Andre Pagliarini
Folha de S.Paulo
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Militares no desembarque do presidente João Goulart em São Paulo em novembro de 1963, meses antes do golpe de Estado - Acervo UH - 11.nov.63/Folhapress |
"O presidente não considera 31 de março de 1964 um golpe militar", afirmou o então porta-voz da Presidência da República, general Otávio Santana do Rêgo Barros, três anos atrás. Parafraseando a perspectiva do presidente Jair Bolsonaro, Rêgo afirmou que, há 58 anos, "percebendo o perigo" que o país enfrentava no auge da Guerra Fria, a sociedade civil e homens fardados se juntaram para "recuperar e recolocar o nosso país no rumo".
A conclusão desse raciocínio é uma só: "Salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém", disse o porta-voz. Ou seja, o golpe militar de 1964 não foi apenas necessário, mas também benéfico.
Acontece que essa narrativa não para em pé. Vários historiadores de peso já mostraram minuciosamente que Jango não preparava um golpe nos primeiros meses de 1964. Sabemos também que, apesar dos grandes desafios econômicos que enfrentava e as expressivas manifestações conservadoras contra o presidente na época, Goulart mantinha apoio popular significativo.
Segundo dados do Ibope às vésperas do golpe, 45% dos entrevistados nas grandes cidades consideravam o governo Jango bom ou ótimo. A mesma pesquisa indicou que o presidente trabalhista contaria com o apoio de 49% dos entrevistados no pleito de 1965. Um paralelo interessante, embora se trate de contextos históricos distintos: o ex-presidente Lula lidera a mais recente pesquisa Datafolha com 43% de intenções de voto nas eleições deste ano.
Difícil entender como um presidente que, segundo seus opositores, se descolava da realidade política brasileira conseguia sustentar dados tão positivos a seu respeito.
Não é verdade que Goulart agia para implantar uma ditadura no Brasil de cunho esquerdista, como afirmava o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon. Chama a atenção o fato de que, nos primeiros anos do regime militar, muitos analistas simpáticos ao golpe em 1964 passaram a dizer que Goulart tinha sido derrubado pelo conjunto da obra, não necessariamente por planos específicos contra a ordem institucional do país.
Para os militares, no entanto, a caracterização de Goulart como aspirante a ditador esquerdista sempre teve apelo intelectual e retórico. Esse erro primário de análise histórica liga diretamente Bolsonaro aos generais que se apossaram do país a partir de 1964.
No primeiro aniversário do golpe, o então presidente, Humberto de Alencar Castelo Branco, caracterizou a tomada de poder como uma defesa pontual do povo brasileiro contra um postulante autoritário, bem como um processo sem prazo de validade: "Foi extraordinário e fundamental o que a revolução de 31 de março representou para os brasileiros e para a preservação das suas liberdades nas perspectivas do tempo. Ainda mais fundamental é o que ela está fazendo e fará pela renovação do Brasil".
O presidente Bolsonaro também citou muitas vezes a defesa das liberdades como missão fundamental do regime militar. "Vivíamos em plena segurança", afirmou Bolsonaro, então deputado federal, em 2009. "Quem quisesse, podia sair do país. Em Cuba, ninguém sai nem entra. Tínhamos plena liberdade. É lógico", Bolsonaro emendou, "alguns reclamam que não tinham liberdade porque naquele tempo existia a figura da detenção por vadiagem". Mais recentemente, já como presidente, Bolsonaro chamou o dia do golpe de "o grande dia da liberdade".
Outro aspecto da ditadura que Castelo Branco enfatizou no primeiro aniversário do golpe foi o caráter técnico do regime. Insistia que "a revolução estaria muito aquém das aspirações populares se limitada a deter e repelir os graves e iminentes perigos que pesavam sobre nossas instituições políticas. Daí o empenho do governo nas reformas destinadas a atualizá-las, aprimorá-las e revigorá-las, e que de modo indelével assinalam o primeiro ano do governo revolucionário".
Na visão de Bolsonaro, os militares fizeram grandes obras "sem roubalheira", afirmativa contestada pelo historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, entre outros pesquisadores. Na época, segundo Bolsonaro, "o povo tinha bons administradores. Tanto é que o presidente Médici, que a esquerda chama de um grande sanguinário, era aplaudido quando entrava no Maracanã".
Os próprios militares insistiam na sua capacidade administrativa ao longo do período ditatorial, mesmo quando essa habilidade padecia de sustentação empírica. Nos anos 1980, por exemplo, o Brasil afundou em uma grave crise econômica.
De 1970 a 1980, a economia cresceu à taxa média anual de 6,1%.Esse ritmo despencou no início dos anos 1980. Mesmo assim, como aponta a historiadora Lucileide Costa Cardoso, em 1984 o general Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, ministro do Exército do governo João Figueiredo, aproveitou o vigésimo aniversário do golpe de 1964 para defender que os militares restauraram o país.
"O significado histórico e a autenticidade cívica do Movimento residiam, para ele, no apoio de diversos segmentos da sociedade em salvaguardar o país da imposição de um ‘regime totalitário à feição comunista’", aponta Cardoso. Os "revolucionários de 64," na terminologia do general, reconstruíram o Brasil de forma serene e correta, apesar dos desafios domésticos e estrangeiros.
"Não quero saudar apenas os militares das Forças Armadas", disse Bolsonaro em 2016, ao comemorar o aniversário do golpe. "Quero saudar todo o povo brasileiro, que, naquela época, foi às ruas pedir o afastamento do comunista João Goulart". A ideia golpista de que Goulart —presidente legítimo em 1964 segundo a Constituição vigente— representava uma ameaça amplamente repudiada pela sociedade como um todo sobrevive nos discursos do atual presidente.
Entretanto, um detalhe incômodo que vários presidentes-generais buscavam contornar em discursos comemorando o golpe ao longo dos anos foi a falta de democracia plena no país durante a ditadura.
O presidente Artur da Costa e Silva, por exemplo, fez um apelo ao realismo da juventude brasileira: "Aos nossos estudantes deve tornar-se claro que as condições de um país que começa a progredir aceleradamente e com uma expansão democrática explosiva —como é o caso do Brasil— exigem deles sentimento de realidade, compreensão do momento histórico, coragem e espírito de sacrifício".
Insistia, em outro momento, que "a democracia abarca todas as correntes de ideias, mas dificilmente pode assimilar ou levar consigo o ódio, a corrupção, a subversão, a intransigência obstinada e pronta a recorrer aos recursos mais ilícitos, à mentira, à difamação, ao ataque pessoal, à má-fé. Sobretudo, não pode acobertar, sob a liberdade que prega, os instrumentos da sua própria destruição".
Bolsonaro também coloca o regime militar como defensor real da democracia, sugerindo "à garotada universitária" em 2009 que "peguem os jornais de antes e de depois de 1964 e vejam o que está escrito lá. Antes não havia censura, depois, dizem que havia. Leiam o editorial do Jornal do Brasil de 1º de abril de 1964: ‘Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade’. Essa cambada de pré-64, que depois pegou em armas para tentar derrubar o governo, queria impor a ditadura do proletariado. Pegava recursos de Cuba para financiar democracia aqui. Só idiota para acreditar nisso".
Em 2019, o governo Bolsonaro mandou um telegrama controverso à ONU defendendo sua concepção histórica da ditadura. Afirmando que "os anos 1960-70 foram um período de intensa mobilização de organizações terroristas de esquerda no Brasil e em toda a América Latina", a mensagem caracterizou o golpe como necessário para "afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria".
O ponto de reparar as semelhanças entre a percepção histórica de Bolsonaro e os generais que, no fim das contas, fizeram a ditadura não é insistir no que o historiador Carlos Fico chamou de "leitura vitimizadora do golpe de 1964". Como diz Fico, não nos ajuda como população sustentar simplesmente que "a sociedade foi vítima de militares desarvorados" em 1964. Tampouco podemos entender o golpe apenas como ponto de partida para a ditadura que a sucedeu. A realidade histórica é mais complexa.
De fato, faria um bem enorme à sociedade brasileira se mais pessoas interagissem com a grande produção acadêmica feita sobre o golpe de 1964 e o período ditatorial nos últimos anos, especialmente quando a realidade histórica é colocada em dúvida pelo próprio chefe do Executivo. O objetivo dessa análise é gerar uma reflexão sobre como certas noções supostamente históricas perduram a despeito de ampla produção acadêmica que identifica seus pontos rasos, enganosos ou errôneos.
Seria errado afirmar que há um consenso entre estudiosos sobre a natureza do golpe de 1964 —seria um golpe militar? ou faria mais sentido o chamar de golpe civil-militar?—, bem como o clima político brasileiro às vésperas da derrubada de Jango.
Chegou a ser noticiado neste jornal, por exemplo, um evento acadêmico marcando os 40 anos do golpe organizado juntamente pela FGV (Fundação Getulio Vargas), UFF (Universidade Federal Fluminense) e UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). A pergunta central da conferência era se esquerda e direita eram igualmente golpistas em 1964.
"A polêmica dividiu historiadores e cientistas políticos que participaram", aponta a reportagem. "O clima de golpismo generalizado foi defendido por três pesquisadores do período: Maria Celina D'Araújo (FGV), Carlos Fico (UFRJ) e Jorge Ferreira (UFF)", enquanto "o historiador Jacob Gorender, Caio Navarro de Toledo (Unicamp) e Maria Aparecida de Aquino (USP) disseram ser contra a tese".
Chama a atenção a qualidade dos estudiosos em cada lado da questão. O historiador Celso Castro (FGV) colocou desta forma: "Por um lado, temos que evitar o papel de vitimização das esquerdas, como se elas, coitadinhas, não tivessem noção do que estavam fazendo. Elas eram atores naquele tenso jogo político que foi o governo João Goulart".
Para Caio Navarro de Toledo, as forças de esquerda que pressionavam Jango na época contribuíram para o "agravamento do processo político" que desaguou no golpe, mas não visavam o fim da ordem democrática. "A ideia de que o golpe de 64 foi preventivo é errada", sustenta o historiador.
Ao relembrar eventos historicamente significativos em datas simbólicas, o importante é refletir sobre argumentos e mudanças de percepções e prioridades ao longo do tempo. De forma geral, historiadores sérios desempenham esse trabalho de forma especialmente louvável. Triste é quando segmentos influentes de uma sociedade insistem em interpretações frágeis do passado simplesmente porque comportam seus valores pessoais ou pressupostos ideológicos.
Não há dúvida de que Bolsonaro comemoraria a ditadura mesmo que pudesse ser convencido de que as questões históricas que ele cita estão erradas ou fora de contexto. Comemoraria porque ele tem uma índole autoritária e enxerga na ditadura uma forma de governo que adoraria implementar se tivesse a chance. Fatos históricos são o que menos lhe importa.
Discordâncias são legítimas e muitas vezes positivamente estimulantes, mas não é possível ter um diálogo produtivo com quem acha que sabe e não quer saber ao mesmo tempo.
Sobre o autor
Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)
A conclusão desse raciocínio é uma só: "Salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém", disse o porta-voz. Ou seja, o golpe militar de 1964 não foi apenas necessário, mas também benéfico.
Acontece que essa narrativa não para em pé. Vários historiadores de peso já mostraram minuciosamente que Jango não preparava um golpe nos primeiros meses de 1964. Sabemos também que, apesar dos grandes desafios econômicos que enfrentava e as expressivas manifestações conservadoras contra o presidente na época, Goulart mantinha apoio popular significativo.
Segundo dados do Ibope às vésperas do golpe, 45% dos entrevistados nas grandes cidades consideravam o governo Jango bom ou ótimo. A mesma pesquisa indicou que o presidente trabalhista contaria com o apoio de 49% dos entrevistados no pleito de 1965. Um paralelo interessante, embora se trate de contextos históricos distintos: o ex-presidente Lula lidera a mais recente pesquisa Datafolha com 43% de intenções de voto nas eleições deste ano.
Difícil entender como um presidente que, segundo seus opositores, se descolava da realidade política brasileira conseguia sustentar dados tão positivos a seu respeito.
Não é verdade que Goulart agia para implantar uma ditadura no Brasil de cunho esquerdista, como afirmava o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon. Chama a atenção o fato de que, nos primeiros anos do regime militar, muitos analistas simpáticos ao golpe em 1964 passaram a dizer que Goulart tinha sido derrubado pelo conjunto da obra, não necessariamente por planos específicos contra a ordem institucional do país.
Para os militares, no entanto, a caracterização de Goulart como aspirante a ditador esquerdista sempre teve apelo intelectual e retórico. Esse erro primário de análise histórica liga diretamente Bolsonaro aos generais que se apossaram do país a partir de 1964.
No primeiro aniversário do golpe, o então presidente, Humberto de Alencar Castelo Branco, caracterizou a tomada de poder como uma defesa pontual do povo brasileiro contra um postulante autoritário, bem como um processo sem prazo de validade: "Foi extraordinário e fundamental o que a revolução de 31 de março representou para os brasileiros e para a preservação das suas liberdades nas perspectivas do tempo. Ainda mais fundamental é o que ela está fazendo e fará pela renovação do Brasil".
O presidente Bolsonaro também citou muitas vezes a defesa das liberdades como missão fundamental do regime militar. "Vivíamos em plena segurança", afirmou Bolsonaro, então deputado federal, em 2009. "Quem quisesse, podia sair do país. Em Cuba, ninguém sai nem entra. Tínhamos plena liberdade. É lógico", Bolsonaro emendou, "alguns reclamam que não tinham liberdade porque naquele tempo existia a figura da detenção por vadiagem". Mais recentemente, já como presidente, Bolsonaro chamou o dia do golpe de "o grande dia da liberdade".
Outro aspecto da ditadura que Castelo Branco enfatizou no primeiro aniversário do golpe foi o caráter técnico do regime. Insistia que "a revolução estaria muito aquém das aspirações populares se limitada a deter e repelir os graves e iminentes perigos que pesavam sobre nossas instituições políticas. Daí o empenho do governo nas reformas destinadas a atualizá-las, aprimorá-las e revigorá-las, e que de modo indelével assinalam o primeiro ano do governo revolucionário".
Na visão de Bolsonaro, os militares fizeram grandes obras "sem roubalheira", afirmativa contestada pelo historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, entre outros pesquisadores. Na época, segundo Bolsonaro, "o povo tinha bons administradores. Tanto é que o presidente Médici, que a esquerda chama de um grande sanguinário, era aplaudido quando entrava no Maracanã".
Os próprios militares insistiam na sua capacidade administrativa ao longo do período ditatorial, mesmo quando essa habilidade padecia de sustentação empírica. Nos anos 1980, por exemplo, o Brasil afundou em uma grave crise econômica.
De 1970 a 1980, a economia cresceu à taxa média anual de 6,1%.Esse ritmo despencou no início dos anos 1980. Mesmo assim, como aponta a historiadora Lucileide Costa Cardoso, em 1984 o general Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, ministro do Exército do governo João Figueiredo, aproveitou o vigésimo aniversário do golpe de 1964 para defender que os militares restauraram o país.
"O significado histórico e a autenticidade cívica do Movimento residiam, para ele, no apoio de diversos segmentos da sociedade em salvaguardar o país da imposição de um ‘regime totalitário à feição comunista’", aponta Cardoso. Os "revolucionários de 64," na terminologia do general, reconstruíram o Brasil de forma serene e correta, apesar dos desafios domésticos e estrangeiros.
"Não quero saudar apenas os militares das Forças Armadas", disse Bolsonaro em 2016, ao comemorar o aniversário do golpe. "Quero saudar todo o povo brasileiro, que, naquela época, foi às ruas pedir o afastamento do comunista João Goulart". A ideia golpista de que Goulart —presidente legítimo em 1964 segundo a Constituição vigente— representava uma ameaça amplamente repudiada pela sociedade como um todo sobrevive nos discursos do atual presidente.
Entretanto, um detalhe incômodo que vários presidentes-generais buscavam contornar em discursos comemorando o golpe ao longo dos anos foi a falta de democracia plena no país durante a ditadura.
O presidente Artur da Costa e Silva, por exemplo, fez um apelo ao realismo da juventude brasileira: "Aos nossos estudantes deve tornar-se claro que as condições de um país que começa a progredir aceleradamente e com uma expansão democrática explosiva —como é o caso do Brasil— exigem deles sentimento de realidade, compreensão do momento histórico, coragem e espírito de sacrifício".
Insistia, em outro momento, que "a democracia abarca todas as correntes de ideias, mas dificilmente pode assimilar ou levar consigo o ódio, a corrupção, a subversão, a intransigência obstinada e pronta a recorrer aos recursos mais ilícitos, à mentira, à difamação, ao ataque pessoal, à má-fé. Sobretudo, não pode acobertar, sob a liberdade que prega, os instrumentos da sua própria destruição".
Bolsonaro também coloca o regime militar como defensor real da democracia, sugerindo "à garotada universitária" em 2009 que "peguem os jornais de antes e de depois de 1964 e vejam o que está escrito lá. Antes não havia censura, depois, dizem que havia. Leiam o editorial do Jornal do Brasil de 1º de abril de 1964: ‘Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade’. Essa cambada de pré-64, que depois pegou em armas para tentar derrubar o governo, queria impor a ditadura do proletariado. Pegava recursos de Cuba para financiar democracia aqui. Só idiota para acreditar nisso".
Em 2019, o governo Bolsonaro mandou um telegrama controverso à ONU defendendo sua concepção histórica da ditadura. Afirmando que "os anos 1960-70 foram um período de intensa mobilização de organizações terroristas de esquerda no Brasil e em toda a América Latina", a mensagem caracterizou o golpe como necessário para "afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria".
O ponto de reparar as semelhanças entre a percepção histórica de Bolsonaro e os generais que, no fim das contas, fizeram a ditadura não é insistir no que o historiador Carlos Fico chamou de "leitura vitimizadora do golpe de 1964". Como diz Fico, não nos ajuda como população sustentar simplesmente que "a sociedade foi vítima de militares desarvorados" em 1964. Tampouco podemos entender o golpe apenas como ponto de partida para a ditadura que a sucedeu. A realidade histórica é mais complexa.
De fato, faria um bem enorme à sociedade brasileira se mais pessoas interagissem com a grande produção acadêmica feita sobre o golpe de 1964 e o período ditatorial nos últimos anos, especialmente quando a realidade histórica é colocada em dúvida pelo próprio chefe do Executivo. O objetivo dessa análise é gerar uma reflexão sobre como certas noções supostamente históricas perduram a despeito de ampla produção acadêmica que identifica seus pontos rasos, enganosos ou errôneos.
Seria errado afirmar que há um consenso entre estudiosos sobre a natureza do golpe de 1964 —seria um golpe militar? ou faria mais sentido o chamar de golpe civil-militar?—, bem como o clima político brasileiro às vésperas da derrubada de Jango.
Chegou a ser noticiado neste jornal, por exemplo, um evento acadêmico marcando os 40 anos do golpe organizado juntamente pela FGV (Fundação Getulio Vargas), UFF (Universidade Federal Fluminense) e UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). A pergunta central da conferência era se esquerda e direita eram igualmente golpistas em 1964.
"A polêmica dividiu historiadores e cientistas políticos que participaram", aponta a reportagem. "O clima de golpismo generalizado foi defendido por três pesquisadores do período: Maria Celina D'Araújo (FGV), Carlos Fico (UFRJ) e Jorge Ferreira (UFF)", enquanto "o historiador Jacob Gorender, Caio Navarro de Toledo (Unicamp) e Maria Aparecida de Aquino (USP) disseram ser contra a tese".
Chama a atenção a qualidade dos estudiosos em cada lado da questão. O historiador Celso Castro (FGV) colocou desta forma: "Por um lado, temos que evitar o papel de vitimização das esquerdas, como se elas, coitadinhas, não tivessem noção do que estavam fazendo. Elas eram atores naquele tenso jogo político que foi o governo João Goulart".
Para Caio Navarro de Toledo, as forças de esquerda que pressionavam Jango na época contribuíram para o "agravamento do processo político" que desaguou no golpe, mas não visavam o fim da ordem democrática. "A ideia de que o golpe de 64 foi preventivo é errada", sustenta o historiador.
Ao relembrar eventos historicamente significativos em datas simbólicas, o importante é refletir sobre argumentos e mudanças de percepções e prioridades ao longo do tempo. De forma geral, historiadores sérios desempenham esse trabalho de forma especialmente louvável. Triste é quando segmentos influentes de uma sociedade insistem em interpretações frágeis do passado simplesmente porque comportam seus valores pessoais ou pressupostos ideológicos.
Não há dúvida de que Bolsonaro comemoraria a ditadura mesmo que pudesse ser convencido de que as questões históricas que ele cita estão erradas ou fora de contexto. Comemoraria porque ele tem uma índole autoritária e enxerga na ditadura uma forma de governo que adoraria implementar se tivesse a chance. Fatos históricos são o que menos lhe importa.
Discordâncias são legítimas e muitas vezes positivamente estimulantes, mas não é possível ter um diálogo produtivo com quem acha que sabe e não quer saber ao mesmo tempo.
Sobre o autor
Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)
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