24 de outubro de 2024

Governo de Israel merece ódio de todos, não só da esquerda

Práticas genocidas deveriam ser incompatíveis com valores de qualquer pessoa

Breno Altman
Jornalista judeu, fundador do site Opera Mundi e autor do livro “Contra o Sionismo: Retrato de uma Doutrina Colonial e Racista” (Alameda Editorial)

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Em resposta a texto publicado na Ilustríssima, jornalista refuta que Israel tenha sido criado sob valores autênticos de esquerda e que as críticas desse espectro político ao país tenham fundo antissemita. Para autor, movimento sionista se estruturou em bases religiosas e nacionalistas reacionárias que resultaram em limpeza étnica e carnificina ainda em curso contra o povo palestino.

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Um dos recursos retóricos mais constantes dos sionistas é tentar estabelecer equivalência entre sionismo e judaísmo, de tal sorte que críticas a essa corrente e a sua encarnação estatal possam ser invalidadas como antissemitas. No embornal dessa mutreta sofística, abriga-se o conceito de "israelofobia": o combate ao Estado de Israel seria uma adaptação do preconceito antijudaico.

A Folha publicou artigo que transita por essa via, intitulado "Como Israel, criado sob ideias socialistas, virou alvo de ódio da esquerda". A autoria é da jornalista Sabrina Abreu, diretora da Stand With Us Brasil, agência pertencente ao lobby sionista. Sua resposta à indagação que encabeça o texto omite décadas de colonização, limpeza étnica e carnificina contra o povo palestino.

Manifestação da comunidade palestina em São Paulo, na região da av. Paulista, contra a guerra em Gaza - Zanone Fraissat-22.out.23/Folhapress

Entabulando um raciocínio fantasioso, esconde as práticas genocidas de Israel, como se isso não fosse motivo suficiente para provocar o ódio da esquerda e de qualquer pessoa com índole humanista.

O desfile de barbaridades começa na primeira frase do texto dela: "Israel nasceu sob o domínio da esquerda". Explicando sua afirmação, a autora relembra que o sionismo trabalhista liderou o regime em sua etapa inicial, de 1948 a 1977, e recorre à mitologia dos kibutzim (comunidades agrícolas coletivas) para demonstrar o "ideal socialista" do Estado.

Para início de conversa, o trabalhismo sionista não brota do movimento socialista dos séculos 19 e 20, ao contrário do que insinua Abreu. Limita-se a ser uma variante moderada no interior do sionismo, destinada a camuflar sua identidade frente a massas judaicas influenciadas por correntes anticapitalistas.

Fundado em 1897, por judeus reacionários da estirpe de Theodor Herzl, o movimento sionista se estruturou sobre pilares que exalavam o nacional-chauvinismo típico da direita europeia: a construção de um Estado sob supremacia étnico-religiosa judaica e a ocupação da Palestina para viabilizar esse projeto.

Apresentou-se como sinônimo de "autodeterminação do povo judeu". Essa credencial nunca passou de clichê vulgar. Não há comparação possível com as lutas anticoloniais, através das quais distintas nacionalidades, definidas como intersecção entre povos e territórios, buscam se libertar de metrópoles usurpadoras.

O nacionalismo proposto pelos sionistas era uma trapaça: recrutar a diáspora judaica, através de uma narrativa prenha de misticismo religioso, para se instalar como etnocracia sobre um território no qual outro povo, árabe-muçulmano, respondia por 85% da densidade demográfica.

Esse ponto de vista logo foi combatido por vozes de esquerda, incluindo aquelas de origem judaica. São conhecidos os textos de Eduard Bernstein (judeu!) Karl Kautsky, Victor Adler (também judeu!), Vladimir Lênin, Leon Trótski (outro judeu!) e Josef Stálin, entre muitos, tratando o sionismo como ideologia abominável.

Para esses personagens, a superação do antissemitismo dependeria de a revolução socialista eliminar a base objetiva do ódio contra os judeus, a saber, o quase monopólio da função mercantil e creditícia exercido desde a Antiguidade. Kautsky escreveu, em "Raça e Judaísmo" (1914), que os judeus se constituíam em um "povo-classe" cuja emancipação como povo dependeria do desaparecimento da classe de mercadores e rentistas à qual historicamente estavam vinculados.

Outras organizações judaicas foram criadas para enfrentar o antissemitismo, mas com viés oposto ao indicado por Herzl e seus pares. A mais relevante dessas entidades foi a Liga Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, parida também em 1897 e conhecida como Bund.

Essa instituição, identificada como o partido socialista judaico, defendia que os judeus vivessem de forma plena e assimilada nas sociedades para as quais seus ancestrais tinham emigrado, embora preservando características comunitárias autônomas —como o idioma, a tradição cultural e a crença religiosa.

Acusava o sionismo de estar ligado aos interesses da burguesia judaica e do imperialismo britânico. Denunciava também sua cumplicidade com o antissemitismo, já que buscava se beneficiar da perseguição aos judeus sob o Império Russo, aliciando-os para o projeto de colonização da Palestina com o beneplácito do czar.

A crítica de esquerda era de tal alcance, entre judeus da Europa Oriental, que veio a surgir, no âmbito do próprio sionismo, um setor que se identificava como "socialista", cujo interesse era representar os trabalhadores judeus, alijados pela fração mais conservadora.

Seu principal líder, no início, foi Ber Borochov, fundador do partido Poale Zion, ou Trabalhadores do Sião. Buscava mesclar sionismo e marxismo, subordinando formulações socialistas aos princípios etnocráticos listados por Herzl.

Essa é a origem do trabalhismo israelense, o chamado "sionismo de esquerda": sairia desse campo o primeiro núcleo dirigente do Estado de Israel, governando-o ininterruptamente de 1948 a 1977. Para essa gente, tratava-se de erguer o Estado sob supremacia judaica na Palestina colonizada, mas oferecendo possíveis instrumentos de proteção a judeus pobres emigrados —como os kibutzim citados por Sabrina Abreu. Árabes-muçulmanos deveriam ser marginalizados, expulsos ou mortos.

As fazendas coletivas, aliás, são pouco mais que uma lenda ideológica. Antes do desmoronamento econômico provocado pelas políticas privatistas posteriores a 1977, os kibutzim, restritos a judeus, atingiram um máximo de 5% da população, registrados em 1953.

De acordo com o historiador israelense Tom Segev, "o serviço mais importante fornecido pelos kibutzim à luta nacional judaica foi militar, não econômico ou social". Com código discriminatório semelhante, e muito mais relevante que as comunidades agrícolas, a Histadrut, central sindical sionista, foi criada em 1920.

Chefiada pelos trabalhistas, essa entidade nasceu representando trabalhadores judeus, tornou-se um grande conglomerado empresarial judaico, com empregos somente para judeus. Aceitou a filiação de árabes-israelenses a partir de 1959, mas preservando seus vínculos com o projeto segregador.

O colaboracionismo de setores sionistas com o nazismo, nos anos 1930, foi outro elemento que alimentou a ira marxista contra o pretenso "nacionalismo judaico". O caso mais marcante, de uma extensa lista, foi o Acordo Haavara, entre a Federação Sionista da Alemanha e o governo Hitler, vigente de 1933 a 1938.

O elemento principal desse pacto estava na liberdade para judeus saírem da Alemanha com seus ativos financeiros, desde que emigrassem para a Palestina e esses recursos, tributados por Berlim em 25%, fossem utilizados para aquisição de mercadorias e serviços alemães.

Costurada para favorecer os mais ricos e arrefecer a resistência antinazista, essa combinação violava o boicote mundial estabelecido, a partir de 1935, contra as Leis de Nuremberg —exatamente a legislação que institucionalizaria o antissemitismo hitleriano.

Como se pode ver, o confronto entre esquerda e sionismo é bem anterior à Guerra dos Seis Dias, de 1967, a despeito da argumentação esgrimida pela jornalista da agência pró-Israel. Mas houve um intervalo nesse embate, logo após a Segunda Guerra Mundial.

A comoção gerada pelo Holocausto, com 6 milhões de judeus martirizados, amainou as tensões com o sionismo, então liderado por sua ala trabalhista. A União Soviética, sob comando de Stálin, ofereceu apoio à criação do Estado de Israel, aprovando a resolução 181 das Nações Unidas, determinando a partilha da Palestina.

Mais que isso: através da Tchecoslováquia, armou as tropas de Ben-Gurion, primeiro chefe de governo de Israel, na guerra de 1948-49 contra os palestinos e países árabes, que se recusavam a entregar mais da metade do território às pretensões sionistas.

Um crasso erro do chefe comunista: fracassou ao imaginar que Israel poderia ser, no prólogo da Guerra Fria, um aliado contra o arco imperialista que vinha sendo forjado pelos Estados Unidos.

O regime sionista, nos anos 1950, deslocou-se para o bloco norte-americano, acabando com a trégua entre sionismo e esquerda —à exceção de partidos sociais-democratas incorporados ao campo pró-capitalismo no pós-guerra.

Em contrapartida, Israel recebeu monumentais transferências financeiras e aportes militares que possibilitaram uma firme expansão colonial, até que a Guerra dos Seis Dias consolidasse seu domínio por toda a região.

Foram décadas de opressão e violência praticadas pelo Estado sionista até chegarmos ao genocídio atual do povo palestino. As piores previsões da esquerda a respeito do sionismo, fixadas há mais de cem anos, apenas roçaram os crimes de limpeza étnica e extermínio em curso.

O governo Netanyahu representa a confluência natural do sistema de apartheid entranhado na doutrina de Herzl e abraçado por todas as alas do movimento.

A jornalista Sabrina Abreu falsifica fatos quando atribui ao antissemitismo o ódio da esquerda, e de boa parte da humanidade, contra o regime sionista. A verdade é que racismo e colonialismo, mesmo quando embalados em discursos nacional-socialistas de fachada democrática, são incompatíveis com valores progressistas.

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