19 de junho de 2003

Público versus mercantil

A polarização essencial não se dá entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil

Emir Sader


Uma das operações teóricas e políticas mais bem-sucedidas do neoliberalismo foi instaurar os debates em torno da oposição entre estatal e privado. Deslocar o debate para esse eixo impõe um campo duplamente favorável ao liberalismo, porque, por um lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal e, por outro, desloca um dos termos essenciais do debate: o público.

O estatal é caracterizado nesse esquema como ineficiente, aquele que cobra impostos e devolve maus serviços à população, como burocrático, corrupto, opressor. E o privado é promovido como espaço de liberdade individual, de criação, imaginação, dinamismo.

O Estado brasileiro tem sido facilmente desqualificável, porque tornou-se um Estado privatizado. Um Estado que arrecada do mundo do trabalho e transfere recursos para o setor financeiro, gastando mais com o pagamento dos juros da dívida do que com educação e saúde. Um Estado que paga taxas de juros estratosféricas ao capital financeiro, mas remunera pessimamente seus professores e seus trabalhadores do setor de saúde pública, aqueles mesmos que prestam serviços à massa da população. Um Estado que não assegura os direitos básicos para a grande maioria da população, mas que dilapidou o patrimônio público em processos de privatização financiados com o próprio dinheiro público. Por oposição, o privado surge como pólo privilegiado.

Porém a oposição estatal/privado reduz o debate a dois termos que, na realidade, não são necessariamente contraditórios, porque o estatal não é um pólo, mas um campo de disputa, que nos nossos tempos é hegemonizado pelos interesses privados. Já o privado não é a esfera dos indivíduos, mas dos interesses mercantis -como se vê nos processos de privatização, que não constituíram processos de desestatização em favor dos indivíduos, mas das grandes corporações privadas, aquelas que dominam o mercado -a verdadeira cara por trás da esfera privada no neoliberalismo.

O pólo oposto ao estatal, nesse esquema, é a negação da cidadania, é o reino do mercado, aquele que, negando os direitos, nega a cidadania e o indivíduo como sujeito de direitos. A polarização essencial não se dá entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil. Dentro do próprio Estado se desenvolve o conflito e a luta entre os que defendem os interesses públicos e os mercantis, entre o que Pierre Bourdieu chamou de braços esquerdo e direito do Estado.

O público se fundamenta nos cidadãos, nos indivíduos como sujeitos de direitos, enquanto o mercado congrega aos componentes do mercado os consumidores, os investidores. O primeiro tem na sua essência a universalização de direitos, o segundo, a mercantilização do acesso ao que deveriam ser direitos: educação, saúde, habitação, saneamento básico, lazer, cultura. O público se identifica com a democracia, seja pelo compromisso com a universalização dos direitos, seja pela possibilidade de controle pela cidadania, enquanto, ao se mercantilizarem esferas da sociedade, privatizando-as, retira-se da cidadania a capacidade de controle sobre elas.

Apesar dos avanços da mercantilização nos anos 90 no Brasil, houve também o fortalecimento de iniciativas de caráter público, como são, com suas diferentes expressões, as políticas de orçamento participativo e os assentamentos dos trabalhadores sem terra. A TV Cultura, na sua concepção original -hoje infelizmente bastante enfraquecida, por depender ela também da publicidade privada-, foi outra excelente expressão de políticas públicas.

A construção de uma democracia social (uma outra forma de falar da superação do neoliberalismo) no Brasil requer uma reforma profunda do Estado brasileiro, refundando-o em torno da esfera pública. Mas, antes de tudo, requer a reposição do conjunto dos debates políticos e teóricos em torno da polarização público/mercantil.

As primeiras orientações do governo Lula não parecem tampouco inovar nesse plano, desqualificando o servidor público, não privilegiando o fortalecimento da educação e da saúde públicas, perdendo a chance de fazer uma reforma tributária socialmente justa, desconhecendo a centralidade da esfera pública e o tema estratégico da reforma democrática do Estado, de que o orçamento participativo, em modalidades inovadas, é elemento essencial. A saída do modelo neoliberal não depende só de novas políticas econômicas, mas de se assumir a centralidade do público e a luta contra a mercantilização -chave da democracia social, da prioridade do social com que se comprometeu o novo governo. Mudança implica mudança econômica, política, social, cultural, mas também mudança do campo teórico de análise e de referência.

Sobre o autor

Emir Sader, 59, é professor de sociologia da USP e da Uerj, onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A vingança da História" (Boitempo Editorial), entre outros livros.

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