8 de março de 2022

Para ajudar a Ucrânia, cancele sua dívida externa

A dívida pública da Ucrânia aumentou ao longo dos anos de guerra, com autoridades europeias e o FMI oferecendo empréstimos em troca de “reformas” pró-negócios. Os ucranianos estão pedindo o cancelamento da dívida, para ajudar na futura recuperação do país. 

Uma entrevista com
Alexander Kravchuk

Jacobin

Milhares de moradores de Irpin, na Ucrânia, precisam abandonar suas casas e evacuar à medida que os militares russos se aproximam. (Jan Husar / SOPA Images / LightRocket via Getty Images)

Tradução / Nos últimos dias, inúmeros governos anunciaram apoio financeiro e militar para a Ucrânia, uma vez que ela enfrenta uma devastadora invasão russa e um êxodo de refugiados que já conta com mais de 1,5 milhões de pessoas.

Tal dependência de ajuda externa não é uma novidade. Desde os anos 90, a economia da Ucrânia vem ficando atrás de outros países do antigo bloco oriental, e – sob os efeitos da crise global, da pandemia e da guerra em curso desde 2014 – tem recorrido repetidamente a empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Comissão Europeia. Entretanto, este empréstimo estava longe de ser apenas altruísmo. O serviço da dívida tornou-se uma parcela crescente dos gastos públicos, e os empréstimos também vieram na condição de políticas específicas destinadas a promover um “melhor ambiente de negócios” e a reduzir o estado de bem-estar social.

Como observa Elliot Dolan-Evans, no OpenDemocracy, mesmo o anúncio da Comissão Europeia de apoio de 1,2 bilhões de euros para a Ucrânia em 21 de fevereiro, pouco antes da invasão, referia-se a “medidas de política estrutural” não especificadas em troca de empréstimos. Agora, os ativistas ucranianos estão pedindo o cancelamento das dívidas externas da Ucrânia. Não ter que servir a essas dívidas não serão suficiente para salvar a Ucrânia. Mas é importante assegurar que, quando tiverem reconquistado sua independência, os ucranianos não estejam ainda mais dependentes de credores ou oligarcas nacionais sobre os quais não têm controle.

Alexander Kravchuk é economista e editor da Commons: Journal of Social Critique, que escreveu anteriormente sobre as condições do FMI em empréstimos à Ucrânia. David Broder, de Jacobin, perguntou-lhe sobre a situação econômica do país e porque o cancelamento da dívida externa é importante para que os ucranianos consigam moldar seu futuro.

David Broder

Alguns meios de comunicação ocidentais falam que os ucranianos são pessoas de “classe média como nós”, às vezes em contraposição às vítimas da guerra em outras partes do mundo. Você pode nos dar uma ideia de como eram os padrões de vida das pessoas comuns, mesmo antes do mês passado?

Alexander Kravchuk

O que eles dizem não é verdade. A Ucrânia era a parte norte do Sul Global e o país mais pobre da Europa, lutando por este lugar com a Moldávia.

Abaixo, forneço alguns dados comparativos sobre nosso desenvolvimento econômico:


Assim, em termos de renda nacional per capita, a Ucrânia fica muito atrás da União Europeia (UE) e ainda mais dos Estados Unidos. Os últimos dados indicam a pobreza de nosso povo, com salários médios abaixo de quinhentos euros por mês:


Após o início da guerra no Leste, a crise econômica de 2014 e a perda dos mercados, a renda das famílias ainda mal se recuperaram nos últimos anos. E mesmo esse nível ainda era muito baixo. As razões para isso foram:

– Extração de riqueza para empresas offshore, muitas vezes formadas nas antigas indústrias soviéticas após a privatização.

– Um foco na exportação de matérias-primas (grãos, metal, indústria química).

– Uma política errada de dívida. Os empréstimos do FMI foram emitidos em condições que exigiam que até mesmo os resquícios do Estado social fossem reduzidos. Os pagamentos para servirem simplesmente a dívida pública se tornaram uma das maiores partes das despesas orçamentárias do Estado (totalizando 8,5% do total em 2021).

– Falta de apoio aos produtos de alta tecnologia ucranianos, em particular devido aos acordos comerciais injustos com parceiros estrangeiros (incluindo acordos com a UE).

A guerra que começou em 2014 bloqueou o fluxo de investimentos e só piorou a situação. Desde então, também temos sido restringidos em termos de participação política. Os protestos socioeconômicos foram marginalizados e ficaram “fora de lugar” durante a guerra.

Como resultado, em vez de lutar por um futuro melhor na Ucrânia, os ucranianos foram em massa para o exterior. Assim, de acordo com a ONU, em 2020 a Ucrânia ocupava o oitavo lugar no mundo em termos de migração de mão-de-obra. Milhões de ucranianos já partiram nos últimos anos para países membros da UE oriental (por exemplo, Polônia, República Tcheca).

Lá, eles substituíram a força de trabalho que deixou esses países em busca de uma vida melhor na Alemanha, Grã-Bretanha e outros países centrais. Com esta guerra, a UE prevê a chegada de até mais 5 milhões de pessoas da Ucrânia – uma força de trabalho mais qualificada para se integrar à sociedade europeia.

David Broder

Durante os últimos 8 anos, o FMI e o Banco Mundial emprestaram quantias maiores à Ucrânia. Havia “compromissos”? Se Volodymyr Zelensky procurar novos empréstimos estrangeiros, que impacto tem a demanda por alívio da dívida na sociedade ucraniana?

Alexander Kravchuk

O FMI e outras instituições financeiras foram os motores das chamadas “reformas de mercado” na Ucrânia. Escrevemos sobre isso em nosso projeto Alternative Mechanisms for the Socio-Economic Development of Ukraine.

Em 2015, escrevi um artigo para esse panfleto a respeito da origem da dependência da dívida e seu impacto negativo sobre a Ucrânia.

A última “vitória” neste campo foram as mudanças no mercado de energia. Na Ucrânia, os preços do gás aumentaram dez vezes sob pressão do FMI desde 2014.

Em novembro de 2021, o governo ucraniano acordou com o FMI, a desregulamentação final e a venda do gás produzido na Ucrânia, a preços de câmbio elevados. Ele poderia aumentar as tarifas três ou cinco vezes durante a guerra.

Aqui você pode ver uma rápida tradução em inglês do meu último infográfico:


Conseguimos promover a ideia de rever a política da dívida na sociedade ucraniana. A proposta foi retomada por diferentes atores, inclusive por forças nacionalistas. No entanto, a pressão externa era muito forte e o novo governo de Zelensky era muito fraco para ousar rompê-la. Afinal, neste caso, era necessária uma política econômica forte e a restauração da plena soberania.

David Broder

Em sua petição, você escreve que: “O endividamento caótico e a condição anti-social da dívida foi resultado da oligarquização total: não dispostos a lutar contra os ricos, os governantes do Estado continuaram a se endividar profundamente.” Você pode explicar isto – e se o alto endividamento força o Estado a confiar nos interesses oligárquicos-privados para projetos de infraestrutura?

Alexander Kravchuk

Esta ligação entre o peso da dívida e a dependência de interesses privados é bastante indireta, mas mesmo assim importante. O argumento de que a Ucrânia tem um Estado excessivo e inchado se desenvolveu por muito tempo. Entretanto, a parcela da renda nacional distribuída através da tributação e do orçamento na Ucrânia é muito menor do que em países europeus desenvolvidos.

Portanto, em condições onde a maioria das empresas estatais são privatizadas, a Ucrânia não tem recursos e capacidades para desenvolver projetos de infraestrutura. O capital privado na Ucrânia se concentra tanto nas indústrias de commodities quanto no setor financeiro. Esta tendência será ainda mais perceptível após a guerra, pois o capital privado ficará assustado com a instabilidade na região.

David Broder

Muitos países ocidentais já estão prometendo e entregando ajuda humanitária à Ucrânia. Qual é a importância específica do cancelamento da dívida externa, primeiramente no combate à guerra, e em permitir que os ucranianos moldem seu próprio futuro?

Alexander Kravchuk

Mais cedo ou mais tarde a guerra acabará, e a Ucrânia não só ficará com uma infraestrutura destruída por bombas, mas também com uma grande dívida pública.

A opção de reestruturação da dívida que ocorreu na última vez não é adequada para a economia ucraniana e é mais atraente para os próprios credores. Em 2015, alguns dos pagamentos aos credores comerciais foram adiados por três anos e 20% do principal foi cancelado. Mas qual foi o preço disso? A Ucrânia foi obrigada a pagar aos credores 15% de seu aumento do PIB acima de 3%, e 40% de cada 1% de seu aumento do PIB acima de 4%. Nós mal podíamos pagar nossa dívida, mesmo antes da guerra. Os termos do empréstimo deveriam ser revistos de forma mais transparente.

David Broder

Que mecanismos você imagina que permitiriam que esta demanda fosse atendida? O que você acha do precedente do cancelamento da dívida da Alemanha Ocidental em 1953?

Alexander Kravchuk

Eu não posso sugerir imediatamente um mecanismo de revisão da dívida – em particular, porque estou escrevendo isto sob o som do bombardeio.

Mas estou convencido de que podemos utilizar, por exemplo, o trabalho do Comitê para a Abolição da Dívida Ilegítima, como aconteceu no Equador em 2008, quando 70% da dívida soberana foi declarada ilegal e os fundos liberados foram utilizados para o desenvolvimento econômico e o bem-estar do país.

Hoje, é difícil pensar em como poderia ser uma vida pacífica na Ucrânia. Mas é preciso trabalhar na construção de uma sociedade independente e socialmente justa. Por esta razão, o jugo da dívida deve ir para a lata do lixo da história – junto com o exército de invasores russos.

Sobre o entrevistado

Alexander Kravchuk é editor do Commons: Journal of Social Critique na Ucrânia.

Sobre o entrevistador

David Broder é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria.

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