3 de abril de 2014

Rememorar 1964

Marcos Napolitano


Qual é o sentido de rememorarmos o meio século do golpe de Estado, militar ou, como o evento de 1964 vem sendo qualificado, civil-militar?

Em primeiro lugar, é preciso rememorar 1964 como ruptura histórica. Um dos objetivos mais claros do golpe era neutralizar uma elite política reformista que então se gestava. Com isso, os novos donos do poder isolaram por décadas o coração do Estado de uma pauta política de esquerda que tentava, apesar de seus eventuais erros políticos, corrigir os efeitos de uma exclusão social secular na sociedade.

Ademais, reprimiram duramente um conjunto incipiente de movimentos sociais e sindicais que se afirmavam como protagonistas da história. O golpe, portanto, destruiu uma frágil, porém inédita, experiência democrática entre nós, a "República de 46". Foi demais para a nossa tradição conservadora e autoritária.

Por outro lado, paradoxalmente, é preciso rememorar 1964 enquanto continuidade histórica. A heterogênea coalizão civil-militar conservadora que saiu vencedora convergia no anticomunismo visceral, o fantasma ameaçador da Guerra Fria. Também queria aprofundar o desenvolvimento capitalista dentro de um dado modelo associado ao grande capital internacional, modelo que, a rigor, foi consolidado por Juscelino Kubitschek.

O golpe, nesse sentido, reforçou tendências ideológicas, políticas de desenvolvimento e posições geopolíticas do Brasil que eram anteriores à tomada de poder pelos militares.

Finalmente, é preciso rememorar 1964 de maneira autorreflexiva, como marco de memória. Todo evento histórico, ainda mais com essa magnitude, conecta-se a outros eventos, anteriores e posteriores, produzindo várias memórias sociais, algumas dominantes e hegemônicas, outras marginalizadas. Nesse processo, grupos sociais veem sentidos diferentes para o mesmo evento.

As formas dominantes da memória social são sempre mutáveis. Lembrar 1964 hoje pode ter um sentido diferente de lembrar o golpe em 1974, em 1984, em 1994, ou em 2004.

O Brasil de 2014 experimenta uma situação paradoxal. A democracia institucional parece consolidada, apesar das fragilidades políticas de sempre, das histerias conservadoras em relação ao "projeto de poder" da esquerda e da incompetência das autoridades para superar problemas sociais graves.

Já os valores democráticos parecem cada vez mais ameaçados por uma opinião pública difusa, porém crescente, ganhando até expressão em setores da mídia. As vozes contra a extensão de direitos sociais e civis, sem falar na crítica pueril aos direitos humanos, estão agressivas e disseminadas mesmo entre a classe média escolarizada, ao contrário de outros aniversários do golpe.

O fantasma da ditadura, ao que parece, mudou de casa, cresceu e continua nos assombrando. Por isso é preciso rememorar, lembrar criticamente como 1964 começou. Nunca esquecer que palavras de ordem que parecem defender a coletividade como "segurança", "liberdade", "moralidade pública" e "família" podem estar preparando uma nova catástrofe se não forem acompanhadas de profunda reflexão do que significa a democracia: direito de manifestação crítica e discordância, igualdade perante a lei e dignidade da pessoa humana.

Sobre o autor


Marcos Napolitano, 51, é professor de história do Brasil da Universidade de São Paulo.

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