28 de outubro de 2024

Dave Widgery ajudou a construir a cultura do antifascismo

O escritor socialista britânico Dave Widgery desempenhou um papel fundamental no Rock Against Racism, um movimento de massa que uniu cultura e política. Com a extrema direita em ascensão novamente, as ideias e o exemplo de Widgery agora são surpreendentemente relevantes.

David Renton

Jacobin

A multidão em um show do Rock Against Racism no Alexandra Palace em Londres, 14 de abril de 1979. (Virginia Turbett / Redferns via Getty Images)

Tradução / O jorrnalista Dave Widgery foi para os socialistas britânicos o que Hunter S. Thompson foi para os radicais dos EUA. Seus escritos expressavam, com mais brilhantismo do que qualquer um de seus contemporâneos, o senso de esperança que milhões sentiam na época dos Beatles, Bernadette Devlin e os protestos contra o Miss Mundo.

Poucas pessoas se lembram de Widgery hoje — em parte porque ele morreu tristemente jovem em 1992 após um acidente bizarro em casa; em parte porque as causas às quais ele dedicou sua vida são aquelas que contradizem as modas atuais. Widgery sempre defendeu os trabalhadores e a revolução socialista incondicionalmente.

Contradições íntimas

Nascido em 1947 em uma família Quaker, Widgery contraiu poliomielite aos nove anos. Por meses, ele ficou internado no hospital sem amigos da família, as crianças chorando até dormir, as enfermeiras chorando “pela incapacidade de nos confortar”. Ele tinha uma cadeira de rodas, depois órteses, então emocionou-se com seu “primeiro par de sapatos comprados em uma loja”.

Pelo resto de sua vida, Widgery andou sempre com dificuldade e frequentemente com dor, mesmo nas centenas de manifestações das quais participou. Ele adquiriu uma crença duradoura nas virtudes da assistência médica socializada.

Widgery era um apoiador adolescente da Campanha pelo Desarmamento Nuclear (CND) e fã da música de Charlie Parker e dos romances de Jack Kerouac. Para ler este último, ele lembrou,

quando você tinha 15 anos, vasculhando os Ks da Biblioteca Pública de Slough, havia uma mensagem codificada de descontentamento; a súbita percepção de uma subversão e licença absolutas. Ele legitimou todos os esforços de papel de um escritor infantil, livros de sonhos, novelas de mentira, jogos inventados.

Aos dezoito anos, Widgery passou quatro meses viajando pelos Estados Unidos. Ele estava em Watts para a revolta de 1965 e conheceu Allen Ginsberg e os ativistas do Students for a Democratic Society.

O primeiro editor a realmente confiar em Widgery foi Richard Neville, o fundador australiano da revista Oz, de Londres. Neville estava tentando convocar um movimento cultural de massa para lançar contra os ricos e o Estado, composto por mulheres radicais, ativistas negros, maconheiros e oponentes da moralidade burguesa. Um dos primeiros textos de Widgery, “When Harrods Was Looted” [Quando a Harrods Foi Saqueada], instou os leitores de Oz a fazer a mudança da política estudantil para a socialista.

Sua escrita apareceu em tinta violeta, impressa em um fundo verde, ao lado de um diagrama complicado apresentando a afinidade da arte de William Morris com o socialismo de Rosa Luxemburgo. Ele disse que existia uma “internacional invisível... o começo de uma recuperação da tradição do socialismo revolucionário europeu e do coração ativista do marxismo com ele.”

Widgery e Neville se tornaram amigos, com o último contando com a ajuda de Widgery no tribunal quando ele foi acusado em 1971 de fazer uma publicação indecente. A revista publicou pornografia soft-core, Widgery reconheceu, mas o fez como parte de uma tentativa de destruir as mentiras e a hipocrisia sobre o sexo. Em um artigo para o Socialist Worker, Widgery defendeu a revista como uma expressão do desejo por uma mudança revolucionária:

Os puritanos socialistas correm o risco de ignorar uma das mais íntimas contradições do capitalismo. Engels estava certo quando apontou "que com todo grande movimento revolucionário, a questão do amor livre vem ao primeiro plano."

Depois que o julgamento terminou com a absolvição dos réus em apelação, Widgery não teve medo de apontar as falhas de seus aliados. Quando o fundador de Oz lançou um livro intitulado Playpower, Widgery disse a Neville — e ao movimento mais amplo por trás dele — que era hora de confrontar o sexismo, uma parte inconfundível do sonho hippie masculino: “A visão de Neville sobre a relação sexual não é tão avançada quanto insultuosa.”

Mais tarde, Widgery escreveu o obituário de Oz para a edição final da revista:

Se Oz está morta, por suicídio ou excesso sexual, ou se Oz está vivo e operando sob uma série de novos nomes, não está claro no momento. O que está claro é que Oz bizarramente, e por um curto período, expressou a energia de muitos de nós. Lamentamos sua morte.

Conhecendo o verdadeiro inimigo

Deixando Oz quando a revista fechou, Widgery criticou a imprensa underground por não conseguir conquistar trabalhadores suficientes para seu radicalismo cultural: “No cerne dos mitos miseráveis ​​e das desonestidades coletivas do underground estava a crença de que a luta de classes havia acabado, que os trabalhadores haviam sido irremediavelmente subornados, enganados e traídos.” No entanto, ele insistiu, os radicais de classe média eram impotentes sem o apoio dos trabalhadores.

Agora, Widgery havia concluído seus estudos para se tornar um médico. Ele trabalhou pelo resto de sua vida como clínico geral no leste de Londres, o que significa que sua escrita era restrita às noites e finais de semana. No entanto, manteve um suprimento constante de artigos — não artigos de notícias, nem exatamente artigos de opinião — mas ensaios que geralmente tinham cerca de duas mil palavras, dando sentido ao mundo ao seu redor, entrevistando radicais proeminentes, explicando o pensamento por trás de causas crescentes.

Entre 1968 e 1972, Widgery colecionava efêmeras socialistas para publicação em uma antologia, The Left in Britain [A Esquerda Britânica]. Esse volume inclui notas literais de reuniões estudantis, folhetos distribuídos em piquetes de trabalhadores e uma seleção de ensaios documentando a lenta substituição da esquerda pró-soviética pelos dissidentes da geração mais jovem.

Não que todos esses últimos fossem para ser celebrados. Aqui, por exemplo, está Widgery escrevendo sobre o periódico New Left Review. Ele documentou os entusiasmos sucessivos daquela publicação por movimentos de massa não comunistas da esquerda, pela social-democracia insossa, pelo maoísmo e, então, pelas bases vermelhas de estudantes universitários: “Subjacente à sofisticação aparente das análises estava a crença extraordinariamente arrogante de que é papel dos intelectuais fazer a teoria, o trabalho dos trabalhadores fazer a revolução e que o que está errado na Grã-Bretanha é que os últimos são muito atrasados ​​para entender as instruções dos primeiros.”

No final da década de 1970, Widgery teve a maior oportunidade de sua vida de influenciar um movimento de massa de centenas de milhares de pessoas. Essa chance surgiu em resposta ao que foi, inicialmente, um avanço da direita. Um partido fundado por fascistas dedicados, a National Front [Frente Nacional], garantiu um alto nível de apoio em uma série de eleições: 15.340 votos em Leicester em 1976, 200.000 votos nas eleições locais no ano seguinte. A extrema direita conquistou apoio entre os torcedores de futebol, os jovens desempregados e até mesmo em alguns locais de trabalho, onde se esperava que o sindicato operasse como uma barreira ao seu crescimento.

Com a ascensão da Frente Nacional, vários músicos famosos deram declarações que pareciam endossar suas políticas de fascismo e ódio anti-imigrantes, incluindo David Bowie (“Você precisa ter uma frente de extrema direita surgindo, varrendo tudo e colocando as coisas em ordem”) e Eric Clapton (“Esta é a Inglaterra; este é um país branco e não queremos nenhum preto ou crioulo vivendo aqui”).

Widgery escreveu uma série de artigos para a revista do Rock Against Racism (RAR), Temporary Hoarding, definindo a nascente esquerda antifascista. Seu editorial na primeira edição se tornou o manifesto do RAR: “Queremos música Rebelde, música de rua. Música que destrua o medo que as pessoas têm umas das outras. Música de crise. Música de agora. Música que saiba quem é o verdadeiro inimigo.”

Ao contrário da prática usual da esquerda britânica, que era tratar o antifascismo e o antirracismo como duas causas separadas, Widgery defendeu sua unificação:

Quando o Estado apoia o racismo, é diferente. Exteriormente respeitável, mas por dentro incendiado com a mesma mentalidade e os mesmos medos, o maior perigo são os magistrados racistas com sua autoridade fria e zombeteira, os homens da imigração que zombam de uma mãe asiática enquanto ela dá à luz uma criança morta no chão do escritório, policiais para quem responder é um crime.

Leninismo pós-eletrônico

ORAR era um movimento gigante com uma liderança muito pequena, cujo núcleo era um grupo de amigos que compartilhavam o comprometimento de Widgery tanto com a política revolucionária quanto com a cultura do reggae, dub e soul:

A música negra era nosso catecismo, não apenas algo que ouvíamos em nosso tempo livre. Era a cultura que nos acordava, nos moldava e nos mantinha acordados a noite toda, bloqueados nos clubes mod da Wardour Street, fanáticos no circuito R&B do Thames Valley, fazendo fila na Gerrard Street para ver Roland Kirk no antigo porão de Ronnie Scott. Era como trabalhávamos nossa geografia, aprendíamos nossa sexualidade e nos ensinávamos história.

Widgery escreveu sobre a música e também sobre a política de John Lennon — seu apoio às pessoas massacradas na Prisão Estadual de Attica, a Angela Davis, às vítimas do massacre do Domingo Sangrento em Derry. Ele deu crédito relutante a Yoko Ono por tê-lo impedido de fazer “a saída tradicional de uma estrela do rock como um cadáver inchado e drogado ou um conservador inchado”.

Medos de se sair mal eram um tema recorrente na escrita de Widgery; ele frequentemente se perguntava o que poderia ter acontecido com ele se não tivesse escolhido a esquerda radical: “tolices”, ele temia, ou “se vender”, filhos na escola pública, uma carreira universitária. A decisão de continuar seguindo em frente, ele disse, tinha sido “a mais frutífera e gratificante da [sua] vida adulta”.

O livro de Widgery Beating Time [Tempo da Batida], publicado uma década após o lançamento do RAR, tornou-se a história não oficial do que foi um dos maiores movimentos de rua que o país já viu, com entre meio milhão e um milhão de pessoas participando de marchas, juntando-se a festivais antirracistas, atropelando pichações fascistas e tornando o racismo breve e maravilhosamente fora de moda. “A filosofia de entretenimento militante do RAR”, ele escreveu, “fez muito para mostrar que a mistura política funky — o apelo à cabeça, mãos e pés — poderia funcionar.”

No meio da campanha do RAR, Widgery foi convidado a revisar o terceiro volume da biografia de Vladimir Lênin, escrita por Tony Cliff, para a Socialist Review. A revista era propriedade do Socialist Workers Party [Partido dos Trabalhadores Socialistas], um grupo trotskista ao qual Widgery pertencia desde 1968, quando ainda era conhecido como International Socialists [Socialistas Internacionais].

Em resposta a essa tarefa, Widgery escreveu uma das resenhas de livros mais agradáveis ​​que já li, alegre porque sua defesa de um “leninismo” libertário estava notavelmente em desacordo com o livro digno e nada empolgante que ele estava elogiando. Tanto que às vezes você sente que Widgery estava resenhando outro livro — um feito de pura imaginação, em vez do manual maçante de construção de partidos à sua frente.

Widgery foi mordaz sobre as seitas marxistas:

O problema é que a espécie de leninismo que entrou no vácuo da esquerda europeia e norte-americana após o colapso dos movimentos de massa dos anos 1960 e início dos anos 1970 era, com muita frequência, da variedade de 1903, não de 1917. Os líderes dessas “vanguardas” em grande parte autoproclamadas são, na verdade, Kautskys do século XX, bem lidos, confiantes de que possuem todo o conhecimento socialista necessário, se ao menos os malditos trabalhadores lessem seus artigos... A “disciplina” exigida dos membros de tais grupos é a obediência de autômatos.

E ainda assim ele foi efusivo sobre o próprio Lenin e a contribuição do pensador russo para a ciência da revolução:

Precisamos de um leninismo pós-eletrônico, cuja política possa se mover com espantosa facilidade dos detalhes de uma greve para os problemas da criação dos filhos, que tenha o poder de greve centralizado para vencer batalhas de rua, mas a imaginação para criar carnavais inspiradores, que esteja buscando não reformas europeias, mas um novo modo de vida, amor e governo.

O espírito de solidariedade

A última grande causa da vida de Widgery foi o National Health Service [Serviço Nacional de Saúde] (NHS). O primeiro artigo que ele escreveu sobre sua vida como médico começou com o número de vezes que foi obrigado a agir em um dia típico de doze horas:

Quarenta e três consultas, 430 decisões, 4000 ou 5000 nuances, alterações musculares oculares e mal-entendidos mútuos me deixaram emocionalmente esgotado... Mas não tenha pena de mim. Sou muito bem pago, pelos padrões de meus pacientes. Em vez disso, tenha pena dos pacientes.

Os pacientes foram novamente o tema de uma série de artigos que Widgery escreveu em meados da década de 1980 para o British Medical Journal [Revista Médica Britânica]. Ele usou essa plataforma para condenar a privatização do tratamento psiquiátrico e criticar os psiquiatras do país por ouvirem em silêncio uma homilia maçante do príncipe Charles (agora, é claro, o rei). Três dos livros de Widgery — Health in Danger [Saúde em Perigo], The National Health: A Radical Perspective [A Saúde Nacional: Uma Perspectiva Racial] e Some Lives [Algumas Vidas] — foram dedicados à luta para salvar o NHS dos privatizadores, dos neoliberais e das empresas que buscavam sugá-lo.

No último livro de Widgery, Some Lives, ele descreve as crianças barulhentas, as vítimas de câncer, os jornaleiros com caixas de coleta de greve em seus balcões, os faxineiros noturnos bêbados e vizinhos briguentos a quem dedicou seu tempo. Descrevia uma classe trabalhadora que ele estava feliz em servir — mesmo na ausência de protestos coletivos. Eles ainda eram melhores do que a burguesia:

O que sempre me impressiona sobre esses documentários condescendentes sobre os pobres do East End, ignorantes, doentes e provavelmente racistas, é exatamente o inverso: quão bem os cockneys modernos se saem em circunstâncias que seus “superiores” achariam impossíveis. Quão melhor eles se sairiam se suas condições materiais fossem elevadas alguns degraus acima no sistema de classes. E ainda assim, quanta decência comum, respeito pela humanidade, honra e humor eles possuem, mais do que muitos das classes média e alta que, apesar do discurso de fachada para interesses coletivos, na verdade encaram a vida com um espírito de puro interesse próprio.

Uma das alegrias de Some Lives é o fascínio do livro pelos corpos. Uma passagem típica é dedicada à maravilha do nascimento humano:

“Entregue” pela maior porta que já foi aberta na vida. Tanta alegria e criatividade física após o vômito, hemorroidas e dores prolongadas da gravidez, a força terrível do parto e o sangue, merda e águas do parto. Para o choque final e o deleite de amamentar o ser vivo imaculado, escorregadio e coberto de vérnix: a prova de que corpos não são apenas ideias maravilhosas, mas funcionam.

Na escrita de Widgery, sangue e merda são forças criativas que permitem que o corpo prospere. A vitalidade resultante serve como um lembrete de que as pessoas podem derrotar todos os obstáculos que a sociedade de classes coloca na frente delas.

Widgery não era apenas um médico, mas também um paciente — às vezes o parceiro ou pai de pacientes. Entre eles estava sua filha Molly, que morreu sob cuidados do NHS poucos meses após seu nascimento:

Molly nasceu e quase viveu somente por causa de uma cadeia de seres humanos organizados e altruístas que se estendia dos doadores de sangue desconhecidos, cuja doação a sustentou no útero, até as enfermeiras que ajudaram a nós e à Molly a passar por tantas noites e ainda guardaram um pensamento para colocar um cravo branco em seus envoltórios de morte. Na década de 1980, politicamente dominado pela filosofia do individualismo possessivo, o NHS ainda permite que um conjunto diferente de valores floresça. E isso torna manifesto o espírito de solidariedade humana que está no cerne do socialismo, e que nossos governantes atuais estão tão preocupados em erradicar. Embora a morte de Molly seja uma tragédia, sua vida foi algo corajoso e maravilhoso.

David Widgery morreu em casa em 1992. Ele tinha quarenta e cinco anos. Em suas últimas fotos, ele olha para a câmera, sua cabeça em um ângulo, seu braço engessado após um ataque que sofreu no trabalho. Por anos, ele travou uma guerra incansável contra seu próprio corpo e as limitações impostas a ele pela poliomielite e por uma sociedade que dava tão pouca ajuda a pessoas com deficiência.

Às vezes, pode parecer que Widgery pertence a um passado distante — sempre pedia que a esquerda se adaptasse e aceitasse o futuro em que a propaganda seria feita por música e imagens em movimento, e ainda assim ele próprio era uma criatura de palavras. Ele escreveu jornalismo; escreveu livros. Ele buscou usar essas mídias para colocar nas mentes dos pobres e dos trabalhadores que eles também tinham poder.
Em outras ocasiões — em meio aos protestos em apoio à Palestina — pode parecer que o mundo para o qual ele estava escrevendo está apenas esperando para nascer. Um dia, os trabalhadores se levantarão e varrerão essa sociedade brutal. Quando o fizerem, haverá pessoas como Dave Widgery entre eles, escrevendo com todas as suas forças para um futuro que valha a pena viver.

Colaborador

David Renton é advogado e professor. Seu último livro, Against the Law: Why Justice Requires Fewer Laws and a Smaller Stater, já está disponível na Penguin.

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