4 de outubro de 2015

Distantes nas razões, EUA e Rússia se repetem em justificativas

Reginaldo Nasser

Folha de S.Paulo

Soa ingênua ou cínica a discussão sobre a intervenção militar na Síria. Nesta semana, a Rússia tornou-se o décimo país a atuar militarmente no território sírio, somando-se a EUA, Reino Unido, Canadá, França, Austrália, Turquia, Israel, Emirados Árabes Unidos e Jordânia.

Até então, a Rússia servia apenas de obstáculo a uma ação militar de grandes proporções da Otan, à semelhança do que ocorreu na Líbia quando o presidente Muammar Gaddafi foi destituído por ação internacional.

Desde o início da guerra civil na Síria, em 2011, EUA e Rússia manifestaram profundas divergências sobre a estratégia a ser adotada, com Washington exigindo a saída de Bashar al-Assad e Moscou manifestando apoio incondicional ao presidente sírio.

Não poderia ser diferente, já que o Oriente Médio virou uma das regiões mais visadas pelos EUA, que desde a década de 80 ocuparam ou bombardearam pelo menos 14 países islâmicos. No mesmo período, é a primeira vez que tropas russas são postas em combate fora da região da antiga União Soviética.

Mas, se nas motivações as divergências entre Rússia e EUA se mostram irreconciliáveis, em suas justificativas para a guerra cada vez mais eles se assemelham.

Antes de ordenar o bombardeio de territórios controlados por grupos armados na Síria, Vladimir Putin declarou que o apoio militar dos EUA às milícias era uma afronta ao direito internacional e aos preceitos da ONU.

Por outro lado, argumentou, apoiar militarmente um governo reconhecido pela comunidade internacional na luta contra organizações terroristas era legal. Putin acrescentou ainda que se trata de uma "guerra preventiva" contra o Estado Islâmico e que é preciso "destruir os terroristas em seu território antes que eles nos ataquem em casa".

Se você pensou que foi essa a doutrina utilizada por George W. Bush para atacar o Iraque em 2003, acertou.

Trata-se de uma doutrina que, embora repetidamente condenada pela comunidade internacional, é conveniente para justificar ações com os mais diversos propósitos.

Mesmo Barack Obama, que se opôs à Guerra do Iraque, invocou, sem sucesso, a mesma doutrina para bombardear a Síria no ano passado.

Segundo Obama, na medida em que o EI se configura como ameaça à segurança nacional dos EUA, combatê-lo é ato de legitima defesa.

Pode-se notar na Rússia essa estratégia de recuperar o status de grande potência, dentro dos parâmetros internacionais, e ser aceita pelas nações ocidentais desde a ascensão de Putin, em 1999.

A Rússia invocou o direito internacional para criticar a ação militar da Otan em Kosovo e considerou sua independência afronta à integridade territorial da Sérvia. Depois, em 2006, na guerra da Geórgia, Putin citou Kosovo a seu favor: "Se foi concedido ao povo de Kosovo o direito a ter um Estado independente, por que negar esse direito à Abkházia e à Ossétia do Sul?".

Assim o fez também sobre a Crimeia (2014), quando justificou a presença de suas tropas com a responsabilidade de proteger seus cidadãos, argumento sempre presente nas intervenções europeias.

Por mais paradoxal que possa parecer, Putin quer que a Rússia atue como "grande potência normal", dentro de normas de comportamento internacionalmente aceitas. Por vezes, essa estratégia assume uma cooperação crescente com o sistema econômico e político do Ocidente, mas isso não significa que deva abdicar de seus interesses.

Putin reivindica ser tratado como igual pelas grandes potencias e recusa ser responsabilizado pelo que os outros também fazem.

Diante da situação trágica da população da Síria sob a ação de "potências normais", só recorrendo à ironia do comediante inglês Mark Steel:

Em vez de apoiar ditaduras árabes por 20 anos, condená-las por três e voltar a apoiá-las, devíamos criar um rodízio: bombardeá-las às segundas, quartas e sextas; bombardear seus oponentes às terças, quintas e sábados; e deixar o domingo para que as construtoras dos EUA façam algum dinheiro reconstruindo o que destruímos.

Sobre o autor

Reginaldo Nasser é professor de relações internacionais da PUC-SP e da pós-graduação em relações internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

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