7 de maio de 2020

Financiamento do Tesouro

O aumento do déficit público pós-Covid-19 estimulou sugestões sobre formas de financiamento do governo.

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo


Alguns colegas defendem financiamento monetário, com venda direta de títulos do Tesouro Nacional (TN) ao Banco Central (BC), ou simples saque maior dos recursos depositados na “conta única” do TN no BC para pagar as ações contra a crise. As duas questões são importantes, mas elas dizem respeito a uma fase na qual não chegamos.

Enquanto tivermos Selic positiva, qualquer criação de liquidez por parte do TN, seja com base em recursos já existentes em sua conta única ou em emissões diretas de títulos ao BC, tende a ser transformada em dívida pública do TN com o mercado.

Por exemplo, apesar de proibido hoje, assuma que uma PEC autorize o financiamento direto do TN pelo BC.

O processo seria o seguinte: 1) o BC compra títulos do TN, depositando os R$ correspondentes na conta única do TN no próprio BC; 2 o TN gasta os recursos, aumentando a base monetária da economia; e 3) o BC usa títulos públicos em sua carteira para “enxugar” a liquidez criada pelo TN via “operações compromissadas”, isto é, o BC vende títulos e recebe R$ de volta, restaurando a base monetária ao seu valor inicial.

A existência de depósitos compulsórios complica um pouco a sequência acima (veja meu texto no blog da FGV Ibre), mas não altera seu sentido lógico: com Selic positiva e constante, o financiamento direto do TN pelo BC eleva a dívida do TN com o mercado “como se” o TN tivesse vendido títulos ao mercado.

O ponto-chave é a “esterilização monetária” de 100% das ações do TN pelo BC. Por quê? Porque o BC tem que criar ou destruir moeda, via operações compromissadas, no volume necessário para manter a Selic no valor definido pelo Copom.

Alguns colegas dirão que é justamente isso que eles desejam eliminar, que é preciso monetizar o déficit público para “forçar” o BC a reduzir a Selic. Se é esse o caso, como sempre digo, é melhor chamar as coisas pelo nome!

Em vez de discutir financiamento monetário do TN para derrubar a Selic, vamos discutir se e como a Selic pode cair de modo compatível com o controle da inflação.

Se e quando a Selic nominal puder cair para zero, aí, sim, a escolha de financiamento via moeda ou títulos se tornará viável, pois a eventual injeção de liquidez na economia por parte do TN não precisará ser esterilizada pelo BC.

Traduzindo do “economês”: Selic nominal zero significa que ela não pode cair mais, logo o BC não precisa tirar dinheiro da economia via operações compromissadas para evitar que a taxa básica de juro caia. Várias economias avançadas já estão nessa situação, mas nós ainda não chegamos lá.

Na nossa realidade de Selic positiva, para que o TN possa se financiar com mais emissão de moeda e menos emissão de títulos, é preciso “combinar com os russos”, isto é, é preciso que a sociedade queira mais moeda à taxa de juro vigente.

A própria redução da Selic é um dos fatores que podem aumentar a demanda por moeda, permitindo que parte do déficit público seja financiada com juro zero (base monetária) e outra parte com juro baixo (títulos de curto prazo).

Por isso, apesar de entender o desejo de financiamento monetário do TN para diminuir o custo financeiro da dívida pública, além de torcer para que nossa taxa básica de juro possa cair a zero, acho que nossa principal questão monetária ainda é a determinação da Selic.

E por que a Selic ainda não caiu para zero? Deixo essa questão para a próxima coluna, mas antecipo parte da resposta, é a taxa de câmbio!

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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