27 de janeiro de 2016

A América já não é socialista?

Não, o socialismo não é apenas mais governo - trata-se de propriedade e controle democráticos.

Chris Maisano

Jacobin

Phil Wrigglesworth

Tradução / Se você passa algum tempo em redes sociais, provavelmente já deu de cara com memes pretendendo mostrar o quanto os Estados Unidos já são socialistas, listando toda uma série de programas governamentais, serviços e agências. Há muitas variações sobre esse tema, mas o meu favorito lista não menos que 55 programas alegadamente socialistas que só têm em comum o fato de que é o Tio Sam quem os executa.

Alguns atendem diretamente necessidades sociais e envolvem alguma medida de redistribuição de renda (bibliotecas públicas, programas de bem-estar social, programas de reforço alimentar, previdência, vales-alimentação). Alguns parecem jogados no meio sem nenhuma boa razão (Alertas sobre desaparecidos? A Casa Branca?). Outros são atividades operacionais básicas que qualquer governo moderno, independente de sua orientação ideológica, executaria (o Censo, os departamentos de bombeiros, remoção de lixo e neve, esgotos, iluminação pública). E outros ainda envolvem o vasto aparato de coerção e força (os departamentos de polícia, o FBI, a CIA, as Forças Armadas, as cortes de Justiça, prisões, etc).

Com todas as virtudes de Bernie Sanders, sua campanha para presidente tem apenas engrossado a névoa de confusão ideológica. Em uma parada de campanha no ano passado, ele endossou o pensamento por trás dos mais simplistas desses memes: “Quando você vai a uma biblioteca pública, quando você liga para os bombeiros ou o departamento de polícia, para o que você pensa que está ligando? Estas são instituições socialistas.” Por essa lógica qualquer tipo de projeto coletivo mantido por impostos e realizado através de ação governamental é socialismo.

Não é difícil ver o problema com essa linha de raciocínio. Em um país tão profundamente e reflexivamente anti-estatista como os Estados Unidos, a identificação de ‘socialismo’ com ‘governo’ é talvez a pior estratégica retórica que a esquerda poderia adotar. “Gosta do DMV? Então você vai amar o Socialismo!“ não é um slogan que vai converter muita gente. Mais importante, misturar toda ação governamental com socialismo nos força a defender muitas das formas de ação estatal mais censuráveis, incluindo aquelas que nós preferiríamos abolir em uma sociedade livre e justa.

Uma coisa é identificar bibliotecas públicas com socialismo. Elas operam de acordo com princípios democráticos de acesso e distribuição, fornecendo serviços para todos, independente da capacidade de cada um para pagar. Elas seriam uma das instituições mais importantes em qualquer sociedade socialista digna do nome. Mas incluir a polícia é uma coisa bem diferente. Se as forças responsáveis por matar Sandra Bland, Eric Garner, e Rekia Boyd exemplificam o socialismo em ação, então nenhuma pessoa que deseja liberdade e justiça deveria ser socialista.

A ideia de que qualquer ação governamental é sinônimo de socialismo tem implicações políticas e estratégicas enormes. Afinal de contas, se o nosso país já fosse pelo menos parcialmente socialista, então tudo o que nós teríamos de fazer seria continuar expandindo gradativamente o governo. Nós não precisaríamos mudar o propósito de nenhum programa existente, nem reformar as estruturas administrativas das agências governamentais.

E por que todos esses programas alegadamente socialistas foram conquistados sem desafiar fundamentalmente a propriedade privada, não haveria necessidade de uma confrontação decisiva com os proprietários de capital e seus aliados políticos. Tudo o que nós teríamos de fazer seria eleger políticos simpatizantes para cargos públicos e deixar que eles legislassem o nosso caminho para ainda mais socialismo.

Acadêmicos que vivem de estudar política muitas vezes caem nessa armadilha. Ao simplesmente olhar o tamanho do governo em termos de gastos gerais, muitos argumentam que os EUA estão se tornando cada vez mais socialistas, quer a gente queira ou não. Em sua visão as principais reformas sociais vão acontecer de qualquer maneira, com uma multidão passiva vindo apoiar esses programas de sucesso apenas depois que eles tenham sido legislados por políticos e implementados por burocratas.

O investimento governamental em programas sociais e outras atividades pode muito bem aumentar nas próximas décadas por causa do envelhecimento da população, a crise climática, e outros desenvolvimentos. Mas o volume absoluto de gastos nos diz muito pouco sobre a valência política da ação governamental. Questões chaves sobre aquela atividade estatal sempre precisam ser levantadas: ela reforça ou enfraquece o poder daqueles que possuem capital? Ela aumenta a nossa subordinação à disciplina do mercado ou nos oferece mais liberdade de suas demandas?

Tem havido um certo número de iniciativas governamentais de larga-escala desde os anos 80, mesmo durante períodos de dominância política dos republicanos. Mas muitos dos maiores programas das últimas décadas não fazem nada para fortalecer o poder dos trabalhadores.

O “Earned Income Tax Credit” (EITC) tem trazido um alívio muito necessitado pelos trabalhadores pobres, mas também serve como um subsídio indireto para empregadores de baixo-salário. O “Medicare Part D” oferece subsídios para aposentados com baixa renda, mas é amplamente reconhecido como um presente custoso para a indústria farmacêutica.

O Obamacare tem aumentado a cobertura por convênios de saúde, parcialmente através da (contestada) expansão do Medicaid. Mas o mandato individual serve apenas para aprofundar a mercantilização, adicionando milhões de estadunidenses no sistema de saúde privado, movido pelo lucro. O plano de estímulo de 2009 provavelmente salvou o país de outra Grande Depressão, mas foi inadequado para a escala da crise e pesou na direção de cortes de impostos para negócios que simplesmente embolsaram o dinheiro ao invés de contratar novos trabalhadores. A lista segue em frente.

Por que isso acontece? Primeiro, os ricos e poderosos investem pesado em atividades políticas para promover seus interesses e bloquear reformas progressistas. No final do ano passado, as contribuições de apenas 158 famílias e das companhias que elas possuem (atordoantes 176 milhões de dólares) compunham cerca da metade de todo o financiamento da corrida presidencial de 2016. Através de seus gastos políticos e da influência que isso compra, eles têm sido capazes de moldar os impostos e outras políticas para seu próprio benefício, uma vantagem reforçada por decisões judiciais favoráveis (como por exemplo o caso Citizens United) e atividades de lobby.

De acordo com um famoso estudo de 2014 por dois cientistas políticos, a dominação política dos ricos é agora tão pronunciada que os cidadãos médios exercem “cerca de zero” influência sobre a elaboração de políticas governamentais.

As classes média e alta também mantém os postos mais importantes no governo, sejam eleitos ou indicados. Eles compartilham de um conjunto comum de ideias e valores que tendem a proteger o status quo e reprimir qualquer desafio maior ao sistema, particularmente aqueles vindo da classe trabalhadora e da esquerda.

Estas formas diretas de influência não são o único jeito pelo qual interesses poderosos moldam a ação governamental. Afinal de contas, governos dependem de um nível minimamente robusto de atividade econômica para financiar a si mesmos. A receita fiscal e o financiamento da dívida com que contam os governos estão diretamente relacionados com o estado da economia capitalista e suas taxas de crescimento e lucratividade. Se o nível da atividade econômica encolhe – talvez por que os capitalistas estão descontentes sobre uma nova legislação que beneficia os trabalhadores – o Estado se encontrará cada vez mais em dificuldade para financiar as suas atividades. Isso, por sua vez, leva a uma queda em sua legitimidade e em seus nível de apoio popular.

Como a atividade econômica é significantemente determinada pelas decisões de investimento de capitalistas privados, essas forças podem essencialmente vetar políticas governamentais que eles pensam ser contra seus interesses. Frequentemente, se os capitalistas não são induzidos a fazer investimentos através de subsídios de negócios e outros incentivos, eles simplesmente se recusarão a investir.

Consequentemente, existe uma forte tendência para os políticos e burocratas alinharem suas decisões políticas com os interesses dos capitalistas no setor privado. Preservar a “confiança dos negócios” é uma restrição fundamental na formação de políticas, e é uma das principais razões por que a ação governamental é tão frequentemente favorável aos interesses capitalistas. É assim também que eles conseguem misturar os seus próprios interesses com um maior interesse “público” ou “nacional” – sob um sistema capitalista, existe alguma verdade em suas reivindicações.

Na ausência de organização popular e militância, a ação governamental fará muito pouco para alterar o equilíbrio de poder para longe do Capital e na direção do Trabalho, ou para reduzir a submissão ao Mercado ao invés de aprofundá-la. Enquanto as estruturas fundamentais da Economia permanecerem as mesmas, a ação do Estado beneficiará desproporcionalmente os interesses capitalistas às custas de todo o resto da população.

Isso não significa que reformas progressistas nunca podem ser conquistadas sob o capitalismo, ou que o governo é completamente imune à pressão pública. Entretanto, tais reformas só tem sido conquistadas com o apoio de lutas de massa em ação direta contra os empregadores.

Simplesmente eleger políticos para o gabinete ou assistir o governo se expandir por seu próprio ímpeto nunca foi e nunca será suficiente. Poder econômico é poder político, e sob o capitalismo os proprietários de capital sempre terão a capacidade de debilitar a democracia popular – não importa quem esteja no Congresso ou na Casa Branca.

Conquistar o poder governamental e usá-lo para quebrar o domínio da classe capitalista é uma condição necessária para iniciar a transição para o socialismo. Um governo conduzido por um partido socialista (ou uma coalizão de partidos de esquerda e da classe trabalhadora) se moveria para trazer as principais indústrias e empresas da economia sob alguma forma de controle social. Mas só isso não seria suficiente. As experiências amargas do século XX nos ensinaram que o socialismo não vai promover a causa da liberdade humana se as estruturas políticas e administrativas do governo não forem democratizadas por completo.

Aqui é onde a contínua mobilização popular fora (e, se necessário, contra) estruturas políticas formais se torna absolutamente crucial. Para resistir à inevitável reação das forças capitalistas e conservadoras, uma transição socialista precisaria atrair apoio popular massivo e participação direta nos assuntos do governo.

Isso ocasionaria não apenas a criação de corpos democráticos diretos que substituíssem ou complementassem instituições representativas como o Congresso, mas também um exame dramático das agências estatais e das estruturas administrativas. Tal expansão de poder popular seria necessária tanto para expulsar o pessoal comprometido com o velho regime como para transformar as burocracias frequentemente alienantes e repressivas que atualmente administram os serviços públicos.

Escolas públicas, departamentos de bem-estar social, agências de planejamento, cortes, e todas as outras agências governamentais convidariam os trabalhadores e beneficiários para participar no projeto e na implementação desses serviços. Sindicatos do setor público poderiam exercer um papel chave nesse esforço, organizando tanto os fornecedores quanto os usuários de serviços públicos para transformar radicalmente as estruturas administrativas do governo.

Apenas sob estas condições a atividade governamental seria sinônimo de Socialismo Democrático. Ao invés de colocar um conceito abstrato de “governo” contra as forças do capital, nós deveríamos começar o árduo trabalho de conceber e construir novas instituições que possam fazer um governo do povo, pelo povo e para o povo uma realidade.

Colaboradora

Chris Maisano is a Jacobin contributing editor and a member of Democratic Socialists of America.

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