14 de maio de 2006

Escrevendo em oposição

Geoff Eley



Tradução / Quais podem ser os propósitos de um historiador de esquerda hoje? Minha primeira resposta é muito simples: escrever boa história. É claro que as fronteiras entre ser um historiador e as outras coisas que fazemos são completamente porosas. Mas se nós, na esquerda, não tentarmos escrever histórias que possam ter algum impacto genuíno, dentro da disciplina ou para algum público mais geral, seria melhor que nós nos dedicássemos a alguma outra coisa. Nós podemos ser mais úteis para quaisquer ideais políticos mais amplos que continuemos a sustentar se formos o melhor possível naquilo que fazemos. Na verdade, às vezes as urgências da vida política se impõem sobre tudo mais. Nós podemos lamentar o longo atraso de Edward Thompson para completar Costumes em Comum, por exemplo, mas quem iria questionar sua decisão durante os anos 1980 de devotar-se inteiramente à causa do Movimento pela Paz? O lugar da política no balanço geral de nossas vidas, abertamente ou de modo mais sutil, irá passar inevitavelmente por altos e baixos. Mas uma parte da voz que podemos ter a esse respeito está na qualidade das histórias que produzirmos, o respeito que elas adquirirem, a legitimidade que virem a conferir, as oportunidades de influenciar que elas possam permitir – e, é claro, o aperfeiçoamento na qualidade do conhecimento de nós mesmos que elas serão capazes de criar. A boa história e a boa política andam juntas. “O primeiro dever para com o Partido” para os estudantes comunistas nos anos 1930, lembrava Eric Hobsbawm, “era obter titulação acadêmica elevada.” A tarefa principal dos historiadores de esquerda hoje – enquanto historiadores – é escrever a melhor história que puderem.

Para alguns isso parecerá a escada dos fundos para a torre de marfim. É muito claro que isso pode se tornar um caminho curto para o quietismo, para uma emigração interna, ou para as desculpas consoladoras que períodos de retrocesso ou de coerção política sempre nos convidam a buscar. Certamente não é fácil evitar esta lógica tomando espaço. Nos dias de hoje, existem poucos e preciosos meios para nos mantermos conectados a alguma esfera política mais ampla. Ser um intelectual de esquerda no mundo do capitalismo tardio hoje descreve uma situação muito mais desafiadora do que aquelas enfrentadas pelos intelectuais de esquerda em períodos anteriores de dificuldade, como os anos 1930 ou 1950. Para aqueles de nós que, em termos políticos, chegaram à vida adulta há trinta ou quarenta anos atrás, o panorama organizado da política mudou de um modo irreconhecível, ainda que para aqueles que cresceram nos anos 1980, paradoxalmente, os termos dessa situação desafiadora têm uma familiaridade muito mais duradoura. Para sintetizar muito: não há mais partidos aos quais filiar-se. Ou, ao menos, não há mais movimentos nacionais da esquerda com alcance cultural e social – aqueles maquinários organizados de identificação que podem construir contextos coletivos e contínuos de ação e pensamento – que poderiam ser capazes de circunscrever os intelectuais de esquerda em seu perímetro, seja como membros remunerados, apoiadores críticos ou interlocutores independentes. Por cerca de cem anos, aproximadamente, entre os anos 1860 e 1960, sob as condições da democracia constitucional, na Europa, na América e em outras partes do mundo, partidos socialistas, comunistas e outros partidos radicais, permitiram com muito sucesso esse tipo de participação. Naquelas circunstâncias era muito mais fácil saber como responder à questão sobre como engajar-se. Durante os anos 1960 e 1970, a culturas políticas associadas já estavam erodindo, mas ainda havia partidos de massa como os que estou descrevendo – como o Partido Comunista Italiano (PCI), o Partido Trabalhista inglês ou o Partido Social Democrata alemão (PSD) – que continuavam a ser como guarda-chuvas ou pontos de orientação, como cabeças-de-ponte extraordinariamente ramificados dentro da sociedade e da cultura, como contextos preparados para o engajamento, que prometiam uma relação de algum modo concreta e articulada com uma política nacional ou estatal que tivesse algum efeito plausível.

A viabilidade desses partidos subsistia nas histórias definidas da industrialização capitalista e da formação da classe, que no curso de duras lutas políticas sustentaram uma narrativa complexa de aperfeiçoamento social – baseada em fortes estruturas institucionais de governo local, serviços públicos e empregos em expansão, crescimento do planejamento nacional e do investimento público, a criação de estados de bem-estar social, ideais coletivistas de bem público e um modelos expansivo de cidadania. Dentro dessa história de expansão sem precedentes das capacidades democráticas, a presença de um partido socialista de massas permitiu alguns caminhos claros para o envolvimento público dos intelectuais. Do ponto de vista prático, permitiu acesso a uma audiência mais ampla, aos meios de circulação e ao mundo das políticas administrativas. Dentro das estruturas mais amplas da comunicação pública, associadas com as formas democráticas da esfera pública, ofereceu certas saídas institucionais para um trabalho intelectual de esquerda para aqueles interessados em explorá-las. Em termos de acesso ao poder, de modo mais ambicioso e, às vezes, mais elusivo, também nutriu uma promessa de coerência, de continuidade e de efeitos significativos.

Dentro deste mundo – agora desaparecido – de política institucional, mesmo as formações de massa menos atraentes e menos democráticas definiam um espaço de oportunidade. Para tomarmos um exemplo óbvio, se as inclinações estalinistas do Partido Comunista Francês (PCF) permaneciam uma fonte constante de frustração mesmo para os seus companheiros de viagem mais incorrigíveis, seu lugar no panorama político não poderia jamais ser desconsiderado. Por mais tacanho e irremediavelmente rígido que fosse, o PCF representava uma presença organizada essencial na cena política francesa entre os anos 1950 e 1980, que trazia consigo formas vitais de eficácia – seja positivamente, ao construir as coalizões e campanhas que outros sentiram-se capazes de apoiar, seja negativamente, ao definir os espaços onde políticas diferentes, e mais democráticas, poderiam ser imaginadas. Assim, a notável influência que Jean-Paul Sartre exerceu como um intelectual público durante aquele tempo era inseparável tanto do lugar mais amplo que o PCF ajudou a estabelecer para as idéias de esquerda, quanto das suas próprias inadequações ao sustentá-las. É claro que uma influência como a de Sartre também presumia um tipo particular de esfera pública, que garantia especialmente um lugar para o tipo de intelectualidade pública que ele corporificava, bastante distantes das plataformas particulares que ele era capaz de usar.

Hoje, entretanto, o ambiente político dominante sob o capitalismo tem se transformado profundamente. Os antigos partidos comunistas e socialistas dispersaram-se, ou entraram em decadência, ou se moveram drasticamente para o centro ou para a direita; sua relação com os eleitorados populares atrofiou; seu velho maquinário de lealdade e identificação organizada se desfez. A estrutura de comunicação pública como um todo foi, do mesmo modo, decisivamente reconfigurada: o acesso a ela é obstruído por novos monopólios de propriedade e controle; as antigas convenções pluralistas estão sob ataque; os meios impressos e as redes públicas de transmissão estão em declínio; as possibilidades democráticas da internet e outros meios eletrônicos foram traduzidas apenas de modo desigual em efeitos políticos concertados. O acesso fácil à internet ainda está por compensar a perda da esfera pública tal como era classicamente estruturada, bem como a ausência do protagonismo coletivo organizado por um partido ou um movimento. Os novos meios eletrônicos de comunicação contêm oportunidades sem precedentes para a construção de nossos próprios organismos de opinião e para o início de intercâmbios políticos realmente populares. Mas os circuitos de atividade que daí resultam permanecem altamente individualizados, localmente limitados, episódicos, fragmentados e quase sempre fora da visibilidade pública convencional.

Na busca por ter um efeito no interior dessa conjuntura contemporânea pouco inspiradora, e na tentativa de encontrar uma audiência mais ampla do que aquela da própria sala de aulas ou o campo especializado de atuação, não é fácil ver onde e como intervir. No presente mundo de marketing multimídia, agentes literários, celebridades (e na ausência de assuntos como guerras, presidentes mortos, nazismo e holocausto), infelizmente, é difícil para historiadores de esquerda não se sentirem confinados às margens. Para usar a mim mesmo como exemplo, eu publiquei recentemente uma história geral da esquerda na Europa, concebida como um estudo sobre o desenvolvimento da democracia, que eu esperava que, no mínimo, fosse engajar a própria esquerda em um debate sobre o caráter das transformações contemporâneas e que pudesse mesmo recapturar algo do território do discurso democrático tomado pela direita.4 Nada disso aconteceu. Talvez de modo previsível, o livro passou praticamente desapercebido pela imprensa qualificada e os semanários políticos do mundo anglo-falante (em contraste, por exemplo, com a Espanha, a Grécia, a Holanda e o Brasil).5 De modo ainda mais deprimente, com as exceções de Tikkun, Dissent e In These Times, ele não foi resenhado em nenhuma das revistas e periódicos da própria esquerda. Passou desapercebido pelo The Nation, The Progressive, Mother Jones, New Statesman, London Review of Books, Red Pepper, Soundings, openDemocracy, Renewal, e New Left Review (ou, também nesse sentido, por periódicos como Historical Materialism, Socialist History, Labour History Review, Socialism and Democracy, Rethinking Marxism, Radical History Review, ou mesmo Left History). No que diz respeito à aspiração por qualquer efeito político, o livro afundou como uma pedra.6

Em outras palavras, escrever como um historiador da esquerda nos dias de hoje tornou-se um exercício surpreendentemente acadêmico e solitário. Eu cito minha própria experiência não por solipsismo ou despeito (eu espero), mas porque ilustra as dificuldades não apenas em levar o trabalho de alguém a uma circulação pública mais ampla, mas também em mover a própria esquerda para dentro da discussão sobre o seu passado mais recente e mais profundo. Esse cenário parece muito diferente daqueles de um tempo anterior. Durante os anos 1970, ainda era possível encontrar pontos de conexão mais fáceis com os campos institucionais mais amplos da política e os espaços associados da esfera pública. No meu próprio caso, na Grã-Bretanha, aqueles alinhados desde os ramos locais das organizações militantes nacionais, interesses sindicais e a cultura associativa agregada dos comitês e plataformas públicas, até a cena estruturada nacional em torno da esquerda do Partido Trabalhista, do Partido Comunista e outras associações socialistas, incluindo o calendário de conferências das History Workshops, as Universidades comunistas, e assim por diante. É claro que é notoriamente difícil construir um argumento como esse sem parecer deslizar para uma nostalgia geracional de tipo condescendente e admonitório (no nosso tempo, nós sabíamos fazer melhor) e essa não é certamente a minha intenção. Mas o contraste ajuda-nos a pensar sobre os modos pelos quais se transformaram as condições do trabalho intelectual politicamente engajado. Ajuda a colocar em relevo as dificuldades novas e específicas que se levantam ao tentar fazer alguma diferença como um historiador de esquerda hoje.

Enquanto essa contração no acesso a meios mais amplos de comunicação política permanece profundamente incapacitadora e desanimadora, ela não exaure tudo o que pode ser dito sobre as políticas de conhecimento que os historiadores da esquerda podem ser capazes de almejar. O que isso significa, eu acho, é que é necessário uma perspectiva realista, mas veemente, sobre as formas de eficácia disponíveis para nós em nossa vida profissional imediata. Fazendo isso, nós podemos estar também recuperando aquilo que aprendemos sobre os modos como que, em outros períodos de ascensão conservadora e de recuo de uma política de esquerda, foi possível manter vivas idéias de oposição. Com relação a esse último aspecto, podemos muito bem considerar a relação complicada entre a década contra-revolucionária de 1850 e as mobilizações políticas e as criações constitucionais pan-européias nos anos 1860, por exemplo, ou a relação entre as décadas de 1870 e 1880 e as duas décadas seguintes em boa parte da Europa ocidental, ou a relação entre as décadas de 1950 e 1960, e assim por diante. Em cada um dos casos, o pensamento crítico e de oposição foi alimentado sem muita articulação evidente ou prática com os caminhos estabelecidos da influência política ou com a infra-estrutura institucional do poder público. Em cada caso, de modo indireto e mesmo escondido, a produção e a circulação de idéias como tais adquiriu eficácia.

Há muitos modos de conceptualizar a fusão desses espaços de experimentação e dissidência onde a oposição pode ser alimentada – isto é espaços que são capazes de sustentar uma relação com uma experiência anterior de radicalismo, ao mesmo tempo que permitem que futuros possíveis possam ser imaginados. Alguns desses espaços podem ser situados dentro dos próprios mundos institucionais da política. Outros podem ser encontrados principalmente nas redes de intelectuais críticos e nas idéias e livros que eles produzem. Outros ainda nas esferas públicas distintivas das artes, nas porções oposicionistas e dissidentes da cultura popular, ou do mesmo modo nos novos domínios eletrônicos comuns do ciberespaço. Outros poderão ainda ser encontrados em esforços bastante localizados e aparentemente isolados no âmbito da construção de um mundo em oposição. Outros certamente nas políticas dos movimentos sociais no último quarto de século. É especialmente interessante a esse respeito o papel das vanguardas estéticas e culturas em manter um lugar para a imaginação radical, em aguçar a lâmina crítica da cultura de oposição, em inventar novas linguagens e práticas de dissidência durante tempos de normatividade coercitiva crescente e em colocar à disposição formas de sensibilidade radical tão essenciais para as insurgências políticas de base mais ampla, quando eventualmente ocorrerem. Como exatamente todas essas continuidades podem se reproduzir é algo extremamente complexo. O ideal extremamente utópico de Gramsci do partido como o “Príncipe Moderno” fornece uma versão altamente articulada de como uma inteligência concertada ou um protagonismo político estratégico podem ajudar tais continuidades a convergir ou fundir-se. Mas se as histórias sociais que podem ter sustentado esse modelo particular de partido de massa, como argumentei acima, são agora, definitivamente, uma coisa do passado, isso não significa que impulsos de oposição não estejam sendo gerados. Para mim, a relação do Situacionismo com as explosões radicais de 1968 será sempre um exemplo salutar aqui: o meio Situacionista consistia em uma rede extremamente pequena de indivíduos, afinal, mas as linguagens políticas associadas com os novos radicalismos de massa do final dos anos 1960 tem uma enorme dívida com as formas de análise, as modalidades de ação, as interações do desejo utópico e a sensibilidade geral oposicionista que os Situacionistas produziram.

Nestes breves comentários, eu escolhi não enfocar temas particulares ou gêneros da escrita da história, mas a questão das conexões possíveis entre os historiadores de esquerda e a política e a esfera pública. Eu me preocupei com a questão: como pode o conhecimento do historiador tornar-se útil para a política? Esse me parece ser um conjunto mais decisivo de critérios para definir o que uma história de esquerda pode ser do que qualquer outro leque particular de assuntos ou metodologias e abordagens, ainda que os princípios ético-políticos que movem a história que escrevemos também estarão claramente no centro de tudo isso. Um conjunto de princípios democráticos, oposicionistas e críticos tem de ser essencial para o modo pelo qual os historiadores de esquerda praticam sua história. Nesse sentido, muito mais ainda haveria de ser dito sobre interdisciplinaridade, a relação entre a teoria e a história e as formas pelas quais as políticas do conhecimento se encapsulam nos tipos de inovações e diferenças historiográficas que perseguimos. Haveria também muito a dizer sobre controvérsias historiográficas particulares e sua pertinência para a política. A necessidade de trabalhar em direção a formas de prática democrática na sala de aulas, nos seminário e tudo o que compõe a esfera pública da disciplina (a constelação mais ampla de conferências, periódicos, informativos, associações profissionais e assim por diante) também precisariam de muita atenção. Todas elas compreendem arenas nas quais historiadores de esquerda podem ser ativos e ter algum efeito. Isso me leva de volta aos comentários do meu parágrafo de abertura: acima de tudo, a história de esquerda tem que ser a melhor história. Durante uma má conjuntura, é por aí que devemos começar.

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