15 de janeiro de 2018

Jean Salem, um homem de combate

Morreu na noite de sábado para domingo, aos 65 anos, o filósofo, pilar da Sorbonne, que era um especialista mundialmente reconhecido de Demócrito, Epicuro ou Lucrécio. Fiel aos ideais de Marx, denunciava a perda de referências de uma esquerda enfeitiçada pelas sereias liberais.

Robert Maggiori


Foto: Olivier Roller

Tradução / O tumor no cérebro contra o qual lutava há quase dois anos acabou por ganhar: Jean Salem morreu, na noite de sábado para domingo, em Rueil-Malmaison. Era um pilar da Sorbonne. Animava aí o Centro de história dos sistemas de pensamento moderno, para onde eram convidados os pensadores franceses e estrangeiros que continuavam a considerar fecundo o pensamento de Marx e, desde há décadas, expunha a gerações de estudantes cativados o materialismo antigo, as teorias de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, dos quais ele era um dos maiores especialistas mundiais. Era um homem de combate, talvez o último representante de um século onde existia no centro da vida política, os partidos, os sindicatos, o compromisso duradouro, onde havia uma esquerda socialista e uma esquerda comunista, onde as opostas concepções do mundo se afrontavam. Dialético, era veemente na luta ideológica ou na polêmica civil, intransigente, mesmo teimoso, mas doce e encantador nas relações humanas, que ele enchia de ironia e daquela requintada polidez que o uso do pretérito imperfeito do subjuntivo tornava um pouco desatualizada. Está à cabeça de uma bela obra, que trata não só do materialismo da antiguidade e do epicurismo, mas também do Iluminismo, da arte do Renascimento, dos libertinos do século XVII, de Maupassant, Spinoza, Marx e Lênin. É num dos seus últimos livros, Resistances, (entrevistas com Aymeric Monville, Delga, 2015), que ele relata o seu itinerário biográfico e intelectual.

Filho de Henri Alleg

Nascido em 16 de novembro de 1952, em Argel, Jean Salem é filho de Henri Alleg, aliás Harry Salem, autor de la Question. A memória coletiva já apagou, em parte, a recordação desta obra, da qual apenas os livros de história, doravante, realçam o seu impacto político, social e moral. Toda a vida de Jean foi determinada pelo destino que la Question ditou a seu pai. O livro aparece em 18 de fevereiro de 1958. Sabia-se, grosso modo, que, na Argélia, o exército francês praticava a tortura. Mas o testemunho de Alleg é decisivo, pois descreve os piores horrores sofridos – pontapés, bofetadas, queimaduras, asfixia, “gégène”, corrente de alta tensão nos órgãos genitais, tortura da banheira – da maneira mais sóbria, com “o tom neutro da História”, escreverá François Mauriac. “Vamos esmurrar-te a boca ... Faremos falar a tua mulher ...” cuspiam-lhe os seus torcionários. Torturado, coberto de feridas e contusões, ele responde-lhes: “Podem repetir as torturas, espero-vos, não vos tenho medo”. Ele não falará. A imprensa dá a la Question – levada ao cinema por Laurent Heynemann, em 1977 – um eco considerável. Jean-Paul Sartre escreveu no l’Express um dos seus textos políticos mais intensos, “Uma vitória”, que se tornará o posfácio da obra. A proibição do livro provoca interpelações parlamentares, uma solene solicitação enviada ao presidente René Coty (assinada por Sartre, Mauriac, André Malraux, Roger Martin Gard ...), uma onda de protestos em todo o país.

Quem era Alleg? Filho de alfaiates, nascido em Londres, em 1921, numa família de judeus russo-polacos que fugiram dos pogroms, naturalizado francês, Harry Salem chega a Argel em 1939 e toma partido pelo povo argelino. Adere ao Partido Comunista Argelino e entra no Alger républicain, onde assina como “Henri Alleg” e do qual assume a direção, em 1951. Depois da proibição do jornal, anticolonialista, é preso em 1957 e é sequestrado, um mês, em El-Biar: é aí que é torturado. Transferido para a prisão civil de Argel, escreve la Question em folhas de papel higiênico, que consegue fazer passar, dia após dia, aos seus advogados. Em 15 de junho de 1960 é condenado pelo Tribunal permanente do exército de Argel a dez anos de prisão por “violação da segurança externa do Estado”. É então transferido para a prisão de Rennes, de onde se evadiu, para se juntar à sua família na Checoslováquia. Alleg voltará à Argélia independente, em 1962 e fará reaparecer o Alger républicain; depois regressará a França e aí continuará a sua vida de militante comunista, de jornalista (l’Humanité), ensaísta e historiador. Morreu em Paris, em 17 de julho de 2013.

Nem sempre foi fácil para Jean Salem ser filho de Henri Alleg. Não porque a herança tivesse sido pesada. Pelo contrário, ele usou-a com orgulho, abraçando os seus valores, os seus princípios morais, as suas convicções de comunista e lutando pela justiça social e a paz. Mas, durante toda a sua juventude, teve de viver as suas ausências, seguir as suas itinerâncias, “ser” tanto argelino, como russo e francês. É primeiro alojado em Tarascon, em casa da sua avó; depois, “teletransportado”, encontra-se com a sua família em Praga, hospeda-se “num hotel que se chamava, um pouco pomposamente, o ‘Hotel Palácio’”, de fato, o “Hotel do Partido” e, de seguida, “numa espécie de HLM” em Novi Hloubětín. Matriculou-se na escola da embaixada soviética, onde o ensino era em língua russa. Ao fim de três meses, consegue manejar esta língua. Os seus pais fazem uma viagem a Cuba e à Argélia independente. Jean, acompanhado pelo irmão, é primeiro colocado no “campo de pioneiros” de Artek, no Mar Negro (Crimeia), semelhante a um campo de escuteiros. Depois, é confiado à Casa Internacional da infância, em Ivanovo, 250 quilômetros a nordeste de Moscou – um internato onde eram acolhidos os filhos de comunistas perseguidos nos seus países. Alguns meses depois, adolescente, foi “reposto” em Provença, para, finalmente, em 1964, reencontrar os seus pais na Argélia.

Otimismo

Jean irá conhecer bem outros “balanceamentos” e “viagens ao redor do seu quarto”, antes de se tornar, anos depois, um globe-trotteur [viajante] quase profissional. Tem uma espécie de sede de “cosmopolitismo” (visita tudo: Israel, Magrebe, Índia, Sri Lanka, Turquia, países europeus, Rússia, ainda e sempre, Coreia do Sul, Venezuela, China ...), que acompanha a sede de ler (pode questionar-se se há um livro que ele não tenha lido, da literatura greco-latina, francesa, latino-americana, russa, italiana...) e o amor pela arte... Durante os seus estudos hesita – egitologia, ciência política, história de arte, medicina – antes de optar pela filosofia, tornar-se um professor no liceu de Fourmies (norte) e, durante as férias, guiar os turistas franceses no museu Pushkin, em Moscou, ou na Galeria Tretyakov, e turistas russos em Veneza ou Florença. Na universidade, ele teria desejado, obviamente, fazer a “6000ª tese” sobre Marx: é Marcel Conche que o convence a consagrar-se mais à Ética epicuriana após Epicuro e Lucrécio.

No epicurismo, Salem encontra “o materialismo filosófico de Marx, a causticidade de Marx, a saúde e a tonicidade de Marx, um imenso otimismo naturalista, mas complementados com um evidente pessimismo antropológico e um convite à abstenção política”. Será sempre um otimista, mas nada impedirá a sua procura da felicidade, indissoluvelmente ligada ao estabelecimento da justiça social. A “abstenção política” nunca a conhecerá, mas as suas lutas parecer-lhe-ão terem sido desesperadas pelo que ele chama os “anos de chumbo”, esses anos que abrem a “mitterrandolatria”, durante os quais a esquerda, enfeitiçada com as sereias liberais, perde a sua alma e, por uma espécie de “autoaversão”, liquida “o que restava do movimento comunista”. Em criança e em Argel tinha coelhos e uma tartaruga que batizou com o nome russo de Valentina – “em homenagem a Valentina Terechkova, a primeira mulher cosmonauta”.

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