15 de agosto de 2024

Em defesa da identidade progressista

Na Argentina de Milei, enquanto o discurso de extrema direita se consolida, setores crescentes do peronismo respondem com uma narrativa "antiprogressista". Diante do vendaval reacionário, a tarefa é oposta: reafirmar os valores do progressismo e reivindicar a sua identidade.

Alejandro Kurlat

Jacobin

O retorno da identidade peronista constitui uma marca muito visível da época. Tanto o novo "peronismo conservador" como os setores mais progressistas coincidem aí. (Foto: AP/Natacha Pisarenko)

O ponto de partida para esta reflexão é o retorno, na Argentina e no mundo, das identidades político-ideológicas. Se na década de 90 foi decretado o fim das grandes histórias e no imaginário social a política foi reduzida a uma atividade quase puramente técnica, os últimos anos trouxeram uma mudança notável.

Um primeiro momento desta transformação ocorreu quando, desde o início dos anos 2000 – e especialmente desde a crise mundial de 2008 –, o consenso neoliberal-globalizado começou a ser confrontado com fortes questionamentos da esquerda. Foi o caso das rebeliões e dos governos progressistas que as seguiram na América Latina, das experiências do Occupy Wall Street nos Estados Unidos, dos movimentos indignados e do surgimento de formações e figuras da nova esquerda como Bernie Sanders nos Estados Unidos, Jeremy Corbyn no Reino Unido, Podemos na Espanha, etc.

Mas esta primeira onda de questionamentos da esquerda foi seguida, especialmente depois de 2015 (com a experiência crucial do Brexit), por um novo ataque da extrema direita, que tentou um desafio reacionário ao status quo. Estas correntes construíram uma história profundamente ideológica, procurando desmantelar todos e cada um dos consensos progressistas e democráticos que foram construídos ao longo de décadas.

Esta nova direita responde à mesma crise de legitimidade do sistema político-social desencadeada pela crise global, mas o faz precisamente para evitar que conduza a um resultado prejudicial aos interesses das classes dominantes. Para isso, propõe-se uma “batalha cultural” em todas as áreas, procurando reafirmar valores profundamente individualistas, conservadores, elitistas e excludentes.

"Antiprogressismo" na Argentina

Na Argentina, Javier Milei conseguiu instalar não apenas a sua própria figura, mas todo um selo ideológico: o “liberalismo libertário”. Esta história conseguiu reunir e mobilizar um núcleo muito sólido de militantes e simpatizantes, que por sua vez conseguiram atrair amplas camadas da população insatisfeita com a situação (sobre a qual a direita exerceu influência durante anos através do bombardeamento político-midiático-judicial). Embora apenas uma pequena parcela dos 56% que o atual presidente argentino obteve no segundo turno possa ser considerada um voto “liberal-libertário” convicto, é claro que a construção de um discurso e de uma identidade político-ideológica desempenhou um papel importante no crescimento meteórico da Milei.

Este ataque ideológico de direita colocou o campo popular na defensiva e gerou também um efeito colateral muito prejudicial: o surgimento de um discurso antiprogressista dentro dos setores opostos a Milei. A figura mais midiática neste discurso é a de Guillermo Moreno (Secretário de Comércio Interno durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner), mas a mesma linha é replicada em todos os tipos de atores políticos.

Segundo o portal Cenital, a própria ex-presidente Cristina Fernández teria afirmado que “o peronismo não é progressista” em reunião no Instituto Patria. Neste caso, embora não se trate de uma posição nova (lembre-se, por exemplo, da posição que CFK manteve em relação ao direito ao aborto nos anos anteriores à Maré Verde), o momento da proposta no âmbito dos debates que hoje atravessam o campo popular conferem a estas declarações um peso político particular.

O retorno da “marca peronista”

Outro fenômeno intimamente ligado ao anterior é o que um artigo publicado há algumas semanas no Tiempo Argentino chama de “o retorno do peronismo como marca eleitoral”. Ali é apontado que a identidade peronista tornou-se mais uma vez a definição central de muitos atores políticos, deslocando até mesmo a identidade kirchnerista:

Quando questionados sobre qual partido ou identidade ideológica se sentem mais representados ou próximos, 25% responderam peronista, 14% PRO ou macrista, 12% libertário, 8% radical, 5% esquerdista e apenas 4% kirchnerista; 3% dizem outro e 30% declaram não se sentir próximos de nenhum (...) Estes resultados significam uma mudança em relação a estudos semelhantes realizados há seis ou sete anos. (...) Em 2017, quase 20% responderam kirchnerista e menos de 10% disseram peronista.

Este retorno da identidade peronista constitui uma marca da época muito visível nas redes sociais e nos novos canais de streaming. Podemos ver que coincidem tanto o novo “peronismo conservador” de estilo Moreno (dedicado ao relançamento do “peronismo de Perón” e da antiga doutrina peronista) como setores mais progressistas (como os do canal “Gelatina”). Neste mesmo tom podemos também localizar uma recente intervenção midiática de Juan Grabois na qual, debatendo com as posições de Cristina Kirchner, sustentou que a doutrina de Perón não era capitalista mas sim uma terceira posição mais orientada para o socialismo.

Relançar o progressismo

A instalação do selo “liberal-libertário” e o retorno da “marca peronista” indicam que a Argentina entrou plenamente em uma etapa de reafirmação de identidades político-ideológicas em que elementos doutrinários, ideológicos e até teóricos são colocados novamente na mesa Em si, este é um fato positivo e necessário. Mas também acarreta um perigo: que as vozes progressistas não façam parte deste debate e permaneçam enterradas, especialmente no quadro de um clima de época marcado pelo “anti-progressivismo”.

Esta questão independe de qualquer definição de tática política que os setores identificados com o progressismo decidam adotar. Seja fora ou dentro dos espaços de unidade com as correntes kirchneristas e peronistas, o grande risco de não lutar pela própria identidade progressista é o da dissolução político-ideológica

Nesta linha, existem três grandes bandeiras político-ideológicas que devem ser defendidas e que exigem, precisamente, continuar a manter uma identidade progressista que as englobe e reafirme no debate nacional (uma identidade que, por outro lado, tem um importante apoio, com referências como a Internacional Progressista fundada por Bernie Sanders e Varoufakis ou movimentos europeus como a Nova Frente Popular Francesa).

1) Valores humanísticos. Numa época em que se celebra a crueldade e a desumanização dos outros, reafirmar uma perspectiva centrada nos direitos humanos é uma questão de princípio. Isto implica o desenvolvimento de uma visão internacionalista, anti-imperialista, anticolonial, anti-racista, feminista e antipatriarcal, anti-guerra, ambientalista e profundamente democrática. E significa também empenhar-se numa batalha total contra as forças da extrema direita que constituem hoje o maior perigo, tanto na América Latina como na Europa, nos Estados Unidos e em grande parte do mundo.

Não é possível, em nome do “nacionalismo antiglobalista”, apoiar ou mesmo minimizar o risco que implica o avanço dos partidos xenófobos e fascistas: a principal tarefa é derrotá-los por todos os lados. Nem as minorias e as diversidades (de gênero, étnico-nacionais, etc.) podem ser atiradas ao mar em nome de supostas “questões mais importantes”, porque nada é mais importante do que o direito de cada pessoa existir.

2) O questionamento do capitalismo. Este é também um debate explícito com as forças do campo popular que, reivindicando “justiça social” e soberania nacional, propõem que o capitalismo seja o melhor sistema possível. Mas a história do capitalismo demonstra repetidamente que, para além do seu papel no desenvolvimento das forças produtivas, é um sistema que gera inerentemente exclusão, destruição e profunda desigualdade na distribuição da riqueza e do poder.

Isto não significa que devamos ter uma visão ingênua ou utópica: não podemos ignorar que as tentativas de superar o capitalismo falharam, que a grande maioria das pessoas no mundo não considera a mudança sistêmica possível ou desejável, e que nenhum país pode sustentar um padrão de vida digno, isolado da economia global (como infelizmente demonstram os bloqueios de Cuba e da Venezuela, em situações de pobreza profunda). É claro que devemos reflectir e debater que tipo de medidas económicas e sociais são possíveis e convenientes no mundo de hoje, especialmente em países subdesenvolvidos como os da América Latina.

Mas nada disto significa embelezar o capitalismo: trata-se sempre de procurar soluções que sejam tão colectivas, solidárias e inclusivas quanto possível. Enquanto o núcleo forte dos valores e concepções capitalistas permanecer incontestado, mais difícil será para nós encontrar uma solução para os problemas que o próprio sistema gera.

3) Democratização em todas as áreas. Não é necessário acrescentar muito sobre a importância da democracia no regime político, visto que é um ponto partilhado por todo o campo popular. Mas a democracia pela qual devemos lutar é ainda mais profunda, que inclui também as relações de força entre os que estão abaixo e os que estão acima e, de forma mais geral, de todas as áreas onde os interesses e pontos de vista dos outros são expressos. setores.

Isto significa várias coisas. Em primeiro lugar, a necessidade de construir o poder popular: fortalecer e expandir os sindicatos, as organizações da economia popular, o movimento de mulheres, os estudantes, os direitos humanos, as organizações de bairro, etc. Sem a intervenção activa dos que estão abaixo, sem o seu dinamismo, o seu protagonismo e a sua iniciativa, não há como torcer o braço dos poderosos. Longe de desempenhar um papel de contenção (como o que muitas vezes desempenham alguns líderes), trata-se aqui de promover e desenvolver a sua participação e envolvimento político.

Em segundo lugar, é muito importante a democratização de todas as organizações sindicais, sociais e político-eleitorais do campo popular. Em todas estas áreas, os representantes devem ser elegíveis por voto, o pluralismo político-ideológico, a liberdade de expressão e crítica, e a participação activa das bases deve ser promovida. As organizações de cima para baixo, a lógica dos acordos “de cima” e o monolitismo são um obstáculo ao desenvolvimento de uma verdadeira democracia.

Um último ponto (embora não menos importante) diz respeito ao perfil dos candidatos do campo popular. Nossos representantes nas eleições devem ser figuras honestas e impecáveis, coerentes em sua trajetória e com as propostas do movimento, que se assemelhem o máximo possível às bases que pretendem representar. Esses pontos não são importantes apenas por si, mas também pelos seus efeitos eleitorais: em tempos de “rebelião contra as castas” é preciso construir um perfil diferenciado das antigas figuras da política tradicional para reconquistar o respeito (e, com ele, o voto). ) dos setores populares.

Alejandro Kurlat

Historiador (Universidade de Buenos Aires)

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