29 de outubro de 2013

Capitalismo, classe e universalismo: Escapando ao beco sem saída da teoria pós-colonial

Vivek Chibber


Vol. 50: Socialist Register 2014: Registering Class

Tradução / Depois de um longo e aparentemente interminável hiato, parece que estamos a assistir ao ressurgimento de uma resistência global ao capitalismo, pelo menos na sua roupagem neoliberal. Passaram mais de quatro décadas desde a última vez em que os movimentos anticapitalistas explodiram com uma tal força à escala global. Sem dúvida, houve abalos, de vez em quando, breves episódios que descarrilaram temporariamente o projeto neoliberal que vai varrendo o globo. Mas nada como o que temos testemunhado na Europa, no Médio Oriente e nas Américas nos últimos dois anos. Até que ponto se irão desenvolver, quão profundos serão os seus impactos, é ainda impossível de prever. Mas eles já mudaram a compleição do discurso de esquerda. De repente, a questão do capital da classe social está de volta à agenda, não como uma discussão abstrata ou teórica, mas como uma questão política urgente.

Mas a reemergência dos movimentos revelou que o retrocesso das últimas três décadas teve os seus custos. Os recursos políticos disponíveis para os trabalhadores são os mais fracos das últimas décadas. As organizações de esquerda - sindicatos e partidos políticos - foram esvaziadas ou, pior ainda, tornaram-se cúmplices na gestão da austeridade. Mas a fraqueza da esquerda não é apenas política ou organizacional - ela também se estende à teoria. As derrotas políticas das últimas décadas foram acompanhadas por uma agitação dramática na frente intelectual. Não é que tenha havido uma fuga da teoria radical ou de compromissos para com uma agenda intelectual radical. Os autodenominados intelectuais progressistas ou radicais ainda são muito impressionantes em número, em muitas universidades, pelo menos na América do Norte. É, ao contrário, que o próprio significado do radicalismo mudou. Sob a influência do pensamento pós-estruturalista, os conceitos básicos da tradição socialista são considerados suspeitos ou rejeitados. Para dar apenas um exemplo, a ideia de que o capitalismo tem uma estrutura real que impõe compulsões reais aos atores, que a classe social está enraizada em relações reais de exploração, ou que o trabalho tem um interesse real na organização coletiva - todas estas ideias, que foram o senso comum da esquerda durante quase dois séculos, são consideradas inapelavelmente ultrapassadas.

Embora estas críticas ao materialismo e à Economia Política tenham saído, em geral, do meio pós-estruturalista, encontraram uma expressão particularmente nítida num produto mais recente dessa corrente, que passou a ser conhecido como teoria pós-colonial. Nas últimas duas décadas, não foi a tradição filosófica francófona que foi o porta-estandarte do ataque ao materialismo ou à Economia Política. É, curiosamente, uma geração recente de teóricos do Sul da Ásia e de outras partes do Sul Global que tem liderado o ataque. Talvez os mais conspícuos e influentes deles sejam Gayatri Chakravarty Spivak, Homi Bhabha, Ranajit Guha e o grupo dos Estudos Subalternos, mas também se devem incluir o antropólogo colombiano Arturo Escobar, o sociólogo peruano Anibal Quijano e o teórico literário argentino Walter Mignolo, entre outros. O alvo mais comum de suas críticas é a teoria marxista, é claro, mas a sua ira se estende à própria tradição iluminista. De todas as fraquezas do radicalismo do Iluminismo, o que mais agita os teóricos pós-coloniais são as suas tendências universalizantes, ou seja, as suas proclamações de validade para certas categorias, independentemente da cultura e do lugar. O marxismo figura na sua análise como a teoria que mais claramente expressa este aspeto da mortal herança intelectual do Iluminismo.

Os marxistas insistem que certas categorias como classe, capitalismo, exploração e similares têm validade transcultural. Essas categorias descrevem práticas económicas que ocorrem não apenas na Europa cristã, mas também na Índia hindu e no Egito muçulmano. Para os teóricos pós-coloniais, esse tipo de zelo universalizante é profundamente problemático - como teoria e, igualmente importante, como um guia para a prática política. Ele é rejeitado não apenas por estar errado, mas também porque supostamente priva os atores dos recursos intelectuais vitais para a prática política eficaz. Faz isso de duas maneiras: porque, ao ser enganoso, é um guia questionável para a ação - qualquer teoria que esteja errada terá um mau desempenho na direção da prática política. Mas também porque se recusa a reconhecer a autonomia e a criatividade dos atores, na sua localização particular. Em vez disso, estas teorias universalizantes violentam o local e o particular enformando-o nas categorias rígidas que derivam da experiência europeia. Negam aos agentes locais o reconhecimento da sua prática e, ao fazê-lo, marginalizam a sua verdadeira agência. Essa preocupação com o uso de categorias universalizantes é tão forte que muitas vezes aparece, não como uma crítica de generalizações ilícitas ou insensatas, mas como uma injunção geral contra os universalismos.

A teoria pós-colonial apresenta-se não apenas como uma crítica à tradição do Iluminismo radical, mas como a sua substituição. Neste ensaio, examinarei criticamente a base da pretensão da teoria pós-colonial a ser um quadro orientador para a política radical. Mostrarei que, ironicamente, são os próprios elementos do seu enquadramento que os teóricos pós-coloniais apresentam como avanços genuínos que a desacreditam como uma teoria política séria.

Vou argumentar, em particular, que as admoestações contra a universalização de categorias devem ser rejeitadas. Vou mostrar que elas são ao mesmo tempo incorretas e contraditórias. O meu argumento não é, naturalmente, que todas as reivindicações universalizantes sejam defensáveis. Elas podem ou não sê-lo, e algumas delas serão mesmo bastante problemáticas. O meu argumento, pelo contrário, é que existem algumas categorias universais que são defensáveis. Mais importante ainda, vou sugerir que alguns dos conceitos-chave que os teóricos pós-coloniais questionam ou rejeitam são não apenas legítimos, mas essenciais para qualquer política progressista. Estes são conceitos que têm estado no cerne da política radical desde o nascimento da esquerda moderna - e são aqueles que, após um longo hiato, ressurgiram na organização global contra a austeridade nos últimos anos.

A viragem contra o universalismo

Num dos textos mais utilizados em estudos pós-coloniais, os editores explicam a motivação por detrás da viragem contra a universalização das categorias. Aconteceria que a dominação europeia do mundo colonial se baseou, em parte, apenas neste tipo de conceitos. “A assunção do universalismo", dizem-nos, "é uma característica fundamental da construção do poder colonial, porque as características «universais» da humanidade são as características daqueles que ocupam posições de domínio político". O mecanismo através do qual o universalismo promove a dominação colonial consiste em elevar alguns factos muito específicos sobre a cultura europeia ao estatuto de descrições gerais da humanidade, válidas à escala global. As culturas que não correspondem a estas descrições muito específicas são então remetidas para o estatuto de atrasadas, necessitadas de tutoria em civilização, incapazes de se governarem a si próprias. Tal como os editores o descrevem, "o mito da universalidade é, assim, uma estratégia primária de controlo imperial... com base no pressuposto de que «europeu» equivale a «universal»" (1).

Vemos neste argumento dois dos pontos de vista mais comuns entre os teóricos pós-coloniais. Um deles é uma ideia formal, meta-teórica - que as reivindicações de universalidade são intrinsecamente suspeitas porque ignoram a heterogeneidade social. É por isso que, nos textos pós-coloniais, encontramos frequentemente críticas ao universalismo sacadas por conta dos seus efeitos homogeneizadores e niveladores. A preocupação é que ele ignora a diversidade e, ao fazê-lo, marginaliza qualquer prática ou convenção social que não esteja em conformidade com o que está sendo elevado ao universal. E o ato de marginalização é um ato de supressão, de exercício de poder. A segunda visão é substantiva - a de que a universalização é cúmplice da dominação europeia em particular. Isto porque, no mundo intelectual, as teorias ocidentais são totalmente dominantes. Na medida em que são os quadros que orientam a investigação intelectual, ou as teorias que informam a prática política, elas imbuem-na de um eurocentrismo duradouro. Os quadros e teorias herdados do Iluminismo ostentam a marca da sua origem geográfica. Mas a marca não é facilmente discernida. Funciona insidiosamente, como a premissa oculta destas doutrinas. A tarefa da crítica pós-colonial é expurgá-la, expondo a sua presença e realçando os seus efeitos.

Devido à suposta cumplicidade do universalismo com a dominação colonial, o antiuniversalismo tornou-se uma palavra de ordem entre os teóricos pós-coloniais. E devido à enorme influência da teoria pós-colonial na cultura académica, tornou-se o senso comum de muitos à esquerda. O mesmo acontece com a hostilidade às "grandes narrativas" associadas ao marxismo e ao liberalismo progressista. Hoje em dia, a ação está no "fragmento", no marginal, nas práticas e convenções culturais que são exclusivas de um determinado contexto e não podem ser subsumidas numa análise generalizada - como Dipesh Chakrabarty as descreve, as "heterogeneidades e incomensurabilidades" do local (2). É aqui que somos conduzidos para procurar uma agência política.

A hostilidade às teorias universalizantes tem algumas implicações interessantes. A tradição radical, desde o tempo de Marx e Engels, baseou-se em duas premissas fundamentais para toda a sua análise política. A primeira é que, à medida que o capitalismo se expande por todo o mundo, ele impõe certas restrições económicas - poderíamos até mesmo chamá-las de compulsões - aos atores que o rodeiam. Assim, ao enraizar-se na Ásia, na América Latina, em África e noutros lugares, a produção económica em todas estas regiões é forçada a respeitar um conjunto de regras comuns. A forma como as regiões se desenvolvem, o ritmo do crescimento não será idêntico - ele avançará de forma desigual, a ritmos diferentes, com variações institucionais consideráveis. Não serão todos iguais. Mas suas diferenças serão trabalhadas em resposta a um conjunto comum de compulsões, provenientes da estrutura capitalista subjacente. Do outro lado da análise, dá-se por garantido que, como o capitalismo impõe a sua lógica aos atores, ao exercer a sua dominação económica e política, irá suscitar uma resposta dos agrupamentos laboriosos. Resistirão às suas depredações, para defender o seu bem-estar. Isto será verdade independentemente da identidade cultural ou religiosa destes grupos. A razão de sua resistência é que, quaisquer que sejam os factos sobre a sua cultura local, quaisquer que sejam as suas "incomensurabilidades" em relação a outras formas de ser, o capitalismo gera um ataque a algumas necessidades básicas que todas as pessoas têm em comum. Assim como impõe uma lógica comum de reprodução entre regiões, o capitalismo também suscita uma resistência comum por parte do trabalho. Mais uma vez, a resistência não assumirá a mesma forma, não será ubíqua, mas o potencial para o seu exercício será universal, porque a fonte que a gera - o impulso dos trabalhadores para defender o seu bem-estar - é comum a todas as culturas.

Essas duas crenças têm sido fundamentais para muitas das análises e práticas radicais por mais de um século. Mas se aceitarmos as injunções da teoria pós-colonial contra o universalismo, ambas devem ser rejeitadas, pois ambas são descaradamente universalísticas. As implicações são profundas. O que restará da análise radical se expulsarmos o capitalismo da sua caixa de ferramentas teóricas? Como é que analisamos a depressão global desde 2007, como é que damos sentido ao impulso de austeridade que varreu o mundo atlântico, se não traçando a lógica das economias orientadas para o lucro e a luta implacável para maximizar os lucros? E como encarar a resistência global a estas imposições, como entenderemos o facto de que as mesmas palavras de ordem podem ser encontradas no Cairo, Buenos Aires, Madison e Londres, se não através de alguns interesses universais que estão sendo exprimidos através delas? De facto, como gerar qualquer análise do capitalismo sem recorrer pelo menos a algumas categorias universalizantes?

As compulsões universais do capital

Sendo as apostas bastante elevadas, poder-se-ia pensar que os teóricos pós-coloniais poderiam conceder amnistia a conceitos como o capitalismo ou os interesses de classe. Talvez estes sejam exemplos de universalização de categorias que têm alguma justificação, e podem, portanto, escapar à acusação do eurocentrismo. Mas, na realidade, não só esses conceitos estão incluídos na lista dos infratores, como são mesmo apontados especificamente como exemplos de tudo o que é suspeito na teoria marxista. Gyan Prakash expressa bem esse sentimento num de seus amplos ataques contra o pensamento Iluminista (por exemplo, marxista). Analisar formações sociais através do prisma do capitalismo, ou desenvolvimento capitalista, sugere ele, leva inevitavelmente a algum tipo de reducionismo. Faz com que todos os fenómenos sociais pareçam ser apenas reflexos das relações económicas. Daí, argumenta ele, "fazer do capitalismo o tema fundamental [das análises históricas] equivale a homogeneizar as histórias que permanecem heterogéneas dentro dele" (3). Esta tendência cega os marxistas para a especificidade das relações sociais locais. Eles ou não conseguem notar práticas e convenções que são independentes da dinâmica capitalista, ou simplesmente assumem que qualquer independência que elas tenham se dissolverá em breve. Mais ainda, a própria ideia de que as formações sociais podem ser analisadas através da lente de sua dinâmica económica - seu modo de produção - não é apenas equivocada, mas também eurocêntrica e cúmplice da dominação imperial. “Como muitas outras ideias europeias do século XIX", observa Prakash, "a encenação da narrativa eurocêntrica do modo de produção como sendo história deve ser vista como um análogo do imperialismo territorial do século XIX (4).

Dipesh Chakrabarty deu a este argumento alguma estruturação no seu influente livro, Provincializing Europe (2007). A ideia de um capitalismo universalizante, argumenta ele, é culpada de dois pecados. O primeiro é que ela nega às sociedades não-ocidentais a sua história. Isso faz-se apertando-as num esquema rígido importado da experiência europeia. Em vez de respeitar a autonomia e a especificidade das experiências regionais, os marxistas transformam as histórias regionais em tantas variações sobre um mesmo tema. Cada país é categorizado na medida em que se conforma ou se afasta de um conceito idealizado de capitalismo. Ao fazê-lo, as histórias regionais nunca conseguem escapar de serem notas de rodapé para a experiência europeia. O telos de todas as histórias nacionais permanece o mesmo, com a Europa como seu ponto de chegada. O segundo erro associado à ideia do capitalismo é que ele evacua toda a contingência do desenvolvimento histórico. A fé que os marxistas depositam na dinâmica universalizante do capitalismo cega-os para a possibilidade de "descontinuidades, roturas e mudanças no processo histórico", como diz Chakrabarty (5). Liberto da interrupção pela agência humana, o futuro torna-se uma entidade conhecível, aproximando-se de um fim determinável.

Chakrabarty está cristalizando uma visão defendida por muitos teóricos pós-coloniais, de que se eles permitirem que categorias como capitalismo ocupem um lugar central em seu kit de ferramentas, eles também se comprometerão com uma teleologia histórica. Tomadas em conjunto, as duas críticas que delineei sugerem que os pressupostos universalizantes de conceitos como o capitalismo não são apenas equivocados, mas politicamente perigosos. Eles negam às sociedades não-ocidentais a possibilidade da sua própria história, mas também desacreditam a possibilidade de que elas possam criar os seus próprios futuros. Ao fazê-lo, eles impugnam o valor da agência política e da luta.

O facto de os teóricos pós-coloniais incluírem o conceito de capitalismo na sua lista de ideias ofensivas legadas pelo Iluminismo parece gerar um enigma. Certamente não há como negar o facto de que, ao longo do século passado, o capitalismo realmente se espalhou pelo globo, imbricando-se em quase todo o mundo pós-colonial. E se se enraizou em algumas áreas, seja na Ásia ou na América Latina, também deve ter afetado a composição institucional real dessas regiões. Suas economias foram transformadas pelas pressões da acumulação de capital, e muitas das suas instituições não económicas foram alteradas para acomodar-se à sua lógica. Há, portanto, um fio condutor comum que atravessa essas regiões, ainda que elas permaneçam muito diversas, e esse fio condutor as une de alguma forma. Por falar diretamente nisso, a categoria de capitalismo certamente tem alguma pertinência na análise de sua evolução económica e política. Para que tal análise seja levada a sério, ela tem que reconhecer esse facto simples e básico - porque ele é um facto. Mas a retórica da teoria pós-colonial parece perigosamente perto de negar esse mesmo facto, quando reprova os marxistas por estes prestarem vassalagem a conceitos 'universalizantes' como o capitalismo. O enigma, então, é o seguinte: a teoria pós-colonial parece estar negando a realidade do capitalismo que se espalhou pelo mundo; e se ela não a está negando, então quais são os fundamentos sobre os quais ela pode criticar os marxistas por insistirem que o conceito tem validade transcultural?

Em Provincializing Europe, Chakrabarty afirma que o capitalismo, de fato, globalizou-se durante o século passado ou assim. Mas, embora ele reconheça o facto da sua globalização, ele nega que isso equivalha à sua universalização (6). Isso lhe permite, e aos teóricos que seguem essa linha de pensamento, afirmar o facto óbvio de que a dependência do mercado se espalhou até aos confins do mundo, enquanto, ainda assim, persiste em negar que a categoria do capitalismo possa ser usada para sua análise (7). Para Chakrabarty, um capitalismo devidamente universalizante é aquele que subordina todas as práticas sociais à sua própria lógica. Pode-se dizer que um capitalismo que se espalha por qualquer canto do mundo se globalizou. Mas não pode ter-se universalizado, a menos que transforme todas as relações sociais para refletir suas próprias prioridades e valores. Na medida em que há práticas ou relações sociais que permanecem independentes, que interrompem seu impulso totalizante, sua missão permanece incompleta. Na verdade, pode ser considerado como tendo falhado. “Nenhuma forma histórica de capital, ainda que global ao seu alcance", argumenta Chakrabarty, "pode jamais ser um universal. Nenhum capital global, ou mesmo local, pode representar a lógica universal do capital, pois qualquer forma de capital historicamente disponível é um compromisso provisório" entre o seu impulso totalizante, por um lado, e a obstinação dos costumes e convenções locais, por outro (8). A ideia básica aqui é que a lógica abstrata do capital é sempre modificada de alguma forma pelas relações sociais locais; na medida em que ela é forçada a ajustar-se a estas, de alguma forma, a descrição do capitalismo que está contida em teorias abstratas e gerais não mapeará a forma como as pessoas estão realmente vivendo suas vidas no terreno. Haverá sempre uma lacuna entre a descrição do capitalismo abstrato e o capitalismo realmente existente em uma determinada região. É assim que ele pode se globalizar, mas sem nunca se universalizar a si mesmo - poder-se-ia dizer que ele se universalizou apenas se tivesse universalizado devidamente certas propriedades.

Em termos puramente formais, os argumentos de Chakrabarty são sólidos. É um argumento inteiramente justificado insistir que um objeto deve ser classificado como pertencente a um determinado tipo de coisa, ou a uma categoria, apenas se ele exibir as propriedades associadas a esse tipo de coisa. Se o que chamamos de capitalismo, em sua instância peruana, não tem as mesmas propriedades que em seus exemplos clássicos, então podemos dizer, justificadamente, que classificar o que encontramos no Peru como "capitalista" é enganoso, e que a categoria é potencialmente enganosa. A questão, é claro, é se as propriedades que estamos identificando com o universal podem ou não ser justificadas. Pode ser que Chakrabarty esteja formalmente correcto, mas substantivamente errado. Ele tem razão em insistir que o capitalismo deve transmitir adequadamente para novas regiões certas propriedades, para se poder dizer que se universalizou - mas ele pode estar enganado nas propriedades nas quais baseia os seus julgamentos. E isto é, de facto, o que mostrarei a seguir.

Toda a posição de Chakrabarty repousa sobre uma questão: é de facto justificado exigir que todas as relações sociais fiquem subordinadas ao capitalismo, para que possamos utilizar a categoria de capital? O argumento de Chakrabarty não é assim tão idiossincrático. Ele baseia-se numa tradição dentro da própria teorização marxiana, que tem consistentemente descrito o capitalismo como um sistema totalizante, impulsionado a expandir-se, a subordinar todas as relações sociais à sua própria lógica. Mas uma coisa é apontar para o efeito corrosivo dos capitalismos nas convenções sociais. É algo de bem diferente constituir a versão mais forte dessa observação na nossa definição do próprio capitalismo. Os teóricos pós-coloniais cometem um erro sutil, mas crucial. Aceitam a descrição do capitalismo de Marx, na qual ele o caracteriza como sendo dotado de um impulso interno de auto-expansão. Assim, Ranajit Guha resume Marx como argumentando o seguinte:

“Esta tendência [universalizante] deriva da auto-expansão do capital. Sua função é criar um mercado mundial, subjugar todos os modos de produção antecedentes e substituir todos os concomitantes jurídicos e institucionais de tais modos e, em geral, todo o edifício das culturas pré-capitalistas, por leis, instituições, valores e outros elementos de uma cultura adequada ao domínio burguês” (9).

Marx faz aqui duas afirmações: primeiro, que o capitalismo é impulsionado a se expandir, e é essa pressão implacável para pressionar em direção a regiões sempre novas que está por trás de sua universalização; segundo, que o impulso universalizador também o impele a desmantelar quaisquer convenções jurídicas ou culturais que sejam inimigas de seu domínio. Os teóricos pós-coloniais tendem a centrar-se na segunda cláusula desta passagem - a ideia de que o capitalismo, ao universalizar-se, irá substituir "todo o edifício" dos valores e leis pré-capitalistas por novos. É isto o que está por trás da negação de Chakrabarty de que o capital se universalizou, uma vez que é claro, para ele, existirem muitas instituições no capitalismo, especialmente nas sociedades não ocidentais, que não podem ser derivadas da lógica do capital, e que, na verdade, têm uma integridade reprodutiva própria. Assim sendo, não é legítimo concluir que a universalização fracassou?

Pode ser que haja aqui uma fixação demasiado estreita na caracterização de Marx. Uma maneira de proceder, se quisermos rejeitar o argumento de Chakrabarty, é simplesmente deixar de lado a passagem de Marx e defender um novo critério para uma universalização bem sucedida. Mas pode-se argumentar que, mesmo esta passagem, não se presta à leitura dela feita pelos teóricos pós-coloniais. Marx não está argumentando que o capital requer uma transformação radical de todas as instituições, mas que as instituições existentes serão, por fim, aquelas que são "apropriadas para o governo burguês". É verdade que isso pode exigir o desmantelamento de muitas partes das convenções legais e normativas pré-capitalistas - mas se o faz ou não, e até onde vai o apelo ao desmantelamento, será decidido pelo que é necessário para que o capitalismo se reproduza - para que sua auto-expansão prossiga. É inteiramente possível que essa expansão da acumulação possa prosseguir, deixando intactos muitos aspetos do antigo regime. Pelo menos, esta é uma leitura possível da passagem.

É também esta uma maneira mais plausível de entender o que está envolvido na expansão do capitalismo. Ninguém, incluindo Chakrabarty, Guha e outros teóricos pós-coloniais, contesta que o capitalismo é, em primeira instância, uma forma de organizar as atividades económicas - a produção e distribuição de bens. Numa economia organizada segundo linhas capitalistas, as unidades económicas são obrigadas a concentrar-se exclusivamente na expansão das suas operações, num ciclo interminável de acumulação. Os capitalistas buscam lucros porque se as suas empresas não o produzirem, serão ultrapassados por seus rivais no mercado. Onde quer que o capitalismo vá, também lá chega este imperativo. É a isto que Marx se estava referindo na primeira parte da passagem citada acima e nem Guha nem Chakrabarty o questionam. Tudo o que é necessário para que o capitalismo se reproduza é que este imperativo seja seguido pelos atores económicos - o imperativo para que as empresas busquem maiores mercados, mais lucro, superando os seus rivais.

Ora, se os capitalistas são obsessivamente levados a acumular, então a sua atitude em relação às instituições culturais e legais será instrumental para a realização desse objetivo. Se as instituições existentes inibirem a acumulação de capital, se não respeitarem a propriedade privada ou se dispensarem o trabalhador da obrigação de ter de procurar trabalho assalariado, então essas instituições serão muito provavelmente atacadas, como sugere Marx. O capital realizará uma campanha para derrubá-las. Mas e se as instituições existentes não entrarem em conflito com a acumulação? E se elas forem neutras em relação aos interesses capitalistas? Esta é a questão crucial, que Chakrabarty simplesmente ignora. No seu argumento, um capitalismo universalizante deve internalizar todas as relações sociais existentes na sua própria lógica. Deve ser um sistema totalizante, que se recusa a permitir qualquer autonomia a outras relações sociais. Chakrabarty indica mesmo uma razão para isso. Enquanto as práticas sociais se recusarem a conformar-se com as necessidades diretas do capital, enquanto se recusarem a refletir os próprios valores e prioridades do capital, elas carregam em si uma ameaça de perturbar a sua reprodução. Incorporam "outras formas de estar no mundo", para além de ser portador de força de trabalho ou consumidor de mercadorias (10). O capital não pode tolerar a possibilidade de "formas de estar no mundo" que não estejam alinhadas com a sua própria lógica. Procura, portanto, aquilo a que ele chama a sua "subjugação/destruição" (11).

Todo este argumento se baseia na suposição de que, se uma prática não promove diretamente a reprodução do capitalismo, fazendo parte do que Chakrabarty chama de seu "processo de vida", então ela deve suscitar uma resposta hostil do capital. Mas, poderíamos perguntar, por que diabo isso seria assim? Voltando à pergunta que fiz no parágrafo anterior, se uma prática é simplesmente neutra em relação à acumulação, a resposta natural do capital não seria de indiferença? Chakrabarty faz parecer que os gestores capitalistas andam por aí com seus próprios contadores políticos Geiger, medindo a compatibilidade de cada prática social com suas próprias prioridades. Mas certamente o quadro mais razoável é o seguinte: os capitalistas procuram expandir as suas operações, obter o melhor retorno possível dos seus investimentos e, enquanto as suas operações estiverem funcionando sem problemas, eles simplesmente não se importam com as convenções e costumes do ambiente circundante. O sinal, para eles, de que algo precisa de ser mudado é quando aspetos do ambiente perturbam as suas operações - estimulando conflitos trabalhistas, ou restringindo mercados, e assim por diante. Quando isso acontece, eles entram em ação e marcam as práticas culpadas, destinando-as à mudança. Mas quanto a outras práticas - que podem muito bem incorporar outras "formas de estar no mundo" - os capitalistas seriam simplesmente indiferentes.

Enquanto os costumes locais não inibirem ou minarem a acumulação de capital, os capitalistas não verão qualquer razão para os derrubar - esta é a conclusão a que chegámos. Isto tem duas implicações imediatas. A primeira tem a ver com os fundamentos de Chakrabarty para negar a universalização do capital. Em seu argumento, a razão pela qual não podemos aceitar que ele tenha sido universalizada é que a lógica pura do capital é modificada pelos costumes locais das regiões em que se espalha. Mas acabamos de ver que uma mera modificação de uma prática não constitui fundamento para rejeitar sua viabilidade. Enquanto suas regras e compulsões básicas permanecerem intactas, justifica-se considerá-la como uma espécie de seu antepassado anterior, não modificado. Portanto, segue-se - e este é o meu segundo ponto - que, se o que foi realmente globalizado são as relações económicas capitalistas, então não faz sentido negar que essas relações também foram universalizadas. Podemos rejeitar a afirmação de Chakrabarty de que a globalização não implica universalização. Como poderia não o fazer? Se as práticas que se espalharam globalmente podem ser identificadas como capitalistas, então elas também foram universalizadas. É o facto de podermos reconhecê-las como distintamente capitalistas que nos permite pronunciar a globalização do capital. Se podemos afirmar que elas são de facto capitalistas e que, portanto, têm as propriedades associadas ao capitalismo, como poderemos então negar sua universalização? A própria ideia parece bizarra.

Os fundamentos universais para a resistência

O capitalismo se espalha por todos os cantos do mundo, impulsionado pela sua insaciável sede de lucro e, ao fazê-lo, ao colocar sob sua influência uma proporção cada vez maior da população mundial, cria uma história verdadeiramente universal, uma história do capital. Os teóricos pós-coloniais muitas vezes prestam, pelo menos, um reconhecimento formal deste aspecto do capitalismo global, ainda que negando a sua substância. O que os torna ainda mais desconfortáveis é o segundo componente de uma análise materialista, que tem a ver com as fontes de resistência. Não há disputa em torno da ideia de que, à medida que o capitalismo se espalha, ele encontra resistência - dos trabalhadores, dos camponeses lutando pela sua terra, das populações indígenas, etc.. Na verdade, a celebração destas lutas é uma espécie de cartão de visita para os teóricos pós-coloniais. Nisso, eles parecem estar em sintonia com o entendimento marxista mais convencional da política capitalista. Mas a semelhança nas abordagens está apenas na superfície. Enquanto os marxistas têm entendido a resistência vinda de baixo como uma expressão dos verdadeiros interesses dos grupos trabalhadores, a teoria pós-colonial, tipicamente, afasta-se de qualquer conversa sobre interesses objetivos e universais. As fontes de luta são consideradas locais, específicas da cultura dos grupos trabalhadores, um produto da sua localização e história muito particulares - e não a expressão de interesses ligados a certas necessidades básicas universais.

A hostilidade às análises que vêm a resistência como uma expressão de impulsos universais comuns, é devida a que elas supostamente atribuem aos agentes uma consciência que é peculiar ao Ocidente desenvolvido. Ver as lutas como emanando de interesses materiais é "investir [os trabalhadores] com uma racionalidade burguesa, uma vez que é apenas num tal sistema de racionalidade que a "utilidade económica" de uma ação (ou de um objeto, relação, instituição, etc.) define a sua razoabilidade" (12). Tudo isto faz parte da fuga à essencialização das categorias transmitidas pelo pensamento iluminista, iniciada pela filosofia pós-estruturalista. Como explica Arturo Escobar, "com a teoria pós-estruturalismo do sujeito somos... compelidos a abandonar a ideia liberal do sujeito como um indivíduo autolimitado, autónomo, racional. O sujeito é produzido por/em discursos históricos e práticas numa multiplicidade de domínios” (13).

Assim, enquanto as teorias tradicionais marxistas e materialistas derivam de alguma conceção das necessidades humanas, que constitui a base sobre a qual a resistência é construída, os atuais avatares do pós-estruturalismo - sendo a teoria pós-colonial a mais ilustre - rejeitam esta ideia em favor de uma em que os indivíduos são inteiramente constituídos por discurso, cultura, costumes, etc.. Na medida em que existe resistência ao capitalismo, esta deve ser entendida como uma expressão de conceções locais muito particulares de necessidades - não apenas construídas por histórias geograficamente restritas, mas trabalhando através de uma cosmologia que resiste à tradução. Na expressão de Chakrabarty, o que impulsiona a luta contra o capital são os "incomensuráveis infinitos" das culturas locais (14) - algo que ele coloca fora das narrativas universalizantes do pensamento iluminista.

A questão, então, é se será injustificado atribuir alguns interesses e necessidades universais a agentes, distribuídos por diversas culturas e épocas. Não há dúvida de que, na sua maioria, as coisas que os agentes valorizam e perseguem são culturalmente construídas. Nisso, os teóricos pós-coloniais e os progressistas mais tradicionais são unânimes. Mas Escobar terá razão ao argumentar que os agentes não são apenas influenciados, mas inteiramente produzidos pelo discurso e costume? Certamente, podemos reconhecer a construção cultural de muitos, até mesmo da maioria dos nossos valores e crenças, enquanto também reconhecemos que há um pequeno núcleo destas últimas que os seres humanos têm em comum em todas as culturas. Para dar um exemplo central, não há cultura no mundo, nem nunca houve, em que os agentes não tenham considerado o seu bem-estar físico. Uma preocupação com certas necessidades básicas - alimentação, abrigo, segurança, etc. - faz parte do repertório normativo dos agentes em todas as localidades e eras. Nunca houve uma cultura que tenha perdurado ao longo do tempo que apagasse ou ignorasse a valorização das necessidades básicas, uma vez que a satisfação dessas necessidades é uma pré-condição para a reprodução da cultura. Assim, podemos afirmar que existem alguns aspetos da ação humana que não são inteiramente construção da cultura local, se com isso queremos dizer que eles são específicos dessa cultura. Esses aspetos estão enraizados em aspetos da psicologia humana que se estendem pelo tempo e pelo espaço - eles são componentes da nossa natureza humana.

Agora, dizer que os agentes sociais estão orientados para dar a devida atenção ao seu bem-estar físico não é insistir que a cultura não tem influência neste domínio. O que consomem, os tipos de habitação que preferem, as suas inclinações estéticas - tudo isto pode ser moldado pelos costumes locais e pelas contingências da história. É comum encontrar teóricos culturais que apontam a variabilidade das formas de consumo como evidência de que as necessidades são construções culturais. Mas este é um argumento falso. O facto de que a forma de consumo é moldada pela história - o que pode bem ser o caso, até certo ponto - não é prova contra a convicção de que há uma necessidade de sustento básico. Elas são, afinal, apresentadas como formas de algo. A linguagem é um sinal para o fator comum - rotulá-las como formas de consumo é dizer que elas são espécies de um género comum. A questão é se a superior necessidade de subsistência é, em si mesma, uma construção cultural. Ou, correspondentemente, se a cultura pode apagar o reconhecimento das necessidades básicas. Chegar a colocar a questão mostra logo até que ponto ela é absurda (15).

É a preocupação agencial com o bem-estar que ancora o capitalismo em qualquer cultura onde ele se implanta. Como Marx observou, uma vez que as relações capitalistas estejam em vigor, uma vez que os agentes estejam subsumidos sob seus imperativos, a "compulsão rotineira das relações económicas" é tudo quanto é preciso para induzir os trabalhadores a se oferecerem para a exploração. Isto é verdade independentemente da cultura e da ideologia - se eles estão na posição de ser um trabalhador, eles vão se tornar disponíveis para o trabalho. Esta afirmação pressupõe os factos sobre a natureza humana que acabo de defender, nomeadamente, que os agentes de qualquer cultura estão motivados a defender o seu bem-estar físico. A razão pela qual colocam a sua força de trabalho à disposição dos empregadores é que essa é a única opção que têm à disposição para manterem o seu bem-estar. São livres de recusar, naturalmente, se a sua cultura lhes disser que tais práticas são inaceitáveis - mas, como Engels salientou nos seus primeiros escritos, isso significa apenas que são livres para passar fome (16). Eu sublinho este ponto apenas pela seguinte razão: os teóricos pós-coloniais não podem afirmar a globalização do capital, a disseminação do trabalho assalariado pelo mundo, ao mesmo tempo que negam a realidade das necessidades básicas e do respeito das pessoas pelo seu próprio bem-estar físico. Se continuam a insistir numa visão integralmente construcionista, têm de explicar por que razão a "compulsão rotineira das relações económicas" consegue ser eficaz onde quer que as relações de classe capitalistas estejam asseguradas, independentemente da cultura, ideologia ou religião.

Ora, embora este específico aspecto da natureza humana seja o fundamento sobre o qual assenta a exploração, é também uma fonte central de resistência. A mesma preocupação com o bem-estar que empurra os trabalhadores para os braços dos capitalistas também os motiva a resistir aos termos da sua exploração. A busca incessante do lucro por parte dos empregadores tem como expressão mais direta a busca constante de minimizar os custos de produção. O mais óbvio desses custos, é claro, são os salários. Mas a redução dos salários, enquanto condição para o aumento das margens de lucro, significa necessariamente um aperto nos padrões de vida dos trabalhadores - e, portanto, um assalto, em diferentes graus de intensidade, ao seu bem-estar. Para alguns trabalhadores em sectores de topo de gama ou sindicalizados, o aperto pode ser contido dentro de limites toleráveis, de modo que equivale a lutar em torno do seu nível de vida, mas não necessariamente em torno das suas necessidades básicas. Mas para grande parte do Sul global e para uma gama crescente de setores no mundo desenvolvido, o que está em jogo é muito mais. Acrescente-se agora a isto a necessidade de os empregadores gerirem outros custos associados à produção - tentar espremer tempo extra à maquinaria obsoleta, aumentando assim o risco de lesão dos trabalhadores, a vontade de acelerar o ritmo e a intensidade do trabalho, o prolongamento da jornada de trabalho, o assalto às pensões e às prestações de reforma, etc. - e podemos ver como a acumulação é sistematicamente contrária ao interesse dos trabalhadores pelo seu bem-estar. Os movimentos dos trabalhadores serão muitas vezes orientados apenas para assegurar as condições básicas para a sua reprodução, e não níveis de vida mais elevados.

A preocupação com o seu bem-estar é, portanto, a razão pela qual os proletários se oferecem para a exploração, e porque, depois de o terem feito, passam a lutar em torno dos seus termos. Este aspeto particular da sua natureza humana prende-os a uma condição de interdependência antagónica com o capital. É do seu interesse procurar emprego, a fim de se reproduzirem; mas a condição para garantir o emprego é que se submetam à autoridade do seu empregador, que é levado a minar o seu bem-estar, mesmo quando utiliza a sua atividade laboral. A primeira dimensão deste processo - a sua submissão ao contrato de trabalho - explica por que razão o capitalismo pode criar raízes e consolidar-se em qualquer canto do globo. A segunda dimensão - da luta em torno dos termos da sua exploração - explica por que razão a reprodução de classes gera luta de classes em todas as regiões onde o capitalismo se estabelece (17). A universalização do capital tem como seu duplo a luta universal dos trabalhadores para a defesa do seu bem-estar.

Na nossa conceção, ambos estes universalismos derivam de um único componente da natureza humana. Isto não sugere, de forma alguma, que isso seja tudo o que há a dizer sobre essa natureza. A maioria dos pensadores progressistas tem acreditado que existem outros componentes da natureza humana, outras necessidades, que atravessam as culturas regionais. Assim, por exemplo, existem as necessidades de autonomia ou liberdade de coerção, de expressão criativa, de respeito - só para citar algumas. O meu ponto de vista não é que a natureza humana possa ser reduzida a uma necessidade básica, biológica. É, sim, que essa necessidade existe, mesmo que seja menos exaltada do que algumas outras; e, mais importante ainda, que ela pode ser responsável por uma gama surpreendente de práticas e instituições com as quais os radicais têm de estar envolvidos. É um sinal de quão baixo decaiu o pensamento de esquerda, de quão degenerada se tornou a cultura intelectual, de que seja mesmo necessário defender a sua existência (18).

Conclusão

Quaisquer que tenham sido as suas muitas discordâncias ao longo do século passado, os radicais e os progressistas quase sempre concordaram em dois postulados básicos - que, à medida que o capitalismo se expande, ele subordina todas as partes do mundo a um conjunto comum de compulsões; e que, onde quer que se implante, aqueles que ele submete e explora terão um interesse comum em lutar contra ele, independentemente das suas culturas ou crenças. Houve já algum tempo em que ambas estas afirmações tenham sido mais obviamente verdadeiras? Há mais de cinco anos, uma tremenda crise económica tem assolado os mercados globais e convulsionado as economias nacionais dos Estados Unidos da América à Ásia Oriental, da Europa do Norte à África Austral. Se alguma vez houve dúvidas de que o capital se universalizou, certamente podemos colocá-las agora de parte. Correspondentemente, movimentos contra o neoliberalismo eclodiram em todo o mundo, organizados em torno de um conjunto de reivindicações que convergem em torno de um conjunto surpreendentemente pequeno de preocupações - pela segurança económica, maiores direitos, pela proteção dos serviços básicos e pelo alívio das imposições implacáveis do mercado. Esta é talvez a primeira vez, desde 1968, que há um vislumbre real de um movimento global emergindo novamente. É apenas um indício, é claro, do que muitos de nós esperamos que se possa tornar. Mas é mais do que temos tido, há já algum tempo.

Parece bastante bizarro, num momento como este, vermo-nos sobrecarregados com uma teoria que fez o seu nome ao desmantelar alguns dos próprios pilares conceptuais que nos podem ajudar a compreender a atual conjuntura política e a conceber uma estratégia eficaz. A teoria pós-colonial obteve alguns ganhos reais em certos domínios, especialmente na sua transversalização da literatura proveniente do Sul global. Ao longo dos anos 1980 e 1990, desempenhou um papel importante na manutenção em vida da ideia de anticolonialismo e anti-imperialismo; e, claro, fez do problema do eurocentrismo uma palavra de ordem entre os intelectuais progressistas. Mas estas conquistas vieram com um preço muito elevado. Abandonar o conceito de universalismo, como têm feito muitas das principais luminárias deste movimento teórico, dificilmente será um passo em direção à teorização mais adequada nos tempos em que vivemos.

Mostrei que os argumentos contra o universalismo - pelo menos os que são mais correntes - não têm mérito. Os dois universalismos mais salientes do nosso tempo - a difusão das relações sociais capitalistas e o interesse que os trabalhadores têm em resistir a essa difusão - afirmam-se. Os teóricos pós-coloniais derramaram muita tinta investindo contra moinhos de vento da sua própria criação. Ao fazê-lo, também deram pretexto para um ressurgimento massivo do nativismo e do orientalismo. Não se trata apenas que eles enfatizam o local sobre o universal. A sua valorização do local, a sua obsessão pelas particularidades culturais e, acima de tudo, a sua insistência na cultura como fonte de agência, deram passagem livre ao próprio exotismo que a esquerda outrora abominava nas representações coloniais do não-ocidental.

Ao longo do século XX, a âncora dos movimentos anticoloniais foi, pelo menos para a esquerda, uma crença de que a opressão era errada onde quer que fosse praticada, porque era uma afronta a algumas necessidades humanas básicas - à dignidade, à liberdade, ao bem-estar básico. Mas agora, em nome do anti-eurocentrismo, a teoria pós-colonial ressuscitou o próprio essencialismo cultural que os progressistas viam - com razão - como a justificação ideológica para a dominação imperial. Que melhor desculpa para negar aos povos os seus direitos do que contestar a própria ideia de direitos e interesses universais, como sendo culturalmente tendenciosa? Mas se este tipo de manobra ideológica deve ser rejeitado, é difícil ver como o poderá ser, a não ser abraçando o próprio universalismo que os teóricos pós-coloniais nos pedem para evitar. Nenhum ressurgimento de uma esquerda internacional e democrática é possível se não limparmos estas teias de aranha, afirmando assim os dois universalismos - a nossa humanidade comum, e a ameaça que lhe é colocada por um capitalismo viciosamente universalizante.

Notas:

(1) Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Triffin (eds.), The Postcolonial Studies Reader, London: Routledge, 1995, p. 55.

(2) Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe, Princeton: Princeton University Press, 2007 (segunda edição), p. 95.

(3) Gyan Prakash, ‘Postcolonial Criticism and Indian Historiography’, Social Text, N.º 31/32, 1992, p. 13.

(4) Prakash, ‘Postcolonial Criticism’, p. 14.

(5) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 23.

(6) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 71.

(7) Chakrabarty não é o único a argumentar pelo fracasso da universalização do capital ou para a natureza suspeita da estrutura universalizante do marxismo. Mas é um dos mais influentes. Para uma análise mais detalhada do trabalho de Chakrabarty e de outros teóricos associados ao projeto de Estudos Subalternos, ver o meu livro Postcolonial Theory and the Specter of Capital, London: Verso, 2013.

(8) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 70. Este argumento está incorporado numa discussão complicada de dois tipos diferentes de histórias - História1, que encarna o impulso universalizante do capital, e História2, que encarna as práticas que conseguem manter a sua própria integridade. Eu abstive-me de usar este jargão porque complicaria desnecessariamente a exposição, sem adicionar nenhum conteúdo. Para uma discussão e crítica alargada das conclusões que Chakrabarty tira do duplo História1/História2, ver o meu Postcolonial Theory, ob. cit., especialmente o Capítulo 9.

(9) Dominance without Hegemony, Princeton: Princeton University Press, 2000, pp. 13-14.

(10) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 66.

(11) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 67.

(12) Dipesh Chakrabarty, Rethinking Working Class History: Bengal 1890-1940, Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 212, sublinhado acrescentado.

(13) Arturo Escobar, ‘After Nature: Steps to an Anti-essentialist Political Ecology’, Current Anthropology, 40 (1), February 1999, p. 3.

(14) Chakrabarty, Provincializing Europe, p. 254.

(15) Outro argumento contra as necessidades básicas é que consumimos tipicamente uma grande quantidade de coisas que não tem ligação com as nossas necessidades. Isso é claro que é verdade, mas ainda mais tolo do que a objeção que descrevi no texto principal. O facto de que muito do que consumimos é desnecessário, ou é culturalmente moldado, dificilmente reverte o facto de que ainda precisamos de ter algumas necessidades básicas atendidas para poder sobreviver.

(16) Frederick Engels, The Condition of the Working Class in England, New York: Penguin Books, 1987 [1844].

(17) Para ser preciso, o que gera é a motivação para lutar. Se a motivação gera ou não resistência real, na forma de ação coletiva, depende de uma série de fatores adicionais e contingentes.

(18) O mais chocante de tudo é encontrar autodenominados marxistas que negam a universalidade das necessidades básicas como componente da natureza humana. Isso foi objeto de alguma controvérsia na década de 1980, e poderíamos ser perdoados por pensar que a questão havia sido resolvida. Mas, talvez devido à influência contínua (e bastante desconcertante) de Althusser, especialmente entre os intelectuais mais jovens, as negações persistem. Para a evidência textual definitiva sobre Marx, ver Norman Geras, Marx and Human Nature: Refutation of a Legend, Londres: Verso, 1983. Mais recentemente, ver sobre o jovem Marx, o magnífico estudo de David Leopold, The Young Karl Marx: German Philosophy, and Human Flourishing, Cambridge: Cambridge University Press, 2007; mais globalmente, ver John McMurtry, The Structure of Marx's World-View, Princeton: Princeton University Press, 1978. A única tentativa séria e recente que conheço de levantar dúvidas sobre o compromisso de Marx com a natureza humana é Sean Sayers, Marxism and Human Nature, New York: Routledge, 1998, mas Sayers qualifica seu argumento negando categoricamente o argumento de um Marx anti-humanista (o Marx de Althusser) e afirmando que "o marxismo... não rejeita a noção de uma natureza humana universal" (p. 159).

Sobre o autor

Vivek Chibber (n. 1965) é um académico, editor, teórico social e ativista, nascido na Índia, residente nos E.U.A. desde os anos 1980 e aí naturalizado. Completou uma licenciatura (BA) em Ciência Política em 1987 na Northwestern University e, em 1999, concluiu seu doutorado em Sociologia na Universidade de Wisconsin, onde a sua dissertação foi supervisionada por Erik Olin Wright. É atualmente professor de Sociologia na New York University (NYU). Desde 2017 é editor, com Robert Brenner, da revista de debate e intervenção Catalyst. Desempenhou também atividades editoriais em diversas outras publicações, incluindo Socialist Register, Journal of Agrarian Change, Historical Materialism, American Journal of Sociology, The Journal of Peasant Studies, Politics & Society, British Journal of Sociology e Sociological Theory. Publicou dois livros: Locked in Place: State-Building and Late Industrialization in India, Princeton University Press, 2003 e Postcolonial Theory and the Specter of Capital. London: Verso, 2013.

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