19 de junho de 2003

Público versus mercantil

A polarização essencial não se dá entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil

Emir Sader


Uma das operações teóricas e políticas mais bem-sucedidas do neoliberalismo foi instaurar os debates em torno da oposição entre estatal e privado. Deslocar o debate para esse eixo impõe um campo duplamente favorável ao liberalismo, porque, por um lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal e, por outro, desloca um dos termos essenciais do debate: o público.

O estatal é caracterizado nesse esquema como ineficiente, aquele que cobra impostos e devolve maus serviços à população, como burocrático, corrupto, opressor. E o privado é promovido como espaço de liberdade individual, de criação, imaginação, dinamismo.

O Estado brasileiro tem sido facilmente desqualificável, porque tornou-se um Estado privatizado. Um Estado que arrecada do mundo do trabalho e transfere recursos para o setor financeiro, gastando mais com o pagamento dos juros da dívida do que com educação e saúde. Um Estado que paga taxas de juros estratosféricas ao capital financeiro, mas remunera pessimamente seus professores e seus trabalhadores do setor de saúde pública, aqueles mesmos que prestam serviços à massa da população. Um Estado que não assegura os direitos básicos para a grande maioria da população, mas que dilapidou o patrimônio público em processos de privatização financiados com o próprio dinheiro público. Por oposição, o privado surge como pólo privilegiado.

Porém a oposição estatal/privado reduz o debate a dois termos que, na realidade, não são necessariamente contraditórios, porque o estatal não é um pólo, mas um campo de disputa, que nos nossos tempos é hegemonizado pelos interesses privados. Já o privado não é a esfera dos indivíduos, mas dos interesses mercantis -como se vê nos processos de privatização, que não constituíram processos de desestatização em favor dos indivíduos, mas das grandes corporações privadas, aquelas que dominam o mercado -a verdadeira cara por trás da esfera privada no neoliberalismo.

O pólo oposto ao estatal, nesse esquema, é a negação da cidadania, é o reino do mercado, aquele que, negando os direitos, nega a cidadania e o indivíduo como sujeito de direitos. A polarização essencial não se dá entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil. Dentro do próprio Estado se desenvolve o conflito e a luta entre os que defendem os interesses públicos e os mercantis, entre o que Pierre Bourdieu chamou de braços esquerdo e direito do Estado.

O público se fundamenta nos cidadãos, nos indivíduos como sujeitos de direitos, enquanto o mercado congrega aos componentes do mercado os consumidores, os investidores. O primeiro tem na sua essência a universalização de direitos, o segundo, a mercantilização do acesso ao que deveriam ser direitos: educação, saúde, habitação, saneamento básico, lazer, cultura. O público se identifica com a democracia, seja pelo compromisso com a universalização dos direitos, seja pela possibilidade de controle pela cidadania, enquanto, ao se mercantilizarem esferas da sociedade, privatizando-as, retira-se da cidadania a capacidade de controle sobre elas.

Apesar dos avanços da mercantilização nos anos 90 no Brasil, houve também o fortalecimento de iniciativas de caráter público, como são, com suas diferentes expressões, as políticas de orçamento participativo e os assentamentos dos trabalhadores sem terra. A TV Cultura, na sua concepção original -hoje infelizmente bastante enfraquecida, por depender ela também da publicidade privada-, foi outra excelente expressão de políticas públicas.

A construção de uma democracia social (uma outra forma de falar da superação do neoliberalismo) no Brasil requer uma reforma profunda do Estado brasileiro, refundando-o em torno da esfera pública. Mas, antes de tudo, requer a reposição do conjunto dos debates políticos e teóricos em torno da polarização público/mercantil.

As primeiras orientações do governo Lula não parecem tampouco inovar nesse plano, desqualificando o servidor público, não privilegiando o fortalecimento da educação e da saúde públicas, perdendo a chance de fazer uma reforma tributária socialmente justa, desconhecendo a centralidade da esfera pública e o tema estratégico da reforma democrática do Estado, de que o orçamento participativo, em modalidades inovadas, é elemento essencial. A saída do modelo neoliberal não depende só de novas políticas econômicas, mas de se assumir a centralidade do público e a luta contra a mercantilização -chave da democracia social, da prioridade do social com que se comprometeu o novo governo. Mudança implica mudança econômica, política, social, cultural, mas também mudança do campo teórico de análise e de referência.

Sobre o autor

Emir Sader, 59, é professor de sociologia da USP e da Uerj, onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A vingança da História" (Boitempo Editorial), entre outros livros.

2 de junho de 2003

A cidade do futuro

Depois da dilapidação do modernismo urbano, que tipos de cidade e que formas de arquitetura nos esperam? O autor de The Seeds of Time considera suas flores no trabalho vertiginoso de Rem Koolhaas, os megadesenvolvimentos do Delta do Rio das Pérolas e a conceituação de "Junkspace". Regressar à história com um aríete do pós-moderno?

Fredric Jameson

New Left Review

NLR 21 • MAY/JUNE 2003

Tradução / O Project on the City (“Projeto sobre a Cidade”) reúne pesquisas de um seminário de graduação ainda em andamento, dirigido por Rem Koolhaas, na Harvard School of Design; seus primeiros dois volumes — Great Leap Foward (“O Grande Salto à Frente), uma análise do desenvolvimento do delta do Rio das Pérolas, entre Hong Kong e Macau, e Guide to Shopping (“Guia do Shopping”) — acabaram de sair em suntuosas edições da Taschen.[1] Esses extraordinários volumes são totalmente diferentes de tudo o que se pode encontrar na mídia impressa; eles não são livros de fotografia ou textos ilustrados, estão em movimento como um CD-ROM, suas estatísticas são visualmente bonitas e suas imagens, até certo ponto, legíveis.

Embora a arquitetura seja uma das poucas artes em que ainda existem os grandes auteurs — e embora Koolhaas certamente seja um deles — o seminário que produziu seus primeiros resultados nesses dois volumes não é dedicado à arquitetura, mas sim, à exploração da cidade nos dias de hoje, em todas as suas não-teorizadas diferenças em relação à estrutura urbana clássica que existiu ao menos até a Segunda Guerra Mundial. Desde seus primórdios, nos séculos XVIII e XIX, a arquitetura moderna tem estado intimamente ligada às questões do urbanismo: a síntese modernista de Siegfried Giedion, Space, Time and Architeture, por exemplo, mesmo sendo, essencialmente, uma celebração de Le Corbusier, começa com a reestruturação barroca de Roma por Sixtus V e termina com o Rockfeller Center e as avenidas de Robert Moses. E, obviamente, Le Corbusier foi, com as Radiant Cities, Chandigarh e o plano para Argel, tanto um arquiteto quanto um “planejador urbano”. Mas ainda que o Project testemunhe a favor do compromisso de Koolhaas com a questão da cidade, ele não é um urbanista em nenhum sentido disciplinar; tampouco pode a palavra ser usada para descrever esses livros, que igualmente escapam a outras categorias disciplinares (tais como sociologia ou economia), mas estão mais próximos dos estudos culturais, pode-se dizer.

O fato é que o urbanismo tradicional — talvez seja melhor dizer modernista — chegou a um beco sem saída. Discussões a respeito dos padrões americanos de trânsito ou da divisão em zonas — e até mesmo debates políticos sobre os “sem-teto”, a gentrificação3 (“enobrecimento urbano”) e a real política de impostos do Estado — perdem-se na insignificância quando se considera a imensa expansão daquilo que costumávamos chamar de cidades no Terceiro Mundo: “Em 2025, nos diz Koolhaas num outro volume coletivo, o número de habitantes de cidade poderá chegar a cinco bilhões de indivíduos... das trinta e cinco megalópoles previstas para 2015, vinte sete estarão localizadas nos países menos desenvolvidos, incluindo dezenove na Ásia... Tóquio vai ser a única cidade rica a figurar na lista das dez maiores cidades.[2] Não se trata de um problema a ser resolvido, mas de uma nova realidade a ser explorada: e esta, suponho eu, é a missão do Project on the City, dois volumes complementares de projetos que estão bem distantes: um em Lagos, na Nigéria, e o outro na cidade Romana clássica, como protótipo.

O primeiro volume do Project, Great Leap Forward, interpreta o prodigioso “boom” da construção na China atual — quase nove mil prédios de grande altura construídos em Xangai desde 1992 — não tanto em termos de uma virada ou retorno ao capitalismo, mas, sim, nos termos da estratégia de Deng Xiaoping de usar o capitalismo para construir uma sociedade radicalmente diferente: infravermelha ao invés de vermelha:

A ocultação dos ideais comunistas, vermelhos... para salvar a Utopia em um momento na qual ela estava sendo contestada de todos os lados, quando o mundo ficava acumulando provas de seus estragos e misérias... IFRAVERMELHO©, a ideologia da reforma, é uma campanha para evitar o fracasso da Utopia, um projeto para esconder ideais do século dezenove no interior das realidades do século vinte e um.

Aqueles que acreditam que o mercado é uma realidade, ancorada na Natureza e no Ser, terão dificuldade em apreender tal proposição, que de sua perspectiva vai ser dissipada por uma imediata conversão ao capitalismo ou pelo colapso econômico. Mas consideremos a perspectiva arquitetônica: testemunhamos milhares e milhares de prédios construídos, ou sendo construídos, que não possuem arrendatários, que jamais poderiam ser pagos sob condições capitalistas e cuja própria existência não pode ser justificada por padrão algum de mercado. Seguimos aqui os princípios das comunidades de habitação da área do delta do Rio das Pérolas, que estão sendo projetadas para um futuro bastante distinto daqueles pesquisados pelos especuladores ocidentais, bancos e instituições de financiamento do mundo capitalista. De fato, as quatro comunidades exploradas aqui são algo como quatro projeções utópicas diferentes: Shenzhen, um tipo de substituta ou duplicata de Hong Kong; Dongguan, uma cidade do prazer; Zhuhai, um paraíso do golf; e o antigo centro, Guangzhou, um estranho tipo de palimpsesto, no qual o novo está sobreposto num centro econômico tradicional já existente. Trata-se de um extraordinário relato de uma viagem ao futuro, que nos dá uma percepção muito mais concreta da China de hoje e de amanhã do que a maioria dos livros de viagem (e muitas excursões reais).

Proteus vai ao shopping

O Guide to Shopping é algo de todo diferente, tanto em estilo quanto em intenção. O consumo, sejamos claros, é um tema candente, mas esse não é um estudo convencional sobre ele. Na verdade, a questão a respeito do que é esse livro — um extraordinário livro de fotografias; uma coleção de ensaios sobre vários tópicos urbanistas e comerciais; uma amostra do espaço global da Europa a Singapura, da Disney World a Las Vegas; um estudo sobre o próprio shopping-center, dos seus primeiros ideólogos até suas formas mais contemporâneas — corresponde à ambigüidade mais geral de seu objeto. Mesmo que permaneçamos com a caracterização inicial daquele objeto como “shopping”, que tipo de caracterização é essa? Trata-se de uma caracterização física, envolvendo os objetos a ser vendidos? Ela é psicológica, envolvendo o desejo de comprar os objetos em questão? Ou arquitetônica, tendo a ver com a originalidade espacial daquelas galerias — que, notoriamente, encontram seus ancestrais, no século XIX, nas passagens de Walter Benjamin; caso contrário, como sugerem alguns dos gráficos de tempo nesse livro, em 7.000 A.C. na “cidade de Catal Hoyuk, fundada para trocas comerciais”, ou talvez na “invenção” da venda no varejo na Lídia5, no século VII A.C.? Ou estamos falando aqui da globalização do consumo (consumismo)? Ou das novas rotas comerciais e das redes de produção e distribuição envolvidas em tal globalização? (Ou dos homens de negócio que as organizam?) Mas e as novas tecnologias desenvolvidas para o comércio desde Catal Hoyuk? O prodigioso aumento em tamanho das companhias de marketing e dos conglomerados, alguns deles maiores do que muitos países estrangeiros? O que dizer do shopping e da forma da cidade contemporânea — se é que existe uma? Não por acaso, o projeto coletivo de Koolhaas teve seu nome mudado de “Project for what used to be the city” (Projeto para o que costumava ser a cidade) para o mais simples e mais otimista Project on the City. Ao que podemos acrescentar a seguinte questão: está emergindo um novo tipo de espaço — espaço de controle, junkspace? E o que tudo isso implica para a psyque e a própria realidade humana? (o primeiro teórico da publicidade, Edward Bernays, era sobrinho de Freud). O que isso implica para o futuro e para a Utopia?

Provavelmente estou esquecendo algumas das outras modulações desse tema proteano; mas vai ficar claro que ele mobiliza, ao lado das óbvias (obviamente antecipadas) áreas da arquitetura e do urbanismo, disciplinas tão heterogêneas quanto a psicanálise e a geografia, história e negócios, economia e engenharia, biografia, ecologia, feminismo, estudos de área, análise ideológica, estudos clássicos, decisões jurídicas, teoria da crise, etc. Talvez esse imenso tipo de extensão disciplinar não seja mais tão atordoante numa era pós-moderna, em que a lei do ser é a “des-diferenciação”, e na qual estamos interessados ao máximo em como as coisas sobrepõe-se umas as outras e necessariamente escorrem através das fronteiras disciplinares. Ou, se preferirem, no pósmoderno a distinção entre as antigas e especializadas disciplinas está constitutivamente apagada e, agora, elas retornam umas as outras nos mais interessantes estudos — do Mil Platôs, de Deleuze e Guatarri ao Power Broker, de Caro; do Império ao Rembrant`s Eyes; das Passagens de Benjamin ao Geschichte und Eigensinn, de Negt e Kluge; sem falar em S, M, L, XL ou mesmo Space, Time and Arquiteture. Aqui a teoria é majoritariamente renegada (embora Baudrillard seja mencionado uma vez, se não me engano), mas não se deve deixar que isso nos leve a pensar que se trata de um trabalho de jornalismo cultural não-teórico, menos ainda de um livro de fotografias de mesa de café. Como pode também sugerir a enumeração acima, é um volume coletivo; mas não no sentido em que os experts das várias disciplinas a pouco mencionadas são, de algum modo, reunidos e suas contribuições examinadas em seqüência. Isso torna embaraçoso para um crítico destacar nomes específicos, embora Sze Tsung Leong escreva a maior parte dos capítulos ─ e também os mais reflexivos filosoficamente ─, com Chuihua Judy Chung seguindo de perto nas discussões mais concretas. Quanto a Koolhaas, seu papel parece ter sido essencialmente organizacional (quer dizer, como algumas versões do divino, em lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo), salvo uma impressionante aparição em seu próprio nome, que discutiremos no momento oportuno.

Depois da galeria comercial

Tentarei trazer a teoria de volta a tudo isso, mas primeiro seria melhor explorar algo no detalhe das bases ou do stratum do livro, cujo índice alfabético de conteúdos é bastante enganoso a esse respeito, sendo, deste modo, em si mesmo, um verdadeiro tour de force6. Porque algumas antecipações sobre o shopping são o caminho aqui: elas vão retornar, muito mais desenvolvidas, mais adiante, em contextos variados. Pois é como se o shopping-center fosse o fundamento espacial e arquitetônico no interior desse imenso tópico. Poucas formas têm sido tão distintivamente novas, tão distintivamente americanas e tardo-capitalistas quanto essa inovação, cujo surgimento pode ser datado de 1956; cuja relação com o bem conhecido declínio do crescimento do subúrbio dentro da cidade é palpável, ainda que variável; cuja genealogia abre agora uma pré-história física e espacial do shopping de uma maneira que antes seria inconcebível; e cuja proliferação por todo o mundo pode servir como um mapa epidemiológico da Americanização, ou pósmodernização, ou globalização. O shopping, portanto, concentra a investigação e serve como a moldura da espantosa ampliação de tudo isso mais tarde. Enquanto isso, páginas de cronologia, sistemas de referência cruzada codificados por cor e incontáveis indexes temáticos já nos treinam na forma rizomática daquela ampliação; ao passo que um primeiro conjunto de comparações entre as áreas de venda no mundo inteiro, entre os PIBs nacionais e as receitas de venda das maiores corporações, nos ajuda a começar a mapear o processo em nossas mentes e formar uma fotografia, não somente das hierarquias relativas da globalização, mas, também, de uma visão do shopping que, me arrisco a dizer, vai se transformar em breve não apenas numa questão política, mas também metafísica.

Simultaneamente, no entanto, somos parados abruptamente e uma diferença fundamental entre esse livro e a proliferação de novos e excelentes volumes de estudosculturais sobre shopping-center, galerias, consumismo, e coisas parecidas, torna-se clara. Antes mesmo de abordarmos a própria coisa, nos deparamos com a galeria comercial em crise, perdendo dinheiro, arrendatários e prestes a ser substituída... Pelo o quê? Benjamin tirou sua foto instantânea da galeria do século dezenove no momento de sua decadência — e deste modo desenvolveu toda uma teoria da história, segundo a qual é possível compreender melhor o presente do ponto de vista de um passado imediato cujas modas já estavam ligeiramente ultrapassadas. A crise nos permite notar que aqui não temos apenas que lidar com a arqueologia ou a pré-história do shopping, nem mesmo seu presente, mas, sim, com seu futuro. Entretanto, seja qual for o destino da galeria enquanto tal, “‘existe muito lixo lá’. Muitas galerias velhas e cavernosas são dinossauros que não podem competir com a conveniência dos atacadistas de valor aumentado em poderosos centros ou faixas” — aos quais se deve acrescentar agora, sem dúvida, o eBay7.

Em primeiro lugar, alguma coisa evidentemente aconteceu com os pré-requisitos para a existência da galeria. Mas quais eram esses pré-requisitos? Como na causalidade aristotélica, eles aparecem numa variedade de formas e modelos: as pré-condições físicas ou de engenharia nos são apresentadas a um só tempo, na primeiríssima letra desse ABC do shopping: qual seja, o ar-condicionado — ao qual logo retornaremos num lugar mais apropriado. Quanto à pré-história, certamente temos sido expostos, em anos recentes, a uma hoste de interessantes formas antecedentes, geralmente retornando-se até mesmo a Catal Hoyuk. Mais notadamente a própria galeria, que se desenvolve essencialmente no início do século XIX e se depara com sua crise nas décadas de 1850 e 60 — no exato momento em que a próxima forma entre em cena: a moderna loja de departamentos, cujo surgimento Zola imortalizou em Au bonheur dês dames (Ladies’s Delight é uma versão em ficção de nomes verdadeiros como Au printemps e La Samaritane, que também foram exaustivamente estudadas nos últimos anos, tanto por conta de suas implicações urbanísticas quanto comerciais: ao menos por uma razão, elas são mais ou menos contemporâneas da imensa transformação de Paris por Haussmamm8). Quanto a nossa forma — entrando em seu período de decadência? — chegaremos a ela em um momento; na verdade, vamos inclusive lhe dar nomes e faces. Como um romance ou um poema, ela realmente tem um autor ou inventor, embora o inventor de todo um gênero seja um paralelo mais apropriado; algo que não se encontra com freqüência.

Tecnologias delirantes

Primeiro, saltemos à frente para avaliar o propósito e as transformações dessa forma proteana — em aeroportos, por exemplo, que agora, pelo menos os novos, também se tornaram shopping-centers; em museus e, finalmente, na própria cidade. O velho centro da cidade — devastado pelos subúrbios, pelos novos supermercados e posteriormente pelos próprios shoppings — procura agora, com a pós-modernidade e o “enobrecimento urbano”, compensar a perda: não somente construindo enormes shoppings em sua própria área, mas transformando-se, a seu modo, num shopping virtual. De fato, algo fundamental começa a acontecer a ele (como assinalado em um volume do Project on the city):

Em 1994, o shopping oficialmente substituiu as funções cívicas do tradicional centro da cidade. Na Suprema Corte de Nova Jersey, num caso envolvendo a distribuição de panfletos políticos em shopping-centers, a corte declarou que “os shopping-centers substituíram os parques e praças que “tradicionalmente eram a casa do livre discurso”, se colocando ao lado dos manifestantes “que argumentavam que o shopping constitui a Rua Principal dos tempos modernos.

Mas se “esse retorno do shopping à cidade não foi nada menos do que triunfante,” os autores se vêem obrigados a acrescentar: “para serem salvos, os centros da cidade tiveram que receber o beijo da morte do subúrbio.”

Agora, voltando aos pré-requisitos: poderia o próprio código de barra — o Código de Produto Universal — ser um deles? Analisando suas funções, começamos a ver como as estatísticas que ele imediatamente fornece ao vendedor transformam inteiramente toda a estrutura de cadastro, reabastecimento, marketing e coisas do tipo. Os nomes das marcas podem perfeitamente ser mais uma conseqüência cultural desse tipo de shopping do que um pré-requisito, pois suas áreas, as butiques mais destacadas, indicam “os sagrados recintos da última religião global — o consumismo capitalista.” Eles também evidenciam um novo tipo de dinâmica, ela mesma consumida sob a “co-opetição9”, o logotipo de Singapura, que celebra a maré que eleva os navios de todos, incluindo os dos competidores.

Mas com isso embarcamos numa turnê mundo afora, ou melhor, na turnê mundial do shopping, na medida em que ela alcança um ponto após o outro e é transformada pela cultura local. Singapura é uma antiga paixão de Koolhaas (ver S, M, L, XL), mas sua dinâmica continua sendo uma extraordinária lição prática — não apenas de desenvolvimento, mas também sobre o modo pelo qual uma cidade-estado se ajusta primeiro à região e posteriormente ao próprio mundo. O Palácio de Cristal uma vez mais nos leva de volta às origens (e à assinatura de um indivíduo, Joseph Paxton10). A Depato, a loja de departamentos japonesa, nos lança pelo menos numa extraordinária mutação cultural, intimamente ligada à lógica do crescimento de Tóquio ao longo das inúmeras estradas de ferro privadas que partem da terceira maior cidade do mundo. E finalmente: o próprio Disney, uma vez que nenhum estudo de qualquer das inovações nessa área pode estar completo sem um reconhecimento abrangente de tudo o que foi inventado por Walt: todos os tipos de coisa, de um novo urbanismo a um novo tipo de shopping, um novo tipo de globalização, um novo tipo de indústria do entretenimento e até mesmo um novo tipo de Utopia. De fato, talvez Disney e a “Disneyficação” sejam melhores estudados nesse novo contexto, comparatista e globalizado, do que um esporte ou um singleton¹¹ tipicamente americano.

Mas e quanto ao próprio shopping, seu espaço, por exemplo? Existe uma psicologia do espaço no shopping — a emenda, o corredor, o molde — assim como existe uma ecologia da coisa. E aqui os pré-requisitos retornam fluindo com força total: não somente o ar-condicionado, com sua interessantíssima história (mais inventores fanfarrões e sonhadores criativos e obsessivos), mas também a escada rolante — o elevador havia sido um operador crucial no primeiro livro de Koolhaas, Nova York Delirante¹², sobre a paisagem do arranha-céu — com suas importantíssimas conseqüências para o espaço do shopping e suas possibilidades de construção; toda essa rica seção ocupa umas trinta páginas. E também, em algum momento mais tarde, a clarabóia e o sistema hidráulico contra incêndio; sem falar no modo pelo qual esse novo espaço pode manter escondido seu sistema de serviços — poderíamos mencionar até mesmo as “tecnologias” precursoras: o guichê, as vitrines, o espelho e o manequim. Mas permitamo-nos entrar nas ideologias da questão, pois, aqui, finalmente nos elevamos do corpo à alma: a pobre Jane Jacobs1³, por exemplo, é vista como algo semelhante à astúcia hegeliana da história, com toda a justiça, por defender os aspectos fundamentais de uma verdadeira experiência da cidade contra os vários modernismos urbanísticos e arquitetônicos, enumerando, dessa forma, “os ingredientes através dos quais o shopping pôde substituir a urbanidade e criar uma “luz da cidade” que tornou-se o modelo para a ressurreição dos degradados centros da cidade da América.” Isso parece um pouco duro, mas o certo é que Jacobs — acusada por muitos arquitetos e urbanistas de acionar a revolução pós-moderna em seu campo — não é anticapitalista e apóia de forma bastante considerável os (pequenos) negócios.

Mas com Victor Gruen estamos nas origens (não podemos mais chamá-la de “grau zero”; e o gênio Harold-Bloomiano?). Pois o shopping foi sua invenção original, e é certo que a nossa experiência contemporânea do espaço ou não-espaço americano é, em alguma medida, “desalienada” ao descobrirmos que foram as idéias de alguém que geraram tudo isso, e que não se trata apenas de um estranho acúmulo de acidentes históricos de mercado, mas do resultado da produção humana. Para começo de conversa, enfatizar a façanha de Gruen, entretanto, é também, e a um só tempo, salientar a reação canônica e recordar, voluntariamente ou não, que poucos dos grandes modernistas chegaram a planejar tais coisas, que dirá teorizá-las (por outro lado elas se tornaram matéria-prima dos pós-modernistas). É também motivar uma reflexão sobre o auteur contemporâneo, que é o pomposo equivalente da cultura de massa de todos esses projetos estéticos superiores e, com toda a justiça, um verdadeiro fenômeno: Jon Jerde, construtor do Horton Palace em San Diego e muitos outros. Como em todos os outros ramos da cultura contemporânea, a separação entre grande arte e cultura de massa também aqui se torna inevitável.

Mas exatamente quando estamos prestes a refletir um pouco sobre disso, e avançar na direção de outros fenômenos globais relacionados — o Grupo Lippo na Indonésia; um retorno à velha noção de Venturi-Scott-Brown em Learning from Las Vegas e uma rica entrevista com os autores; também o feminismo (mulheres e shoppings constituem um velho e ofensivo tópico); paisagens artificiais; a relação de tudo isso com a psicologia e a psicanálise; a resistência européia ao shopping e suas conseqüências americanizantes; e muitos outros temas interessantes levantados pela segunda metade do alfabeto — inesperadamente nos deparamos com um buraco negro, gerando prodigiosas energias em todas as direções.

Abaixo o vírus do Junkspace

Junkspace (“Espaço-lixo”), a contribuição de Rem Koolhaas, é um texto extraordinário, que tanto é um artefato pós-moderno característico quanto uma estética totalmente nova, talvez, se não toda uma nova visão da história. À luz desse texto concatenado, precisamos fazer uma pausa e repensar o projeto inteiro. Mas primeiro temos que examinar o próprio texto, cuja combinação de repulsa e euforia é única para o pós-moderno e instrutiva sob vários aspectos. Sabíamos que Koolhaas era um escritor interessante — nisso, comparável a um bom número de destacados arquitetos contemporâneos; seus livros, em particular Nova York Delirante e S, M, L, XL, combinam inovação formal com sentenças incisivas e posições caracteristicamente provocativas. Mas nem um único texto desses livros nos preparou para essa performance ininterrupta e continuada do espaço construído, não apenas da cidade contemporânea, mas de todo um universo no ponto de fusão num tipo de magma indeterminado e de incontáveis utilidades.

Isso vai muito além das querelantes reclamações da crítica cultural acerca da estandardização (ou americanização). Ela começa com o lixo (junk) como o remanescente clássico (o que permanece depois da dialética ou depois da cura psicanalítica): se o lixo-espacial (space-junk) é o escombro humano que desarruma o universo, o “espaço-lixo” (junk-space) é o resíduo que a humanidade deixa no universo.” Muito rapidamente, no entanto, o junkspace torna-se um vírus que se espalha e prolifera por todo o macrocosmo:

restos geométricos angulares invadindo imensidões estreladas; o espaço real editado para uma suave transmissão no espaço virtual, o engonço crucial num infernal circuito de realimentação... a vastidão do junkspace estendeu-se às beiradas do Big Bang.

Mas isto, por si mesmo, seria pouco mais do que Baudrillard ou teoria da televisão — a crítica da virtualidade como uma promessa (como a crítica de passagem do “fluxo” deleuziano): ao invés disso, o propósito do exercício é encontrar sinônimos, centenas e centenas de sinônimos teóricos, martelados uns sobre os outros e derretidos juntos numa colossal e aterrorizante visão, com cada uma das “teorias” do “pós-moderno” (ou a época atual) tornando-se metafóricas umas para as outras numa única e ofuscante olhadela na parte de baixo:

O “espaço-lixo” expõe o que as gerações passadas mantiveram encoberto: estruturas emergem como molas de um colchão, escadas de saída balançam num trapézio didático, sondas são arremessadas no espaço para fornecer trabalhosamente aquilo que é de fato onipresente, ar livre, acres de vidro pendurados por cabos aracnídeos, peles tensamente esticadas cercadas por flácidos não-eventos.

Como tendência, o “espaço-lixo” já existe há algum tempo, não-reconhecido no começo; como um vírus não detectado, novamente:

Primeiramente os arquitetos pensaram no “espaço-lixo” e o denominaram Megaestrutura, a solução final para seu enorme impasse. Como múltiplas Babéis, as imensas estruturas durariam por toda a eternidade, irrompendo inúmeros subsistemas provisórios que iriam se modificar com o tempo, fora de seu controle. No “espaçolixo”, as mesas estão viradas: não mais do que subsistemas, sem superestrutura, partículas órfãs à procura de uma base ou modelo.

Seria simples demais dizer que aqui espaço e arquitetura são metáforas para qualquer outra coisa, mas isso não é mais teoria da arquitetura, tampouco se trata de um romance cujo ponto de vista é o do arquiteto. Antes, é a nova linguagem do espaço que está falando através dessas frases que se perpetuam produzindo réplicas de si mesmas, o próprio espaço tornando-se o código dominante ou linguagem hegemônica desse novo momento da História — o último? — cuja matéria-prima, em sua decomposição, o condena à extinção:

Envelhecer no “Espaço-lixo” é algo inexistente ou catastrófico; por vezes um “Espaço-lixo” inteiro ─ uma loja de departamentos, um clube noturno, um apartamento de solteiro ─ se transforma, da noite para o dia e sem aviso, numa favela: o consumo de eletricidade diminui imperceptivelmente, letras caem das placas, aparelhos de arcondicionado começam a pingar, aparecem rachaduras de terremotos que, do contrário, não seriam registrados; partes apodrecidas não são mais viáveis, mas permanecem unidas à carne do corpo principal através de passagens gangrenosas.

Essas alarmantes “deteriorações de tipo Alzheimer” são realizações dos momentos de pesadelo em Philip K. Dick, quando a realidade começa a curvar-se como numa alucinação por droga e sofrer vertiginosas transmutações, revelando os mundos privados nos quais estamos aprisionados para além do tempo. Mas esses momentos não são mais aterrorizantes; agora eles são, de fato, bem estimulantes, e é precisamente essa nova euforia que permanece por ser explicada.

O Império da Mancha

Sejamos claros, Koolhaas reivindica nada menos do que a renovação perpétua, não apenas a demolição do velho, mas também a reciclagem perpétua a qual foi reduzida a uma vez nobre (e até mesmo megalomaníaca) vocação de Mestre Construtor: “Qualquer coisa esticada — limusines, partes do corpo, aviões — tem seu conceito original ultrajado e se transforma em ‘espaço-lixo’. Restaurar, rearranjar, remontar, reformular, renovar, revisar, recuperar, redesenhar, retornar — os mármores do Partenon — refazer, respeito, alugar (Rent): verbos que começam com re — produzem ‘espaço-lixo’.” Trata-se, sem dúvida, do desaparecimento de todos os “originais”, e, junto com eles, da própria história: a única certeza é a conversão — contínua — seguida, em raros casos, por uma “restauração”, o processo que exige sempre novas partes da história como “espaço-lixo”. A história corrompe, a história absoluta corrompe absolutamente. Cor e matéria são eliminadas desses enxertos sem sangue; o insípido tornou-se o único ponto de encontro do velho e do novo.

Estamos de agora em diante no domínio do “sem-forma” (Rosalind Kraus, partindo de Bataille); mas “a ausência de forma é ainda uma forma e o ‘sem-forma’ também é uma tipologia.” Não se trata do “vale tudo” da nova geração de “arquitetos de gota” (Greg Lynn, Bem Van Berkel) produzidos pelo computador: “na verdade, osegredo do ‘espaço-lixo’ é que ele é tanto promíscuo quanto repressor: na medida em que o ‘sem-forma’ prolifera, o formal murcha, e, com ele, todas as regras, regulamentações e recursos.” Sombras de Marcuse e da tolerância repressiva? O “espaço-lixo” é um triângulo das Bermudas de conceitos, uma placa de petri abandonada: ele cancela distinções, solapa resoluções e confunde intenção com realização; substitui a hierarquia pela acumulação, a composição pela adição. Mais e mais, mais é mais. O “espaço-lixo” é, ao mesmo tempo, maduro demais e subnutrido, um colossal cobertor de segurança que cobre a Terra com uma barreira de proteção intransponível... O “espaçolixo” é como estar perpetuamente condenado a uma Jacuzzi com milhões dos seus melhores amigos... Um felpudo império de manchas, no qual unificam-se o alto e o baixo, o público e o privado, o reto e o curvado, o estufado e o faminto, para oferecer uma descosturada colcha de retalhos do permanentemente desagregado.

Existem, sem dúvida, “trajetórias” tranqüilas, com seus momentos mágicos: “O pós-modernismo acrescenta uma zona de deformação de viral escaldado que tritura e multiplica a infinita linha de frente de exposição, uma embalagem peristáltica com material termo-retrátil, crucial para todas as trocas comerciais. As trajetórias têm início com ladeira, viram na horizontal sem qualquer aviso, atravessam, abaixam e de repente emergem numa vertiginosa varanda acima de um grande vazio. Fascismo sem ditador. Do repentino ponto sem saída onde você foi deixado por uma monumental escada de granito, uma escada rolante te leva para um destino invisível, encarando uma provisória vista panorâmica de gesso, inspirada por fontes insignificantes.

No interior dessa atordoante pseudo-temporalidade material, que modifica-se sem parar à nossa volta, também existem momentos de rara, de deslumbrante beleza: “estações ferroviárias abrem-se como borboletas de ferro, aeroportos brilham como gotas de orvalho ciclópicas, pontes freqüentemente atravessam bancos desprezíveis como versões grotescamente ampliadas de uma harpa. Para cada riacho seu próprio Calatrava.” Mas tais momentos são insuficientes para compensar o pesadelo, ou fazer valer à pena as alucinações. O cyberpunk parece ser a referência a apreendermos aqui, o qual — como Koolhaas, apenas ambiguamente cínico — parece positivamente revelar em seu próprio excesso (e no do seu mundo). Mas na realidade o cyberpunk não é apocalíptico, e penso que a melhor coordenada é Ballard, o Ballard dos múltiplos “fins do mundo”, sem a melancolia de Byron18, o rico pessimismo orquestral e a weltschmerz.

Pois, aqui, o que está em jogo é o fim do mundo; e isso poderia ser estimulante se o apocalipse fosse o único modo de imaginar o desaparecimento desse mundo (aqui pouco interessa se temos de lidar com a explosão ou a lamúria). É o velho mundo que merece a irritação e a sátira, o novo é meramente sua própria auto-aniquilação e seu deslizamento no que Dick chamava de kipple ou gubble20, naquilo que Le Guin uma vez descreveu como o derreter dos prédios. “Eles estavam ficando encharcados e trêmulos; como gelatina deixada ao sol. Os cantos já haviam se deteriorado dos lados, deixando grandes manchas gordurentas.” Alguém disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. Podemos agora aprimorar isso e testemunhar a tentativa de imaginar o capitalismo com a intenção de imaginar o fim do mundo.

Rompendo de volta à história

Penso que seria melhor caracterizar tudo isso em termos de História: uma História que não podemos imaginar de outra forma se não como fim e cujo futuro parece ser nada mais do que uma monótona repetição do que já está aqui. O problema, portanto, é como localizar a diferença radical, como impulsionar o sentido histórico de modo que ele novamente comece a transmitir frágeis sinais de tempo, de alteridade, de mudança e de Utopia. O problema a ser resolvido é esse: escapar do presente “sem vento” (windless) do pós-moderno e retornar ao tempo histórico real e a uma história feita por seres humanos. Penso que esse texto é uma maneira de se fazer isso ou, pelo menos, uma tentativa. Sua ficcionalidade científica provém do método secreto desse gênero, o qual, na ausência de um futuro, concentra-se numa única tendência maligna, que ele expande e expande até que a tendência se torna, ela mesma, apocalíptica e explode o mundo no qual estamos aprisionados em incontáveis fragmentos e átomos. A aparência distópica é, assim, apenas a extremidade afiada inserida na contínua fita de Möbius21 do capitalismo tardio, a ferida ou obsessão perpétua que não se deixa enganar por um enredo, por qualquer enredo, para seu previsível fim.

Entretanto, isso apenas não é o suficiente: um rompimento da barreira do som da História deve ser realizado numa situação em que a imaginação histórica está paralisada e encasulada, como que pelo ferrão de um predador: nenhuma possibilidade de lançar-se no futuro, de reconquistar a diferença, muito menos a Utopia, a não ser inscrevendo-se nela, mas sem voltar atrás. Essa inscrição é a aríete2, a repetição delirante que trabalha arduamente nessa uniformidade, percorrendo todas as formas da nossa existência (espaço, estacionamento, shopping, trabalhar, comer, construir) e esmurrando-as até elas admitirem sua própria identidade estandardizada entre si, para além da cor, para além da textura, a suavidade sem forma que não é mais nem mesmo o plástico, o vinil ou a borracha do passado. As frases são o estrondo dessa insistência repetitiva, o socar na vacuidade do próprio espaço; e agora sua energia antecipa o movimento coletivo e o ar fresco, a euforia de um alívio, uma aparição orgástica no tempo, na história e no futuro concreto novamente.

Tal é, portanto, o segredo dessa nova forma simbólica, que Koolhaas não é o único de nossos contemporâneos a mobilizar (mas poucos o fazem melhor). Voltar lentamente agora, reentrar, como que numa câmara de descompressão, no mundo mais prosaico do shopping, que foi o ponto de partida dessa aventura delirante, significa também procurar pelo acontecimento, por aquilo que o impulsionou e provocou uma reação tão monumental e verdadeiramente metafísica. Ele nos foi dado, de fato, bem no início, numa frase improvisada de Sze Tsung Leong, no final de uma abordagem mais comedida e focada da transformação comercial do globo, que é, afinal, o tema do presente volume: “No fim, haverá pouca coisa a se fazer além de comprar.” O mundo no qual estávamos aprisionados é na realidade um shopping-center; a clausura sem vento é a rede subterrânea de túneis destinada à exibição de imagens. O vírus atribuído ao "espaçolixo" é, na verdade, o vírus do próprio shopping; que, como a “Disneyficação”, gradualmente se espalha pelo universo conhecido como um musgo tóxico. Mas o que é esse shopping do qual estamos tediosamente falando há tanto tempo (e os autores mais tempo ainda)?

Teoricamente, ele vem em muitos pacotes (e como era de se esperar, podemos ir a várias lojas para comparar os preços de nossa marca ou versão teórica favorita). A tradição do marxismo ocidental chamou isso de mercantilização, e nessa forma a análise remonta pelo menos ao próprio Marx, ao famoso capítulo sobre o fetichismo da mercadoria, que abre O Capital. A perspectiva religiosa do século XIX é a meio através do qual Marx põe em primeiro plano uma dimensão especificamente superestrutural das trocas mercantis sob o capitalismo. Ele entendia “as sutilezas metafísicas e os requintes teológicos” da mercadoria como o meio pelo qual a relação de trabalho é ocultada do comprador (do consumidor?), e assim Marx apreendeu a mercantilização como uma operação essencialmente ideológica, como uma forma de falsa consciência que tem a função específica de mascarar a produção de valor do consumidor (burguês). História e Consciência de Classe, o clássico filosófico de Georg Lukács, o texto inaugural do chamado marxismo ocidental, desenvolve essa análise no plano mais amplo da própria história da filosofia, recolocando a mercantilização no centro do mais geral e extensivo processo social de reificação, tanto física quanto mental.

Não obstante, depois da Segunda Guerra Mundial, a orientação ideológica desse tema toma um rumo um tanto diferente, num momento em que a venda de mercadorias e artigos de luxo, para além daqueles da simples subsistência ou reprodução social, generaliza-se integralmente nas áreas cada vez mais prósperas do Primeiro Mundo — Europa Ocidental, Estados Unidos e, no devido tempo, Japão. A essa altura, os situacionistas e seu teórico, Guy Debord, concebem uma nova perspectiva para a mercantilização em seu dictum de que “a forma final do fetichismo da mercadoria é a imagem.” Esse é o ponto de partida de sua teoria da assim chamada sociedade do espetáculo, na qual a antiga “riqueza das nações” é agora compreendida como “uma imensa acumulação de espetáculos.” Com essa perspectiva, estamos muito mais perto de nossas atuais suposições (ou doxa), a saber, de que o processo de mercantilização é menos uma questão de falsa consciência do que um estilo de vida inteiramente novo, que chamamos de consumismo e que se equipara mais a um vício do que a um erro filosófico ou mesmo uma escolha equivocada de partidos políticos. Esse giro é parte da visão mais contemporânea da cultura como a substância mesma da vida cotidiana (ela própria um conceito relativamente novo do pós-guerra, introduzido por Henri Lefebvre).

As imagens do Guide to Shopping são, portanto, imagens de imagens e devem assim possibilitar um novo tipo de distanciamento crítico, coisa que eles fazem conceitualmente recolocando a noção de mercadoria em sua situação original nas trocas comerciais. O que nós fazemos com as mercadorias, enquanto imagens, portanto, não é olhar para elas. A idéia de que compramos imagens já é uma “desfamiliarização” útil dessa noção; mas a caracterização de acordo com a qual vamos às compras atrás de imagens é ainda mais útil, pois desloca o processo para uma nova forma de desejo, situando-o bem diante de onde ocorre a venda real — quando, como se sabe, perdemos todo o interesse no objeto enquanto tal. Quanto ao consumo, ele tem sido inteiramente volatizado nessa perspectiva, e, como temia Marx, tornou-se completamente espiritual. Aqui a materialidade é um mero pretexto para o exercício de nossos prazeres mentais: o que deixou de ser particularmente material no consumo de um carro novo e caro — lavado e polido com a maior freqüência possível— que alguém dirige pelas ruas locais?

“No fim, haverá pouca coisa a se fazer além de comprar.” Será que isso não revela uma extraordinária expansão do desejo em todo o planeta e uma instância existencial totalmente nova daqueles que podem pagar por isso e que, agora, há muito familiarizados tanto com a vida esvaziada de sentido quanto com a impossibilidade de satisfação, constroem um estilo de vida em que uma nova e específica organização do desejo oferece tão-somente o consumo dessa impossibilidade e dessa ausência de sentido? De fato, talvez esse seja o momento propício para retornarmos ao delta do Rio das Pérolas e ao socialismo pós-moderno de Deng Xiaoping, no qual “ficar rico” não significa, na verdade, ganhar dinheiro, mas, sim, construir imensos shopping-centers — o segredo deles está no fato de que o “ir às compras” não exige que você compre, e que a forma do shopping é uma performance que pode ser realizada sem dinheiro, desde que os espaços adequados a ela, em outras palavras, o “espaço-lixo”, tenham sido providenciados.

Chuihua Judy Chung, Jeffrey Inaba, Rem Koolhaas e Sze Tsung Leong, edt., Great Leap Forward, Harvard Design School Project on the City, Köln: Taschen, 2002 e Guide to Shopping, Harvard Design School Project on the City, Köln: Taschen, 2002.

Rem Koolhaas, Mutations, Barcelona: Actar, 2001.

1 de junho de 2003

O militarismo e as guerras vindouras

Os perigos e o imenso sofrimento causados por todas as tentativas de resolver problemas sociais profundamente arraigados por meio de intervenções militares, em qualquer escala, são bastante óbvios. Se, no entanto, olharmos mais de perto a tendência histórica das aventuras militares, torna-se assustadoramente claro que elas mostram uma intensificação cada vez maior e uma escala cada vez maior, de confrontos locais a duas horrendas guerras mundiais no século XX, e à aniquilação potencial da humanidade quando chegarmos ao nosso próprio tempo.

István Mészáros


June 2003 (Volume 55, Number 2)

1

Não é a primeira vez na História, nos nossos dias, que o militarismo pesa na consciência dos povos como um pesadelo. Entrar em pormenores seria demasiado longo. Basta, contudo, remontar ao século XIX, quando o militarismo como importante instrumento da tomada de decisões políticas se afirmou, com a erupção do imperialismo moderno à escala mundial, em contraste com as suas variedades iniciais, muito mais limitadas. No último terço do século XIX, não só os Impérios Britânico e Francês dominavam vastos territórios, como também os Estados Unidos deixaram a sua pesada marca ao tomarem directa ou indirectamente o controlo das antigas colónias do Império Espanhol na América Latina, acrescentando-lhes a sangrenta repressão de uma grande luta de libertação nas Filipinas e instalando-se como dirigentes nessa região de um modo que ainda persiste de uma forma ou de outra. Também não devemos esquecer as calamidades provocadas pelas ambições imperialistas do "Chanceler de Ferro" Bismarck e prosseguidas de forma reforçada pelos seus sucessores, que provocaram o desencadear da Primeira Guerra Mundial e o seu rescaldo profundamente antagónico, trazendo consigo o revanchismo de Hitler e pressagiando assim muito claramente a própria Segunda Guerra Mundial.

Os perigos e sofrimentos imensos causados por todas as tentativas de resolução de problemas sociais profundamente arreigados através de intervenções militares, seja a que escala for, são sobejamente evidentes. Todavia, se observarmos mais de perto a tendência histórica das aventuras militaristas, verificamos de forma assustadoramente clara que elas revelam uma intensificação cada vez maior e uma escala cada vez mais ampla, que vai de confrontos locais até duas terríveis guerras mundiais no século XX e à potencial aniquilação da Humanidade, quando chegar a nossa vez.

É bastante pertinente citar, neste contexto, o distinto oficial prussiano e estratega, não só prático como teórico, Karl Marie von Clausewitz (1780-1831), que morreu no mesmo ano que Hegel, igualmente de cólera. Foi von Clausewitz, Director da Escola Militar de Berlim nos últimos treze anos da sua vida, que, no seu livro publicado a título póstumo — Vom Kriege (“Sobre a Guerra”, 1833) —, deu uma definição clássica e ainda hoje frequentemente citada da relação entre a política e a guerra: “ a guerra é a continuação da política por outros meios”.

Esta famosa definição era sustentável até há muito pouco tempo, mas tornou-se totalmente insustentável nos nossos dias. Pressupunha aracionalidade das acções que estabelecem uma ligação entre os domínios da política e da guerra como continuação uma da outra. Neste sentido, a guerra em causa tinha de ser vencível , pelo menos em princípio, mesmo se se podiam prever erros de cálculo que levassem à derrota a nível instrumental. A derrota em si não podia destruir a racionalidade da guerra como tal, dado que, depois da — todavia desfavorável — nova consolidação da política, a parte derrotada podia planear outra ronda de guerra como continuação racional da sua política por outros meios. Assim, acondição absoluta da equação de von Clausewitz a satisfazer era a vencibilidade da guerra em princípio , de modo a recrear o "eterno ciclo" da política que leva à guerra e desta à política que leva a outra guerra e assim por diante ad infinitum. Os intervenientes nestes confrontos eram os Estados nacionais. Não importava quão monstruosos eram os danos infligidos aos adversários, e mesmo ao seu próprio povo (recordem-se de Hitler!), a racionalidade da acção militar estava garantida se a guerra pudesse ser considerada vencível em princípio.

Actualmente, a situação é qualitativamente diferente. Por dois motivos principais. Primeiro, o objectivo da guerra viável na fase actual de desenvolvimento histórico, em conformidade com os requisitos do imperialismo em termos de objectivo — a dominação mundial pelo Estado mais poderoso do capital, em sintonia com os seus próprios desígnios políticos de “ globalização ” autoritária impiedosa (disfarçada de “comércio livre” num mercado mundial dominado pelos EUA) —, é finalmente não vencível , pressagiando, antes pelo contrário, a destruição da Humanidade. Nem o mais peregrino exercício de imaginação poderia levar a considerar tal objectivo como racional de acordo com o requisito racional estipulado da “continuação da política por outros meios” conduzido por uma nação, ou por um grupo de nações contra outra. Impor agressivamente a vontade de um Estado poderoso a todos os outros, mesmo que por razões tácticas de cinismo a guerra defendida seja absurdamente camuflada como uma “guerra puramente limitada” que conduz a outras “guerras limitadas sem fim determinado”, apenas pode, por conseguinte, ser qualificado deirracionalidade total .

O segundo motivo reforça grandemente o primeiro. No que se refere às armas já disponíveis para vencer a guerra ou guerras do século XXI, existem pela primeira vez na História armas capazes de exterminar não apenas o adversário mas toda a Humanidade. Também não devemos ter a ilusão de que essas armas serão as últimas a serem desenvolvidas. Outras armas, ainda mais eficazmente mortais, poderão surgir amanhã ou depois de amanhã. Além disso, a ameaça de utilização dessas armas é actualmente considerada um instrumento estratégico inaceitável. Assim, juntemos os dois motivos acima expostos e a conclusão é incontornável: encarar a guerra como mecanismo de dominação global no mundo actual demonstra que nos encontramos no precipício da irracionalidade absoluta , do qual não poderemos recuar se aceitarmos o actual curso de desenvolvimento. O que faltava na definição clássica de guerra de von Clausewitz como “continuação da política por outros meios” era a procura das causas subjacentes mais profundas da guerra e a possibilidade de as evitar . O desafio que consiste em enfrentar essas causas é hoje em dia mais urgente do que nunca: a guerra do século XXI que se perfila no horizonte não só não é “vencível em princípio”, mas, pior do que isso, é em princípio não vencível . Por conseguinte, perspectivar o prosseguimento da guerra, tal como o faz o documento de estratégia da administração americana, de 17 de Setembro de 2002, faz com que a irracionalidade de Hitler pareça um modelo de racionalidade.

2

Desde o 11 de Setembro de 2001 que Washington tem vindo a impor as suas políticas agressivas ao resto do mundo de forma claramente cínica. A justificação dada para a pretendida transição da “tolerância liberal” para o que agora se designa por “defesa firme da liberdade e da democracia” é que, em 11 de Setembro de 2001, os EUA se tornaram vítima do terrorismo mundial, e que esta circunstância exige como resposta imperativa vencer uma indefinida e indefinível — mas de facto arbitrariamente definida da forma como convém aos círculos mais agressivos dos EUA — "guerra contra o terrorismo". Considera-se que a expedição militar no Afeganistão não passa da primeira de uma série ilimitada de "guerras preventivas" a empreender no futuro. A próxima na lista é o próprio Iraque, grande aliado favorecido da América até há bem pouco tempo, a fim de permitir a apropriação pelos EUA dos vastos recursos petrolíferos do Médio Oriente — e com o objectivo de assegurar o controlo, estrategicamente crucial, dos mesmos recursos dos potenciais rivais.

Todavia, a ordem cronológica na actual doutrina militar norte-americana é apresentada completamente invertida. Na realidade, está fora de questão uma "mudança de rumo" após o 11 de Setembro de 2001, considerada possível pela dúbia eleição de G. Bush para a Presidência em lugar de Al Gore, dado que o democrata Clinton aplicava o mesmo tipo de políticas que o seu sucessor republicano, embora de uma forma um pouco mais camuflada. Quanto ao ex-candidato democrata à presidência Al Gore, declarou em Dezembro de 2002 que apoiava integralmente a guerra contra o Iraque, porque essa guerra "não significaria uma mudança de regime" mas apenas o "desarmamento de um regime que possui armas de destruição massiva". É possível ouvir algo de mais cínico e hipócrita do que isto?

Há muito que estou firmemente convencido de que, desde o início da crise estrutural do capital nos finais dos anos 60 ou princípios dos anos 70, vivemos numa fase do imperialismo qualitativamente diferente, com os Estados Unidos como força esmagadoramente dominante. Chamei-lhe "a nova fase histórica do imperialismo hegemónico mundial" no meu livro Socialism or Barbarism: From the 'American Century' to the crossroads(Socialismo ou Barbárie: do Século Americano à Encruzilhada).

A crítica do imperialismo norte-americano — em contraste com as fantasias moldáveis do "imperialismo desterritorializado", que não deveria acarretar a ocupação militar dos territórios de outras nações — constitui o tema central do meu livro. O longo capítulo intitulado " The potentially deadliest phase of imperialism" (a fase potencialmente mais mortal do imperialismo ) foi escrito dois anos antes do 11 de Setembro de 2001 e fazia parte de uma palestra proferida em 19 Outubro de 1999, em Atenas. Nesse artigo, sublinhei que "a forma derradeira de ameaçar o adversário no futuro — a nova 'diplomacia de canhoneira' — será a chantagem nuclear ". Desde a data em que estas linhas foram publicadas, pela primeira vez num periódico grego, até à data de publicação do livro, em italiano, em Agosto de 2000, a abominável e prevista mudança de estratégia militar para a derradeira ameaça nuclear — que poderia dar início a uma acção militar que precipitaria a destruição da Humanidade — deixou de ser camuflada, passando a ser a política norte-americana oficial abertamente professada. Também não deveríamos imaginar que a declaração aberta de tal doutrina estratégica é uma tranquila ameaça contra um "eixo do mal" retoricamente propagandeado. No fim de contas, foram os Estados Unidos que utilizaram realmentea arma atómica de destruição massiva contra os habitantes de Hiroshima e Nagasaki.

Quando reflectimos nestas questões de extrema gravidade, não nos podemos satisfazer com nenhuma sugestão que aponte para uma conjuntura política particular e de transição. Antes pelo contrário, devemos inseri-las no seu contexto de desenvolvimento estrutural — económica e politicamente necessário — profundamente enraizado. Isto é extremamente importante, se quisermos conceber uma estratégia viável para combater as forças responsáveis pelo nosso perigoso estado de coisas. A nova fase histórica do imperialismo hegemónico mundial não é simplesmente a manifestação das relações existentes da " grande política do poder ", com vantagem esmagadora para os EUA, contra a qual um realinhamento futuro entre os Estados mais poderosos, ou mesmo algumas manifestações bem organizadas na arena política, poderia afirmar-se. Infelizmente, é muito pior do que isso, pois tais eventualidades, mesmo que pudessem resolver algo, deixariam inalteradas as causas e determinações estruturais subjacentes.

Efectivamente, a nova fase de imperialismo hegemónico mundial está preponderantemente sob o controlo dos EUA, ao passo que os outros poderes eventualmente imperialistas no seu conjunto parecem aceitar o papel de se pendurarem na aba do casaco dos norte-americanos, embora de modo algum até à eternidade. Podemos de facto prever sem hesitação, com base nas instabilidades já visíveis, a explosão de pesados antagonismos entre as maiores potências no futuro. Mas será que isso em si, ignorando as determinações causais que estão na raiz dos desenvolvimentos imperialistas, poderá dar uma resposta às contradições sistémicas que estão em jogo? Seria ingenuidade pensar que tal será possível.

Neste ponto, gostaria de sublinhar uma preocupação central, ou seja que a lógica do capital é absolutamente inseparável dos imperativos da dominação do mais fraco pelo mais forte. Mesmo quando se pensa no que em geral se considera o elemento mais positivo do sistema — a competição que dá origem à expansão e ao progresso — o seu companheiro necessário é o caminho para o monopólio e a subjugação ou o extermínio dos concorrentes que se atravessam no caminho do monopólio auto-afirmativo. O imperialismo, por sua vez, é o resultado necessário da marcha inelutável para o monopólio. As diferentes fases do imperialismo personificam e afectam mais ou menos directamente as mudanças do desenvolvimento histórico em curso.

Relativamente à actual fase em que se encontra o imperialismo, dois aspectos estreitamente relacionados assumem extrema importância. O primeiro é que a última tendência material/económica do capital é para a integração mundial que, todavia, não pode assegurar a nível político. Isto deve-se em grande medida ao facto de o sistema capitalista mundial se ter fragmentado ao longo da História sob a forma de uma multiplicidade de Estados nacionais divididos e, na realidade, antagonicamente opostos. Nem sequer as mais violentas colisões imperialistas do passado puderam produzir um resultado duradouro a este respeito. Não puderam fazer com que o Estado nacional mais poderoso impusesse de forma permanente a sua vontade aos Estados rivais. O segundo aspecto do nosso problema, que constitui a outra face da mesma moeda, é que, apesar de todos os esforços, o capital não conseguiu produzir o Estado do sistema capitalista enquanto tal . Isto continua a ser a mais grave complicação para o futuro, não obstante tudo o que se diz da " globalização ". O imperialismo hegemónico mundial dominado pelos EUA é uma tentativa, em última análise condenada, de se impor a todos os outros — mais cedo ou mais tarde recalcitrantes — Estados nacionais como o Estado "internacional" do sistema capitalista enquanto tal. Também neste ponto nos deparamos com uma contradição de peso, pois mesmo os recentes, mais agressivos e abertamente ameaçadores documentos de estratégia dos EUA tentam justificar as suas políticas apelidadas de "universalmente válidas" em nome dos "interesses nacionais americanos", recusando ao mesmo tempo essas considerações aos outros.

3

Aqui podemos ver a relação contraditória entre uma contingência histórica — encontrando-se actualmente o capital americano na sua posição preponderante — e a necessidade estrutural do próprio sistema capitalista. Este último pode ser resumido como o avanço material irreprimível do capital no sentido da integração monopolística mundial seja por que preço for, mesmo que signifique pôr directamente em perigo a própria sobrevivência da Humanidade. Por conseguinte, mesmo que se possa vencer no plano político a força da actualmente prevalecente contingência histórica dos EUA — que foi precedida de outras configurações imperialistas no passado e pode muito bem ser seguida de outras no futuro (se conseguirmos sobreviver aos actuais perigos explosivos) —, a necessidade estrutural ou sistémica emanente da lógica finalmente monopolística mundial continua a ser tão pressionante como sempre. Pois seja qual for a forma específica que uma futura contingência histórica possa assumir, a necessidade sistémica subjacente tem de continuar a ser a marcha para a dominação mundial.

Por conseguinte, a questão não reside apenas em determinados empreendimentos militaristas de alguns círculos políticos, empreendimentos esses que poderiam ser enfrentados e superados ao nível político-militar. As causas são muito mais profundas e não podem ser combatidas sem a introdução de mudanças bastante fundamentais nas determinações sistémicas mais internas do capital como modo de controlo social metabólico — de reprodução global — que abarca não só o domínio político-militar, mas também as mais mediatas inter-relações culturais e ideológicas. Até a expressão "complexo militar-industrial" — introduzida numa acepção crítica pelo Presidente Eisenhower, que sabia algumas coisas sobre esta questão — indica claramente que aquilo que nos preocupa é algo de muito mais firmemente enraizado e tenaz do que algumas determinações (e manipulações) político-militares directas que poderiam, em princípio, ser invertidas a esse nível. A guerra como a "continuação da política por outros meios" ameaçar-nos-á sempre no actual modelo de sociedade, e nos nossos dias com aniquilamento total. Ameaçar-nos-á enquanto não formos capazes de enfrentar as determinações sistémicas na raiz da tomada de decisões políticas, que tornaram as guerras necessárias no passado. Essas determinações encurralavam os vários Estados nacionais no círculo vicioso da política conducente a guerras, e as guerras traziam consigo políticas cada vez mais antagónicas que tinham de explodir em guerras cada vez maiores. Para este debate e de forma um tanto optimista, abstraiamo-nos da contingência histórica do capitalismo americano actual e continuaremos ainda em presença da necessidade sistémica da cada vez mais destruidora ordem de produção do capital, o que realça as mutáveis mas crescentemente perigosas contingências históricas específicas.

A produção militarista, hoje em dia primariamente personificada no "complexo militar-industrial", não é uma entidade independente, regulada por forças militaristas autónomas que são também responsáveis pelas guerras. Rosa Luxemburgo foi a primeira a colocar estas relações na sua perspectiva correcta, já em 1913, na sua obra clássica A Acumulação do Capital, publicada em inglês cinquenta anos mais tarde, e na qual a autora sublinhava profeticamente, há noventa anos, a crescente importância da produção militarista, sublinhando que:

Em última análise, o próprio capital controla este movimento automático e rítmico de produção militarista através da acção legislativa e de uma imprensa cuja função consiste em moldar a chamada "opinião pública". É por isso que este domínio particular da acumulação capitalista parece capaz de expansão ilimitada. (Routledge, London, 1963, p. 466)

Estamos, por conseguinte, preocupados com um conjunto de indeterminações que devem ser encaradas como partes de um sistema orgânico. Se queremos lutar contra a guerra enquanto mecanismo de governo mundial, como o devemos fazer, a fim de salvaguardar a nossa própria existência, temos de situar as mudanças históricas que tiveram lugar nas últimas décadas no seu quadro causal próprio. A concepção de um Estado nacional superpoderoso, que controlaria todos os outros, seguindo os imperativos emanentes da lógica do capital, só pode conduzir ao suicídio da Humanidade. Ao mesmo tempo, deve também reconhecer-se que a contradição aparentemente insolúvel entre aspirações nacionais — que explodem ciclicamente em antagonismos devastadores — e internacionalismo só pode ser resolvida se for regulada numa base totalmente equitativa, o que é completamente inconcebível na ordem hierarquicamente estruturada do capital.

Assim sendo, a fim de conceber uma resposta historicamente viável aos desafios colocados pela actual fase do imperialismo hegemónico mundial, devemos combater a necessidade sistémica do capital de subjugação do trabalho a nível global por meio de qualquer agência social específica que possa assumir o papel que lhe é atribuído nessas circunstâncias. Naturalmente isto só é viável através de uma alternativa — radicalmente diferente — ao caminho do capital para a globalização monopolista/imperialista, no espírito do projecto socialista, incorporada num movimento de massas que desabroche progressivamente. Pois só quando essa “patria es humanidad" — para utilizar as belas palavras de José Martí — se tornar uma realidade irreversível, é que a contradição destrutiva entre desenvolvimento material e relações políticas humanamente compensadoras será definitivamente relegada para o passado.
 

Permitam-me concluir citando o que escrevi há três anos e meio atrás sobre a chamada "terceira via", tão cara aos propagandistas do governo "neo-trabalhista" britânico e outros quejandos. Foi assim que vi a solução e é assim que continuo a vê-lo agora:

Aqueles que falam de "uma terceira via" como solução para o nosso dilema de Socialismo ou Barbárie , afirmando que não pode haver lugar para o renascimento de um movimento de massas radical, ou querem desiludir-nos chamando cinicamente à sua aceitação esclavagista da ordem dominante "a terceira via", ou não conseguem entender a gravidade da situação, colocando a sua fé num resultado que desejam positivo e não conflitual, que vem sendo prometido há quase um século, mas que nunca esteve próximo, nem sequer de mais uma polegada. A inquietante verdade desta questão é que, se não há futuro para um movimento de massas radical na nossa época, tal como alguns dizem, também não pode haver futuro para a própria Humanidade. 
Se eu tivesse de alterar as dramáticas palavras de Rosa Luxemburgo, relativamente aos perigos que enfrentamos hoje, acrescentaria a "socialismo ou barbárie": "barbárie, se tivermos sorte" — no sentido de que o extermínio da Humanidade é a última concomitante da via de desenvolvimento destrutiva do capital. E o mundo dessa terceira possibilidade, para além das alternativas de "socialismo ou barbárie", apenas serviria para as baratas, que se diz serem capazes de aguentar elevados níveis mortais de radiações nucleares. É este o único significado racional de terceira via do capital. 
A terceira fase actualmente operacional e potencialmente mortífera do imperialismo hegemónico mundial, correspondente à profunda crise estrutural do sistema capitalista como um todo no plano político e militar, não nos permite tranquilidade nem nos dá segurança. Pelo contrário, lança a sombra mais negra possível sobre o futuro, se o movimento socialista não for capaz de resolver com êxito os desafios históricos que enfrenta, no espaço de tempo que temos ao nosso alcance. É por este motivo que o próximo século terá de ser o século do "socialismo ou barbárie".

István Mészáros é autor de Socialism or Barbarism: From the "American Century" to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001) e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).

Este ensaio é baseado no prefácio da recente tradução turca de Socialism or Barbarism: From the "American Century" to the Crossroads, de István Mészáros. Foi escrito antes da recente invasão do Iraque pelos Estados Unidos.

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