19 de agosto de 2024

A (re)formulação da classe trabalhadora

Os teóricos da globalização escreveram inúmeros obituários para a classe trabalhadora, mas ignoraram o fato de que o capitalismo cria sucessivamente novas classes trabalhadoras com novas fontes de poder, sofrimento e exigências.

Bervely J. Silver


Ilustração: Nicolás Daniluk

Tradução / Quando os historiadores fizerem uma retrospectiva do período entre 2019–2021, três principais sinais de uma profunda crise sistêmica se destacarão. Primeiro, o fracasso dos Estados Unidos (e do Ocidente em geral) em responder de forma competente à pandemia COVID-19, revelando um nível profundo de disfunção governamental e social. Em segundo lugar, a admissão aberta pelo governo dos Estados Unidos de que a guerra no Afeganistão estava perdida, deixando claro para todos que a “guerra ao terror” de duas décadas falhou em reverter a queda do poder mundial dos EUA e falhou também em colocar o Afeganistão (ou o mundo como um todo) em um caminho para maior paz e segurança. Por último, mas não menos importante, o tsunami mundial de protesto social, que decolou pela primeira vez em 2010-11, após a crise financeira de 2008 e escalou em direção a um novo crescendo em 2019 e depois.

Olhando para o futuro, é claro que qualquer estratégia para as lutas da classe trabalhadora e socialista deve levar em consideração o terreno em que essas lutas estão se desenvolvendo, que é de uma profunda crise da hegemonia mundial dos Estados Unidos (em alguns aspectos análoga à crise da hegemonia mundial britânica na primeira metade do século 20), bem como uma profunda crise para o capitalismo global em uma escala nunca vista desde os anos 1930. Como aconteceu na primeira metade do século XX, a atual crise do capitalismo global assume a forma de uma profunda crise de legitimidade. Hoje, nos encontramos em um período de aprofundamento da barbárie, em que a frase “socialismo ou barbárie” ganha nova relevância e urgência.

Mobilizações trabalhistas e de classe

Que papel as mobilizações trabalhistas e de classe podem desempenhar para impedir o deslizamento contínuo na “barbárie”? A tese race to the bottom (1), amplamente aceita pela esquerda até recentemente, postula que a globalização criou barreiras intransponíveis à uma nova mobilização da classe trabalhadora em todos os lugares. Isso levou à publicação de muitos obituários para o trabalho e para os movimentos dos trabalhadores desde os anos 1980. Ela focou nossa atenção no enfraquecimento e na destruição das classes trabalhadoras estabelecidas (especialmente os trabalhadores da produção em massa nos países centrais), enquanto ignorava as maneiras pelas quais o capitalismo – por meio de transformações recorrentes na organização da produção em escala mundial – cria novas classes trabalhadoras com novos fontes de poder, queixas e demandas.

Essa abordagem concentra nossa atenção na criação e reconstrução das classes trabalhadoras decorrentes tanto do lado criativo quanto do destrutivo do processo de acumulação de capital. De fato, a onda global de agitação social de 2010-2011 foi composta de protestos trabalhistas e de classe dos novos setores em formação da classe trabalhadora e dos setores estabelecidos da classe trabalhadora lutando para manter os direitos conquistados em rodadas anteriores de luta. Isso variou de ondas de greves de trabalhadores de fábricas na China e greves selvagens nas minas de platina da África do Sul a ocupações de praças públicas por jovens desempregados e subempregados e protestos anti-austeridade em todo o mundo, do Norte da África aos Estados Unidos e além. Essa onda global acabou sendo um prelúdio para um tsunami de protestos de classe que durou uma década em todo o mundo, composto de lutas nos locais de produção e lutas nas ruas.

Lutas no Local de Trabalho

Para alguns, a lição de 2010-2011 é que as lutas baseadas em classes passaram do local de produção para as ruas. No entanto, embora não devêssemos subestimar o significado das “lutas nas ruas”, seria um grave erro subestimar o significado contínuo das paralisações no local de trabalho como fonte de poder por trás dos movimentos. Assim, por exemplo, enquanto a história padrão da revolta egípcia de fevereiro de 2011 se concentra na ocupação da Praça Tahrir, foi quando os trabalhadores do Canal de Suez entraram em greve, com todas as implicações para o comércio nacional e internacional, que Mubarak renunciou ao cargo.

A adoção generalizada da produção just-in-time desde a década de 1980, em que o fornecimento de insumos é mantido ao mínimo com a suposição de que os custos podem ser cortados se os insumos forem entregues “just in time” (bem a tempo), aumentou a vulnerabilidade da produção a jusante para paralisações nas fábricas a montante. Isso se dá mesmo quando a fábrica em greve fica nas proximidades, na mesma província, como por exemplo, quando uma greve em uma fábrica de autopeças obrigou a Honda a fechar todas as suas montadoras na China.

A pandemia (para não mencionar alguns acidentes de alto perfil, como o navio que bloqueou o Canal de Suez por uma semana inteira em março de 2021) tornou clara a todos a extrema vulnerabilidade das cadeias de abastecimento globais a várias formas de interrupções, incluindo greves trabalhistas. Até certo ponto, isso não é novo. Já no século XX, os trabalhadores do setor de transporte tinham um poder significativo enraizado em sua localização estratégica nas cadeias de suprimentos nacionais e globais – e, portanto, desempenhavam um papel fundamental em movimentos trabalhistas mais amplos. Embora as cadeias de abastecimento globais sem dúvida pareçam diferentes em meados do século 21, enquanto estão sendo reestruturadas em resposta à pandemia e às crescentes tensões geopolíticas, os trabalhadores em transporte, armazenamento e comunicação provavelmente manterão o poder (e relevância mais ampla) devido a sua localização estratégica nos processos de acumulação de capital

Da mesma forma, não seria sensato descartar a importância das greves dos trabalhadores manufatureiros, visto que a expansão geográfica sucessiva da produção em massa em todo o mundo desde meados do século XX até o presente resultou em ondas sucessivas de nova formação da classe trabalhadora e de novos ondas de agitação trabalhista. No início do século XXI, quando o epicentro da produção em massa na manufatura mudou para a Ásia, o epicentro da agitação trabalhista também mudou para a Ásia, dando nova confirmação à tese de que para onde o capital vai, o conflito segue.

A frase, para onde o capital vai, o conflito segue, tem um significado geográfico, ou seja, à medida que o capital se desloca geograficamente em busca de mão de obra barata e dócil, cria novas classes trabalhadoras e novas ondas de conflito nos novos locais geográficos favorecidos pela produção, mas também tem um significado intersetorial – porque, conforme o capital se move para novos setores da economia, novas classes trabalhadoras são criadas e novas ondas de conflito emergem desses setores. Para quais setores devemos olhar hoje? Um lugar é a “indústria da educação”, que (de acordo com a UNESCO) cresceu de 8 milhões de professores em 1950 para 62 milhões em 2000 e aumentou mais 50% para um total de 94 milhões de professores em 2019. Além de seu crescimento em números, há razões para pensar que os professores estão assumindo um papel de liderança no movimento sindical mundial, análogo ao desempenhado pelos trabalhadores têxteis no século 19 e os trabalhadores da indústria automobilística no século 20.

Uma tendência crescente de agitação sindical na “indústria da educação” ficou visível desde o final do século 20; mas as mobilizações em massa dos professores em vários continentes na última década marcam um ponto de inflexão. Nos Estados Unidos, o ponto de inflexão corresponde ao surgimento do “Caucus of Rank-and-File Educators” (CORE), que liderou os professores de Chicago a greve bem-sucedida e inspiradora de 2012 que recebeu amplo apoio da comunidade; era vista como uma luta não apenas pelos interesses dos professores, mas também pelos interesses mais amplos dos alunos e das famílias e comunidades da classe trabalhadora. A greve de Chicago foi seguida por uma onda nacional de greves e mobilizações de professores bem-sucedidas nos Estados Unidos, principalmente em distritos escolares localizados em estados hostis aos sindicatos em todo o país. No Chile, professores de escolas públicas em greve sob a liderança do Colégio de Professores do Chile (CPC), entrelaçados com mobilizações em massa de estudantes, organizações de bairro e outros trabalhadores na última década, desempenharam um papel central em um surto nacional exigindo “educação como um direito de todos” e o abandono da constituição neoliberal herdada da era Pinochet.

A nova onda de militância docente foi desencadeada por crescentes agravos enraizados em um processo de aprofundamento da proletarização, incluindo a intensificação do trabalho, a deterioração das condições de trabalho e a perda de autonomia/controle sobre o processo de trabalho em sala de aula. As greves de professores foram bem-sucedidas, em parte, porque suas queixas crescentes andam de mãos dadas com um forte poder de barganha no local de trabalho. A “indústria da educação”, pode-se argumentar, é a mais importante indústria de bens de capital do século 21, fornecendo trabalhadores qualificados para a “economia da informação”. Ao contrário da maioria das atividades de manufatura, não se pode exercer pressão sobre os professores ameaçando (de forma crível) realocar geograficamente a produção, ou seja, o ensino deve ser feito onde os alunos estão localizados, apesar dos experimentos pandêmicos com ferramentas de videoconferências. Da mesma forma, a indústria da educação tem permanecido razoavelmente resistente à automação (substituição de professores por robôs).

Além disso, os professores ocupam uma localização estratégica na divisão social do trabalho. A greve dos professores tem efeito cascata em toda a divisão social do trabalho – interrompendo as rotinas familiares e tornando difícil para os pais que trabalham tocarem seus empregos. O poder estratégico dos professores está enraizado em sua centralidade na divisão social do trabalho e, portanto, seu poder de barganha enraizado em sua capacidade de perturbar a economia é bastante único. Mas, a menos que esse poder seja exercido com uma visão hegemônica mais ampla em mente, ele deixa professores em greve vulneráveis a serem transformados em bodes expiatórios e à repressão violenta por parte do Estado e da capital. Na verdade, o aprofundamento da crise do capitalismo anda de mãos dadas com a ampliação e o aprofundamento das formas coercitivas de governo por parte dos Estados e do capital.

Ainda assim, as principais greves de professores da última década mostram que os professores têm potencial para formular uma visão hegemônica; isto é, uma visão na qual suas lutas particulares são apresentadas não como sendo apenas para seus interesses estreitos, mas no interesse mais amplo da sociedade. À medida que os professores realizam seu trabalho, eles se encontram inseridos nas comunidades da classe trabalhadora diariamente, testemunhando a ampla gama de problemas enfrentados por seus alunos e famílias. Uma visão hegemônica deixaria claro que, embora suas demandas os beneficiem como professores, também beneficiam as famílias, bairros, cidades de seus alunos e muito mais. Claro, esse papel hegemônico é apenas um potencial enraizado em condições estruturais; tem que ser realizado por meio de agenda política que ligue as lutas particulares dos professores (e trabalhadores) a lutas sucessivamente maiores pela dignidade humana e pela sobrevivência planetária.

Lutas no Local de Trabalho/ Lutas nas Ruas

A recente onda de automação da IA (Inteligência Artificial) levou muitos a sugerir mais uma vez que estamos caminhando para o “fim do trabalho”; e com isso, por definição, o fim das lutas no local de trabalho. No entanto, a remoção completa do trabalho humano do processo de produção permanece evasiva e a importância das lutas dos trabalhadores no local de produção não deve ser subestimada.

Mas também seria um erro subestimar o papel das lutas nas ruas. Na verdade, a natureza entrelaçada desses dois locais de luta – local de trabalho e ruas – pode ser derivada do volume 1 do Capital. Por um lado, o que acontece na “morada oculta da produção [a fábrica]” foi o foco de Marx nas seções intermediárias do volume 1 do Capital – onde ele cataloga um conflito endêmico entre trabalho e capital sobre a duração, intensidade e ritmo de trabalho. Por outro lado, no capítulo 25, Marx deixa claro que a lógica do desenvolvimento capitalista, não só leva a lutas endêmicas no local de trabalho, mas também a conflitos mais amplos em nível social, já que a acumulação de capital anda de mãos dadas com a “acumulação de miséria”, principalmente na forma da expansão de um exército de reserva de trabalhadores desempregados, subempregados e precariamente empregados.

Visto deste ponto de vista, o capitalismo histórico é caracterizado não apenas por um processo cíclico de destruição criativa nos locais de produção, mas também por uma tendência de longo prazo de destruir os meios de subsistência existentes em um ritmo mais rápido do que cria novos meios de subsistência. Isso aponta para a necessidade de conceituar três tipos de agitação trabalhista: (1) protesto das novas classes trabalhadoras que estão sendo formadas; (2) o protesto das classes trabalhadoras estabelecidas e que estão sendo desfeito; e (3) protesto por parte dos trabalhadores que o capital ignorou ou excluiu; isto é, aqueles membros da classe trabalhadora que nada têm para vender a não ser sua força de trabalho, mas têm poucas perspectivas de vendê-la durante sua vida.

Todos os três tipos de agitação trabalhista são resultados de diferentes manifestações dos mesmos processos de desenvolvimento capitalista. Todos os três são visíveis no atual surto global. O destino de todos os três está profundamente entrelaçado um com o outro. Uma estratégia socialista abrange os três. Na verdade, a visão estratégica de Marx e Engel, articulada no Manifesto e em outros lugares, exige que os sindicatos organizem todos os três segmentos das classes trabalhadoras do mundo em um projeto comum.

Racismo e Antirracismo em mobilizações baseadas nas classes:

Nem é preciso dizer que essa não é uma tarefa fácil. Em suas formulações mais otimistas, Marx presumiu que todos os três tipos de trabalhadores: aqueles que estão sendo incorporados como trabalhadores assalariados na última fase da expansão material; aqueles que estão sendo cuspidos como resultado da última rodada de reestruturação e aqueles que superam as necessidades de capital, podem ser encontrados nas mesmas famílias e comunidades da classe trabalhadora. Eles viveram juntos e lutaram juntos. Em outras palavras, as distinções dentro da classe trabalhadora – entre empregados e desempregados, exército ativo e de reserva, aqueles com o poder de impor disrupções dispendiosas ao capital no ponto de produção e aqueles que somente têm o poder de interromper a paz nas ruas, não coincidiu com diferenças de cidadania, raça, etnia ou gênero. Como tal, os trabalhadores que eram a personificação dos três diferentes tipos de agitação trabalhista eram uma classe trabalhadora com poder compartilhado e queixas compartilhadas, e com a capacidade de produzir uma visão pós-capitalista que prometia a emancipação da classe trabalhadora mundial em sua totalidade.

No entanto, historicamente o capitalismo desenvolveu-se lado a lado com o colonialismo, o racismo e o patriarcado; dividindo a classe trabalhadora ao longo de linhas de status (por exemplo, cidadania, raça / etnia, gênero) e embotando a capacidade da classe trabalhadora produzir uma visão emancipatória para a classe como um todo. Em períodos de aprofundamento da crise capitalista, como o atual, essas divisões tendem a se endurecer. Os “monstros” do “interregno” de Gramsci: movimentos neofascistas, racistas, patriarcais, anti-imigrantes e xenófobos, são fortalecidos direta e indiretamente pelos capitalistas em crise. Formas cada vez mais coercitivas de controle social e militarismo são desencadeadas como aríetes contra um movimento socialista que é simultaneamente “forte demais” para ser ignorado (pelo capital) e “muito fraco” (até agora) para salvar a humanidade de um longo e profundo período de caos sistêmico.
No entanto, também estamos no meio de um aumento global de mobilização da classe trabalhadora em uma escala e escopo sem precedentes históricos. Embora o desafio colocado à humanidade pelo aprofundamento da crise sistêmica do capitalismo global também não tenha precedentes, esses novos movimentos vêm quebrando divisões e, em alguns casos, reunindo solidariamente os protagonistas dos três segmentos da classe trabalhadora. É nessas lutas e por meio delas que surge um projeto emancipatório que nos tira de um capitalismo cada vez mais destrutivo para um mundo onde a dignidade humana é mais valorizada que os lucros.

Beverly J. Silver

Professor de sociologia, diretor do Centro Arrighi de Estudos Globais da Universidade Johns Hopkins e autor de Workforces (Akal, 2005).

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