31 de maio de 2018

A Europa sob Merkel IV: O balanço da impotência

Wolfgang Streeck



Tradução / A Europa, como está organizada – ou desorganizada – na União Europeia (UE), é um estranho monstro político. Consiste, em primeiro lugar, na política interna dos seus estados membros que, com o passar do tempo, se entrelaçaram profundamente. Em segundo lugar, os estados membros, que ainda são estados-nação soberanos, perseguem interesses definidos nacionalmente através de políticas externas nacionais dentro das relações internacionais intra-europeias. Aqui, em terceiro lugar, podem escolher entre confiar numa variedade de instituições supranacionais ou em acordos intergovernamentais entre coligações seletivas de países interessados. Em quarto lugar, desde o início da União Monetária Europeia (UEM), que inclui apenas dezanove dos vinte e oito Estados-Membros da UE, surgiu uma outra arena de relações internacionais europeias, constituída principalmente por instituições intergovernamentais informais, vistas com desconfiança pela UE supranacional. Em quinto lugar, todas estas instituições estão inseridas nas condições geopolíticas e nos interesses geoestratégicos de cada nação, que estão relacionados em particular com os Estados Unidos, por um lado, e com a Rússia, a Europa Oriental, os Balcãs, o Mediterrâneo Oriental e o Médio Oriente, por outro. E sexto, há no fundo do sistema estatal europeu uma batalha contínua pela hegemonia entre os seus dois maiores países membros, a França e a Alemanha – uma batalha que ambos negam existir. Cada um dos dois, a seu modo, considera que a sua pretensão de supremacia europeia é simples e evidentemente justa, a Alemanha tanto assim que nem sequer reconhece as suas ambições enquanto tais (1). Além disso, ambas as possíveis hegemonias estão conscientes de que só podem realizar os seus projetos nacionais incorporando o outro dentro delas, e por isso apresentam as suas aspirações nacionais como projetos de “integração europeia” baseados numa relação especial entre Alemanha e França.

No entanto, desde a crise financeira de 2008, pelo menos, este acordo tem estado numa situação de disfuncionalidade e em crescendo. Os sistemas políticos nacionais estão-se a transformar sob o impacto da integração do mercado internacional e da reação “populista” contra ela. As disparidades económicas entre os países-membros estão a aumentar, com um país em particular, a Alemanha, a colher a maior parte dos benefícios da moeda comum – uma condição impossível de corrigir sob a UEM, tal como está constituída pelo Tratado de Maastricht. Os interesses nacionais no que diz respeito às instituições económicas da União diferem muito entre as diferentes variedades de capitalismo aí reunidas. Embora os conflitos que se seguiram tenham sido, durante algum tempo, encobertos por sucessivas “operações de resgate ” e medidas de emergência, agora parece ter chegado a hora da verdade. O Reino Unido está prestes a partir, alterando o equilíbrio de poder entre os países membros. As pressões para a “reforma” estão a aumentar, mas os Estados-Membros e as instituições supranacionais parecem estar num impasse. O antigo “método comunitário” de adiar decisões críticas parece ter atingido os seus limites; entretanto, os riscos estão a acumular-se.

Este ensaio tenta explicar algumas das complexidades subjacentes ao impasse europeu. Argumenta que a política da Europa está suspensa entre as realidades nacionais e uma ideologia pós-nacional. A Europa sofre de uma negação coletiva do fosso entre as duas realidades, em nome de uma “ideia europeia”. E, à medida que se força para que haja cada vez mais “integração” de diversas sociedades nacionais, o fosso entre a ideologia e a realidade aumenta ainda mais.

A Europa da ideia europeia é um futuro sem passado, atrativamente inocente para um continente carregado de memórias de guerra e de genocídio. No entanto, é também um futuro sem presente: para ser aceitável para os seus diversos constituintes, só pode ser vagamente definido para que todos possam ler nele o que quiserem. As tensões entre a diversidade nacional e a unidade supranacional não podem, portanto, ser abordadas de forma eficaz, uma vez que isso revelaria tanto o vazio da ideologia como os conflitos escondidos debaixo dela.

As crises emergentes devem ser enfrentadas através da improvisação quotidiana, deixando para trás um conjunto opaco e confuso de instituições mal articuladas.

Entretanto, a Europa está dividida por interesses nacionais concorrentes, investida de conteúdos nacionais divergentes e transformada num veículo de ambições nacionais contraditórias, nenhuma das quais pode ser publicamente admitida. Os operadores políticos tornaram-se altamente competentes em substituir o simbolismo sentimental por argumentos públicos sóbrios. O sistema político europeu resultante, ao mesmo tempo que substitui cada vez mais a democracia nacional, tornou-se impenetrável para os cidadãos nacionais – um resultado que dificilmente é acidental. Neste ensaio fazemos uma tentativa de desvendar as muitas convoluções da política europeia e de mostrar como é que a interação crítica entre o nacional e o supranacional está a evoluir na Europa. Conclui que chegou o momento em que a manutenção do status quo europeu deixará de ser suficiente.

Alemanha: O centro em colapso

A Alemanha de Angela Merkel costumava considerar-se um exemplo brilhante de estabilidade política. Mas as mesmas forças de fragmentação e divisão entre e dentro dos campos políticos, que assolaram outras democracias capitalistas, também têm estado presentes na Alemanha, operando subterraneamente e aparecendo sob diversas formas. Na eleição de 24 de setembro de 2017, os dois partidos centrais, CDU/CSU e SPD (União Democrática Cristã/União Social Cristã e Partido Social Democrata), que haviam formado a grande coligação Merkel III e dominado juntos a política alemã desde a década de 1950, ganharam apenas 53,4% dos votos. Desse total, apenas 20,5% foram para o SPD. Isto a comparar-se com 67,2% (SPD 25,7%) quatro anos antes. Em 2005, na eleição que levou a Merkel I (também uma grande coligação), o total de votos combinados foi de 69,4% (SPD 34,2%).

É indicativo da nova volatilidade da política alemã que uma política extremamente hábil como Merkel possa ter interpretado mal o eleitorado em 2017. A política de refugiados de Merkel foi calculada, entre outras coisas, para abrir caminho para uma coligação com os Verdes. (2 ) Em vez disso, esta politica ajudou dois novos partidos, a Alternativa para a Alemanha (AfD) e o Partido Democrata Livre (FDP) (3 ) a sentarem-se no Bundestag, com 12,6% e 10,7% dos votos, respetivamente. Enquanto a AfD é apaixonadamente anti-imigração, o FDP opõe-se à imigração por asilo e defende um regime de imigração orientado para o mercado de trabalho. Depois de que a nova maioria desejada por Merkel com os Verdes não se ter materializado a substituição da grande coligação anterior exigiu que o FDP se juntasse ao governo como um terceiro (ou quarto) parceiro.(4) A nova coligação em potencial passou a ser conhecida coloquialmente como “Jamaica”, referindo-se às cores da bandeira do país e ao código de cores usado para identificar os possíveis partidos da coligação (preto para a DU/CSU, verde para os Verdes e amarelo para o FDP). A Jamaica fracassou em novembro de 2017, após quatro semanas de intensas conversações “exploratórias”, quando o FDP desistiu no último minuto. Aparentemente, isso deveu-se à prática de Merkel de arruinar parceiros de coligação desobedientes nas memórias passadas, reavivadas durante as conversações, com a impressão de que uma profunda e preestabelecida harmonia entre Merkel e os Verdes colocaria os ministros do FDP à margem de um futuro governo conjunto.

A retirada do FDP deixou apenas o SPD como um parceiro de coligação viável para Merkel, mas a resistência dentro do SPD a outra grande coligação foi intensa. O SPD foi o que mais sofreu com a grande coligação de 2013-17 e estava a recuperar-se do seu pior desempenho eleitoral de todos os tempos. Esperando que “Jamaica” se concretize, a liderança do SPD comprometeu-se imediatamente após a eleição para a renovação como partido da oposição. No entanto, essa posição mudou três meses depois, quando o presidente federal, um social-democrata que havia perdido contra Merkel em 2009, lembrou ao SPD a sua “responsabilidade nacional”. Sentindo-se como se a escolha fosse entre a morte e o suicídio, o SPD concordou em dialogar com a CDU/CSU, o que levou duas semanas em janeiro de 2018. Uma convenção do partido em 21 de janeiro aprovou por estreita margem as negociações formais. Duas semanas depois, essas negociações produziram um projeto de acordo de coligação, que teve de ser votado pelos membros do SPD.

Em muitos pontos, o projeto de acordo continha a caligrafia do SPD. Merkel, indiferente como sempre à substância, fez concessões de grande alcance para tornar o acordo aceitável para os membros do SPD. O preço que ela pagou foi ter dado a impressão de que estava apenas preocupada em permanecer no poder. O descontentamento cresceu até mesmo no seu próprio partido quando ela concedeu três dos ministérios mais importantes ao SPD: Finanças, Relações Exteriores e Trabalho. Com o Ministério do Interior a ir para a CSU, restaram apenas departamentos menores para a CDU de Merkel (além da chancelaria, é claro). Durante algum tempo, o partido pareceu cair na sua crise mais profunda desde que Merkel substituiu Helmut Kohl da presidência honorária em 2000.

O SPD também começou a fraturar depois da publicação do projeto de acordo. A oposição a outra grande coligação foi forte, independentemente do resultado das negociações. Muitos temiam que, depois de mais quatro anos sob Merkel, o partido pudesse acabar por ficar atrás da AfD. Enquanto o referendo sobre a adesão ainda estava em curso, Martin Schulz, o infeliz chanceler-candidato e líder inepto do partido desde o início de 2017, foi forçado a demitir-se como líder do partido e de futuro ministro das Relações Exteriores (o cargo que ele mesmo havia reivindicado, depois de ter categoricamente recusado servir num gabinete de Merkel). Pouco depois, Merkel nomeou vários rostos novos, metade dos quais mulheres, para os restantes seis cargos de gabinete da CDU. Isto silenciou, por enquanto, os seus opositores internos do partido. A 4 de Março, foi anunciado que dois terços dos membros do SPD (com uma participação de 78 por cento) tinham votado a favor de outra grande coligação, tendo muitos votado a favor dela por receio de que uma nova eleição geral resultasse noutra derrota ainda mais grave. No dia 14 de março, o Bundestag elegeu Merkel para um quarto mandato como chanceler.( 5 )

Fundamentalmente, o caminho tortuoso para uma grande coligação renovada levantou a questão do futuro de Merkel. Até à onda de imigração de 2015, Merkel tinha dominado no seu partido ainda mais do que Kohl, mudando de direção à vontade, vestindo a CDU com cores esverdeadas e de centro-esquerda, eliminando todos os que poderiam tê-la desafiado para a sucessão. Isso ajudou-a na crise pós-eleitoral quando, após a passagem à reforma do ministro das finanças Wolfgang Schäuble, não restou ninguém que pudesse realisticamente afirmar que lhe sucederia sem o seu consentimento. Ainda assim, após os resultados desastrosos das eleições, o atraso de meio ano na formação de um governo e as difíceis concessões necessárias para formar uma coligação, parece improvável que o seu partido a nomeie para um quinto mandato em 2021. Isto significa que o seu sucessor terá que ser designado no verão de 2020, o mais tardar, para dar tempo suficiente para a campanha. Por outras palavras, aproximadamente no meio do seu quarto mandato, Merkel transformar-se-á numa espécie de pato coxo. Além disso, não só o longo período de formação do governo reduziu a sua vida útil no cargo, como também o calendário eleitoral regional. Nenhuma decisão politicamente difícil pode ser tomada antes das eleições na Baviera em outubro de 2018, certamente não sobre assuntos “europeus”.
Europa alemã

A política nacional alemã é um fator crucial na política da Europa, assim como a Europa é uma poderosa presença interna na Alemanha. O “consenso permissivo” que durante várias décadas permitiu que a integração europeia prosseguisse sem entraves foi mais forte na Alemanha do que em qualquer outro lugar, exceto talvez na Itália. (6) Até hoje, a “Europa ” (7) carrega algo como uma aura sagrada na Alemanha, demasiado elevada para ser ligada a conceitos sujos como o interesse nacional. Os principais sustentáculos do europeísmo alemão são as educadas classes médias e a geração jovem, para quem a Europa representa tudo o que é virtuoso e agradável – de paz, direitos humanos, tolerância e “abertura” para um mercado de trabalho internacional e viagens convenientes através das fronteiras. Refletindo as dificuldades de se identificarem a uma nação alemã depois de 1945, o sentimento pró-europeu alemão há muito tempo considerou evidente que a UE é, em última análise, o navio em que as nações europeias podem abrigar os seus Estados, identidades e interesses separados. Enquanto outros países membros podem ter aderido à UE para restaurar ou preservar a sua soberania nacional, (8) a Alemanha está na UE para se desfazer dela, acreditando firmemente que isso se aplica a todos os outros também.

Isto, naturalmente, não significa que o europeísmo alemão não tenha sido (e não seja) orientado por interesses. A adesão à CEE nos anos 50 foi necessária para o ressurgimento da Alemanha Ocidental como Estado soberano. Além disso, a garantia de acesso a um mercado europeu integrado e em constante expansão era e é indispensável para a prosperidade da economia alemã, excessivamente industrializada e exportadora. Hoje, o acesso ao mercado é assegurado pela moeda comum, que também deprime artificialmente a taxa de câmbio das indústrias alemãs que exportam para o resto do mundo. (9) Na consciência pública alemã, no entanto, os interesses materiais alemães na “Europa” são revestidos por uma imagem da UE, incluindo a UEM, como uma “comunidade de valores” (Wertegemeinschaft). Isso ofusca a questão estrutural de como é e deve ser a Europa política e economicamente organizada: como uma zona de livre comércio, uma plataforma de cooperação entre Estados-nação soberanos, uma organização internacional dedicada à “globalização” das economias nacionais, ou um super-Estado supranacional -e como em particular ela deve estar relacionada à democracia nacional. Uma vez que qualquer discussão sobre esta questão poderia minar a “Europa” como um símbolo integrador – acordando cães adormecidos e expondo a superficialidade de um consenso pró-europeu meramente idealista – esta questão é cuidadosamente evitada. Aqui, a inigualável capacidade de Merkel em se exprimir sem nada dizer tem sido inestimável para preservar a aparência “verde” sem pagamento de juros do europeísmo alemão, que é tão atraente para os eleitores da classe média

Um resultado é que, na Alemanha, os interesses nacionais tendem a ser confundidos com os interesses gerais europeus. (10) Enquanto outros países distinguem entre os dois, e muito menos dão primazia aos primeiros, os alemães ficam honestamente perplexos e a distância entre a intriga e a desaprovação moral é curta. Na Alemanha, ser pouco entusiasta da “união cada vez mais estreita dos povos da Europa” (Tratado de Maastricht) é considerado um indicador de um défice moral: veja-se a condenação moral universal da decisão britânica de sair da União Europeia. A afirmação de interesses nacionais face a algo tão sagrado como “a ideia europeia” é considerada como um lapso deplorável num passado desacreditado. Entretanto, a insistência alemã num mercado integrado em que nenhum país pode enganar a indústria alemã desvalorizando a sua moeda não é vista como a defesa de um interesse nacional, mas como o cumprimento de um imperativo moral.

A perspetiva dos interesses nacionais alemães se dissolverem num interesse europeu comum, ou numa “ideia europeia”, é a mais popular entre os Verdes. Mas é também partilhada por uma grande parte dos eleitores e dos membros do SPD, embora o seu número exato não seja claro. Quando Sigmar Gabriel percebeu, no início de 2017, que o SPD estava farto dele como presidente e candidato a chanceler, chamou Martin Schulz, um ex-presidente do Parlamento Europeu que não conseguiu avançar para a presidência da Comissão Europeia, para que este assumisse ambas as posições do SPD. (11) Como Schulz não tinha experiência na política em geral e na política alemã em p, em particular, a ideia, aparentemente, era que o SPD beneficiasse da sua aura “europeia”. Curiosamente, porém, Schulz optou por não fazer campanha pela “Europa” – a conselho da sua equipa, nunca mencionou sequer o assunto – mas sim pela “justiça social”, uma decisão que mais tarde considerou ser um dos seus muitos erros. Provavelmente para corrigir este erro entendido já como tal, Schulz, de repente, defendeu que um “Estados Unidos da Europa” numa convenção do SPD, em 7 de dezembro de 2017, fosse concluído “o mais tardar em 2025″. Os países que não estivessem dispostos a aderir teriam de abandonar a UE. (A frase ” Estados Unidos da Europa” nunca mais apareceu.)

Enquanto isso, as conversações “Jamaica” fracassaram, sobretudo por causa das suspeitas do FDP de que Merkel e os Verdes já tinham chegado a um acordo tácito para oferecer concessões fiscais substanciais à França. (12) Em resposta, e impulsionados pelas suas conexões francesas, Schulz e Gabriel insistiram que o capítulo do acordo de coligação sobre “Europa” deveria vir em primeiro lugar, o que foi celebrado pelos media convencionais como um importante passo em frente.(13) Alegadamente Schulz e o seu antigo camarada de armas, Jean-Claude Juncker, da Comissão Europeia, foram co-autores da parte do acordo relacionada com a Europa, com Merkel, programaticamente agnóstica como sempre, fazendo-o aprovar sem qualquer modificação. A esperança de Schulz, no entanto, de que isso gerasse entusiasmo entre os membros do SPD e outra grande coligação ficou rapidamente desapontada. Quando Schulz, no seu discurso na convenção do Partido em janeiro, mais uma vez falou de que Emmanuel Macron o chamou para lhe pedir que a formação do novo governo fosse acelerada, os delegados riram-se com desprezo, para surpresa dos jornalistas alemães dos principais media pró-europeus.

Passivos a chegarem à data de vencimento

Entre os legados de Merkel III está uma fragmentação sem precedentes do sistema político partidário alemão, com a AfD a estabelecer uma presença considerável no Bundestag, e o FDP a ter um pouco menos. Ambos chegaram a este nível de representação parlamentar após a abertura das fronteiras de Merkel em 2015. Em comparação com outros países, os seis ou sete partidos parlamentares da Alemanha (dependendo de como se conta a CSU) podem não parecer excessivos. Mas dois deles, o AfD e o Die Link, que juntos representam 22% do eleitorado, são tratados como párias pelos outros. Isso exclui-os de qualquer maioria governamental e é uma das razões pelas quais a formação de Merkel IV foi tão difícil. (Na Alemanha Oriental, os dois partidos juntos representam cerca de 40% dos votos.14)

O Parlamento alemão é um órgão potencialmente bastante poderoso, desde que utilize os seus direitos. Sob o domínio de Merkel III, muitas vezes não o fez. No que se refere à “Europa”, em particular, ambos os partidos da oposição, os Verdes e a Esquerda, estavam ansiosos por proteger a sua reputação “pró-europeia”, não sendo demasiado curiosos. Agora, se a AfD aprende as regras parlamentares, isso vai mudar. E se o FDP, enquanto partido liberal, é claramente “pró-europeu”, é também um porta-estandarte da tradição ordoliberal alemã. Este partido não se cansará, portanto, de recordar ao governo os princípios, como os do Tratado de Maastricht, que a Chancelaria pretende subscrever em público, mas que, na prática, foram muitas vezes desprezados. A AfD, por seu lado, sendo clamorosamente anti-imigração, não perderá qualquer oportunidade de exigir o acesso a informações governamentais politicamente sensíveis sobre esta matéria.

Relativamente à Europa, Merkel III alcançou o seu objetivo primordial: salvar o euro como moeda comum. Não se trata de uma conquista menor, dada a contribuição essencial do euro para a prosperidade alemã. Além disso, porém, o legado europeu de Merkel está cheio de responsabilidades potencialmente destrutivas.

O convite súbito, em setembro de 2015, para a entrada de cerca de um milhão de migrantes na Alemanha – e, ipso facto, no espaço Schengen e na União Europeia – serviu as necessidades alemãs, tanto nacionais como internacionais, e foi alargado sem consulta aos parceiros europeus da Alemanha. Internamente, pretendeu-se preparar uma mudança de coligação em 2017, ajudando Merkel a superar a imagem de “rainha do gelo” que ela havia ganho quando, no início de 2015, ela explicou num programa de TV ao vivo para uma refugiada palestina a chorar e que prestes a ser deportada que “não podemos ficar com vocês todos”. A nível internacional, respondeu, “mostrando um rosto amigo”, à controvérsia sobre o último diktat de “austeridade” entregue à Grécia em junho de 2015, que tinha provocado uma onda de desenhos animados por toda a Europa retratando Merkel e Schäuble com uniformes da Wehrmacht adornados com suásticas.

Entre outras coisas, a abertura da fronteira causou uma profunda divisão com a Europa Oriental, que se tornou ainda mais profunda quando países como a Hungria e a Polónia foram posteriormente ameaçados, tanto por Merkel como por Schulz, com um corte nos subsídios da UE, a menos que concordassem em receber uma parte fixa de um número indefinido de novos imigrantes. A política de imigração alemã de 2015 também pode ter sido a última gota no balde a favor da Leave no referendo Brexit de junho de 2016.

Não menos destrutivo foi um outro aspeto da liderança europeia da Alemanha. A política alemã há muito que é caricaturada pelos seus críticos como excessivamente rígida e inflexível, de acordo com os estereótipos da rigidez “teutónica”. Mas isto baseou-se principalmente na retórica de Merkel, do seu partido, do Bundesbank e do Conselho Alemão de Consultores Económicos. O que raramente se notou foi que estes últimos eram igualmente críticos em relação ao governo de Merkel, mas por ser demasiado acomodatício. De facto, Merkel III, depois de uma análise atenta, tinha repetidamente encorajado tacitamente o BCE e a Comissão Europeia a olharem para o outro lado quando, por exemplo, a França excedeu o seu limite da dívida, ou o Estado italiano precisava de refinanciar o seu sistema bancário, contornando de forma “flexível” as regras de Maastricht. (15). Para manter unido o campo político de Merkel, isto não podia ser admitido publicamente. O custo de tal duplicidade era que se tornava possível desencadear o descontentamento popular relativamente à “rigidez” alemã no exterior, às vezes culminando em pedidos de reparação por crimes de guerra alemães, ou em veredictos de tribunais italianos autorizando a apreensão de propriedades do governo alemão, como instalações do Instituto Goethe, na Itália.

Entre as elites europeias, as concessões não reconhecidas de Merkel parecem ter sido apreciadas, pois ajudaram a manter os novos “populistas” fora do poder. Com o tempo, porém, à medida que a situação no Mediterrâneo continuava a deteriorar-se, a permissividade alemã teve de ser complementada com promessas informais de reformas na zona euro, após a renovação do mandato de Merkel. É claro que não há registo público de que tais promessas tenham sido realmente feitas. Mas sem elas é difícil imaginar como as exigências europeias de uma mudança institucional fundamental poderiam ter ficado tão perfeitamente silenciadas durante a campanha eleitoral alemã. A estratégia de Merkel pode ter sido inspirada pela memória de Helmut Kohl, que foi amplamente venerado por ter pago a conta quando não havia outra forma de resolver as tensões entre os Estados-Membros da UE, especialmente as disputas envolvendo a Alemanha. (16) No entanto, como as contas europeias aumentaram em dimensão, especialmente depois da união monetária, a generosidade alemã atingiu os seus limites, e a austeridade de Schäuble sucedeu-se à generosidade de Kohl como a contribuição alemã prototípica para a integração europeia.

O problema fundamental com as promessas da Alemanha de fazer futuras reparações estruturais ao edifício europeu, a expensas da Alemanha, foi e é o facto de estas se terem tornado inevitavelmente cada vez mais irrealistas, tanto do ponto de vista económico como político. Pouco é tão destrutivo nas relações internacionais como expectativas irrealistas, especialmente quando encorajadas por uma negação moralista dos interesses nacionais e pela sua substituição por “valores”. O estilo de liderança pessoal de Merkel – que sempre se baseou num turbilhão de questões através de uma ambiguidade habilmente elaborada e, na maioria das vezes, de um discurso ininteligível – pode tê-la ajudado durante algum tempo. Mas, em última análise, quando os chips estão em baixo, o risco é que a capacidade limitada seja tomada por ser má vontade, e a incapacidade de dar seja vista como falta de vontade de dar. A defesa da ultra posse é excluída quando a desaprovação moral impede um ajustamento realista das expectativas. A distância entre o prometido e o possível torna-se identificada como um problema moral e não como um problema político ou económico, e o desapontamento resulta numa retórica altamente inflamável, emocional e hostil.

Desde a crise do euro depois de 2008, a política europeia de Merkel consistiu em sucessivas soluções de curto prazo para os problemas estruturais, acompanhadas de sinais de soluções estruturais futuras quando as condições políticas na Alemanha eram favoráveis.

A perspetiva de uma coligação com os Verdes foi útil neste contexto, tal como o foram os sociais-democratas como Gabriel e Schulz. O primeiro como ministro dos Negócios Estrangeiros e o segundo como chanceler-candidato tentaram classificar-se entre os eleitores alemães como sendo de espírito europeu, anunciando repetidamente contribuições alemãs mais elevadas para a “Europa”, a serem dadas unilateral e incondicionalmente, e prometendo geralmente um “fim à austeridade” através do aumento do “investimento” de tipo não especificado. Quando Schulz fez saber que tencionava suceder a Gabriel como ministro dos Negócios Estrangeiros, os jornais italianos falaram de forma lírica sobre a perspetiva de um governo alemão “verdadeiramente europeu”. Finalmente, a Alemanha estaria disposta a reciclar o excedente comercial alemão – presumivelmente localizado nas caves do Bundesbank- no sítio onde pertencia legitimamente, na Itália. (17) (Poucos dias depois, Schulz desapareceu no redemoinho pós-eleitoral do SPD).

Expectativas como estas fazem parte do difícil legado europeu de Merkel e do seu parceiro da coligação SPD, que terá agora de ser resolvido de forma dolorosa. Após a saída de Schulz, a nova estrela do SPD tornou-se um Olaf Scholz, nomeado ministro das Finanças e representante do SPD no gabinete como vice-chanceler. Scholz, ao contrário de Schulz, é um político experiente, que foi ministro do Trabalho em Berlim e foi prefeito de Hamburgo (um Lander segundo a Constituição alemã). Um social-democrata conservador do ponto de vista orçamental, Scholz foi um dos gestores da Agenda 2010 de Schröder. Apesar de conhecer em primeira mão os problemas que os Länder e as comunidades locais têm para equilibrar os seus orçamentos, Scholz apoia vigorosamente o “travão da dívida” que a Alemanha impôs a si própria, tanto a nível nacional como dos Länder. No entanto, após o desaparecimento de Schulz, a imprensa europeia optou por se entusiasmar com Scholz – acreditando que, seja com Schulz ou com Scholz, o SPD no governo manteria a sua retórica sobre as responsabilidades alemãs na “absorção de choques” na Europa, “investimento” e “solidariedade”.

Este artigo foi originalmente publicado em American Affairs Volume II, Número 2 (verão de 2018): 162-92.

Notas

1 Herfried Münkler, Macht in der Mitte: Die neuen Aufgaben Deutschlands in Europa (Hamburg: Körber-Stiftung, 2015).

2 Esta foi uma segunda tentativa depois da “viragem da energia” (Energiewende) após o desastre de Fukushima Daiichi de 2011. Surpreendentemente, em 2013, isso não foi suficiente para fazer com que a ala esquerda dos Verdes renunciasse aos planos de reforma orçamental como condição para aderir ao governo. Desde então, e por causa disso, a ala centrista dos Verdes ganhou vantagem

3 O FDP regressou após a sua experiência de quase morte em 2013, quando, como parceiro menor de Merkel por quatro anos, não conseguiu, com 4,8%, ultrapassar o limite de 5%.

4 A CDU e a CSU são formalmente duas entidades políticas separadas. Mas a CSU apresenta candidatos apenas na Baviera e a CDU apenas fora da Baviera, o que os torna, no seu calão, “partidos irmãos”. Desde a década de 1950, a CSU tem governado o Land da Baviera, quase sempre com maioria absoluta. Em parte, isso é devido à sua presença distinta no nível federal, onde representa agressivamente os interesses e sentimentos bávaros, se necessário, em conflito com a própria CDU. Com efeito, isto contém quaisquer tendências separatistas que ainda possam existir na Baviera.

5 Dos 399 votos combinados da CDU/CSU e do SPD, Merkel recebeu 364, uma diferença de 35 e apenas 9 mais do que o necessário para a maioria absoluta exigida.

6 Leon N. Lindberg and Stuart A. Scheingold, Europe’s Would-Be Polity: Patterns of Change in the European Community (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1970).

7 Qualquer distinção entre a Europa, o continente e a “Europa” como forma idealizada da União Europeia é algo que os acérrimos defensores desta última fazem tudo o que podem para ofuscar.

8 Alan Milward, The European Rescue of the Nation-State (London: Routledge, 1992).

9 Fritz W. Scharpf, “Forced Structural Convergence in the Eurozone—Or a Differentiated European Monetary Community,” MPIfG Discussion Paper 16/15, Max Planck Institute for the Study of Societies, Cologne (2016).

10 A este respeito, se em nenhum outro mais, a política interna alemã assemelha-se à de um país (potencialmente) hegemónico. O mesmo se aplica, naturalmente, à França – só que os franceses imaginam os interesses europeus como idênticos aos interesses franceses, enquanto os alemães imaginam os interesses europeus como negando ou substituindo todos os interesses nacionais, incluindo os alemães. Enquanto ambos os lados se abstiverem tacitamente de levantar a questão, os dois conceitos podem coexistir mais ou menos confortavelmente.

11 Sobre isto e na consequente campanha eleitoral veja-se: Markus Feldenkirchen, Die Schulz-Story: Ein Jahr zwischen Höhenflug und Absturz (München: Deutsche Verlags-Anstalt, 2018).

12 Note-se que Macron tinha alegadamente declarado antes das eleições que, “se o FDP entrar no governo alemão, eu estarei morto.” Mais sobre isso veja-se abaixo.

13 Ambos trabalharam arduamente durante todo o ano para melhorar a sua imagem, encontrando-se com Macron e almoçando ocasionalmente com o filósofo Jürgen Habermas, pelo menos uma vez em conjunto com o próprio Macron. Gabriel chegou ao ponto de declarar Macron um social-democrata, e Habermas fez saber que Macron estava prestes a abolir “a trágica divisão entre direita e esquerda na política francesa”. Quando o SPD se preparava para afastar Gabriel como ministro dos Negócios Estrangeiros, Habermas exigiu, num artigo de um jornal semanal, Die Zeit, que ele fosse mantido no cargo, por causa do seu europeísmo visionário. Sobre as artimanhas de Gabriel, ver Feldenkirchen, Die Schulz-Story (2018).

14 O rendimento per capita da Alemanha Oriental tem sido durante muitos anos cerca de três quartos da média alemã, apesar das transferências financeiras anuais em torno de 4% do PIB alemão. As implicações da persistência obstinada da desigualdade regional, mesmo num estado federal como a Alemanha, para a política e a economia da zona do euro raramente são discutidas. Ver Wolfgang Streeck e Lea Elsässer, “Desunião monetária”: The Domestic Politics of Euroland”, Max Planck Institute for the Study of Societies, Colónia (2014), Documento de reflexão 14-17.

15 Johannes Becker and Clemens Fuest, “Deutschlands Rolle in der EU: Planloser Hegemon. Ein Gastbeitrag,” Frankfurter Allgemeine Zeitung, December 13, 2016.

16 Ver o pagamento da parte de leão dos custos da política agrícola comum (PAC) feito pela Alemanha que beneficiou principalmente a França, em troca da abertura dos mercados para o seu sector transformador.

17 Podemos suspeitar que isso foi, em grande parte, para impedir uma maioria anti-euro nas eleições italianas que se aproximavam. Se assim foi, falhou de forma espetacular. Veja abaixo.

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