismarck procurava unificar uma variedade de estados alemães em ascensão, a guerra com seu adversário comum, a França, provou ser um instrumento eficaz para mobilizar o apoio popular para sua missão. Após a Restauração Meiji em 1868, uma economia e um estabelecimento militar japoneses em rápida modernização desafiaram o domínio chinês e russo do Leste Asiático, resultando em guerras com ambos, das quais o Japão emergiu como a principal potência na região.

Cada caso é, claro, único. O debate contínuo sobre as causas da Primeira Guerra Mundial nos lembra que cada uma delas está sujeita a interpretações conflitantes. Um grande historiador internacional, Ernest May, de Harvard, ensinou que, ao tentar raciocinar a partir da história, devemos ser tão sensíveis às diferenças quanto às semelhanças entre os casos que comparamos. (De fato, em sua aula de Raciocínio Histórico 101, May pegava uma folha de papel, desenhava uma linha no meio da página, rotulava uma coluna de “Semelhante” e a outra de “Diferente” e preenchia a folha com pelo menos um meia dúzia de cada.) No entanto, reconhecendo muitas diferenças, Tucídides nos direciona para uma semelhança poderosa.

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O principal desafio geoestratégico desta era não são os extremistas islâmicos violentos ou uma Rússia ressurgente. É o impacto que a ascensão da China terá na ordem internacional liderada pelos EUA, que proporcionou paz e prosperidade sem precedentes às grandes potências nos últimos 70 anos. Como observou o falecido líder de Cingapura, Lee Kuan Yew, “o tamanho do deslocamento da China no equilíbrio mundial é tal que o mundo deve encontrar um novo equilíbrio. Não dá para fingir que se trata de mais um grande jogador. Este é o maior jogador da história do mundo.” Todo mundo sabe sobre a ascensão da China. Poucos de nós percebem sua magnitude. Nunca antes na história uma nação subiu tanto, tão rápido, em tantas dimensões de poder. Parafraseando o ex-presidente tcheco Vaclav Havel, tudo isso aconteceu tão rapidamente que ainda não tivemos tempo de ficar surpresos.

Minha palestra sobre esse tópico em Harvard começa com um questionário que pede aos alunos que comparem a China e os Estados Unidos em 1980 com suas classificações atuais. O leitor é convidado a preencher os espaços em branco.

Teste: Preencha os espaços em branco


As respostas da primeira coluna: em 1980, a China tinha 10% do PIB dos Estados Unidos, medido pela paridade do poder de compra; 7% de seu PIB às taxas de câmbio atuais do dólar americano; e 6% de suas exportações. A moeda estrangeira mantida pela China, enquanto isso, era apenas um sexto do tamanho das reservas americanas. As respostas para a segunda coluna: Em 2014, esses números eram 101% do PIB; 60 por cento às taxas de câmbio do dólar americano; e 106% das exportações. As reservas da China hoje são 28 vezes maiores que as dos Estados Unidos.

Em uma única geração, uma nação que não aparecia em nenhuma das tabelas da liga internacional saltou para os primeiros lugares. Em 1980, a economia da China era menor que a da Holanda. No ano passado, o incremento do crescimento do PIB da China foi aproximadamente igual ao de toda a economia holandesa.

A segunda pergunta do meu questionário pergunta aos alunos: a China poderia se tornar a número 1? Em que ano a China poderia ultrapassar os Estados Unidos para se tornar, digamos, a maior economia do mundo, ou o principal motor do crescimento global, ou o maior mercado de artigos de luxo?

A China poderia se tornar a número 1?

  • Fabricante:
  • Exportador:
  • Nação comercial:
  • Economizador:
  • Titular da dívida dos EUA:
  • Destino do investimento estrangeiro direto:
  • Consumidor de energia:
  • Importador de petróleo:
  • Emissor de carbono:
  • Produtor de aço:
  • Mercado automotivo:
  • Mercado de smartphones:
  • Mercado de comércio eletrônico:
  • Mercado de artigos de luxo:
  • Usuário de internet:
  • Supercomputador mais rápido:
  • Titular de reservas estrangeiras:
  • Fonte das ofertas públicas iniciais:
  • Principal motor do crescimento global:
  • Economia:

A maioria fica surpresa ao saber que em cada um desses 20 indicadores, a China já ultrapassou os EUA.

A China será capaz de sustentar taxas de crescimento econômico várias vezes superiores às dos Estados Unidos por mais uma década e além? Se e como o fizer, seus líderes atuais estão falando sério sobre substituir os EUA como a potência predominante na Ásia? A China seguirá o caminho do Japão e da Alemanha e assumirá seu lugar como participante responsável na ordem internacional que os Estados Unidos construíram nas últimas sete décadas? A resposta a estas perguntas é obviamente que ninguém sabe.

Mas se vale a pena dar atenção às previsões de alguém, são as de Lee Kuan Yew, o principal observador mundial da China e mentor dos líderes chineses desde Deng Xiaoping. Antes de sua morte em março, o fundador de Cingapura colocou as chances de a China continuar a crescer várias vezes às taxas dos EUA na próxima década e além como “quatro chances em cinco”. Sobre se os líderes da China estão falando sério sobre substituir os Estados Unidos como a principal potência da Ásia no futuro previsível, Lee respondeu diretamente: “Claro. Por que não... como eles não poderiam aspirar a ser o número um na Ásia e, com o tempo, o mundo?” E sobre aceitar seu lugar em uma ordem internacional projetada e liderada pelos Estados Unidos, ele disse absolutamente que não: “A China quer ser a China e aceita como tal – não como um membro honorário do Ocidente”.

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Os americanos têm a tendência de dar sermões aos outros sobre por que eles deveriam ser “mais como nós”. Ao instar a China a seguir o exemplo dos Estados Unidos, nós, americanos, devemos ter cuidado com o que desejamos?

Como os Estados Unidos emergiram como a potência dominante no hemisfério ocidental na década de 1890, como eles se comportaram? O futuro presidente Theodore Roosevelt personificou uma nação extremamente confiante de que os próximos 100 anos seriam um século americano. Ao longo de uma década que começou em 1895 com o secretário de Estado dos Estados Unidos declarando os Estados Unidos “soberanos neste continente”, os Estados Unidos libertaram Cuba; ameaçou a Grã-Bretanha e a Alemanha com uma guerra para forçá-los a aceitar as posições americanas nas disputas na Venezuela e no Canadá; apoiou uma insurreição que dividiu a Colômbia para criar um novo estado do Panamá (que imediatamente deu aos Estados Unidos concessões para construir o Canal do Panamá); e tentou derrubar o governo do México, apoiado pelo Reino Unido e financiado por banqueiros londrinos. No meio século que se seguiu, as forças militares dos EUA intervieram em “nosso hemisfério” em mais de 30 ocasiões distintas para resolver disputas econômicas ou territoriais em termos favoráveis aos americanos ou expulsar líderes que julgavam inaceitáveis.

Theodore Roosevelt com tropas dos EUA na Zona do Canal do Panamá em 1906 (Wikimedia)

Por exemplo, em 1902, quando navios britânicos e alemães tentaram impor um bloqueio naval para forçar a Venezuela a pagar suas dívidas com eles, Roosevelt advertiu ambos os países de que seria “obrigado a interferir pela força se necessário” se eles não retirassem suas navios. Os britânicos e alemães foram persuadidos a recuar e resolver sua disputa em termos satisfatórios para os EUA em Haia. No ano seguinte, quando a Colômbia se recusou a arrendar a Zona do Canal do Panamá para os Estados Unidos, os Estados Unidos patrocinaram secessionistas panamenhos, reconheceram o novo governo panamenho horas depois de sua declaração de independência e enviaram os fuzileiros navais para defender o novo país. Roosevelt defendeu a intervenção dos EUA alegando que ela era “justificada pela moral e, portanto, justificada pela lei”. Pouco tempo depois, o Panamá concedeu aos Estados Unidos direitos sobre a Zona do Canal “em perpetuidade”.

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Quando Deng Xiaoping iniciou a rápida marcha da China para o mercado em 1978, ele anunciou uma política conhecida como “esconde-esconde”. O que a China mais precisava no exterior era estabilidade e acesso aos mercados. Os chineses, portanto, “esperariam nosso tempo e esconderiam nossas capacidades”, que os oficiais militares chineses às vezes parafraseavam como ficar fortes antes de se vingar.

Com a chegada do novo líder supremo da China, Xi Jinping, a era do “esconde-esconde” acabou. Quase três anos depois de seu mandato de 10 anos, Xi surpreendeu colegas em casa e observadores da China no exterior com a velocidade com que se moveu e a audácia de suas ambições. Internamente, ele contornou o governo de um comitê permanente de sete homens e, em vez disso, consolidou o poder em suas próprias mãos; acabou com os flertes com a democratização ao reafirmar o monopólio do Partido Comunista sobre o poder político; e tentou transformar o motor de crescimento da China de uma economia focada na exportação para uma impulsionada pelo consumo doméstico. No exterior, ele tem buscado uma política externa chinesa mais ativa e cada vez mais assertiva na defesa dos interesses do país.

Enquanto a imprensa ocidental é dominada pela história da “desaceleração econômica da China”, poucos param para notar que a taxa de crescimento mais baixa da China permanece mais de três vezes maior que a dos Estados Unidos. Muitos observadores fora da China não perceberam a grande divergência entre o desempenho econômico da China e o de seus concorrentes ao longo dos sete anos desde a crise financeira de 2008 e a Grande Recessão. Esse choque fez com que praticamente todas as outras grandes economias vacilassem e caíssem. A China nunca perdeu um ano de crescimento, mantendo uma taxa média de crescimento superior a 8%. De fato, desde a crise financeira, quase 40% de todo o crescimento da economia global ocorreu em apenas um país: a China. O gráfico abaixo ilustra o crescimento da China em comparação com o crescimento entre seus pares no grupo BRICS de economias emergentes, economias avançadas e no mundo. De um índice comum de 100 em 2007, a divergência é dramática.

GDP, 2007 — 2015

Harvard Belfer Center / IMF World Economic Outlook

Hoje, a China desbancou os Estados Unidos como a maior economia do mundo medida em termos da quantidade de bens e serviços que um cidadão pode comprar em seu próprio país (paridade do poder de compra).

O que Xi Jinping chama de “Sonho da China” expressa as aspirações mais profundas de centenas de milhões de chineses, que desejam ser não apenas ricos, mas também poderosos. No cerne do credo civilizacional da China está a crença – ou presunção – de que a China é o centro do universo. Na narrativa frequentemente repetida, um século de fraqueza chinesa levou à exploração e à humilhação nacional pelos colonialistas ocidentais e pelo Japão. Na visão de Pequim, a China agora está sendo restaurada ao seu lugar de direito, onde seu poder exige reconhecimento e respeito pelos interesses centrais da China.

Uma pintura em xilogravura retrata a Primeira Guerra Sino-Japonesa. (Toyohara Chikanobu / Wikimedia)

Em novembro passado, em uma reunião seminal de todo o establishment político e de política externa chinesa, incluindo a liderança do Exército Popular de Libertação, Xi forneceu uma visão abrangente de sua visão do papel da China no mundo. A demonstração de autoconfiança beirava a arrogância. Xi começou oferecendo uma concepção essencialmente hegeliana das principais tendências históricas em direção à multipolaridade (ou seja, não à unipolaridade dos EUA) e à transformação do sistema internacional (ou seja, não ao atual sistema liderado pelos EUA). Em suas palavras, uma nação chinesa rejuvenescida construirá um “novo tipo de relações internacionais” por meio de uma luta “prolongada” sobre a natureza da ordem internacional. No final, ele garantiu ao público que “a tendência crescente em direção a um mundo multipolar não mudará”.

Dadas as tendências objetivas, os realistas veem uma força irresistível se aproximando de um objeto imóvel. Eles perguntam o que é menos provável: a China exigindo um papel menor nos mares do Leste e do Sul da China do que os Estados Unidos fizeram no Caribe ou no Atlântico no início do século 20, ou os EUA compartilhando com a China a predominância no Pacífico Ocidental que a América tem apreciado desde a Segunda Guerra Mundial?

E, no entanto, em quatro dos 16 casos analisados pela equipe do Belfer Center, rivalidades semelhantes não terminaram em guerra. Se os líderes dos Estados Unidos e da China permitirem que fatores estruturais levem essas duas grandes nações à guerra, eles não poderão se esconder atrás de um manto de inevitabilidade. Aqueles que não aprenderem com os sucessos e fracassos do passado para encontrar um caminho melhor a seguir não terão ninguém para culpar a não ser a si mesmos.

Atores vestidos como soldados do Exército Vermelho marcam o 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, em Pequim. (Kim Kyung-Hoon/Reuters)

A esta altura, o roteiro estabelecido para a discussão dos desafios políticos pede um pivô para uma nova estratégia (ou pelo menos o slogan), com uma curta lista de tarefas que promete relações pacíficas e prósperas com a China. Encaixar esse desafio nesse modelo demonstraria apenas uma coisa: uma falha em entender o ponto central que estou tentando defender. O que os estrategistas mais precisam no momento não é uma nova estratégia, mas uma longa pausa para reflexão. Se a mudança tectônica causada pela ascensão da China representa um desafio de proporções genuinamente tucididianas, as declarações sobre “reequilíbrio” ou a revitalização do “engage and hedge” ou os apelos dos aspirantes à presidência por variantes mais “musculadas” ou “robustas” do mesmo, a pouco mais do que a aspirina para tratar o câncer. Historiadores do futuro compararão tais afirmações com os devaneios dos líderes britânicos, alemães e russos enquanto caminhavam como sonâmbulos até 1914.

A ascensão de uma civilização de 5.000 anos com 1,3 bilhão de pessoas não é um problema a ser resolvido. É uma condição – uma condição crônica que terá de ser gerenciada ao longo de uma geração. O sucesso exigirá não apenas um novo slogan, cúpulas de presidentes mais frequentes e reuniões adicionais de grupos de trabalho departamentais. Gerir esta relação sem guerra exigirá atenção constante, semana a semana, ao mais alto nível em ambos os países. Isso implicará uma profundidade de compreensão mútua não vista desde as conversas entre Henry Kissinger e Zhou Enlai na década de 1970. Mais significativamente, isso significará mudanças mais radicais nas atitudes e ações, por parte dos líderes e do público, do que qualquer um jamais imaginou.

Graham Allison é ex-diretor do Belfer Center for Science and International Affairs da Harvard Kennedy School e ex-secretário assistente de defesa dos EUA para políticas e planos. Ele é o autor de Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap?

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