15 de outubro de 2006

China's New Leftist

Pankaj Mishra


No início deste ano encontrei Wang Hui no café "Thinker's" perto da universidade de Tsinghua em Pequim, onde é professor. Um homem compacto, de pequena estatura, já com algumas madeixas cinzentas no seu cabelo curto e uma cara agradável sempre pronta a abrir-se num sorriso, chegou, como doravante chegaria a todos os nossos encontros subsequentes, numa velha bicicleta, vestido de bombazina escura, casaco de camurça e uma camisola de gola alta preta, num estilo que não estaria deslocado num campus universitário americano.

Co-editor do principal jornal intelectual da China, o Dushu (Leitura), e autor de uma história em quatro-volumes sobre o pensamento chinês, Wang, ainda nos seus 40’s, surgiu como uma figura central num grupo de escritores e de académicos conhecidos como a Nova Esquerda. Estes intelectuais defendem “uma alternativa chinesa” à economia de mercado neoliberal, que garantirá o bem-estar para os 800 milhões de camponeses deste país, deixados para trás pelas reformas recentes. E, ao contrário da maioria da classe dissidente na China, que nasceu dos protestos na Praça de Tiananmen em 1989 e que consiste maioritariamente em activistas dos direitos humanos e pró-democracia, Wang e a Nova Esquerda vêem a liderança comunista como uma força conducente à mudança. Acontecimentos recentes - o afastamento de líderes partidários no final do mês passado sob acusações de corrupção e os contínuos esforços para limitar os excessos do mercado - sugerem que esta visão não é nem utópica nem paradoxal. Embora os elementos da Nova Esquerda nunca tenham participado nas políticas do governo, as suas preocupações são crescentemente amplificados pelo Governo Central.

Nos anos mais recentes, Wang reflectiu eloquente e frequentemente sobre aquilo que os estrangeiros consideram ser o principal paradoxo da China contemporânea: um estado autoritário que promove uma economia de mercado livre mas assente num sistema socialista. Nesta primeira tarde, Wang pouco tempo dedicou a conversa de circunstância, passando quase imediatamente a uma análise dos problemas do país. Descreveu como o partido comunista, embora oficialmente empenhado nas questões da igualdade, tinha aberto a direcção do partido aos homens de negócios, ricos. Muitos dos seus representantes locais usaram, disse ele, o seu poder arbitrariamente para se transformarem em empresários bem sucedidos à custa das populações rurais que era suposto apoiarem e juntaram-se a especuladores em bens imobiliários para se apropriarem de terrenos detidos colectivamente pelos camponeses. (De acordo com as autoridades chinesas, 60 por cento das aquisições de terrenos são ilegais.) O resultado foi uma aliança da interesses das elites política e comercial, afirmou Wang, que fazem lembrar alianças similares nos Estados Unidos e em muitos países asiáticos de leste.

Enquanto descrevia como é que as reformas do mercado aumentaram a distância entre ricos e pobres, entre áreas rurais e urbanas, ao nosso redor estudantes bem vestidos percorriam uma colecção de obras intelectuais (Leo Strauss, Jürgen Habermas), consultavam o seu email e saboreavam o seu café moca. No "Thinker's", um café privado, e na livraria vizinha "All Sages", Wang aparentava ser famoso. Os estudantes cumprimentaram-no com reverência; o grupo de funcionários foi extremamente atencioso. Contudo, Wang ainda pertence a uma minoria. Distanciando-se dos excessos do maoismo e dos fracassos da velha economia planificada, a maioria dos intelectuais chineses, mesmo aqueles sem ligação ao Estado, vêem a economia de mercado como indispensável para a modernização e para o renascimento da China. Zhu Xueqin, um professor de história na universidade de Shanghai que é um dos intelectuais liberais mais conhecidos da China, disse-me que quer mais, não menos, reformas de mercado. Para ele, a instabilidade actual de China é causada não por forças económicas mas sim por um regime politicamente repressivo que impede a emergência de uma democracia representativa e de um governo constitucional.

Wang reconhece prontamente que o empenho da China na reforma económica não deixou de trazer grandes benefícios. Aplaude a primeira fase, a que durou de 1978 a 1985, por melhorar a produção agrícola e o nível de vida rural. É a actual obsessão do governo central em criar riqueza nas áreas urbanas - e a sua decisão em ceder a autoridade política a líderes locais do Partido, que frequentemente ignoram de modo explícito as directrizes do governo central - que conduziu, segundo ele, a desigualdades profundas na China. A adopção de uma nova economia de mercado neoliberal traduziuse, para ele, no desmantelamento dos sistemas do Estado Providência, um alargar das diferenças entre os dos ricos e dos pobres e o aprofundar igualmente das crises ambientais não somente na China mas também nos Estados Unidos e nos outros países desenvolvidos. Para Wang, é a tarefa dos intelectuais lembrar ao Estado os seus antigos deveres por cumprir para com os camponeses e trabalhadores.

Apesar da sua invocação de princípios socialistas, Wang foi rápido em dizer-me que não gosta do rótulo de Nova Esquerda, mesmo que ele próprio a tenha usado. Os “intelectuais reagiram contra “ o esquerdismo” dos anos 80, responsabilizando-o por todos os problemas de China,” disse, e “ os radicais de direita usam a expressão Nova Esquerda para nos desacreditar, para que nos vejam como o que resta dos tempos do Maoismo.” Wang não se importa igualmente em ser identificado com os inteletuais radicais dos anos 60 na América e na Europa, a quem a expressão Nova Esquerda era inicialmente dirigida. Muitos deles tiveram, disse ele, a paixão e as palavras de ordem mas muito pouca experiência política e, não surpreendentemente, muitos deles acabaram por se juntar aos neoconservadores apoiando “projectos de fantasia” como a democracia no Iraque.

Wang prefere o termo “intelectual crítico” para si mesmo e para os seus colegas, alguns dos quais fazem igualmente parte do movimento emergente dos activistas na China rural, nos campos, trabalhando para aí aliviar a pobreza e reduzir os danos ao meio ambiente. Embora seja amplamente esquerdista, a Dushu publica artigos que abarcam um largo espectro ideológico. O próprio trabalho de Wang inspira-se num espectro alargado de pensadores ocidentais, do historiador francês Fernand Braudel ao teórico da globalização, Immanuel Wallerstein. “A qualidade intelectual é importante para mim,” referiu Wang. “Eu não quero publicar qualquer lixo esquerdista.” A revista publicou debates teóricos sobre a teoria pós-colonial assim como, reivindica, algumas das análises das mais importantes na China sobre o modo como as reformas do governo orientadas para as zonas urbanas prejudicaram a sociedade rural. Há limitações quanto ao que a Dushu pode publicar, naturalmente, e Wang é sincero sobre este assunto. Como com todos os jornais intelectuais na China continental, os autores e os editores da Dushu têm que exercer um certo grau de autocensura. Os artigos não podem directamente criticar a liderança ou afastarem-se muito da linha oficial nos assuntos que o governo chinês considera os mais sensíveis – a Formosa ou as minorias muçulmanas e budistas no Xinjiang e no Tibete.

“Eu tenho sido muito questionado pelos países ocidentais, ` como é que define a sua posição?”’ disse-nos Wang. À pergunta “`o senhor é um dissidente?’ Eu digo não. O que é um dissidente? É uma categoria da guerra-fria. E já não tem agora nenhum significado. Muitos dos dissidentes chineses na América podem já voltar para a China. Mas estes não o querem fazer. Estão a viver bem nos Estados Unidos. Às pessoas que me perguntam se nós somos dissidentes, eu digo, nós somos intelectuais críticos. Apoiamos algumas das políticas do governo e opomo-nos a outras. Tudo depende realmente do conteúdo das políticas.”

Nascido em Yangzhou na província sudoeste de Jiangsu, Wang tinha apenas 7 anos e acabara de entrar para o ensino primário quando a Revolução Cultural se iniciou, em 1966. O caos de uma década, que traumatizou gerações mais velhas, parece ter deixado memórias pouco incómodas para Wang. Recorda ser levado pela sua escola decidiu para trabalhar nas aldeias por uma semana ou duas durante o ano escolar. “A minha geração de intelectuais urbanos,” disse, com um certo ar de orgulho, “é a última a ter a experiência em primeira-mão das condições de vida no campo.”

Relembra os 20 meses em que trabalhou nas fábricas em volta de Yangzhou após a escola secundária como uma experiência valiosa. Em 1977, fez os primeiros exames após a Revolução Cultural para entrada na universidade, durante a qual muitas universidades foram fechadas ou nas quais eram admitidos somente camponeses, trabalhadores e soldados. “Milhares de aspirantes a estudantes,” lembrou, “estavam a concorrer para um único lugar.”

Quando se deslocou de Yangzhou para Pequim a fim de começar os seus estudos para doutoramento nos meados dos anos 80, Wang considerou-se como fazendo parte de uma classe ainda mais privilegiada. Os “intelectuais,” disse, “tinham sido o alvo durante o tempo de Mao; agora, no pós-Mao, eram de novo a elite”. E nessa altura, disse Wang, todos concordaram acerca do que era necessário ser feito: a China tinha que abandonar as suas tradições “feudais” e socialistas e alcançar o ocidente capitalista. Marcados pela revolução cultural, os intelectuais viram o socialismo na China como um fracasso. Consequentemente, acreditaram, argumenta Wang, que uma sociedade consumista de tipo ocidental poderia ser recriada com sucesso e seria ambientalmente sustentável na China. O Ocidente, especialmente os Estados Unidos, constituíam o ideal.

Wang começou primeiro por desenvolver as suas próprias opiniões sobre a China contemporânea enquanto estava a trabalhar numa tese sobre um dos mais admirados escritores chineses modernos, Lu Xun (1881-1936). Lu Xun, explicou Wang, foi um escritor de esquerda, mas era também um escritor muito crítico dos escritores e dos activistas de esquerda. Criticou a tradição chinesa, mas foi igualmente um excelente erudito clássico. Deu as boas-vindas à ideia ocidental de progresso, mas foi igualmente céptico acerca dela. Os paradoxos em Lu Xun ajudaram Wang a ver que a modernidade chinesa não poderia ser uma simples questão de abandonar o velho e de abraçar o novo - como o tinha sido quer para os maoístas quer para os capitalistas do mercado livre.

Para Wang, os problemas associados com o desenvolvimento desigual de China foram primeiro identificados pelos manifestantes na Praça de Tiananmen em 1989. O próprio Wang, foi um dos últimos manifestantes a deixar a praça na manhã de 4 de Junho de 1989, à medida que os tanques do Exército de Libertação do Povo se aproximavam. Normalmente bastante rápido e circunstancial, Wang foi ficando cada vez mais animado enquanto descrevia no seu inglês fluente, se bem que ocasionalmente idiossincrático, como um “movimento social alargado” emergiu do trauma provocado pela terapia de choque das reformas do mercado. Os estudantes a exigir a liberdade de expressão e de reunião eram certamente os mais visíveis. Mas havia, referiu, muito mais chineses nas cidades - trabalhadores, funcionários públicos e pequenos empresários - a exigirem que o Governo controlasse a corrupção e a inflação, que tinha disparado até perto de 30 por cento após o abandono da gestão controlada dos preços dos produtos de primeira necessidade.

Na Primavera de 1989, Wang era um membro na prestigiada Academia das Ciências Sociais da China. Wang disse-me que viu “o potencial democrático” nos protestos e sentiu-se obrigado a participar mesmo que tenha tido reservas acerca da falta “de coerência teórica e de metodologia” dos estudantes. Para Wang, os líderes dos estudantes recordaram-lhe os intelectuais chineses do início do século XX, que nunca foram mais unidos do que quando rejeitaram radicalmente tudo o que se referia ao passado. Não obstante, depois de o governo ter procurado esmagar os dissidentes declarando a lei marcial a 20 de Maio de 1989, Wang envolveu-se ainda mais no movimento. Na noite de 3 de Junho, quando os tanques e os carros blindados atravessaram Pequim, matando centenas de resistentes desarmados e ferindo alguns milhares mais, Wang estava entre aqueles que se encontravam no centro da Praça de Tiananmen. Ouvia os disparos, mas alguns estudantes mais radicais tinham recusado sair.

Wang decidiu permanecer e tentar convencer os estudantes a não sacrificarem as suas vidas. “Sabia,” disse, “que se o resultado fosse a violência, seria desastroso para o todo o país.” Wang disse que os seus receios foram fundados: a violência reduziu o espaço para o debate político e o governo chinês usou o período de silêncio intelectual que se seguiu para começar a desmantelar mais mecanismos do Estado Providência, como as empresas públicas, que garantiram durante muito tempo benefícios para os trabalhadores, desde o seu nascimento até ao final das suas vidas.

Eventualmente, os estudantes que advogavam a retirada pacífica prevaleceram e persuadiram o Exército de Libertação do Povo a dar-lhes a passagem segura pelo lado sudeste da praça. Imediatamente antes do amanhecer, centenas de estudantes deixaram a praça através de um corredor estreito, empurrados e insultados por soldados hostis. No espaço de minutos, os estudantes dispersaram. Alguns deles foram depois presos e condenados a longos períodos de prisão; outros fugiram para Hong Kong e eventualmente para o Ocidente; muitos outros, como Wang, desapareceram por algumas semanas.

Quando Wang retornou a Pequim nos finais de 1989, as autoridades esperavam-no. “Esta foi a altura mais difícil para mim,” disse. Foi-lhe perguntado repetidamente: “A que organização pertencia? Quem eram os seus companheiros?” Depois dos interrogatórios que duraram longos meses, foi colocado na província noroeste de Shaanxi, onde dúzias de outros jovens eruditos de Pequim estavam já a ser submetidos - à maneira tipicamente chinesa - a “reeducação” pela sua sujeição às condições de vida rurais.

No caso de Wang, a punição pela pedagogia parece ter sido mais bem sucedida do que as autoridades chinesas poderiam ter antecipado. Wang data a sua “educação real” à altura que passou em Shaanxi, uma das regiões mais pobres da China. Ficou chocado pela óbvia disparidade entre as cidades litorais, a usufruírem então dos primeiros frutos da reforma económica, e as províncias. Ficou também chocado com sua própria ignorância e dos seus colegas no movimento social de 1989. “Nós não tínhamos ideia nenhuma do quanto a velha ordem em muitas regiões da China rural estava em crise profunda,” disse-nos.

O sistema comunitário de Shaanxi foi desmantelado como parte das reformas de Deng Xiaoping, e a terra foi redistribuída. Mas esta área não produziu nada de muito valor, nem sequer bastantes produtos alimentares. O aprofundamento da pobreza conduziu a um forte aumento na criminalidade e nos problemas sociais; surgiram conflitos violentes assentes em discórdias sobre terrenos; os homens dedicaram-se ao jogo, espancando e mesmo vendendo as suas esposas e filhas. Wang viveu numa aldeia ao nível do mar onde o seu dormitório era inundado frequentemente enquanto dormia. Muito do seu trabalho diário consistia em escrever os panfletos didácticos que advertem os camponeses contra os perigos do jogo e do crime; trabalhou igualmente na reconstrução de uma escola primária que foi destruída pelas águas das enchentes. “Foi durante esse ano,” disse Wang, “que me apercebi de quão importante era ainda o Sistema de Previdência Social e uma rede cooperativa para muitas pessoas na China. Esta não é uma ideia socialista. Mesmo as dinastias imperiais que governaram a China mantiveram um equilíbrio entre as áreas ricas e as pobres através dos impostos e da caridade.

As “pessoas confinam a experiência da China à ditadura comunista e aos fracassos da economia planificada e pensam que o mercado fará agora tudo. Não vêem quantas coisas funcionaram no passado e são populares para o comum dos cidadãos, como o seguro médico cooperativo nas áreas rurais, onde as pessoas se organizaram para se entre-ajudarem. Isto pode voltar a ser hoje útil, uma vez que o Estado já não investe nada em cuidados

Muitas das pessoas pobres que Wang conheceu durante esse ano em Shaanxi viam-no como um homem educado de Pequim que poderia dizer aos mandarins do governo central para lhes mandar alguma ajuda. “Eu senti o peso deste papel,” disse Wang. “Eu não poderia dizer-lhes que não estava posição para fazer fosse o que fosse.” Wang voltou, disse-me, do seu exílio de 10 meses com um sentido apurado da distância entre o mundo dos intelectuais e o das pessoas comuns.

Durante o tempo que viveu em Shaanxi, o influente Journal of Literary Review denunciou a sua investigação sobre Lu Xun como um exemplo “da liberalização burguesa.” Contudo, Wang não teve nenhum problema ao voltar à vida académica.

Wang Hui. Créditos: Tony Law para o The New York Times

Wang não gosta muito de falar sobre 1989. Queixa-se do “estereótipo” da China nos meios ocidentais, emergente de Tiananmen. No entanto, a nossa conversa sobre Tiananmen foi fora do comum. Ao viajar através das cidades chinesas, vi que era difícil conseguir que as pessoas falassem sobre isto. Quando Deng Xiaoping procurou enterrar para sempre os fantasmas de Tiananmen apelando para as reformas rápidas do mercado em 1992, pode bem ter calculado que a ideia de riqueza pessoal - e do acesso aos bens ocidentais de marcas de topo de gama - compensaria muitas pessoas que recentemente tinham enriquecido pela falta de democracia política. Se assim era, isto parece mostrar que ele tinha razão. A maior perturbação pública na China desde Tiananmen ocorreu em Agosto de 1992, quando centenas de milhares de chineses tentaram comprar acções na nova bolsa de valores de Shenzen.

O esforço para criar riqueza nas áreas urbanas a partir de indústrias orientadas para a exportação - parte da política “deixem primeiro que alguns enriqueçam ”, anunciada por Deng Xiaoping e afirmada pelos seus sucessores - permitiu que a economia chinesa alcançasse uma taxa de crescimento média de 10 por cento e fez da China o quarto país industrial do mundo. Contudo, a China permanece um dos países mais pobres do mundo. Mais de 150 milhões de pessoas sobrevivem com um dólar por dia. Perto de 200 milhões de habitantes rurais estão a encher as cidades em busca de trabalho fracamente remunerado. Mais de quatro milhões de chineses participaram nos 87.000 protestos que se registaram em 2005, e estas estatísticas podem não exprimir inteiramente a raiva e o descontentamento da população chinesa, que vive com uma das desigualdades de rendimento mais elevada do mundo e com sistemas de saúde e ensino em degradação, assim como um sistema de impostos e de tributação arbitrário que é imposto pelos dirigentes partidários locais. Muita desta realidade, disse Wang, pode ser colocada aos pés “dos radicais de direita” ou dos economistas neoliberais que citam Milton Friedman e Friedrich Hayek (defensores dos mercados não regulados que inspiraram Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos anos 80) e que defendem a integração da China na economia global sem ter em conta o custo social das privatizações em massa. E são eles, acrescentou Wang que se associaram à elite dominante e que dominaram os meios estatais.

Somente na última década, acrescenta Wang, os intelectuais da Nova Esquerda começaram a questionar a ideia de que uma economia de mercado conduz inevitavelmente à democracia e à prosperidade. Wang, que ajudou a criar o jornal académico “Xueren” (O Estudante) depois do seu regresso do exílio em 1991, estava bem posicionado para observar estes intelectuais. À medida que entraram em maior contacto com académicos e com pensadores ocidentais, tornaram-se mais conscientes dos problemas não apenas nas sociedades europeias e americanas mas igualmente nos países do pós-comunismo que estavam a tentar trazer as suas economias de planeamento central para situações mais próximas dos modelos neoliberais. A intenção da China em fazer parte da Organização Mundial do Comércio (o que fez em 2001) provocou debates inesperadamente acirrados entre os universitários. Como descreveu Wang, os termos do debate tinham mudado: “Muitas pessoas sabiam então que a globalização não é uma palavra neutra descrevendo um processo natural. Faz parte do crescimento do capitalismo ocidental, a partir dos tempos do colonialismo e do imperialismo.” O que não significa dizer que a Nova Esquerda passou a defender uma posição fácil de antiglobalização; tem sido crítica de posições recentes anti-Japonesas e anti-Americanas que se têm verificado nas classes médias urbanas chinesas - que Wang apelidou de “nacionalismo consumidor.” Isto representa, na opinião de Wang, o mesmo tipo de globalização que a América defende: “É realmente uma forma de hipernacionalismo, e é por isto que se ouve falar de tarifas e das penalizações sobre a China quando os interesses económicos americanos estão a ser atingidos.”

Wang fez uma pausa e, depois, continuou então: “Muitas pessoas aprenderam igualmente que a razão devido à qual a economia chinesa não entrou em colapso, à semelhança das economias dos tigres asiáticos em 1997, foi que o Estado foi capaz de a proteger. Agora, naturalmente, a China, com a sua economia virada para a exportação é mais dependente da ordem mundial ocidental, especialmente da economia americana, do que a Índia.”

Em Janeiro deste ano, Wang publicou um longo artigo de investigação em que expõe a situação dos trabalhadores numa fábrica da sua cidade natal, Yangzhou, uma cidade de aproximadamente um milhão de habitantes. De acordo com Wang, em 2004 o governo local vendeu uma rentável empresa pública que fabricava produtos têxteis a um promotor imobiliário da cidade de Shenzen, no Sul da China. As acções dos trabalhadores foram compradas por 30 por cento do seu valor real, e mais de mil trabalhadores foram despedidos como consequência de perdas decorrentes da má gestão da fábrica. Em Julho de 2004, os trabalhadores entraram em greve. Naquilo que Wang retratou como uma agitação sem precedentes na história de Yangzhou, os trabalhadores barricaram uma das principais auto-estradas, impediram o tráfego de autocarros e atacaram os portões dos edifícios do governo local.

Wang referiu que estava a ajudar os trabalhadores a processarem o governo local. Tinha estado a trabalhar numa fábrica próxima antes de entrar na faculdade e este facto fê-lo, disse, sentir uma ligação particular a estes trabalhadores. Lembrou-se de que o seu salário tinha sido baixo - menos de 2 dólares por mês à taxa de câmbio actual - mas, disse ele, o que era fundamental era que os trabalhadores que conheceu então sentiam-se seguros no seu trabalho. As pessoas pensam, disse, “que o mercado forçará automaticamente o Estado a tornar-se mais democrático. Mas isto não tem qualquer fundamento. Basta pensar na aliança que elites forjaram no processo de privatização. O Estado mudará somente quando estiver sob a pressão de uma grande força social, como os operários e os camponeses.”

A história de Wang sobre Yangzhou não é única. Há muitos relatos de como oficiais do governo local que controlam bens públicos acumularam fortunas com a privatização de bens do Estado. De acordo com um relatório recente redigido pelo activista Liu Xiaobo, mais de 90 por cento das 20.000 pessoas mais ricas na China têm familiares no Governo ou entre os oficiais de Partido Comunista Chinês.

Para Wang, a democracia não é uma simples questão de aumentar a liberdade política da classe média ou de criar direitos constitucionais para uma minoria já substancialmente dotada de poder devido às reformas do mercado. A democracia na China, disse ele, tem que ser baseada no consentimento e mobilização activos da maioria da sua população, e ser capaz de lhes assegurar justiça social e económica.

Contudo, para alguns intelectuais da Nova Esquerda, como Cui Zhiyuan, um amigo íntimo e colaborador de Wang que ensina ciência política na universidade de Tsinghua, há oportunidade na colisão entre o capitalismo e o socialismo. “Há mais espaço para novas ideias,” Cui disseme enquanto descrevia porque tinha voltado à China depois de muitos anos nos Estados Unidos: “O sistema capitalista está fixo no Ocidente, mas as coisas ainda estão a fluir em países como a China e a Índia. Nós temos uma oportunidade histórica de construir uma sociedade não apenas melhor, mais também mais justa que no ocidente.” Para Cui, é importante esclarecer primeiro os conceitos. “Não é útil,” disse, “ver o socialismo e o capitalismo como opostos e separados. Ambos evoluíram juntos ao longo do século XX. Não existem somente os Estados Providência europeus; mesmo o capitalismo americano tem uma componente socialista, nascida de compromissos assumidos com os sindicatos.”

Nos últimos anos, Cui encontrou uma audiência receptiva e poderosa numa questão que está na base do estado socialista chinês: a posse colectiva da propriedade. Os economistas liberais chineses argumentam que a propriedade privada é sagrada e inviolável numa economia de mercado, uma ideia radical no contexto chinês. Num artigo que publicou em Dushu em 2004, Cui questionou esta noção, sublinhando a natureza essencialmente comunal da posse de propriedade. Mencionou a decisão de Thomas Jefferson de reformular os princípios de John Locke de vida, liberdade e propriedade substituindo-os por vida, liberdade e felicidade na Declaração de Independência.

“Jefferson reconheceu,” disse, “que os direitos de propriedade emanam da sociedade, não da natureza. Isso é a razão pela qual não existia nenhum artigo específico sobre direitos de propriedade na Constituição dos Estados Unidos, o que veio a ser introduzido mais tarde com a Quinta Emenda.” Cui referiu, com um enorme contentamento que o seu artigo tinha circulado extensamente entre os legisladores no Congresso Nacional do Povo Chinês, no Parlamento da China, em 2004. Tinha ajudado, disse ele, a provocar um debate que conduziu o Congresso a adoptar uma emenda de compromisso à Constituição, similar na sua redacção, à Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que simplesmente estabelece que nenhuma pessoa “ seja privada de vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal.”

Nesta Primavera começou a tornar-se claro que a defesa da Nova Esquerda de um Estado Providência está a ter eco no seio da liderança comunista, que receia a instabilidade social e deseja consolidar o seu poder e legitimidade. Em Março, algumas semanas antes do meu encontro com Wang, o Congresso do Povo Chinês reuniu-se em Pequim e transformouse inesperadamente num fórum para o primeiro debate ideológico aberto dentro do partido desde há anos. Os legisladores acusaram as autoridades governamentais de vender os interesses de China às forças de mercado. O sentimento anti-mercado foi de tal forma forte que legislação em defesa da propriedade privada e que concedia títulos de terrenos a agricultores – a favor da qual investidores estrangeiros na China e empresários chineses tinham feito lobby - não foi sequer discutida. Descrevendo os principais novos investimentos em áreas rurais, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, sublinhou que “construir um espaço rural socialista” era “a principal tarefa histórica” do Partido Comunista Sublinhou igualmente as etapas para equilibrar o crescimento económico com a protecção ambiental.

Um jornalista alemão disse-me que tinha sido o discurso mais à esquerda que tinha ouvido de um líder chinês ao nível do Governo Central durante os seus oito anos em Pequim: “nem mesmo os políticos americanos e europeus falam na realização de um produto per-capita verde”. Wang concordou. Disse que estava igualmente satisfeito por ver o presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao preocuparem-se com as relações com os países asiáticos. “Nós estivemos demasiado obcecados com os Estados Unidos durante a governação de Jiang Zemin,” disse. “Precisamos realmente de melhorar as nossas relações com o Japão e com a Índia. Pertencemos a antigas e distintas civilizações e não podemos apenas ser simples seguidores e imitadores da América.

É uma grande realização,” acrescentou sorrindo, “que o primeiroministro tenha abertamente admitido que os sistemas de cuidados médicos e educação são um fracasso. Nunca tal tinha acontecido antes.” Wang pensa que o governo foi sincero sobre a erradicação da pobreza rural. Mas continuava cauteloso. “Houve tanta descentralização na China,” disse, “que não é fácil traduzir a política do governo central em acção.” No mês passado, no primeiro afastamento de um alto membro do partido desde 1995, a liderança central removeu o chefe do partido de Shanghai sob acusações de corrupção, levando a especular se haveria ou não uma reconfiguração das relações entre o governo central e os líderes provinciais e talvez mesmo uma mudança na política para por em prática sistemas de segurança social e reduzir a poluição. Wang permaneceu céptico. “O exemplo de Shanghai é pelo menos encorajador” Wang referiu numa mensagem recente de email: “ penso que daqui haverá alguns resultados políticos, mas são resultados em vez de razões.”

Os perigos não conseguir melhorar as condições de vida da maioria são muito claros para Wang: “Se nós não melhoramos a situação, haverá mais autoritarismo. Nós já vimos na Rússia como as pessoas preferem um governante mais forte como Putin porque estão cansadas da corrupção, caos político e estagnação económica. Quando a mercantilização radical faz as pessoas perder o seu sentimento de segurança, a procura de ordem e de uma intervenção superior é inevitável.”

Ao atacar os governos locais corruptos, a Nova Esquerda parece frequentemente querer instituir o grande governo fraternal ao estilo dos políticos autoritários. A concordância crescente entre a retórica socialista do Governo Central e as ideias da Nova Esquerda deixa certamente muitos inquietos. A conhecida escritora de Taiwan, a democrata Lung Yingtai, disseme no início desse ano que estava preocupada com o facto dos intelectuais da Nova Esquerda parecerem demasiado próximos ideologicamente do regime Comunista. Levando este ponto de vista um pouco mais longe, Liu Junning, um teórico político liberal popular que abandonou a China em 1999, depois de ter sido colocado na lista negra pelo governo chinês mas que entretanto regressou, tem afirmado que a Nova Esquerda é um outro nome para a velha guarda nacionalista do partido comunista, que tem sido inspirada pelo ódio ao Ocidente.

Enquanto isto parece um exagero, Wen Tiejun, um antigo funcionário do Governo que gere projectos de reconstrução rurais e que é identificado com a Nova Esquerda, participou no que ele próprio chama de “sessões de reflexão” com Hu Jintao e Wen Jiabao. Tipicamente, os intelectuais dos países comunistas (Vaclav Havel ou Adam Michnik, por exemplo) ganharam a sua autoridade moral ao assumir uma posição crítica face ao Estado todopoderoso. Como é que os pensadores da Nova Esquerda na China ajustam o seu relacionamento com um Estado que encarcerou muitos dos seus colegas e mostra geralmente pouca tolerância a críticas ao partido?

Quando coloquei esta questão a Cui, ele perdeu momentaneamente a sua maneira de estar exuberante. “É uma pergunta muito importante,” disse. “Como tratar moral e intelectualmente o governo. Este é para nós um grande desafio.”

Cui não considera o regime comunista como uma “totalidade.” Havia, disse ele, muitos aspectos diferentes, quer a nível local quer central. “Quase diariamente,” acrescenta Cui o “New York Times publica artigos sobre camponeses que se agitam contra o governo Comunista, mas se escutar o que os camponeses estão a dizer, eles estão a dizer ao governo central que o governo local violou os seus direitos. Assim, mesmo os camponeses podem ver os diferentes aspectos do Estado, os que os apoiam e os que não apoiam.”

Wang Xiaoming, professor de estudos culturais na universidade de Shanghai, posiciona-se à direita de Wang Hui mas diz que simpatiza com a atitude pragmática da Nova Esquerda para com o regime Comunista. “A sociedade civil é muito fraca na China,” disse, “e uma vez que o governo é o agente mais activo da mudança, temos que pressionar o governo para fazer o que deve fazer além de pressionar o governo para ceder alguns dos seus poderes.”

Quando me encontrei com Wang Hui pela última vez, recusou qualquer ideia sobre a crescente influência da Nova Esquerda sobre o regime. “O que nós tentamos fazer é criar uma situação intelectual na qual novas políticas podem ser exploradas,” disse. “Eu sei que muitos líderes lêem o artigo de Wen Tiejun; leram igualmente o artigo de Cui sobre os direitos de propriedade. Houve outros artigos na Dushu que foram igualmente influentes, e eu estou satisfeito quanto a isso. Mas nós não temos nenhuma outra ligação com o regime.”

Wang parece igualmente não sentir nenhuma ansiedade quanto à convergência ideológica com o regime poder transformar os intelectuais da Nova Esquerda em analistas e conselheiros pro-governamentais, o que faz parte de uma velha tradição chinesa de intelectuais aconselharem o Estado. “Nós olhamos para as coisas de uma perspectiva naturalmente chinesa, mas nós tentamos igualmente pensar para além da estrutura do Estado-nação,” afirmou. “As pessoas perguntam no Ocidente, como pode a China desenvolver o capitalismo com um estado autoritário? Mas isso é ignorar como é que o capitalismo moderno cresceu no Ocidente, sem muita democracia e com a ajuda do imperialismo e do colonialismo. É de questionar se este modelo económico único do Ocidente pode ser globalizado sem grandes guerras e sem a destruição do ambiente. Esta não é uma questão abstracta. A China parou de abater as suas florestas, muitas das quais já desapareceram, mas algum país ainda tem que produzir a madeira para o consumo chinês.”

No nosso último encontro, Wang falou igualmente um pouco mais sobre um assunto que Cui tinha discutido comigo: como é que a ascensão da China e da Índia traz novos desafios e possibilidades com implicações profundas para o mundo em geral. “As sociedades ocidentais dominaram nestes dois últimos séculos e deram forma ao mundo com as decisões que tomaram” disse. “A China e Índia desempenharão agora papéis igualmente cruciais neste novo século. Mas quais serão? Eu penso que é muito importante para os intelectuais chineses e indianos não se limitarem a imitar o Ocidente. Têm que explorar alternativas ao modelo ocidental da modernidade. Se não o fizerem, os “consumidores nacionalistas” já estão a afirmar: `a América dominou, agora é a nossa vez.”’
Wang riu, e acrescentou: “isto não é interessante.”

O artigo mais recente de Pankaj Mishra para a revista foi sobre os exilados do Tibete. A sua última obra é "Temptations of the West: How to be Modern in India, Pakistan, Tibet and Beyond."

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