16 de maio de 2016

Gramsci e a Rússia soviética: O materialismo histórico e a crítica do populismo

Domenico Losurdo


1. “Coletivismo da miséria, do sofrimento”

Tradução / Como é notório, a revolução que batizou a Rússia soviética e que, contra qualquer expectativa, se verificou em um país não incluído entre os capitalistas mais avançados, é aclamada por Gramsci como a “revolução contra O capital”. Ao zombar do mecanismo evolucionista da II Internacional, o texto publicado no Avanti! de 24 de dezembro de 1917 não hesita em se distanciar das “incrustações positivistas e naturalistas” presentes também “em Marx”. Sim, “os fatos superaram as ideologias”, e portanto não é a Revolução de Outubro que deve se apresentar diante dos guardiões do “marxismo” com o fim de obter legitimação; é a teoria de Marx que deve ser repensada e aprofundada à luz da viragem histórica que ocorreu na Rússia (1). Sem dúvida, é memorável o início desse artigo, mas isso não é motivo para se perder de vista a continuação, que não é menos significativa. Quais serão as consequências da vitória dos bolcheviques em um país relativamente atrasado e, além disso, arrasado pela Guerra?

“Será no início o coletivismo da miséria, do sofrimento. Mas as mesmas condições de miséria e de sofrimento seriam herdadas por um regime burguês. O capitalismo não poderia imediatamente fazer na Rússia mais do que poderá fazer o coletivismo. Faria hoje muito menos, porque de imediato teria de frente um proletariado descontente, inquieto, incapaz praticamente de suportar pelos outros as dores e as amarguras que as dificuldades econômicas trariam (...). O sofrimento que terá depois da paz apenas poderá ser suportado porque os proletários perceberão que a sua vontade, o seu apego ao trabalho é que poderão dissipá-lo no menor tempo possível.”.

Nesse texto, o comunismo de guerra que está para se consolidar na Rússia soviética é, ao mesmo tempo, legitimado no plano tático e deslegitimado no plano estratégico; legitimado pelo momento e deslegitimado com o olhar voltado ao futuro. O “coletivismo da miséria, do sofrimento” é justificado pelas condições concretas pelas quais passa a Rússia da época: o capitalismo não estaria em condições de fazer nada melhor. Mas o “coletivismo da miséria, do sofrimento” deve ser superado “no menor tempo possível”.

Não é absolutamente uma afirmação banal. Vejamos em que modo o francês Pierre Pascal interpreta e reverencia a revolução bolchevique da qual é testemunho direto:

“Espetáculo único e extasiante: a demolição de uma sociedade. Estão se realizando o quarto salmo das orações dominicais e o Magnificat: os poderosos derrubados do trono e o pobre resgatado da miséria (...). Os ricos não existem mais: apenas pobres e paupérrimos. O saber não confere nem privilégio e nem respeito. O ex-operário promovido diretor dá ordens aos engenheiros. Altos e baixos salários se aproximam. O direito de propriedade é reduzido a efeitos pessoais.” (2).

Longe de ter de ser superada “no menor tempo possível”, a situação na qual há “apenas pobres e paupérrimos” – ou na linguagem de Gramsci, o “coletivismo da miséria, do sofrimento” –, tudo isso é sinônimo de plenitude espiritual e de rigor moral. É verdade, Pascal era um católico fervoroso, mas isso não significa que os bolcheviques fossem imunes a essa visão que é compatível ao populismo e ao pauperismo. De fato, pode-se perguntar aqui se não haveria traços de populismo e pauperismo na definição que se transfigura em “comunismo” e até mesmo em “comunismo de guerra”, um regime marcado pelo colapso da economia (às vezes com o retorno ao escambo) e em certos momentos pela requisição forçada dos alimentos necessários à sobrevivência da população urbana; um regime que Gramsci corretamente define como “coletivismo da miséria, do sofrimento”. Em 1936-1937, Trotsky (3) é que lembra criticamente “as tendências austeras da época da guerra civil”, difundidas entre os comunistas, cujo ideal parecia ser a “miséria socializada”. É uma fórmula que leva a pensar na de Gramsci, mas que é a ela posterior quase vinte anos.

Quem descreve de um modo mais eficaz, nos anos 1940, o clima espiritual dominante no período imediatamente depois da Revolução de Outubro é um militante de base do Partido Comunista da União Soviética: “Todos nós jovens comunistas crescemos acreditando que o dinheiro tinha sido eliminado de uma vez por todas [...]. Se ressurgisse o dinheiro, não ressurgiriam também os ricos? Não nos encontrávamos em um terreno escorregadio que nos levava de volta ao capitalismo?” (4).

As causas da catástrofe da guerra eram a corrida pela conquista das colônias, dos mercados e das matérias-primas, a busca de lucro, em última análise a auri sacra fames (maldita fome de ouro), e portanto o “comunismo de guerra” não era apenas sinônimo de justiça social mas também era a garantia de que não mais se verificariam tragédias desse gênero. Era um clima que certamente não se restringia à Rússia. Em 1918, o jovem Ernst Bloch (5) tinha como expectativa, na onda da Revolução de Outubro, o advento de um mundo de uma vez por todas livre de “qualquer economia privada”, de qualquer “economia monetária” e, com isso, da “moral mercantil que consagra tudo o que de pior existe no homem”.

Segundo o Manifesto do Partido Comunista, os “primeiros movimentos do proletariado” são frequentemente caracterizados por reivindicações em nome de “um ascetismo universal e um tosco igualitarismo”; de outro lado, não há “nada mais fácil do que dar ao ascetismo cristão uma mão de verniz socialista” (6). É exatamente o que ocorre na Rússia revolucionária. No entanto, convém logo acrescentar que o fenômeno tão eficazmente descrito por Marx e Engels possui uma extensão temporal e especial bem superior àquela por eles sugerida. Ainda no século 20, e inclusive no âmbito dos movimentos que adotam o materialismo histórico e o ateísmo, encontramos confirmada a regra pela qual as grandes revoluções populares, os levantes de massa das classes subalternas tendem a estimular um populismo espontâneo e ingênuo que, ignorando totalmente o problema do desenvolvimento das forças produtivas, tem como expectativa, ou enaltece,a redenção daqueles que ocupam o último degrau da hierarquia social, a redenção dos pobres e dos “pobres em espírito”.

Gramsci se torna alheio a essa tendência já em seus primeiros escritos.

2. A dissolução da Assembleia Constituinte como “episódio de liberdade”

Poucas semanas depois de ter reverenciado a “revolução contra O capital”, em um artigo publicado em Il Grido del popolo (O Grito do povo), de 26 de janeiro de 1918, Gramsci justifica a dissolução da Assembleia Constituinte determinada pelos bolcheviques e pelos socialistas revolucionários. Trata-se de uma medida que se constitui em “um episódio de liberdade apesar das formas externas que fatalmente teve que assumir”, apesar “da aparência violenta” (7).

Como é notório, diferente e oposta foi a atitude assumida por Rosa Luxemburgo (8), que polemizando com a viragem considerada autoritária ou ditatorial da Revolução Russa enalteceu a liberdade como “liberdade de quem pensa de modo diferente”. Apesar de sua característica eloquência, que a tornou famosa, essa tomada de posição não é em nada convincente. Geralmente, as grandes revoluções provocam um conflito entre a cidade e o campo. As massas urbanas protagonistas da derrocada do Antigo regime e que suportaram o peso e os sacrifícios da luta são muito pouco inclinadas a ceder o poder às massas do campo, que desempenharam um papel secundário no processo revolucionário e sobre as quais a influência do regime derrubado continua a ser sentida.

É uma dialética que se manifesta na primeira revolução inglesa e no ciclo revolucionário francês em seu conjunto. No que se refere a este último, a vitória dos jacobinos é claramente a vitória da cidade, de Paris, não apenas contra o campo católico e tradicionalista da Vendeia, mas também contra as áreas da província representadas pelos girondinos. Em 1848, ao contrário, é o campo que obtém a vitória: disso provém uma reação que resulta na instauração da ditadura bonapartista. Mesmo em 1871 a derrota da Comuna de Paris parece pavimentar caminho para a restauração bourbônica ou para uma desemancipação política das massas populares obtida mediante o retorno da discriminação censitária aberta ou graças à introdução do voto plural em favor das elites (9).

Dados esses precedentes – e tendo presentes o recrudescimento da guerra, a intensidade do confronto entre os que estavam decididos a continuá-la, ou a novamente decretá-la, e os que queriam colocar-lhe um fim de qualquer forma, bem como o papel internacional da Entente*** decidida a impedir de todos os meios a “deserção” da Rússia –, é fazendo de tudo para demonstrar que a vitória da Assembleia Constituinte teria significado a consolidação da democracia, mais do que o retorno do poder czarista, ou mais provavelmente o advento de uma ditadura militar (apoiada nos “aliados” da Entente).

São os anos em que por toda parte a mobilização total tornou precário o respeito à legalidade mesmo no que se refere aos organismos representativos. Mesmo antes de reverenciar a Revolução de Outubro e de apoiar a dissolução da Assembleia Constituinte, Gramsci entrou em uma dura polêmica com Leonida Bissolati que, no Parlamento e na bancada do governo, aos quais havia ascendido graças a seu fervoroso intervencionismo, não tinha hesitado em ameaçar os deputados considerados derrotistas ou não suficientemente belicistas: “Para a defesa do país, eu estarei pronto a abrir fogo sobre todos vocês!” (10). São os anos em que, inclusive nos EUA, embora posicionados em uma distância segura do epicentro do conflito, mesmo depois do fim da guerra (mas agora com os olhos voltados ao “perigo” que representava a Rússia revolucionária), a assembleia legilativa do estado de Nova Iorque expulsa os representantes socialistas nela eleitos, embora o partido socialista fosse uma organização perfeitamente legal (11). Não se vê por que ao partido bolchevique (que viveu a experiência da deportação para a Sibéria de seus deputados contrários à guerra) devesse ser negado o “direito” de recorrer – com o fim de salvar a revolução e impedir a guerra para sempre – a medidas semelhantes àquelas delineadas ou colocadas em ação, em circunstâncias muito menos dramáticas, pelos países liberais em função da continuação a todo custo da mobilização total e da guerra, ou da luta contra o perigo do contágio revolucionário. Ainda mais que, se no Ocidente são atingidos, ou ameaçados de ser atingidos, por medidas excessivas os órgãos que personificam de modo exclusivo o princípio de legitimidade, na Rússia soviética a dissolução da Assembleia Legislativa é só um momento do confronto entre dois princípios de legitimidade que, na prática, se enfrentam desde as jornadas de fevereiro. Gramsci menciona este último fato quando assinala o contraste entre “Constituinte e Soviete” (assim repercute o título do artigo): a revolução está exaustivamente buscando “as formas representativas por meio das quais a soberania do proletariado deva ser exercida” (12).

3. Os bolcheviques enquanto “aristocracia de estadistas”

O alheamento de Gramsci em relação ao doutrinarismo é confirmado de modo estrepitoso pelo editorial por ele publicado em L’Ordine Nuovo de 7 de junho de 1919. Um dos temas centrais, ou talvez o tema central, desse artigo é a construção do Estado na Rússia soviética. Atenção, estou falando de construção do Estado e não de extinção do Estado, como gostaria um certo marxismo-leninismo mais ou menos ortodoxo. Nas palavras de Gramsci: “A revolução é esta e não uma grandiloquência vazia da retórica, quando se consubstancia num tipo de Estado, quando se torna um sistema organizativo do poder” (13).

Justamente por tal propósito se revela a grandeza dos bolcheviques. Primeiro, realizando e depois defendendo a Revolução de Outubro, eles salvaguardaram a nação e o Estado russos da desagregação e da balcanização que se delinearam em consequência da derrota bélica e da ruína do Antigo regime. Gramsci presta homenagem a Lênin como o “maior estadista da Europa contemporânea” e aos bolcheviques como “uma aristocracia de estadistas que nenhuma outra nação possui”. Esses tiveram o mérito de colocar um fim ao profundo abismo da miséria, da barbárie, da anarquia, da desagregação” aberto “por uma longa e desastrosa guerra”, salvando a nação, “o gigantesco povo russo”, e conseguiram “soldar a doutrina comunista à consciência coletiva do povo russo”.

Colocando-se em uma relação de descontinuidade, mas também de continuidade, com a história do seu país, os bolcheviques manifestam sim uma “consciência de classe”, mas ao mesmo tempo desempenham uma função nacional: eles conseguem “conquistar para o novo Estado a maioria leal do povo russo” e construir “o Estado de todo o povo russo”. Nem por isso se resigna o imperialismo, que continua com a sua política de agressão. Porém: “O povo russo todo se levantou […]. Municiou-se por completo para a sua Valmy” ****. O partido comunista inspirado por uma “consciência de classe” é de fato chamado a comandar a luta pela independência nacional, imitando assim os jacobinos (14).

É um texto extraordinário por várias razões. Vemos aqui os protagonistas da luta pela construção, sobre as ruínas da sociedade burguesa, de um sistema que se dedica a arruinar o Estado e as identidades nacionais, se revelarem como os autores da salvação do Estado e da nação contra o ataque desencadeado pelas classes exploradoras da Rússia e do mundo inteiro! O balanço realizado por Gramsci em 1919 é confirmado depois de mais de 80 anos de distância da historiografia atual. Passamos a palavra para Nicolas Werth (que à sua época foi um dos editores do Livro Negro do Comunismo): “Sem dúvida, o êxito dos bolcheviques na guerra civil deveu-se, em última análise, à sua extraordinária capacidade de ‘construir o Estado’, capacidade que, no entanto, faltava a seus adversários.” (15).

Nesse sentido, os bolcheviques são realmente uma “aristocracia de estadistas”, os quais, no entanto, são animados por uma teoria em franca contradição com a sua práxis; é a práxis que se revela mais lúcida, mas para encontrar uma teoria à altura de tal práxis é preciso fazer referência a Gramsci. Este argumenta do modo que vimos em Bloch (16), o qual, no mesmo período, fica, como sabemos, na expectativa – com a viragem iniciada com a Revolução de Outubro – não apenas da extinção de “qualquer economia privada”, de qualquer “economia do dinheiro” e da “moral mercantil que consagra tudo o que de pior existe no homem”, mas também na expectativa da “transformação do poder em amor.”.

Desde os seus primeiros textos Gramsci revela uma visão mais realista da sociedade pós-capitalista a ser construída, e uma tendência à desmessianização do marxismo. Isso se confirma pelo apoio que ele de imediato fornece à NEP, agindo em franca contratendência em relação a uma leitura muito difundida tanto pela esquerda quanto pela direita que – embora com um julgamento de valor oposto – interpretava a viragem que ocorreu na Rússia soviética como um retorno ao capitalismo.

4. Um fenômeno “nunca visto na história”

Encontramos a formulação teoricamente mais madura do discurso gramsciano sobre a Nova Política Econômica na conhecida e polêmica carta ao PCUS de 14 de outubro de 1926: a realidade da URSS nos coloca diante de um fenômeno “nunca visto na história”; uma classe politicamente “dominante” vem “como um todo” a se encontrar “em condições de vida abaixo de determinados elementos e estratos da classe dominada e submissa.”. As massas populares que continuam sofrendo uma vida de privações ficam desnorteadas pelo espetáculo do “nepman ascendente que tem à sua disposição todos os bens da terra”; e, no entanto, isso não deve se constituir em motivo de escândalo ou de repulsa, porque o proletariado, da mesma forma que não pode conquistar o poder, também não pode mantê-lo se não é capaz de sacrificar interesses particulares e imediatos em detrimento dos “interesses gerais e permanentes da classe” (17). Aqueles que entendem a NEP como sinônimo de retorno ao capitalismo identificam erroneamente grupo economicamente privilegiado e classe politicamente dominante.

É válida a distinção aqui formulada? De volta de uma viagem a Moscou em 1927, Walter Benjamin (18) assim resume as suas impressões: “Na sociedade capitalista poder e dinheiro se tornaram grandezas possíveis de se avaliar. Qualquer dada quantidade de dinheiro convertível em uma porção bem definida de poder e o valor de troca de cada poder são uma entidade calculável (...). O Estado soviético interrompeu essa osmose de dinheiro e poder.

Obviamente, o Partido reserva a si mesmo o poder, mas o dinheiro ele o deixa ao homem da NEP.”.

Este último, no entanto, é exposto a um “terrível isolamento social”. Mesmo para Benjamin, não há coincidência entre riqueza econômica e poder político.

Algumas semanas depois, Gramsci foi pego pelas garras da polícia fascista. Apesar da difícil situação, ele não poupa esforços para procurar o maior número possível de livros e revistas que lhe permitissem continuar a seguir os progressos do país nascido da Revolução de Outubro. É uma questão de vital importância: “se não consigo obter o material sobre a URSS que pedi” – escreve em 16 de novembro de 1931 em uma carta a Tania –, “todos os meus hábitos intelectuais serão abruptamente interrompidos e as minhas condições consideravelmente agravadas por essa interrupção.” (19).

Imediatamente chama a atenção de Gramsci o primeiro plano quinquenal soviético. O processo de reconstrução e de desenvolvimento programado da economia soviética demonstra que um novo sistema social é possível! Pode-se finalmente superar a fase do “coletivismo da miséria, do sofrimento” imposta pela catástrofe da guerra. Mas o lançamento do plano quinquenal tem também grande importância no plano filosófico: do mesmo modo que a “revolução contra O capital”, também o desenvolvimento econômico e industrial da Rússia soviética é a prova de que, bem longe de estimular “fatalismo e passividade”, na realidade, “a concepção do materialismo histórico (...) dá origem ao florescimento de iniciativas e empreendimentos que surpreendem muitos críticos.” (20).

5. A URSS ameaçada por uma “guerra de extermínio”

A superação do “coletivismo da miséria, do sofrimento” deve ser considerada de modo muito positivo, mesmo por razões de política internacional: não é de menos o desaparecimento da ameaça que pesa sobre a Rússia soviética. O seu perseverante isolamento diplomático a torna vulnerável: será renovada a intervenção contrarrevolucionária do Ocidente capitalista? E novamente Gramsci busca nos jornais e revistas confirmações ou negações de suas preocupações e suas angústias. A Nova Antologia publica uma série de artigos sobre o papel internacional do “Império inglês”, que têm “por objetivo pregar o isolamento moral da Rússia (ruptura das relações diplomáticas) e a formação de uma Frente Única antirrussa como preparação para a guerra.”.

Sim, esses artigos, infelizmente – talvez influenciados por importantes personalidades e ambientes políticos britânicos –, procuram “transmitir a certeza de que uma guerra de extermínio seja inevitável entre a Inglaterra e a Rússia, guerra na qual só pode ocorrer de a Rússia ser derrotada.” (21).
Estamos entre o fim dos anos 1920 e o início dos anos 1930. Com o advento do Terceiro Reich, a Alemanha é claramente identificada como perigo principal: “depois das demonstrações de brutalidade e de assombrosa humilhação da ‘cultura’ alemã dominada pelo hitlerismo”, é hora de tomar conhecimento do quanto seja “frágil a cultura moderna” (22). O anticomunismo raivoso do “partido hitleriano” não tardará a se fazer sentir também no plano internacional. Sim, “é sempre a política interna que dita as decisões, bem entendido, de um país determinado. Na verdade, é claro que a ação de um país, devido a razões internas, se tornará ‘externa’ para o país que recebe a iniciativa.” (23).

Não é difícil perceber contra quem estão dirigidas as miras agressivas da Alemanha nazista. Não apenas os Cadernos, mas também as Cartas do cárcere, testificam até o fim um simpático interesse pelo país nascido da Revolução de Outubro. Não são negligenciados nem mesmo os mínimos aspectos: isso é demonstrado pelas referências positivas (nas cartas ao filho Delio do verão e de novembro de 1936) ao “jornal dos pioneiros” e à “jovem e valorosa filologia soviética”, à “literatura recente” e “criticamente elaborada” sobre Pushkin e Gogol (24). E é também de 1936, mesmo com o mês indefinido, uma carta a Giulia na qual, como ponto de influência da educação do filho Delio, é ressaltado o fato de que ele, ao contrário do neto, viveu não “a vida mesquinha e difícil da um país da Sardenha”, mas sim a vida de “uma cidade mundial onde confluem imensas correntes de cultura e de interesses e sentimentos que atingem até os vendedores de cigarro de rua.” (25).

Faltam poucos meses para o final. Depois de, até o fim, ter-se recusado a emitir o pedido de ajuda, ainda em 25 de março de 1937, um mês antes da morte que ele sente se aproximar, Gramsci comunica a Sraffa, para que as transmita aos companheiros de partido, as suas ideias sobre a melhor maneira de conduzir a luta política, e, por outro lado, o encarrega de preparar uma minuta do pedido de autorização para sua viagem ao exterior (26): espera chegar à URSS e a Moscou, a cidade descrita em termos lisonjeiros na carta a Giulia do ano anterior. Portanto, não apenas os textos escritos, mas também os depoimentos e o comportamento prático, tudo contribui para refutar a tese, hoje muito difundida, da ruptura final de Gramsci com a URSS e o movimento comunista.

Certamente, a clara tomada de posição em favor da Rússia soviética em Gramsci nunca acaba em trivial apologética e em autoengano. Estamos diante de uma atitude crítica no sentido mais elevado do termo que, bem longe de ser sinônimo de frieza e distância, é expressão de ansiosa preocupação e profundamente simpática com a qual é seguido o fato que surgiu do Outubro bolchevique. Um exemplo pode lançar luz sobre o tipo de abordagem preferida por Gramsci. Nos anos 1930 o tema dos dois totalitarismos se difunde a ponto de fazer eco em Trotsky e em Bukharin, os quais colocam lado a lado, sob a categoria de “regime totalitário” (ou de “ditadura totalitária”) e de “Estado total onipotente”, a URSS staliniana e a Alemanha hitleriana (27). Não tanto os Cadernos do Cárcere que, certamente, contestam a autorrepresentação da URSS como “ditadura do proletariado”, ou como “democracia autêntica”, e falam, ao contrário, de “cesarismo”, mas com a preocupação de distinguir o cesarismo “progressivo” do “regressivo”, encarnado no século 20 por Mussolini e por Hitler (28).

Em outras palavras, a crítica de Gramsci não resulta nunca no “puro derrotismo” que os Cadernos do Cárcere condenam em Boris Souvarine. Este, dirigente do primeiro escalão do Partido Comunista Francês e da III Internacional, e depois crítico cada vez mais virulento do bolchevismo e da Rússia soviética, a partir de 1930 começa a publicar o seu requisitório em A Crítica social. Gramsci segue com atenção essa revista, da qual reprova a incapacidade de compreender a trágica dificuldade do processo de construção de um novo sistema social. Aos olhos consternados de Furet (29), Souvarine “pertence àquela categoria de intelectuais que demonstram uma alegria sarcástica de ter razão contra o maior número de pessoas.”. É precisamente esse o alvo dos Cadernos do Cárcere: o pedantismo: “Lugares-comuns de modo abundante, ditos com a cara de pau de quem está bem satisfeito consigo mesmo (...). Trata-se, é verdade, de trabalhar a elaboração de uma elite, mas esse trabalho não pode ser separado do trabalho de educar as grandes massas; ou melhor, as duas atividades são em realidade uma única atividade, e é precisamente isso que torna difícil o problema (...); trata-se em suma de ter uma Reforma e um Renascimento contemporaneamente.”.

Em conclusão: “É evidente que não se compreende o processo molecular de afirmação de uma nova civilização que se desenvolve no mundo contemporâneo sem que se tenha compreendido o nexo histórico Reforma/Renascimento.” (30).

Chegamos aqui em um ponto crucial. Aos olhos de Gramsci, somente um filisteu pode se admirar – em seu trabalhoso vir à luz e tomar forma – com o fato de que o novo sistema não pode assumir a lustrosa configuração do mundo que pretende destruir, e que pode contar, por trás de si, com séculos de experiência na gestão do poder. Basta comparar Humanismo/Renascimento, de um lado, e Reforma, de outro, ou, em sentido ideal-tipo, Erasmo e Lutero.

Apesar da rigidez camponesa com a qual inicialmente se apresentam, são a Reforma e Lutero que lançam as bases para a liquidação do Antigo regime e o advento de uma civilização nova e mais avançada e com uma base social bem mais ampla.

É uma atitude similar que precisa ser tomada em relação ao fato histórico iniciado em Outubro de 1917: “Se devesse ser feito um estudo sobre a União [Soviética], o primeiro capítulo, ou mesmo a primeira parte do livro, se deveria justamente desenvolver o material reunido sob esta rubrica ‘Reforma e Renascimento’.” (31). Longe de se constituir em censura com relação aos escritos anteriores, os Cadernos do Cárcere são, em primeiro lugar, um balanço histórico-teórico do extenuante e contraditório processo de construção da “nova ordem”.

Um abismo separa do Diamat (Materialismo Dialético), da União Soviética da época, o pensamento crítico de Gramsci que, de um modo ou de outro, soube assimilar a lição da dialética, mas justamente em virtude de sua superior fineza e maturidade tal pensamento está em condições de compreender as dificuldades e as razões da sociedade e da história que expressaram o Diamat. A Rússia de Stalin precisa proceder do mesmo modo que a Alemanha de Lutero.

6. “Linguagem esópica” e análise do “americanismo”

Mas se é assim, como explicar a intensa e prolongada atenção que, a partir de 1929 – como demonstra uma carta a Tania, de 25 de março daquele ano –, ele dispensa ao “americanismo” e ao “fordismo” (32)? O julgamento equilibrado, e às vezes positivo, exposto com tal propósito pelos Cadernos do Cárcere não é, ao contrário, a confirmação do crescente desinteresse da parte do revolucionário na prisão pelo movimento comunista? Um equívoco de fundo deturpa tal interpretação, além do evidente desejo de adaptação ao clima ideológico hoje dominante, que a inspira. Convém dizer de imediato que as páginas sobre “Americanismo e Fordismo” falam não apenas dos Estados Unidos, mas também da Rússia soviética, e talvez falem mais da Rússia soviética do que dos Estados Unidos. A afirmação pode parecer paradoxal e até arbitrária; então, só resta examinar os textos e o contexto histórico.

Comecemos pelo contexto. Vimos Pierre Pascal reverenciar a Revolução de Outubro como o advento de uma sociedade na qual existem “somente pobres e paupérrimos” e cuja nobreza moral consiste na distribuição mais ou menos igualitária da miséria. Essa visão, marcada pelo desinteresse pelo desenvolvimento das forças produtivas e da riqueza social, traduz um sentimento comum. Depois de sua viagem a Moscou, Benjamin relata: “Nem menos na capital da Rússia existe, malgrado toda “racionalização”, o senso de um valor de tempo. O ‘Trud’, o instituto sindical do trabalho, por meio de cartazes de parede, conduziu (...) uma campanha pela pontualidade (...), ‘Tempo é dinheiro’; para credenciar uma palavra de ordem tão estranha foi feito o uso, nos cartazes, até da autoridade de Lênin. De tanto que uma tal mentalidade é estranha aos russos. Sobre tudo prevalece o seu instinto brincalhão (...).

Se, por exemplo, pelas ruas é rodada a cena de um filme, eles se esquecem de por que e onde vão, se juntam à trupe por horas e chegam ao trabalho atordoados. Na administração do tempo, o russo continuará ‘asiático’ até o último segundo.” (33).

O apelo para racionalizar a produção e compreender que “tempo é dinheiro” custava a abrir caminho, pelo fato de que a visão “asiática” – o que podemos chamar de “asiatismo” – exercia o seu fascínio sobre os populistas, inclinados a se encantarem com o sonho de uma sociedade na qual ninguém tem pressa ou está preocupado em fazer o seu trabalho e a sua tarefa produtiva de modo ordenado.
O “asiatismo” não é certamente partilhado por Lênin que, já em março-abril de 1918, observou: “Em comparação com os trabalhadores das nações mais avançadas, o russo é um mau trabalhador (...). Aprender a trabalhar: eis a tarefa que o poder dos sovietes deve colocar diante do povo em toda a sua amplitude.” (34).

E aprender a trabalhar significava não apenas colocar um fim de uma vez por todas ao absentismo e ao anarquismo no local de trabalho, mas também saber levar em conta “o sistema Taylor”. Mesmo que destinado à exploração no mundo capitalista, ele continha “uma série de riquíssimas conquistas científicas no que diz respeito à análise dos movimentos mecânicos durante o trabalho, a eliminação dos movimentos desnecessários e desordenados, a elaboração dos métodos de trabalho mais racionais, a introdução dos melhores sistemas de registro e controle etc.”.

Era preciso ir à escola dos países mais avançados do Ocidente capitalista: “A república soviética deve a todo custo assimilar tudo o que lhe é valioso das conquistas no campo da ciência e da técnica. A possibilidade de realizar o socialismo será determinada precisamente pelos êxitos que seremos capazes de conseguir com a união do poder soviético e da organização administrativa soviética com os mais recentes avanços do capitalismo.” (35).

É uma tese reafirmada por Lênin, por exemplo em outubro de 1920: “Nós queremos transformar a Rússia de país desfavorecido e pobre em país rico”; para obter esse resultado é preciso “um trabalho organizado”, “um trabalho consciente e disciplinado”, com o fim de assimilar e colocar em prática “as últimas conquistas da técnica”, inclusive evidentemente o taylorismo americano (36). Contra o “asiatismo”, o “americanismo” poderia desempenhar um papel positivo.

Pascal não concorda. Na segunda metade dos anos 1920, ele lamenta que “de um ponto de vista material se está caminhando para a americanização” (entendida como o culto idólatra do desenvolvimento econômico e tecnológico); é verdade, foram obtidos alguns avanços econômicos, mas “à custa de uma enorme exploração da classe operária”. (37). Nessa linha de pensamento, mas com uma atitude mais radical, se encontra, na França, Simone Weil que em 1932 chega à conclusão de que a Rússia tinha como modelo a América, a eficiência, o produtivismo, “o taylorismo”, a subordinação do operário à produção: “O fato de que Stalin, sobre tal questão que se encontra no centro do conflito entre capital e trabalho, tenha abandonado o ponto de vista de Marx, e se deixou seduzir pelo sistema capitalista em sua forma mais perfeita, demonstra que a URSS ainda está bem longe de possuir uma cultura operária.” (38).

São os anos em que a crítica ao “americanismo” se manifesta em autores e círculos de orientação entre si bem diferentes. Em sua visita ao país dos sovietes, entre setembro de 1926 e janeiro de 1927, o grande escritor austríaco Joseph Roth denuncia a “americanização” em curso: “A América é desprezada, isto é, o progresso, o ferro elétrico, a higiene e os aquedutos.”. Em conclusão: “Esta é uma Rússia moderna, que progrediu tecnicamente, com ambições americanas. Esta não é mais a Rússia.”. Irrompeu o “vazio espiritual” até mesmo em um país que inicialmente havia gerado tantas esperanças (39). Deve-se, enfim, ter em mente Martin Heidegger que, em 1935, acusa os Estados Unidos e a União Soviética (e o movimento comunista) de conceberem, do ponto de vista metafísico, o mesmo princípio, baseado no “infame poder da técnica desencadeada” e na “massificação do homem”. E alguns anos depois, em 1942: “O bolchevismo é apenas uma variante do americanismo.” (40).

É um debate no qual se vê participarem também os dirigentes soviéticos, os quais nesse momento tomaram o caminho que gerou a desilusão ou a perplexidade dos populistas. Em 1923, Bukharin declara: “Precisamos juntar o americanismo e o marxismo”. Um ano depois, a esse país – mesmo que tenha participado da intervenção armada contra a Rússia – Stalin parece olhar com tanta simpatia a ponto de transmitir aos quadros bolcheviques um significativo apelo: se querem realmente estar à altura dos “princípios do leninismo” devem saber unir “o impulso revolucionário russo” ao “espírito prático americano”. Como esclarece Stalin em 1932: os Estados Unidos são certamente um país capitalista; no entanto, “as tradições na indústria e na práxis produtiva possuem algo do democratismo, o que não se pode dizer dos velhos países capitalistas da Europa, onde ainda está vivo o espírito senhoril da aristocracia feudal.” (41).

A bem da verdade, a visão que expressa é unilateral: se, na comparação com a Europa, a República norte-americana mostra-se mais democrática no que se refere à relação entre as classes sociais, o resultado se inverte se levamos em consideração as relações entre brancos e negros (em sua maioria inseridos nos segmentos inferiores do mercado de trabalho e, mesmo nos EUA de Franklin Delano Roosevelt, privados não apenas dos direitos políticos, mas frequentemente também dos direitos civis). Restam estabelecidos dois pontos: em Bukharin e Stalin, “americanismo” e “espírito prático americano” significam desenvolvimento em larga escala das forças produtivas e da grande indústria, um desenvolvimento tornado possível devido à ausência da riqueza parasitária que é herança do Antigo regime; tal “americanismo” e o “espírito prático americano” até mesmo a Rússia soviética deve compreender, empenhada em sair do atraso e em construir o socialismo.

Uma vez reconstruído o contexto histórico, podemos fazer a leitura dos textos. Ao apreciar o “americanismo” (ou alguns de seus aspectos), Gramsci é plenamente coerente com a sua recusa – expressa já no momento em que reverencia a Revolução de Outubro – em identificar o socialismo com o “coletivismo da miséria, do sofrimento”. Os próprios Cadernos do Cárcere é que ressaltam a continuidade do período juvenil, quando apontam que já “L’Ordine Nuovo (...) sustentava um seu ‘americanismo’” (42). Leiamos novamente então esse órgão de imprensa, concentrando-nos em algumas declarações de julho-agosto de 1920: tarefas fundamentais do Conselho de Fábrica, do qual “o operário começa a fazer parte como produtor”, são “o controle da produção” e “a elaboração de planos de trabalho” (43). Mas como cumprir tais tarefas?

“Em uma fábrica, os operários são produtores quando colaboram –, classificados em um modo determinado exatamente pela técnica industrial que (num certo sentido) é independente do modo de apropriação dos valores produzidos –, com a preparação do objeto fabricado.” (44).

Enquanto organismos revolucionários, os Conselhos de Fábrica superam o trade-unionismo economicista, capaz de ver o operário apenas como vendedor da sua força de trabalho empenhado em aumentar o preço dela por meio da organização e da luta sindical, e não como “produtor”; e rejeitam o anarquismo, tradicionalmente inclinado ao ludismo.

Bem compreendido, o “americanismo” é parte integrante do projeto revolucionário, ou pelo menos de um projeto revolucionário que se recusa a equiparar-se ao “coletivismo da miséria, do sofrimento”, pelo qual continuam a ser atacados populistas e pauperistas como Pascal e Weil. Não por acaso, entre outubro e novembro de 1919, L’Ordine Nuovo publica uma série de artigos sobre o taylorismo, examinado, em última análise, a partir da distinção entre as “riquíssimas conquistas científicas” (das quais fala Lênin) e o seu uso capitalista.

Podemos então compreender melhor o caderno especial 22, dedicado a “Americanismo e fordismo”. Leiamos o parágrafo 1: “Série de problemas que devem ser examinados sob essa rubrica geral e um pouco convencional de ‘Americanismo e fordismo’”. Estamos diante de um tema “geral” que remete a uma multiplicidade de problemas e também de países e que é tratado com uma linguagem “convencional”, dada também a necessidade de estar vigilante contra uma possível intervenção da censura fascista.

“Pode-se dizer genericamente que o americanismo e o fordismo resultam da necessidade imanente de se chegar à organização de uma economia programada, e que os vários problemas examinados deveriam ser os anéis da cadeia que marcam a passagem justamente do velho individualismo econômico para a economia programada.” (45).

Aqui se faz referência aos Estados Unidos ou à Rússia soviética? É difícil para o primeiro país falar de “passagem” à “economia programada”. O caderno que estamos analisando termina (46) com a afirmação de por que nos EUA, contrariamente aos mitos, não apenas a luta de classe está bem presente, como também ela se configura como a “mais descontrolada e feroz luta de uma parte contra outra” (47). Mas retomemos a leitura do parágrafo inicial:

“Que uma tentativa progressiva seja iniciada por uma outra força traz consequências fundamentais: as forças subalternas, que deveriam ser ‘manipuladas’ ou racionalizadas segundo os novos fins, necessariamente resistem. Mas resistem também alguns setores das forças dominantes, ou pelo menos aliados às forças dominantes.” (48).

Portanto, fordismo e americanismo são combatidos a partir de pontos de vista e de forças sociais diversas e contrapostas. De um lado, há os “lugares-comuns”, como o tão querido de Guglielmo Ferrero, que enaltece a Europa guardiã da “qualidade” e destina o seu desprezo aos EUA grandes defensores da “quantidade” (49).

Na realidade, a “substituição pela atual classe plutocrática, de um novo mecanismo de acumulação e distribuição do capital financeiro fundado diretamente na produção industrial” (50) é vista com suspeita e hostilidade (numa Europa em que ainda se sente a presença de classes ligadas ao Antigo regime e beneficiárias de uma riqueza exclusivamente parasitária). Então, em Gramsci é clara a condenação do “americanismo”, que “é cômico antes de ser estúpido”. É uma comicidade que aparece com particular evidência em um filósofo como Gentile, incansável na sua exaltação retórica da ação e da práxis, mas igualmente pronto a condenar como “mecanicismo” a transformação real do mundo do qual é protagonista o desenvolvimento industrial promovido pelo “americanismo” e pelo taylorismo (51).

7. Marxismo ou populismo?

Até aqui tudo está muito claro. Mas quais “forças subalternas” se opõem a uma “tentativa progressiva” ou fundamentalmente progressiva, e que ao fazerem isso, por um lado, “resistem” a uma iniciativa da burguesia e, por outro, se arriscam a fazer alianças, ou, seja como for, correm o risco de serem confundidas com as elites europeias reacionárias? Somos novamente levados a pensar em personalidades como Pascal e Weil ou nos “anarquistas” críticos da linha dos Conselhos de Fábrica inspirados em Gramsci (52).

O caderno sobre “Americanismo e fordismo” termina com uma dura polêmica contra Ferrero, “pai espiritual de toda ideologia estúpida sobre o retorno ao artesanato” (53). Mas tal nostalgia era nutrida não apenas por Ferrero; a ele faz companhia não exclusivamente aquele André Siegfried que “compara o operário taylorizado americano ao artesão da indústria de luxo parisiense” (54). Não, de particular importância é a tomada de posição de Weil. Com uma formação marxista sobre os ombros, e estimulada por seu vivo interesse pela condição operária, colaborou com jornais de inspiração socialista ou comunista (La Révolution prolétarienne “A Revolução proletária”), se empenhou ativamente no sindicato, adquiriu uma experiência de trabalho em fábrica. Nos anos em que Gramsci insiste no potencial de emancipação intrínseco à grande fábrica, e, portanto, na necessidade do movimento operário e comunista de contar com o taylorismo e o fordismo, a filósofa francesa chega a uma conclusão contrária: é “o regime próprio da produção moderna, isto é, a grande indústria” que deve ser colocada em discussão; “com aquelas prisões industriais que são as grandes fábricas pode-se fabricar apenas escravos, e não trabalhadores livres.” (55). Como fundamento para o seu empenho em “valorizar a fábrica” e a grande indústria, Gramsci remete corretamente a O Capital (56); com a mesma lógica, depois de ter averiguado como intrinsicamente arbitrárias são a “produção moderna” e a “grande indústria”, Weil condena Marx como profeta de uma “religião das forças produtivas”, não diferente da burguesia (57). Poderia se dizer que, aos olhos da filósofa francesa, o autor de O Capital tinha sido acometido de um “americanismo” ante litteram (antes do seu tempo).

Voltemos a Gramsci. Nós o vimos criticar o “antiamericanismo” pregado na Europa por nostálgicos se não do Antigo regime, então da sociedade pré-industrial. Mas isso é apenas uma vertente da polêmica. A outra tem como objetivo a visão que retrata o capitalismo estadunidense como um sistema caracterizado pela “homogeneidade social” (58). Na realidade, é justamente nos EUA que, como sabemos, a luta de classe se manifesta com particular brutalidade.

A contradição entre operário e capital se liga (em todo caso, na Europa) à contradição entre burguesia industrial de tipo taylorista e fordista, por um lado, e riqueza parasitária e herdeira do Antigo regime, por outro. Eis que então surge a “questão de saber se o americanismo poderia se constituir numa ‘época’ histórica, isto é se poderia determinar um avanço gradual do tipo, examinado em outro lugar, das ‘revoluções passivas’ próprias do século passado, ou se ao contrário representaria apenas a acumulação molecular de elementos destinados a produzir uma ‘explosão’, isto é uma agitação do tipo francês.” (59).

O espectro da revolução ressurgiu no Ocidente. E, por isso, as páginas sobre americanismo e fordismo nos revelam não um Gramsci que se prepara a abandonar a tradição comunista, mas um Gramsci que chama o movimento comunista a rejeitar de uma vez por todas as nostalgias pré-industriais de cunho populista e pauperista e a se pronunciar por um marxismo livre de qualquer vestígio messiânico. É também por isso que os Cadernos do Cárcere revelam ainda hoje uma extraordinária vitalidade. Alguns processos ideológicos merecem particular atenção: 1) O extraordinário sucesso do qual desfrutou, e ainda desfruta, na esquerda ocidental, um filósofo como Heidegger, defensor de um anti-industrialismo e de um antiamericanismo (que é ao mesmo tempo um antissovietismo), por Gramsci considerados “cômicos” e “estúpidos”. 2) Era muito difundida na esquerda, sobretudo na época de 1968, a tendência que entendia o pensamento de Gramsci como sinônimo de subordinação ao produtivismo capitalista, do mesmo modo que, três décadas antes, Simone Weil havia tachado Marx de profeta de uma “religião das forças produtivas” fundamentalmente burguesas. 3) Nos dias atuais, enquanto da França – apesar da crise e da recessão – difunde-se o culto ao “decrescimento” tão querido de Serge Latouche, em um país como a Itália a esquerda denominada radical parece às vezes contestar a alta velocidade enquanto tal. Investigar de quando em quando o impacto ecológico e o custo econômico de uma linha ferroviária é legítimo e até necessário; é, ao contrário, sinônimo de ludismo rechaçar a alta velocidade enquanto tal. 4) Enquanto mistifica o Tibet lamaísta, a esquerda ocidental vê com grande desconfiança, ou com franca hostilidade, um país como a República Popular da China, nascida de uma grande revolução anticolonial e protagonista de um prodigioso desenvolvimento econômico, que não apenas retirou várias centenas de milhões da miséria e da ruína, mas que também finalmente começa a colocar em discussão o monopólio ocidental da tecnologia (e, portanto, as bases materiais da arrogância imperialista). E como os populistas dos anos 1920 e 1930 reprovavam como expressão de “americanismo” o desenvolvimento industrial da Rússia soviética, do mesmo modo hoje não são poucos os que, na esquerda, tacham a China atual como uma cópia mal feita do capitalismo estadunidense.

Não há dúvida: está longe de o populismo estar morto. Mas é justamente por isso que a esquerda necessita mais do que nunca do ensinamento de Antônio Gramsci.

Notas

(1) GRAMSCI. CF, 1982, p. 513-14.
(2) In: FURET, 1995, p. 129.
(3) TROTSKY, 1988, p. 854 e 838.
(4) In: FIGES, 2000, p. 926.
(5) BLOCH, 1971, p. 298.
(6) MARX, K.; ENGELS, F. MEW, 4, 1955-1989, p. 489 e 484.
(7) CF, p. 602-603.
(8) LUXEMBURGO, 1968, p. 134.
(9) LOSURDO, 1993, cap. I, § 9.
(10) CF, p. 408-409 e nota do organizador.
(11) In: LOSURDO, 1993, cap. V, § 4.
(12) CF, p. 602.
(13) GRAMSCI. ON, 1987, p. 57.
(14) ON, p. 56-58 e 60.
(15) WERTH, 2007, p. 26.
(16) BLOCH, 1971, p. 298.
(17) GRAMSCI. CPC, 1971, p. 129-30.
(18) BENJAMIN, 2007, p. 40-41.
(19) GRAMSCI. LC, 1996, p. 494.
(20) GRAMSCI. Q, 1975, p. 893 e 2763-2764.
(21) IDEM, p. 190 e 2547.
(22) IDEM, p. 2326.
(23) IDEM, p. 1657.
(24) LC, p. 779 e 786.
(25) IDEM, p. 794.
(26) VACCA, 2012, p. 320-21.
(27) LOSURDO, 2008, p. 17-20 e cap. 2, p. 88-92 e 76-81.
(28) Q, p. 1194.
(29) FURET, 1995, p. 133.
(30) Q, p. 891-892 e 2763.
(31) IDEM, p. 893.
(32) LC, p. 248.
(33) BENJAMIN, 2007, p. 34-35.
(34) LO, p. 27; 231.
(35) IDEM, p. 27; 231.
(36) IDEM, p. 31; 283-284.
(37) PASCAL, 1982, p. 34 e 33.
(38) WEIL, 1989-91, vol. 1, p. 106-107.
(39) Cf. LOSURDO, 2013, cap. VII, § 3.
(40) HEIDEGGER, 1975, vol. 40, p. 40-41 e vol. 53, p. 86.
(41) In: LOSURDO 2007, cap. III, § 2.
(42) Q, p. 72.
(43) ON, p. 622 e 607-608.
(44) IDEM, p. 624.
(45) Q, p. 2139.
(46) § 16.
(47) Q, p. 2181.
(48) IDEM, p. 2139.
(49) § 16; IDEM, p. 2180.
(50) § 1; IDEM, p. 2139-2140.
(51) IDEM, p. 635 e 2152-2153.
(52) ON, p. 609.
(53) Q, p. 2180.
(54) IDEM, p. 634.
(55) WEIL, vol. 2, 1989-1991, p. 32 e 104.
(56) Q, p. 1137-1138.
(57) WEIL, vol. 2, 1989-1991, p. 36.
(58) Q, p. 2181.
(59) IDEM, p. 2140.

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Sobre o autor

Domenico Losurdo é professor emérito de História da Filosofia na Universidade de Urbino, Itália. Presidente da Sociedade Internacional Hegel-Marx para o pensamento dialético. Tradução de Maria Lucília Ruy

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