Salim Vally
Tradução / Como um intelectual público revolucionário, ativista e ex-prisioneiro político, Neville Alexander foi um dos mais importantes teóricos da relação entre racismo e capitalismo que surgiram durante a luta contra o apartheid sul-africano. Suas atividades e ideias continuam sendo um ponto de referência para alguns dos principais debates da história contemporânea, não apenas na África do Sul, mas internacionalmente.
Um corajoso oponente do sistema de apartheid e que passou a rejeitar a trajetória neoliberal iniciada pelo establishment do governo pós-apartheid do Congresso Nacional Africano (CNA) na década de 1990, Alexander sempre foi reflexivo e humilde. Mas ele nunca vacilou em sua própria autodescrição como um marxista não dogmático, pan-africanista e internacionalista.
Lutando contra o apartheid
Alexander nasceu em Cradock, no Cabo Oriental da África do Sul, em 1936. Seu pai era David James Alexander, um carpinteiro, e sua mãe, Dimbiti Bisho Alexander, era professora. Ela estava entre um grupo de escravos etíopes que foram libertados e colocados sob os cuidados de missionários em Cradock. Alexander foi para uma escola local administrada por freiras alemãs.
Em 1953, ele se mudou para a Cidade do Cabo para se formar em história e alemão na Universidade da Cidade do Cabo. Lá, ele foi influenciado pela (e mais tarde se juntou a) Teachers’ League of South Africa e o Non-European Unity Movement, um grupo que inspirado por ideias trotskistas. Ele também ajudou a fundar a Cape Peninsula Students Union e pertenceu à Society of Young Africa com figuras como Archie Mafeje.
Uma bolsa o enviou para a Universidade de Tübingen, na Alemanha, onde obteve o doutorado aos 26 anos. Sua estadia aí durou de outubro de 1958 a julho de 1961. Durante esse período, ele se juntou à Liga dos Estudantes Socialistas Alemães e foi intimamente associado a estudantes argelinos e cubanos que eram ativos em suas lutas de libertação.
Alexander também se envolveu no sindicato dos metalúrgicos alemães, apoiando os trabalhadores migrantes italianos. Como lembrou mais tarde, ele discursou em comícios e distribuiu panfletos direcionados aos trabalhadores nos portões de plantas industriais, incluindo as fábricas da Mercedes nas proximidades de Stuttgart.
Seu retorno à África do Sul em 1961 ocorreu logo após o Massacre de Sharpeville em março do ano anterior. Junto com outros, ele viu a necessidade da luta armada contra o regime do apartheid após o massacre. Com ativistas namibianos e sul-africanos, ajudou a estabelecer a Frente de Libertação Nacional (NLF). Seus membros incluíam o falecido juiz Fikile Bam e Dulcie September, que se tornou representante do CNA na França, onde foi assassinada em 1988.
Em julho de 1963, ele foi preso com outros dez membros da NLF (seis homens e quatro mulheres), todos na faixa dos vinte anos. Após um longo julgamento, eles receberam sentenças entre cinco e dez anos. Alexander ficou preso por dez anos, de 1964 a 1974, na área de isolamento de Robben Island, ao lado de Nelson Mandela e outros.
Após sua libertação da prisão, ele foi colocado sob uma ordem de proibição, uma forma de prisão domiciliar, por cinco anos. Em 1977, o líder do Black Consciousness Movement (BCM), Steve Biko, tentou se encontrar clandestinamente com Alexander na Cidade do Cabo para discutir arranjos para reunir todos os movimentos de libertação, incluindo suas formações armadas. Esta iniciativa foi levada a cabo pelo BCM e pela NLF. Biko e Alexander deveriam viajar para o exterior para se encontrar com a liderança exilada das organizações de libertação.
No entanto, Alexander não conheceu Biko. Ambos estavam sob vigilância e a organização de Alexander sentiu que a visita não programada de Biko era muito arriscada e prematura. Biko foi preso em seu caminho de volta para o Cabo Oriental em um posto de controle policial aleatório: ele foi reconhecido e depois morto na prisão. Alexander mais tarde considerou esse encontro perdido com Biko como “um dos momentos mais trágicos” de sua vida.
Limitações do nacionalismo
Após a eleição do governo liderado pelo CNA em 1994, muitas das ideias prescientes de Alexander sobre as limitações do nacionalismo passaram a ter um significado ainda maior na luta pela libertação. Isso foi especialmente verdadeiro para as comunidades da classe trabalhadora mais marginalizadas socialmente, tanto urbanas quanto rurais.
A orientação de Alexander para o governo pós-apartheid estendeu as ideias de revolucionários africanos como Frantz Fanon e Amílcar Cabral, que tinham dúvidas semelhantes sobre a ascensão de uma elite nacional compradora em outras partes da África. Alexander se opôs à aceitação da ideologia do neoliberalismo pelo estado pós-apartheid, apontando seus efeitos perniciosos sobre os pobres.
Não contente em apresentar uma crítica, ele buscou, por meio de suas ideias e práticas, demonstrar as possibilidades para a organização de uma sociedade anticapitalista alternativa. Alexander desenvolveu um corpo de escritos abrangendo questões em filosofia política e social, educação e cultura, história e vida ética, todos os quais prefiguravam tal sociedade alternativa e as estratégias e práticas necessárias para sua realização.
Uma de suas contribuições intelectuais mais importantes foi um conjunto de ideias sobre capitalismo racial, um termo que ele usou pela primeira vez em um discurso de 1983 para evidenciar a relação entre capitalismo e apartheid na África do Sul. Ele havia formulado essas ideias como um resultado direto dos duros debates que teve com seus companheiros prisioneiros na Robben Island, especialmente os líderes do ANC, Nelson Mandela e Walter Sisulu.
Esses debates esclareceram suas dúvidas sobre o caminho que o CNA provavelmente tomaria no período pós-apartheid. Tais dúvidas o levaram a produzir clandestinamente sua obra seminal, One Azania, One Nation: The National Question in South Africa (Uma Azânia, uma nação: a questão nacional na África do Sul), que ele publicou em 1979 sob o nome de guerra No Sizwe.
Os argumentos e conceituações de Alexander sempre visaram fortalecer a luta contra o regime capitalista racial opressivo e explorador. Ele renegou concepções liberais de democracia cujo efeito, ele acreditava, era manter e fortalecer os elementos fundamentais do capitalismo racial, como evidenciado na forma assumida pelo estado pós-apartheid.
Em seu livro de 1985, Sow the Wind (Semear o vento), Alexander via assim sua contribuição à luta pela libertação nacional:
O foco permanente da minha contribuição está em assuntos como a ligação entre racismo e capitalismo; a necessidade e a inevitabilidade de soluções socialistas para os nossos problemas, daí a necessidade crucial de garantir a liderança da classe trabalhadora na nossa luta; a importância da construção da nação para eliminar o preconceito étnico e racial; a ligação entre a libertação das mulheres, a libertação nacional e a emancipação de classe; a necessidade vital de iniciar e sustentar práticas educacionais e culturais hoje que irão sistematicamente e inexoravelmente minar e combater as práticas divisivas e exploradoras que derivam da busca dos interesses das classes dominantes em uma sociedade de apartheid.
Como era de se esperar, sua prática política e seus escritos também foram alvo de contestação, já que seu pensamento representava uma perspectiva fortemente socialista — uma perspectiva irreconciliável com certas vertentes do movimento de libertação que favoreciam uma combinação de perspectivas liberais e nacionalistas.
Mistificações raciais
Alexander teve uma visão de longo prazo da história, e isso alimentou seu consistente otimismo. Ele estava preocupado em refutar o que chamou de “propagação de falsos nacionalismos, cujo principal propósito é dissipar a força da luta de classes desviando-a para canais que irão nutrir as classes dominantes”.
Como as relações sociais eram mistificadas na forma de “relações raciais”, ele insistia, havia uma necessidade de “iluminar o caráter da base real (socioeconômica) da desigualdade e as formas reais (ideológicas) nas quais ela é expressa”, em busca de uma libertação genuína e do fim do capitalismo do apartheid.
Para Alexander, embora o racismo seja muito real, “raça” como um conceito biológico não é. Embora ele considerasse importante expor o “absurdo da raça”, não via isso como um fim em si mesmo. Tal esclarecimento era tanto uma questão de como a luta política deveria ser processada quanto uma questão de desconstruir ideias racistas.
Para Alexander, as ideias ofuscantes que ele criticou tiveram implicações profundas para as estratégias a serem adotadas contra o regime do apartheid. Nesse espírito, ele desafiou formas de organização racial baseadas na ideia de que a raça em si era um fenômeno real. Em sua visão, essa abordagem capitulou frente uma construção social cujos efeitos eram perniciosos e contraditórios em relação a qualquer concepção séria de nacionalidade ou “consciência nacional”.
Em 1983, Alexander fez um discurso com o título “Nação e Etnia na África do Sul” para a reunião do Fórum Nacional em Hammanskraal, uma cidade perto da capital administrativa da África do Sul, Pretória. Estimulado por um chamado de ativistas da Consciência Negra, o Fórum Nacional reuniu cerca de duzentas organizações e seiscentos delegados, a maioria dos quais estava à esquerda do CNA e via sua Carta da Liberdade como um documento liberal comprometido.
No final da conferência, os delegados adotaram unanimemente o “Manifesto do Povo Azaniano”, que extraiu suas frases de abertura da palestra de Alexander. Como ele disse:
Mistificações raciais
Alexander teve uma visão de longo prazo da história, e isso alimentou seu consistente otimismo. Ele estava preocupado em refutar o que chamou de “propagação de falsos nacionalismos, cujo principal propósito é dissipar a força da luta de classes desviando-a para canais que irão nutrir as classes dominantes”.
Como as relações sociais eram mistificadas na forma de “relações raciais”, ele insistia, havia uma necessidade de “iluminar o caráter da base real (socioeconômica) da desigualdade e as formas reais (ideológicas) nas quais ela é expressa”, em busca de uma libertação genuína e do fim do capitalismo do apartheid.
Para Alexander, embora o racismo seja muito real, “raça” como um conceito biológico não é. Embora ele considerasse importante expor o “absurdo da raça”, não via isso como um fim em si mesmo. Tal esclarecimento era tanto uma questão de como a luta política deveria ser processada quanto uma questão de desconstruir ideias racistas.
Para Alexander, as ideias ofuscantes que ele criticou tiveram implicações profundas para as estratégias a serem adotadas contra o regime do apartheid. Nesse espírito, ele desafiou formas de organização racial baseadas na ideia de que a raça em si era um fenômeno real. Em sua visão, essa abordagem capitulou frente uma construção social cujos efeitos eram perniciosos e contraditórios em relação a qualquer concepção séria de nacionalidade ou “consciência nacional”.
Em 1983, Alexander fez um discurso com o título “Nação e Etnia na África do Sul” para a reunião do Fórum Nacional em Hammanskraal, uma cidade perto da capital administrativa da África do Sul, Pretória. Estimulado por um chamado de ativistas da Consciência Negra, o Fórum Nacional reuniu cerca de duzentas organizações e seiscentos delegados, a maioria dos quais estava à esquerda do CNA e via sua Carta da Liberdade como um documento liberal comprometido.
No final da conferência, os delegados adotaram unanimemente o “Manifesto do Povo Azaniano”, que extraiu suas frases de abertura da palestra de Alexander. Como ele disse:
O objetivo imediato da luta de libertação nacional que está sendo travada na África do Sul é a destruição do sistema de capitalismo racial. O apartheid é simplesmente uma expressão sócio-política particular deste sistema. Nossa oposição ao apartheid é, portanto, apenas um ponto de partida para nossa luta contra as estruturas e interesses que são a base real do apartheid.
A análise de Alexander sobre o capitalismo racial na África do Sul focou em três dinâmicas inter-relacionadas: despossessão racializada, exploração racial e reservas de emprego racializadas. Ele insistiu que a acumulação por despossessão racializada não se limitava à era pré-capitalista, mas era, de fato, uma característica estrutural contínua da maneira como o capitalismo funcionava na África do Sul devido a leis que “santificavam a conquista original” e facilitavam mais deslocamentos e despossessões.
À medida que o sistema sul-africano entrava em crise, com protestos massivos e contínuos e campanhas lideradas por trabalhadores contra o regime, juntamente com as estratégias de desinvestimento do movimento global antiapartheid, levando ao declínio dos lucros e ao aumento do desemprego, Alexander alertou que “o sistema atual não será capaz de empregar toda a nossa população economicamente ativa, pagar-lhe um salário digno, tornar possível que vivam em casas decentes e adequadas a preços que possam pagar, [ou] dar a seus filhos educação gratuita e obrigatória”.
Um grande rio
Alexander foi o principal proponente de um conjunto de ideias emancipatórias sobre a linguagem. Essas ideias cresceram a partir de suas primeiras interações quando criança, tanto em ambientes formais quanto informais, e se desenvolveram ainda mais enquanto ele estava encarcerado na Robben Island. Como um internacionalista socialista, Alexander permaneceu aberto à construção de uma identidade universal que não seria restringida por fronteiras nacionais, ao mesmo tempo em que reconhecia a variedade de orientações e identidades sociais às quais os seres humanos são dados, desde que não infrinjam as reivindicações de uma humanidade comum.
Para Alexander, a linguagem e suas implicações culturais eram profundamente importantes para a constituição de sujeitos históricos. Se entendido corretamente, o estudo da linguagem poderia desempenhar um papel útil em trazer construções a priori de cultura e identidade para o debate. Isso tornaria possível combater identitarismos étnicos ao mesmo tempo em que promoveria a consciência nacional, levando em conta a rica diversidade cultural da África do Sul.
Ele apresentou uma metáfora sobre a confluência de diferentes tributários de um rio largo que pretendia negar a qualquer cultura status privilegiado. Alexander aceitou que a África do Sul representava uma combinação de culturas africana, europeia, asiática e (mais recentemente) americana moderna, que influenciavam umas às outras em todos os domínios da vida social, dos esportes à música, passando pela religião. Esses próprios tributários eventualmente fluiriam para o oceano da humanidade.
O corolário dessa observação foi a necessidade de usar conceitos fluidos em vez de estáticos de cultura que dependiam de práticas culturais, tradições e costumes específicos. A linguagem, portanto, não era meramente um reflexo da realidade social. Ela também ajudava a constituir essa realidade e podia desempenhar um papel transformador.
A vida e a obra de Alexander são instrutivas para os dias atuais, enquanto enfrentamos a “policrise” gerada pelo capitalismo corporativo e o ressurgimento da praga fascista. Alexander teria nos instado a entender essa crise analisando as relações complexas entre história, cultura, linguagem, ideologia e as condições materiais, tanto econômicas quanto ambientais, sob as quais a grande maioria da humanidade é forçada a viver.
À medida que o sistema sul-africano entrava em crise, com protestos massivos e contínuos e campanhas lideradas por trabalhadores contra o regime, juntamente com as estratégias de desinvestimento do movimento global antiapartheid, levando ao declínio dos lucros e ao aumento do desemprego, Alexander alertou que “o sistema atual não será capaz de empregar toda a nossa população economicamente ativa, pagar-lhe um salário digno, tornar possível que vivam em casas decentes e adequadas a preços que possam pagar, [ou] dar a seus filhos educação gratuita e obrigatória”.
Um grande rio
Alexander foi o principal proponente de um conjunto de ideias emancipatórias sobre a linguagem. Essas ideias cresceram a partir de suas primeiras interações quando criança, tanto em ambientes formais quanto informais, e se desenvolveram ainda mais enquanto ele estava encarcerado na Robben Island. Como um internacionalista socialista, Alexander permaneceu aberto à construção de uma identidade universal que não seria restringida por fronteiras nacionais, ao mesmo tempo em que reconhecia a variedade de orientações e identidades sociais às quais os seres humanos são dados, desde que não infrinjam as reivindicações de uma humanidade comum.
Para Alexander, a linguagem e suas implicações culturais eram profundamente importantes para a constituição de sujeitos históricos. Se entendido corretamente, o estudo da linguagem poderia desempenhar um papel útil em trazer construções a priori de cultura e identidade para o debate. Isso tornaria possível combater identitarismos étnicos ao mesmo tempo em que promoveria a consciência nacional, levando em conta a rica diversidade cultural da África do Sul.
Ele apresentou uma metáfora sobre a confluência de diferentes tributários de um rio largo que pretendia negar a qualquer cultura status privilegiado. Alexander aceitou que a África do Sul representava uma combinação de culturas africana, europeia, asiática e (mais recentemente) americana moderna, que influenciavam umas às outras em todos os domínios da vida social, dos esportes à música, passando pela religião. Esses próprios tributários eventualmente fluiriam para o oceano da humanidade.
O corolário dessa observação foi a necessidade de usar conceitos fluidos em vez de estáticos de cultura que dependiam de práticas culturais, tradições e costumes específicos. A linguagem, portanto, não era meramente um reflexo da realidade social. Ela também ajudava a constituir essa realidade e podia desempenhar um papel transformador.
A vida e a obra de Alexander são instrutivas para os dias atuais, enquanto enfrentamos a “policrise” gerada pelo capitalismo corporativo e o ressurgimento da praga fascista. Alexander teria nos instado a entender essa crise analisando as relações complexas entre história, cultura, linguagem, ideologia e as condições materiais, tanto econômicas quanto ambientais, sob as quais a grande maioria da humanidade é forçada a viver.
Ele também teria apontado para a inevitabilidade da luta contra essas condições e a importância de encontrar as premissas, analíticas e organizacionais, para resistir às muitas formas de opressão exploradora e à catástrofe ecológica que toda a humanidade enfrenta. As intervenções críticas de Alexander são profundamente importantes para sustentar a luta contra sistemas políticos e sociais vorazes e indiferentes.
Colaboradores
Salim Vally é professor e diretor do Centre for Education Rights and Transformation (CERT) na Universidade de Joanesburgo e da cadeira South African Research Initiative da National Research Foundation em Community, Adult and Workers Education (CAWE).
Enver Motala é um associado do Centre for Education Rights and Transformation (CERT) na Universidade de Joanesburgo e do Centre for Integrated Post-School Education and Training na Nelson Mandela University.
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