4 de outubro de 2019

Quem são as pessoas perigosas?

Jurista avalia revogação da Portaria 666 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que determinava a deportação sumária em até 48 horas de estrangeiros considerados "perigisos"

Salem H. Nasser

O Estado de S.Paulo

Como acontece com qualquer peça de legislação, há uma certa distância entre ler o texto da Portaria 770, entender o que ela diz e logo imaginar como exatamente ela seria aplicada aos casos concretos. Isso acontece, primeiramente, porque ela remete a inúmeras outras leis e dispositivos legais que precisam ser igualmente lidos e entendidos.

Em seguida, é preciso levar em conta questões que dizem respeito ao lugar de uma portaria dentro do ordenamento jurídico brasileiro e à possibilidade de que um tal instrumento contrarie tratados internacionais e a própria Constituição Federal. Mais ainda, é preciso antecipar, imaginar, como as autoridades encarregadas de dar efeito às regras farão a interpretação de seu conteúdo e a aplicação aos casos concretos.

Também é comum que a legislação tenha algo que se chama de textura aberta da linguagem. No caso desta Portaria, pode-se perguntar: o que quer dizer pessoa perigosa? O que é um ato contrário aos princípios da Constituição? O que são ‘razões sérias’ que indiquem, por exemplo, participação em terrorismo?

Além dessa linguagem de indefinição, que pode dar lugar a interpretações arbitrárias, há ainda um outro aspecto que aponta para o perigo dessa legislação: as ‘pessoas perigosas’, sujeitas às terríveis consequências da Portaria, podem ser assim consideradas simplesmente porque sofrem uma ação, porque são investigadas ou porque alguma autoridade do setor de inteligência apontou para ela.

E, como se sabe, agências secretas não costumam detalhar as razões por que consideram uma ou outra pessoa perigosa; ou seja, a acusação pode vir sem nenhuma prova que a acompanhe. Imaginemos agora uma situação concreta: os Estados Unidos ou Israel têm listas negras que incluem militantes dos direitos dos Palestinos ou membros de partidos políticos, considerados por ambos, mas não pelo Brasil, como organizações terroristas.

Se uma dessas pessoas sujeitas a sanções ou listadas como apoiadoras do terrorismo simplesmente por suas posições políticas resolver vir ao Brasil, sob este governo, quais as chances de ser considerada pessoa perigosa? Ou, de modo mais cru, o que acontece se o Mossad ou a CIA soprarem no ouvido da Polícia Federal que fulano é perigoso, sem que ninguém saiba exatamente por quê?

Sob esta luz, a Portaria pode ser lida como mais um passo no projeto governamental de sujeição a uma agenda política preparada em outras cozinhas e possivelmente pouco compreendida por aqui.

Sobre o autor

É professor de Direito Internacional da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo

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