14 de agosto de 2024

A violência das gangues no Haiti é um sintoma da sua crise política

Uma força internacional patrocinada pela ONU foi enviada ao Haiti com a função de reprimir a violência das gangues. No entanto, a força das gangues está indissociavelmente ligada ao caráter do Estado haitiano e seus vínculos com as elites econômicas, tanto internas quanto externas.

Uma entrevista com
Mamyrah Prosper, Ernst Jean-Pierre, Sabine Lamour e Georges Eddy Lucien


Um membro armado de uma gangue na área de Delmas 6, controlada por Jimmy "Barbecue" Cherizier, em 9 de maio de 2024, em Porto Príncipe, Haiti. (Giles Clarke / Getty Images)

Tradução / Em outubro de 2023, o Conselho de Segurança da ONU votou para “autorizar o envio de um apoio de segurança multinacional, liderado pelo Quênia” no Haiti. Além de mil policiais quenianos, as Bahamas, Jamaica, Belize, Suriname, Antígua e Barbuda, Guatemala, Peru, Senegal, Ruanda, Itália, Espanha e Mongólia prometeram contingentes armados. O ex-primeiro-ministro Ariel Henry — que atuou como presidente interino, e portanto não eleito — havia anteriormente incitado a comunidade internacional a agir “em nome das mulheres e meninas estupradas todos os dias, em nome de um povo inteiro vítima da barbárie das gangues.”

De acordo com a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH), entre novembro de 2018 e março de 2024, as gangues foram responsáveis pelo assassinato de mais de quinze mil pessoas e pelo estupro de mais de cento e sessenta meninas e mulheres, além de dezenas de desaparecimentos e do deslocamento interno de mais de meio milhão de pessoas. No início desse período, esses grupos armados agiam de forma isolada e em competição uns com os outros. No entanto, em agosto de 2020, nove deles se federaram sob a liderança do ex-policial Jimmy Chérizier, também conhecido como Barbecue.

Em janeiro de 2024, Chérizier consolidou o restante das gangues na capital para lançar o que chamaram de “revolução”. Primeiro, tomaram o controle da área ao redor do aeroporto internacional para impedir o retorno de Henry ao Haiti após sua viagem ao Quênia. Nos meses seguintes, eles derrubaram delegacias de polícia e prisões, e queimaram hospitais públicos, universidades e bibliotecas, matando algumas centenas de pessoas no processo. Para substituir o governo de Henry, a Comunidade do Caribe (CARICOM) facilitou a criação de um Conselho Presidencial de sete membros, com a maioria de seus integrantes representando o Parti Haitien Tèt Kale (PHTK), que está no poder desde 2011.

As notícias internacionais sobre a crise do Haiti a apresentam como um problema de violência de gangues além do controle do Estado. No entanto, movimentos sociais e organizações de direitos humanos notaram o silêncio de Henry sobre as centenas de massacres e sequestros durante seu mandato. Além disso, relatórios produzidos por pesquisadores independentes do Haiti e de outros países demonstraram como diversos atores, tanto nacionais quanto internacionais, “fabricaram” o caos.

A conversa a seguir, baseada em um painel de discussão, nos leva a ver os atuais eventos no Haiti além da ideia de uma crise resolúvel por meio de ocupação militar, eleições e “boa governança”. Os painelistas discutem o que as gangues revelam sobre a natureza do Estado haitiano e sua relação com as elites econômicas no Haiti e no mundo exterior.

Mamyrah Prosper

As gangues controlam territórios abandonados pelo Estado. Esses bairros populares têm pouco ou nenhum acesso à água potável, eletricidade, escolas, hospitais e empregos. Muitos desses territórios estão no mapa do Estado, enquanto outros são assentamentos informais ou favelas, onde mais de um milhão de pessoas vivem. A maioria das gangues está concentrada na área metropolitana de Porto Príncipe, perto de parques industriais, portos internacionais, centros de distribuição de petróleo, armazéns de produtos de luxo e alimentos importados, e ao longo das rotas comerciais internas e internacionais.

As gangues são compostas principalmente por meninos e jovens (com algumas mulheres), que, enfrentando altas taxas de desemprego e sem habilidades educacionais básicas, decidem se juntar para obter proteção, adquirir respeito masculino na comunidade e ganhar dinheiro. Em contraste, os líderes de gangues são ex-policiais e agentes de segurança privada.

As primeiras gangues eram extensões de brigadas de autodefesa estabelecidas após a derrubada da ditadura de vinte e nove anos da família Duvalier e reforçadas durante o golpe de Estado em 1991 contra o presidente democraticamente eleito Jean-Bertrand Aristide, para proteger bairros populares em Porto Príncipe de esquadrões da morte. Com o retorno do chefe de Estado deposto em 1994, armas foram distribuídas aos seus apoiadores, levando à despolitização dessas formações e ao seu envolvimento em atividades criminosas, incluindo sequestros.

Durante o segundo mandato de Aristide (2001–2004), essas gangues de “bairro” foram fortalecidas para enfrentar ex-oficiais militares — desmobilizados em 1995 — que tentavam derrubar seu governo. Após a remoção forçada de Aristide em 2004, as tropas da MINUSTAH [Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti] silenciaram seus milicianos.

As gangues de hoje — fundadas ou fortalecidas pelos governantes do PHTK, outros políticos e oligarcas importantes — são os novos esquadrões da morte. Elas traficam órgãos e seres humanos, bem como drogas e armas. Sequestros são feitos em nome de outros e para arrecadar fundos para comprar munições. Elas matam para conquistar novos territórios ou como retaliação contra formações rivais.

As gangues também oferecem segurança para empresas privadas, como as do capitalista comercial Reynold Deeb, contra pequenos ladrões. Elas defendem seus empregadores e atacam seus concorrentes. Elas interrompem greves. Contratadas por políticos, como o ex-presidente Michel Joseph Martelly (2011–16), as gangues ameaçam eleitores para controlar os resultados eleitorais e impedir a participação em protestos. Elas assassinam opositores políticos. Elas estupram e massacram residentes de bairros conhecidos por sua militância.

Os membros das gangues usam principalmente pistolas e fuzis semiautomáticos. No entanto, nos últimos três anos, seu poder de fogo aumentou para incluir armamentos de guerra, como AK-47 russos, AR-15 fabricados nos EUA e fuzis de assalto Galil israelenses. Algumas armas traficadas no Haiti são compradas em lojas nos Estados Unidos, onde as leis de armas são flexíveis, e enviadas do porto de Miami, onde a carga é organizada em contêineres individualizados que exigem buscas intensivas.

Armas ilegais entram no país através de portos marítimos sob controle privado de oligarcas como o Porto Lafito de Gilbert Bigio, através de pistas de pouso não oficiais e ao longo das fronteiras terrestres com a República Dominicana. Ao mesmo tempo, ao longo dos últimos treze anos, o regime do PHTK sistematicamente subfinanciou e desarmou suas próprias forças armadas.

Georges Eddy Lucien

O exército — o ator tradicional que o Estado haitiano ou a oligarquia local e internacional (especialmente os Estados Unidos) geralmente usa para resolver a crise — não está mais lá. Porque para resolver a crise, se você olhar para 1946, 1956, 1986, é sempre a mesma coisa: vamos dormir, acordamos e encontramos o exército no poder. Mas hoje, com o exército haitiano dissolvido em 1995, quando Aristide retornou ao poder, os outros aparelhos repressivos, sejam a polícia ou as gangues, desempenham um grande papel.

Certamente, durante a ditadura de Duvalier, havia sempre um vínculo entre o exército e as milícias. Mas o exército tinha mais meios logísticos e mais armas do que as milícias. A informalidade é importante, porque quando o exército precisava fazer coisas fora dos registros, usava as milícias. Isso foi o que aconteceu durante o golpe de 1991, quando usaram o Front for the Advancement and Progress of Haiti [FRAPH], um conhecido produto da CIA.

Desde 2016, a polícia tem sido incapaz de reprimir as revoltas, incapaz de fazer o povo recuar. As gangues vieram para servir a duas funções. Uma delas é que elas servem como censores nos bairros populares concentrados — sabemos que cerca de dois terços da aglomeração de Porto Príncipe vive em bairros precários.

Podemos citar o exemplo dos moradores de Lasalin que participaram do protesto de 17 de outubro de 2018, e que foram massacrados três semanas depois pelas gangues, enviando a mensagem de que as pessoas dos bairros populares não têm direitos civis e políticos; elas não podem se envolver em protestos. Há outros casos, como o massacre de Belair durante o primeiro peyi lòk — traduzido por alguns como “greve geral” — ou o massacre de Kafou Marasa (Cité Soleil).

As gangues desempenham o papel de censores. Primeiro, elas impedem que organizações progressistas se reúnam em bairros populares. Por exemplo, durante o período de 1987–88, após a derrubada da ditadura de Duvalier, inúmeras organizações populares operavam dentro dos bairros, incluindo grupos estudantis e sindicatos. Mas hoje é difícil organizar uma reunião nessas áreas.

Sua segunda missão é banalizar conceitos como “filhos dos pobres” ou “revolução” e contribuir para a criminalização dos movimentos sociais. Sob o governo de Jovenel Moïse (2017–21), a participação das gangues nos protestos banalizou as reivindicações. Essas são todas estratégias.

O movimento social que estamos discutindo hoje surgiu em 2015–2016 e durou um período de seis anos durante o qual ocorreram várias revoltas. Desde os grandes protestos de 1929 contra a ocupação dos EUA (1915-1934), não vivenciamos um período tão longo de levantes sustentados.

Após a retirada das tropas dos EUA, oligarcas locais e internacionais conseguiram manter a continuidade e o controle. Mas em 1946, houve outros protestos em massa. Após dez anos, em 1956–1957, a oligarquia local conseguiu tomar o controle pelos próximos trinta anos através dos Duvaliers, até cerca de 1985–1986.

Agora, podemos ver que desde 2015, o povo começou a se levantar novamente. Esse período nos lembra o período entre 1902 e 1915, durante a resistência de treze anos de Rosalvo Bobo contra o aprofundamento das relações entre as oligarquias local e dos EUA.

Ernst Jean-Pierre

É importante lembrar nossa história como povo e a forma específica de colonialismo que ocorreu no Haiti. A chegada de Cristóvão Colombo em 1492 criou uma nova realidade colonial. Os colonizadores se apropriaram das riquezas da terra, devastaram o meio ambiente e os povos indígenas que lá viviam, e introduziram o tráfico transatlântico de africanos escravizados. O Código Negro (Code Noir) que regulamentava o sistema de escravidão no Haiti considerava os africanos escravizados como sub-humanos — isso tem repercussões até o presente.

A cerimônia de Bwa Kayiman serviu para planejar a primeira grande insurreição escrava da Revolução, que alcançou a libertação geral de todos os escravos e proclamou a independência em 1804. Mas após a independência, os filhos dos brancos, mulatos e crioulos fizeram reivindicações sobre a terra, exigindo compensação por propriedades perdidas e danificadas.

Jean-Jacques Dessalines, um dos grandes líderes da Revolução Haitiana e o primeiro governante do Haiti independente, se opôs a essas demandas. Sua aspiração por independência ia além da abolição da escravidão, para um sistema de igualdade baseado nos valores dos Bosals, africanos nascidos no continente e não na escravidão, que tinham valores comunitários em torno do trabalho e da liberdade. Representando uma ruptura com o sistema colonial herdado, Dessalines propôs redistribuir a riqueza da terra entre todos os haitianos, emitindo uma série de medidas voltadas para esses objetivos.

Os decretos de Dessalines constituíram esforços radicais para enfrentar o sistema colonial de riqueza, mas causaram tensões dentro da nova nação. Em outubro de 1806, Dessalines foi assassinado, marcando um momento crucial que dividiu a nação em duas. O governo sucessor enviou os Bosals para as montanhas e o campo, impondo um Código Rural semelhante ao Código Negro colonial. Isso instaurou uma forma de racismo, até mesmo apartheid, mantendo uma sociedade na qual uma classe de camponeses produzia os produtos agrícolas para uma classe de cultivadores crioulos.

Essa divisão fundamental resultou na crise de 1843, dividindo o país em quatro partes. Em 1915, o Haiti caiu nas mãos da ocupação dos EUA. Muitas instituições e empresas norte-americanas, como a Haitian American Sugar Company [HASCO], estavam envolvidas na exportação de sisal, borracha e cana-de-açúcar.

Os haitianos acabaram com um Estado que não corresponde às aspirações das massas, um protótipo barato do Estado-nação ocidental. A lei haitiana é uma cópia da lei francesa, sem noção de direitos ambientais ou comunitários. As classes educadas e elitistas tomaram as rédeas do governo, concedendo a si mesmas privilégios sociais e econômicos e exigindo que a maioria espere.

Esta é a condição atual. Isso é o que nos levou às crises de 1943, 1946, em todos os períodos após o presidente Dumarsais Estimé, e após o presidente Duvalier em 1986. As crises se repetem porque o problema histórico nunca foi resolvido: a luta entre os Bosals, o povo camponês e as elites.

Mamyrah Prosper

O movimento social que surgiu em 2015–2016 então buscou colapsar o Estado, para resolver esse problema histórico entre as massas e as elites. Após a primeira rodada das eleições presidenciais de 2015, a oposição política — incluindo organizações de base e outras organizações da sociedade civil — paralisou a capital para denunciar a manipulação dos resultados pelo PHTK.

Antes desse momento crucial, a resistência aos projetos de desenvolvimento do PHTK era localizada: defesa contra a apropriação de terras em Caracol, no nordeste, em 2011, na ilha de Île-à-Vache no Sul em 2013, e na ilha La Gônave na Baía de Porto Príncipe em 2014, por exemplo. Mas o movimento social que surgiu em 2015–2016 visava diretamente o regime do PHTK, levando à anulação dos resultados eleitorais. No entanto, no final, novas eleições em 2016 ainda levaram ao poder o escolhido pelo PHTK, Jovenel Moïse.

O movimento social tentou bloquear a continuidade da “corrida por Haiti” do PHTK. O momento recorda as eleições fraudulentas que levaram o partido ao poder em 2011, o que evidenciou a estratégia do PHTK de adiar as eleições parlamentares e, em vez disso, governar por decreto para ceder terras agrícolas administradas comumente a elites multinacionais como zonas de livre comércio.

Muitos também apontaram o uso indevido de fundos públicos pelo PHTK — como os fundos de reconstrução do terremoto de 2010 e os recursos do PetroCaribe — para subsidiar projetos extrativistas, como a construção do maior parque industrial do Caribe, o Parque Industrial Caracol, em 2011; o estabelecimento da plantação de bananas de Moïse, Agritrans, em 2014, antes de ser revelado como candidato presidencial do PHTK; e a construção do primeiro porto de águas profundas multipropósito do país para acomodar navios de carga maiores, o Porto Lafito. Todas essas parcerias público-privadas são isentas de impostos.

Sabine Lamour

Os oligarcas haitianos não são um grupo uniforme e monolítico, onde todos têm a mesma visão ou consciência. Há o segmento que existe desde o período revolucionário, os anteriormente “libertos”, que até hoje se consideram herdeiros de seus pais colonialistas brancos. Este grupo formou a burguesia nacional, que teve sucesso de 1804 até a ocupação dos EUA em 1918.

Dentro desta burguesia também estavam aqueles da França, Grã-Bretanha e Alemanha. Filhas da burguesia nacional já estabelecida se casaram com filhos estrangeiros, resultado das relações comerciais. A burguesia nacional renovou-se mantendo uma hegemonia baseada na cor da pele sobre a população maior.

Mas, através da ocupação dos EUA no Caribe, novos grupos chegaram ao poder. Capitalistas emergentes do Levante se espalharam pela região. E no Haiti, “beneficiando-se” de sua pele mais clara, acabaram substituindo a burguesia nacional inicial.

A classe burguesa no Haiti é plural. É uma classe fragmentada que não é necessariamente unificada. No entanto, se há um fio condutor que atravessa esses grupos que poderíamos considerar elites ou oligarcas, é este: nada nacional os interessa. Eles investem no comércio; então, mesmo que o Haiti possa produzir arroz, Reynold Deeb, chefe do Deka Group, prefere comprá-lo e embalá-lo nos EUA para vender no país, em vez de apoiar a produção nacional.

Podemos realmente chamar esses oligarcas de burguesia nacional? Esses chamados burgueses nacionais existem em seus próprios espaços isolados da maioria da população. Seus filhos não frequentam as mesmas escolas. Se estão doentes, procuram tratamento em Miami. Eles possuem várias cidadanias. Esta é uma forma de burguesia apátrida que não constrói nada com as massas.

Toda vez que seus interesses são ameaçados, quando as contradições atingem um nível que pode causar mudança ou transformação social para que os recursos sejam verdadeiramente compartilhados entre a população, quando o capital está em crise, essa burguesia plural se alia à comunidade internacional ou às Nações Unidas para oferecer aos estrangeiros os recursos que o Haiti possui, a fim de garantir sua posição e continuar a extrair riqueza.

Curiosamente, um dos novos elementos nesta crise atual é o engajamento ativo desses burgueses transnacionais na política. Tradicionalmente, eles praticavam uma “política de substituição”, onde financiavam políticos apenas responsáveis por eles. Mas agora, decidiram entrar na política nacional com suas próprias faces.

Gregory Mevs — cuja família possui o Terminal de Petróleo Varreux e o parque industrial SHODECOSA — serviu como copresidente do Conselho Presidencial de Crescimento Econômico e Investimento do ex-presidente Martelly. Reginald Boulos, fundador do Sogebank e proprietário de uma cadeia de supermercados e concessionárias de automóveis, estabeleceu seu próprio movimento político sob o ex-presidente Moïse.

Esses burgueses mostram seus rostos não porque estejam preocupados com a transformação da sociedade, mas porque querem controlar diretamente o que eu chamo de “locais de predação” na sociedade. Por exemplo, o controle das alfândegas é um local de predação, permitindo a importação de armas, alimentos cancerígenos podres e outros produtos expirados que matam. A burguesia monopoliza todas as indústrias. O Grupo Gilbert Bigio, por exemplo, controla a construção (importação de ferro e madeira).

Quando a burguesia percebe que, pouco a pouco, a maioria está aumentando seu poder, e que a qualquer momento pode haver uma explosão social no Haiti, eles buscam controlar os espaços de poder. Mas não decidem controlar os espaços para si mesmos; em vez disso, compartilham o controle com as elites internacionais.

Mamyrah Prosper

Como observa Sabine Lamour, o estado PHTK tem sido abertamente acolhedor com essas elites transnacionais. Também facilitou a ascensão de um pequeno grupo de aspirantes a capitalistas. No primeiro ano de seu mandato, o governo de Moïse propôs um orçamento que aumentava os salários dele e de seu gabinete, enquanto aumentava os impostos sobre os pobres trabalhadores e a classe média.

Ele retirou o Haiti do acordo PetroCaribe com a Venezuela, colocando o país novamente no mercado para comprar produtos petrolíferos. Em julho de 2018, a pedido do Fundo Monetário Internacional, Moïse anunciou a remoção dos subsídios ao combustível. O aumento dos preços dos combustíveis inevitavelmente leva a preços mais altos para transporte e alimentos.

Em resposta, os dissidentes ergueram barricadas para bloquear todas as rotas comerciais nacionais e interromper toda a atividade comercial no país por dois dias: o primeiro peyi lòk. Moïse revogou o anúncio. Um mês depois, o movimento PetroChallenge foi lançado com protestos em todas as dez principais cidades do Haiti em torno do slogan “Kot Kòb PetroKaribe?” (“Onde está o dinheiro do PetroCaribe?”), exigindo que o regime PHTK prestasse contas sobre o uso de mais de US$ 3 bilhões dos fundos do PetroCaribe destinados à melhoria da infraestrutura e dos programas sociais.

Georges Eddy Lucien

Os levantes de julho de 2018, um dos mais significativos dos últimos anos, levantaram a questão do PetroCaribe porque o PetroCaribe, por si só, questiona a lógica e mina o funcionamento do sistema financeiro internacional introduzido no Haiti em 1825, quando bancos franceses deram um empréstimo à nação anteriormente colonizada. Tipicamente, nesses arranjos, o banco vence e o país que recebe o dinheiro perde. No entanto, o PetroCaribe ofereceu a possibilidade de tanto a Venezuela quanto o Haiti saírem ganhando.

Dentro do PetroCaribe, a Venezuela concordou em permitir que o mutuário pagasse o empréstimo com bens que produziam, desviando-se do modelo neoliberal que rompeu as dinâmicas de produção no Haiti. Havia uma possibilidade de desafiar o sistema financeiro internacional. Julho de 2018 também foi uma das primeiras vezes que os movimentos sociais falaram de “chavire chodyè”, rompendo com o sistema.

Sabine Lamour

Peyi lòk é um modo de resistência. É o resultado de contradições dentro da sociedade que são tão marcantes que o povo é forçado a bloquear o sistema. Como pode o governo retirar os subsídios ao combustível quando o preço do litro de combustível excede o salário mínimo! Durante o primeiro peyi lòk em julho de 2018, mobilizações ocorreram em toda a área metropolitana de Port-au-Prince e se espalharam por todo o país, paralisando toda a atividade comercial. E o governo foi forçado a recuar sobre a questão do combustível.

Dentro do peyi lòk, apesar da paralisação, inúmeras atividades ocorrem dentro das organizações tanto da sociedade civil quanto da oposição política. Painéis são realizados, documentos de posição são divulgados, flash mobs e protestos são organizados. Assim, podemos dizer que peyi lòk tempera a insegurança das gangues e oferece um momento para que as organizações se tornem mais ativas politicamente, reunindo-se mais frequentemente para discutir.

Claro, há uma contradição no peyi lòk: pessoas necessitadas podem se tornar danos colaterais — elas não conseguem realizar seu trabalho diário para se reproduzir; devem ser capazes de se abastecer de alimentos. O governo também utiliza o período do peyi lòk para reprimir militantes, aqueles que saem às ruas todos os dias para manter barricadas contra a polícia e as gangues.

Ernst Jean-Pierre

O peyi lòk não é algo novo, é um modo de luta camponesa chamado “koupe wout” (corte de estradas). O Exército Indígena de Dessalines usou essa tática para cortar as linhas de suprimento francesas durante a revolução em 1802. Esse método foi empregado após a independência por diferentes líderes revolucionários camponeses que buscavam isolar e controlar sua própria região.

Os combatentes Kako adotaram a tática do “koupe wout” para impedir a maior incursão dos fuzileiros navais dos EUA no interior do país. Bloquear estradas interrompia a reinstalação do trabalho forçado pelos ocupantes americanos para construir as próprias estradas que facilitavam o transporte das colheitas de exportação.

Eu interpreto isso como um modo de luta adaptado a Porto Príncipe e outras cidades: impede a comunicação entre outros departamentos, circulação e movimento, e a funcionalidade do sistema capitalista dentro das cidades. É um sistema histórico e cultural de resistência. Integramos algumas palavras em inglês e francês: dizemos “barikad” (barricadas); dizemos “lòk”, mas era chamado de “gran chimen bare” (bloqueio de estrada), onde ninguém podia circular livremente.

Sabine Lamour

Há uma constante nas demandas do movimento social — o direito à autodeterminação. Seja em relação ao estado haitiano ou à comunidade internacional que sempre quer impor uma série de medidas sobre nós, sempre exigimos que, em algum momento, também possamos propor nosso modo de vida. Esse fio condutor atravessa todos os movimentos sociais, sejam eles formados por mulheres, camponeses, jovens ou sindicatos de professores.

A liberdade é um elemento fundamental dentro do movimento ativista, com um conjunto de ideais políticos que permeiam a sociedade haitiana. Desde a Revolução de 1804, percebemos que dentro da questão da liberdade está uma questão de bem-estar — não bem-estar no sentido ocidental baseado na propriedade privada.

Ernst Jean-Pierre

Há uma ausência de pensamento político e até mesmo de ideologia no sentido ocidental em relação ao que está acontecendo no terreno, em termos de expressão popular. Os bairros populares urbanos estão mais mobilizados do que os camponeses na luta atual. Os líderes políticos foram desacreditados nos movimentos populares.

A missão histórica das massas populares é uma batalha contra uma ordem global injusta, o fio condutor das lutas populares haitianas historicamente, que pode ser vinculado a um discurso de esquerda anti-imperialista mais amplo. Mas se você olhar de perto o surgimento das lutas populares, é uma batalha existencial em torno da necessidade de viver.

Há uma natureza permanente dessa luta, refletida pela impossibilidade de diálogo entre as elites e as massas. As elites políticas tradicionais carecem de uma narrativa para abordar as demandas populares, não conseguem articular as lutas por mudança. É por isso que estão sempre em crise.

Em 2021, após o assassinato de Moïse, várias organizações e partidos da sociedade civil progressista se uniram para elaborar os Acordos de Montana, que permitiram a formação de um governo de transição para organizar eleições livres e prosseguir com o julgamento do PetroCaribe. Mas esses esforços reduziram a luta organizada à questão de tomar o poder.

As massas populares estavam travando uma batalha histórica para mudar o sistema capitalista ocidental de forma definitiva. Há duas batalhas no Haiti: uma batalha por mudança real e uma batalha pelo poder. Esta última batalha não expressa as aspirações das massas populares.

Sabine Lamour

Os cenários que estão se desenrolando agora são aqueles que vivemos desde 1806, centrados em autodeterminação, redistribuição e produção de recursos. Em cada grande crise, a mesma questão é levantada: Como construiremos uma comunidade nos 27.500 quilômetros quadrados de terra que temos juntos, para viver juntos se alguns não veem os outros como totalmente humanos? Esta é a base da luta no Haiti: aqueles no poder alegam que todos os recursos produzidos dentro da sociedade pertencem a eles, e nunca hesitam em buscar intervenções externas para resolver o problema.

Mas há uma questão sobre o que precisa acontecer internamente para construir uma verdadeira convivência, um projeto político comum para construir uma sociedade. Essa batalha existe desde que a nação foi formada. Os projetos políticos propostos até agora acabam fomentando alguma forma de exclusão e ausência de redistribuição. Agora, há uma coerência política dentro do caos que os haitianos devem enfrentar.

Esta é uma versão editada de uma discussão mais longa publicada pela primeira vez por Phenomenal World e LeftEast.

Colaboradores

Ernst Jean-Pierre é coordenador geral do GRIDAP (Grupo de Pesquisa de Iniciativas para uma Alternativa e Alternativa Participativa).

Mamyrah Prosper é professora assistente de estudos globais e internacionais na Universidade da Califórnia, em Irvine.

Sabine Lamour é professora de sociologia na Université d'État d'Haiti e atuou como coordenadora nacional do Haitian Women in Solidarity (SOFA) por cinco anos.

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