17 de outubro de 2024

"Esquerda está devendo um sonho, e palhaços de extrema direita ocupam o picadeiro", diz Haddad sobre resultado do PT nas urnas

Na segunda parte da entrevista concedida à Folha, ministro da Fazenda analisa dificuldade de seu partido nas urnas mesmo ocupando a Presidência da República e afirma que campo progressista precisa de ousadia para se oxigenar

Mônica Bergamo

Folha de S.Paulo

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), diz que a esquerda brasileira "não está dialogando com um projeto de futuro", e que isso, ao lado da crise do liberalismo e da direita clássica, explica por que o que ele define como "clowns", ou palhaços, em inglês, estão "ocupando o picadeiro".

"Nos perguntamos: 'De onde saiu essa pessoa? De onde saiu esse sujeito? Como é que essa pessoa tem 30% dos votos?'", afirma. Para logo responder: "Quando você não tem um horizonte utópico que guia as pessoas, você tem um horizonte distópico. E a extrema direita é distópica".

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad - Marlene Bergamo/Folhapress

Na segunda parte da entrevista concedida à Folha, o ministro afirma que a esquerda "se deve" um projeto de futuro, que demanda reflexão, elaboração teórica, oxigenação e ousadia.

Questionado se, aos 77 anos e depois de liderar a esquerda brasileira por quase 40 anos, caberia a Lula o papel de organizar essa renovação, ele diz que "as condições políticas, neste momento, indicam isso".

Haddad discorreu também sobre as dificuldades do candidato Guilherme Boulos (PSOL) e do PT nas eleições municipais em SP. E fez elogios a Tabata Amaral (PSB).

AUTOCRÍTICA

Setores do governo e do PT reagiram aos resultados das urnas em outubro ressaltando o copo meio cheio: o PT sobrevive e passa de 180 para 248 prefeituras neste ano. Mas esperava-se um resultado muito melhor, já que o partido ocupa a Presidência da República, a economia e a renda crescem e o desemprego é o menor da série histórica. Ainda assim, a aprovação do governo segue estável e não houve entusiasmo com candidatos de Lula. Qual é o seu diagnóstico?
Bom, existem vários diagnósticos. Eu falei sobre isso em uma entrevista que dei a você em 2016. Há um novo fenômeno.

Em 2008, assistimos a uma crise [financeira] do neoliberalismo, e a extrema direita começou a avançar no mundo inteiro. Seu pensamento começou a se impor.


A segunda razão para que isso acontecesse, além da crise do modelo neoliberal, é que a esquerda, naquele momento, ainda estava saudosa de estruturas do século 20 que tinham feito água nos anos 1980.

O sistema soviético, o nacional-desenvolvimentismo e a própria social-democracia europeia, que eram as três grandes estruturas com as quais partes da esquerda dialogavam, tinham desaparecido, entrado em colapso quase.

Sobrou para a extrema direita, que sempre cresce em momentos de crise sistêmica, sobretudo quando a esquerda não se planeja, como foi o caso. A esquerda não estava preparada para 2008, com um programa renovado, com um sonho renovado.

O senhor se refere à esquerda no mundo?
No mundo e no Brasil. E, a bem da verdade, a esquerda ainda não está dialogando com um projeto de futuro. Quando você não tem um sonho, um horizonte utópico que guia as pessoas, você tem um horizonte distópico. E a extrema direita é distópica.

E qual seria esse sonho?
Você precisa se reapresentar para a sociedade. Eu falei de três estruturas que tiveram pensadores associados a elas. Havia o pessoal mais radical do Partido Comunista. Mas havia projetos sem revolução também. O Estado brasileiro desenvolvia a sua economia, a América Latina crescia, depois isso migrou para a Ásia, a social democracia funcionava.

Mesmo sabendo de todos os problemas desses três modelos, eles eram promessas. E a promessa sempre fez parte da política. A política é promessa. É projeto.

E o mundo está sem isso?
Eu acredito que o mundo está devendo para si mesmo horizontes emancipatórios.

E quando isso acontece, e já aconteceu cem anos atrás, a distopia toma conta. Os clowns [palhaços] tomam conta do picadeiro. E começam a surgir esses movimentos que assustam. E nos perguntamos: "De onde saiu essa pessoa? De onde saiu esse sujeito? Como é que essa pessoa tem 30% dos votos?"

O senhor se refere ao Pablo Marçal, que teve 28,4% dos votos válidos em SP?
Não estou falando de uma pessoa específica. Estou falando do contexto histórico em que isso se torna possível. Sobretudo quando você tem um novo meio de comunicação que as pessoas ainda não dominam, que não têm expertise para elaborar. Surgem então esses personagens. Aconteceu com a rádio cem anos atrás. Agora é o Instagram, as redes.

LIBERALISMO EM CRISE

Que sonho o Lula e o PT hoje apresentam para o Brasil?
Eu estou fazendo uma autocrítica. Eu pertenço ao campo progressista. E procuro, na medida possível, escrever e elaborar sobre o assunto. Meu último livro, em grande medida, é sobre emancipação. Mas não adianta uma pessoa ficar pensando descolada das outras. É preciso congregar porque essas coisas não nascem espontaneamente.

É preciso fazer uma reflexão séria. E eu penso que a esquerda está se devendo a isso. Mais formulação teórica, mais aprendizado, mais ousadia na reflexão sobre o que é possível fazer.

Esse vácuo afeta igualmente o liberalismo, que também está em crise. O que existe hoje não é uma direita liberal, é uma direita iliberal. Que, no Brasil, se manifesta com requintes de crueldade, por causa da questão patrimonialista terrível no país. Aqui, grupos organizados tentam abocanhar fatias do Estado, como é o caso dessas privatizações. Elas estão sendo feitas sob aplauso de muita gente. Mas, se radiografar o que aconteceu na Eletrobras, o que aconteceu na Sabesp, qualquer observador internacional isento dirá que é um escândalo.

EXTREMISMO

Jair Bolsonaro está inelegível e em São Paulo, por exemplo, foi um vagão, e não a locomotiva da direita. Pablo Marçal foi derrotado. O sistema eleitoral e político não acabou isolando e expelindo esse campo mais extremista?
Não, não expeliu. Eu não vejo assim. Eu não tenho essa ilusão. A construção de terceira via é uma fantasia que já ocorreu outras vezes. Recebi hoje a capa de uma revista que mostra os candidatos à Presidência da República da direita. São todos bolsonaristas: Michelle Bolsonaro, Tarcísio [de Freitas], [Romeu] Zema, [Ronaldo] Caiado.

Mas o Caiado, por exemplo, briga com o Bolsonaro nas eleições de Goiânia.
Briga de família. Não tem ali uma disputa ideológica. É um grupo extremista.

O senhor inclui o governador Tarcísio de Freitas no extremismo?
A pessoa come de garfo e faca, conversa com você, não te xinga. Mas qual é o projeto dela? É cassar ministro do Supremo? É vender patrimônio público como foi feito com a Sabesp e com a Eletrobras? É cortar direitos sociais? É colocar a democracia em xeque? É questionar voto em urna eletrônica? É defender escola cívico-militar? É proibir educação ambiental nas escolas? É questionar vacina? Para mim, é extremismo.

E tudo isso voltou na eleição municipal de 2024. O prefeito de São Paulo [Ricardo Nunes, está] questionando a vacina e liderando as pesquisas. O modo bem educado, o verniz, não resolve o problema do extremismo.

Esse campo tem obtido o respaldo das urnas.
Há uma disputa de visão de mundo na sociedade brasileira. A nossa visão teve 51% dos votos em 2022 [para a campanha presidencial]. Se quisermos voltar a ter 60%, como aconteceu em eleições anteriores de Lula, a nossa visão precisa se expandir. A esquerda precisa se recriar, se oxigenar.

Nós precisamos voltar a fazer as pessoas respirarem a partir da apresentação de um projeto.

Mas isso demora. As coisas estão meio perdidas, portanto, para a esquerda em 2026?
O outro lado [liberal] também está com problemas.

Vamos pegar os casos internacionais. O [Donald] Trump está aí, competitivo [na corrida eleitoral pela Presidência dos EUA]. A Kamala [Harris, que concorre contra ele] foi uma surpresa positiva ao entrar na disputa. Ela deu uma oxigenada no discurso, reoxigenou o Partido Democrata. Mas a disputa está muito séria [nos EUA], não está fácil para ela vencer a eleição.

O [presidente da França, Emmanuel] Macron: ninguém discorda de que é um cara inteligente, jovem, dinâmico, que está revitalizando a economia da França. E ele ficou em terceiro lugar nas eleições para a Assembleia [em julho].

PAPEL DOS PARTIDOS

O senhor vê um quadro igualmente difícil para o governo Lula?
Desde 2016. Naquela entrevista que eu te dei, eu já dizia que, se a esquerda não se renovar, não se reapresentar, não se reformular, não expandir os seus horizontes, não oxigenar o debate político, não convencer que tem um horizonte de emancipação das pessoas, de mais liberdade, de mais igualdade, ela vai sofrer os efeitos da atual crise política. E eu dizia naquela época [que isso poderia ocorrer]: a ponto de a esquerda ficar fora de um segundo turno em 2018.

Mas isso não aconteceu até agora, né? Tanto no plano federal quanto em São Paulo, a esquerda foi para o segundo turno.
Por pouco, vamos dizer assim. Tanto com o Lula em 2022 quanto com o [Guilherme] Boulos agora [ao passar para o segundo turno nas eleições municipais em SP].

Há um diagnóstico de que o governo Lula está envelhecido, desanimado, que os ministros não defendem a administração.
Quem está no executivo com um dia a dia terrível, apagando incêndio, superando dificuldades [não tem tempo]. O papel de formular, de olhar para horizontes de longo prazo, de encantar com propostas, é de quem está nos partidos. E, para mim, ver o PSDB, que era um partido liberal, ver o PDT [referindo-se às legendas que perderam prefeituras nas eleições municipais]... Eu vejo o Centrão nos jornais, mas ele não existe mais. A configuração de forças no Brasil mudou completamente. O PL não é Centrão. Ele é o partido do Bolsonaro.

E o PSD, que é o segundo partido que recebeu mais votos nas eleições municipais em outubro?
Aí é interessante: o PSD e o MDB têm características diferentes nos diversos estados do país. Eles não são homogêneos. O PSD da Bahia é aliado do PT há anos. Aliás, o PT ajudou a formar o PSD.

Mas o PT da Bahia é de esquerda? Podemos dizer isso tomando como base a política de segurança implantada pelos governos do partido no Estado? Os movimentos sociais o consideram de direita.

Mas eu estou acabando de te falar: o campo progressista está se devendo um passo mais ousado do ponto de vista de formulação. Então é difícil a categorização.

O PSD tem três ministros no governo Lula. O MDB faz parte também. O MDB de Alagoas é diferente do MDB de São Paulo. O PSD tem a mesma característica.

PT E O FUTURO

Mas um partido que não é homogêneo não é do Centrão?
O Centrão era uma espécie de resquício do fim da ditadura, sobretudo da antiga Arena, que se decompôs em diversos partidos que não conseguiam espaço para se apresentar nacionalmente. E aderiam aos governos do PT ou do PSDB.

A partir de 2018, isso mudou. Essas forças se organizaram em torno do Bolsonaro, ele próprio um resquício da ditadura.

Deixaram de ser apêndice, coadjuvante, para serem atores que têm projeto político e que mantêm uma linha de ligação com o pensamento autoritário brasileiro.

O PT tem condições de oferecer perspectivas de futuro diante de todas as mudanças estruturais da nossa sociedade?
Só ele tem, né? A política são batalhas, não tem o fim da guerra.

Mas para candidatos jovens conseguirem espaço no PT, por exemplo, é um parto, de acordo com relatos deles próprios.

Voltamos de novo à afirmação que eu fiz, de que a esquerda se deve esse projeto. Para evitar distopia, você precisa ter uma utopia. Para evitar regressão, você precisa ter emancipação.

Será o Lula novamente a liderança adequada para isso? O senhor acha que é em torno dele que essa renovação pode se organizar?
As condições políticas, neste momento, indicam isso. O Lula é muito animado. Ele tem o direito, a prerrogativa, de buscar a reeleição. Mas não sei te antecipar. É muito difícil falar de outra pessoa.

Com Bolsonaro inelegível, há uma guerra na direita para ver quem será o sucessor dele. E na esquerda, que lideranças novas surgem?
Se o Bolsonaro se reabilitar do ponto de vista eleitoral, ele vai se colocar e vai ser ele [a liderança e o candidato da direita em 2026]. A vida é assim, né? O Trump se recolocou. Ele tem 78 anos, a mesma idade do Lula.

ELEIÇÕES EM SP

Mas eu não estou me referindo à idade, e sim à longevidade deles como liderança. O Lula é a maior figura da esquerda desde os anos 1980. O Trump é um fenômeno mais recente.
O Lula estava preparando a sucessão dele. Primeiro com o [ex-ministro da Fazenda Antonio] Palocci. Aconteceu o que aconteceu [ele foi investigado e preso por corrupção e deixou a política]. O [ex-governador de Pernambuco] Eduardo Campos era uma aposta do Lula. Aconteceu o que aconteceu [ele morreu em um acidente de avião em 2014]. Teve depois o impeachment da [ex-presidente] Dilma [Rousseff, em 2015]. Você não desenha a história. Tem o imprevisto, o acaso. Tem muita coisa, né?

Como o senhor está vendo a disputa pela Prefeitura de São Paulo e a possibilidade de o candidato Guilherme Boulos (PSOL) sofrer uma derrota avassaladora, que será também do PT?
Pelo resultado eleitoral de 2022, em que eu e o Lula vencemos na capital [respectivamente para presidente e governador] com 55% dos votos, e pelo fato de o país ter melhorado de dois anos para cá —as pessoas estão vivendo melhor, com perspectiva econômica melhor—, eu tinha muita esperança de que as coisas fossem andar bem.

Mas nós temos que nos lembrar de que a prefeitura nunca teve tanto dinheiro. Em primeiro lugar por causa da renegociação da dívida do município, feita na minha gestão. Em segundo lugar porque o Supremo Tribunal Federal (STF) deliberou a favor da prefeitura [em relação à posse do Campo de Marte], e o Bolsonaro comprou o Campo de Marte.

Portanto, se somar o caixa de nove estados do Nordeste não dá o caixa da Prefeitura de São Paulo. E a atual administração está fazendo muito déficit _ ajudada pelas vistas grossas dos órgãos de controle _ para tocar obras feitas sem licitação. Ficou fácil, né? A Tabata Amaral fez um vídeo excelente sobre isso. Aliás, ela tem tido uma postura o tempo todo muito legal, muito interessante.

Ela é criticada por muitos setores do PT.
Ela foi ótima. Declarou apoio ao Boulos, não quis negociar nada.

O orçamento secreto e as emendas parlamentares não turbinaram também as campanhas?
Uma das teses que não prevalece mais é a de que eleição municipal não tem nada a ver com a nacional. Há hoje uma correia de transmissão entre a eleição para o parlamento brasileiro e o pleito para prefeituras, que são as emendas. São R$ 50 bilhões para [os deputados] distribuírem para os [candidatos a prefeito] preferidos em troca de apoio dois anos depois.

Isso pode comprometer a renovação, tanto do parlamento quanto das administrações municipais. É uma máquina que se retroalimenta, e que não existia com esse volume no passado, e que nunca funcionou de maneira tão azeitada.

com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH

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